Language of document : ECLI:EU:T:2009:519

Processo T‑57/01

Solvay SA

contra

Comissão Europeia

«Concorrência – Abuso de posição dominante – Mercado do carbonato de sódio na Comunidade (com excepção do Reino Unido e da Irlanda) – Decisão que dá por provada uma infracção ao artigo 82.° CE – Acordos de abastecimento de duração excessivamente longa – Desconto de fidelidade – Prescrição do poder da Comissão de aplicar coimas ou sanções – Prazo razoável – Formalidades essenciais – Mercado geográfico relevante – Existência da posição dominante – Exploração abusiva da posição dominante – Direito de acesso ao processo – Coima – Gravidade e duração da infracção – Circunstâncias agravantes – Reincidência – Circunstâncias atenuantes»

Sumário do acórdão

1.      Concorrência – Procedimento administrativo – Prescrição em matéria de procedimentos – Suspensão – Decisão da Comissão objecto de um processo pendente no Tribunal de Justiça – Alcance

(Regulamento n.° 2988/74 do Conselho, artigo 3.°)

2.      Direito comunitário – Princípios – Respeito de um prazo razoável – Âmbito de aplicação – Concorrência – Procedimento administrativo – Processo judicial – Distinção para efeitos da apreciação do respeito de um prazo razoável

(Regulamento n.° 17 do Conselho)

3.      Concorrência – Procedimento administrativo – Obrigações da Comissão – Respeito de um prazo razoável

(Regulamento n.° 17 do Conselho)

4.      Comissão – Princípio da colegialidade – Alcance – Decisão em matéria de concorrência

(Tratado de fusão, artigo 17.°)

5.      Questão de ilegalidade – Alcance – Actos cuja ilegalidade pode ser invocada – Regulamento interno de uma instituição

(Artigo 241.° CE)

6.      Actos das instituições – Autenticação dos actos adoptados – Modalidades

(Regulamento interno da Comissão, artigo 16.°, primeiro parágrafo)

7.      Direito comunitário – Princípios – Direitos de defesa – Âmbito de aplicação – Concorrência – Procedimento administrativo – Alcance do princípio depois da anulação de uma primeira decisão da Comissão

(Artigo 81.°, n.° 1, CE)

8.      Concorrência – Procedimento administrativo – Poderes de investigação da Comissão – Alcance – Acesso às instalações das empresas

(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 14.°)

9.      Concorrência – Posição dominante – Mercado em questão – Delimitação geográfica

(Artigo 82.° CE)

10.    Concorrência – Posição dominante – Caracterização através da detenção de uma quota de mercado muito grande

(Artigo 82.° CE)

11.    Concorrência – Posição dominante – Abuso – Desconto com efeito de encerramento do mercado – Descontos de fidelidade

(Artigo 82.° CE)

12.    Concorrência – Posição dominante – Abuso – Descontos pela quantidade – Admissibilidade – Requisitos – Carácter abusivo do sistema de descontos

(Artigo 82.° CE)

13.    Concorrência – Posição dominante – Abuso – Contratos de exclusividade de fornecimento – Descontos de fidelidade

(Artigo 82.° CE)

14.    Concorrência – Posição dominante – Abuso – Descontos pela quantidade – Admissibilidade – Requisitos – Modalidades de cálculo

(Artigo 82.°, segundo parágrafo, CE)

15.    Concorrência – Procedimento administrativo – Respeito dos direitos de defesa – Acesso ao processo – Alcance – Recusa de comunicação de um documento – Consequências

16.    Concorrência – Procedimento administrativo – Acesso ao processo – Objecto – Não divulgação de documentos na posse da Comissão – Apreciação pelo Tribunal à luz do respeito dos direitos de defesa no caso concreto

17.    Concorrência – Procedimento administrativo – Violação dos direitos de defesa – Acesso irregular ao processo – Acesso assegurado no processo judicial – Regularização – Exclusão

18.    Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão da Comissão – Decisão que dá por provada uma infracção e aplica uma coima – Anulação por vício de forma

(Regulamento n.° 17 do Conselho)

19.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Infracções de particular gravidade

(Artigo 82.° CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2)

20.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Gravidade da infracção – Circunstâncias agravantes – Reincidência – Conceito de infracções do mesmo tipo – Infracções aos artigos 81.° e 82.° CE – Exclusão

(Artigos 81.° CE e 82.° CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2)

21.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Circunstâncias atenuantes – Inexistência de reincidência – Exclusão

(Artigos 81.° CE e 82.° CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2)

22.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Circunstâncias atenuantes – Colaboração da empresa nas inspecções dos agentes da Comissão – Exclusão

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 14.°)

23.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Volume de negócios tomado em consideração no cálculo do limite máximo da coima

(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2)

24.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Carácter dissuasivo

(Artigo 81.°, n.° 1, CE; Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2)

1.      Nos termos do artigo 3.° do Regulamento n.° 2988/74, relativo à prescrição quanto a procedimentos e execução de sanções no domínio do direito dos transportes e da concorrência da Comunidade Económica Europeia, a prescrição de procedimentos suspende‑se enquanto a decisão da Comissão for objecto de um «processo pendente no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias». Esta referência deve ser interpretada, desde a criação do então Tribunal de Primeira Instância, no sentido de que em primeiro lugar se refere a um processo pendente nesse Tribunal, na medida em que os recursos relativos a sanções ou coimas no domínio do direito da concorrência são da sua competência.

A prescrição também fica suspensa durante todo o tempo de um processo de recurso de decisão do Tribunal Geral no Tribunal de Justiça. O artigo 60.° do Estatuto do Tribunal de Justiça e o artigo 3.° do Regulamento n.° 2988/74 têm um âmbito de aplicação diferente, o facto de um recurso de segunda instância não ter efeito suspensivo não é susceptível de privar de qualquer efeito útil o artigo 3.° do referido regulamento, que respeita a situações em que a Comissão tem de aguardar a decisão do tribunal comunitário. Além disso, o artigo 3.° do Regulamento n.° 2988/74 protege a Comissão contra o efeito da prescrição nas situações em que tenha de aguardar a decisão do tribunal comunitário, no âmbito de processos cuja tramitação não domina, antes de saber se o acto recorrido está ou não ferido de ilegalidade. O argumento de que a criação de um duplo grau jurisdicional não permite alargar o período de suspensão da prescrição não pode, portanto, proceder. A suspensão da prescrição apenas permite que a Comissão eventualmente adopte uma nova decisão no caso de negação de provimento ao recurso interposto de um acórdão do Tribunal Geral que anula uma decisão da Comissão. Essa suspensão da prescrição não tem qualquer efeito na decisão anulada pelo acórdão do Tribunal Geral. Em caso de recurso de segunda instância, a Comissão não está formalmente impedida de agir e adoptar nova decisão na sequência da anulação da decisão inicial pelo Tribunal Geral. Contudo, um recurso interposto da decisão que aplique sanções suspende a prescrição em matéria de procedimentos sancionatórios até que o tribunal comunitário decida definitivamente sobre o recurso. se a Comissão tiver de adoptar uma nova decisão na sequência da anulação de uma decisão pelo Tribunal Geral, sem aguardar o acórdão do Tribunal de Justiça, existe o risco de coexistirem duas decisões com o mesmo objecto no caso de o Tribunal de Justiça anular o acórdão do Tribunal Geral. Além disso, vai contra as exigências da economia processual administrativa impor à Comissão que, unicamente para evitar a prescrição, adopte nova decisão antes de saber se a decisão inicial está ou não ferida de ilegalidade.

Por último, tendo‑se suspendido a prescrição de acordo com o artigo 3.° do Regulamento n.° 2988/74 durante todo o tempo do processo de recurso no Tribunal de Justiça, não se pode imputar à Comissão qualquer violação do princípio do prazo razoável unicamente por ter esperado que o Tribunal de Justiça decidisse esse recurso de segunda instância antes de adoptar uma nova decisão.

(cf. n.os 90, 97‑98, 102‑103, 105‑108, 121)

2.      No âmbito da análise de uma alegação de violação do princípio do prazo razoável, há que fazer uma distinção entre o procedimento administrativo em matéria de concorrência nos termos do Regulamento n.° 17 e o processo jurisdicional em caso de recurso da Comissão. O período em que o juiz comunitário examina a legalidade da decisão e, em caso de recurso de segunda instância, a validade do acórdão proferido em primeira instância, não pode ser tida em conta na determinação da duração do procedimento na Comissão.

(cf. n.° 124)

3.      A violação do princípio do prazo razoável na adopção da decisão no termo de um procedimento administrativo em matéria de concorrência só justifica a anulação de uma decisão da Comissão se implicar também uma violação dos direitos de defesa da empresa em causa. Com efeito, quando não se prove que o decurso excessivo do tempo tenha afectado a capacidade de as empresas em questão se defenderem efectivamente, o desrespeito do princípio do prazo razoável não tem incidência na validade do procedimento administrativo.

(cf. n.° 132)

4.      O princípio da colegialidade assenta na igualdade dos membros da Comissão no processo de decisão e implica, nomeadamente, que as decisões são tomadas em comum e que todos os membros do colégio são colectivamente responsáveis, no plano político, por todas as decisões. O respeito desse princípio e, em especial, a necessidade de as decisões serem tomadas em comum, interessa necessariamente aos sujeitos de direito afectados pelos seus efeitos jurídicos, devendo estes poder confiar que essas decisões foram efectivamente tomadas pelo colégio e correspondem exactamente à sua vontade. Em particular, é esse o caso dos actos, expressamente qualificados de decisões, que a Comissão pratica face às empresas ou associações de empresas com vista ao respeito das normas de concorrência e que têm por objecto a declaração de uma infracção a essas normas, dirigir intimações a essas empresas e aplicar‑lhes sanções pecuniárias.

O simples facto de um comunicado de imprensa que não emana Comissão nem tem qualquer carácter oficial referir uma declaração efectuada por um porta‑voz da Comissão que precisa a data em que será adoptada uma decisão em matéria de concorrência e o seu teor não basta para considerar que a Comissão violou o princípio da colegialidade. Não estando vinculado por essa declaração, o colégio dos comissários pode decidir, após deliberação em comum, não adoptar tal decisão.

(cf. n.os 151‑155)

5.      O âmbito de aplicação do artigo 241.° CE deve também estender‑se às disposições do regulamento interno de uma instituição que, embora não constituam a base jurídica da decisão recorrida nem produzam efeitos análogos aos de um regulamento na acepção desse artigo do Tratado, determinam as formalidades essenciais exigidas para a adopção dessa decisão e garantem, consequentemente, a segurança jurídica dos seus destinatários. Com efeito, é importante que qualquer destinatário de uma decisão possa contestar de forma eficaz a legalidade do acto que condiciona a validade formal dessa decisão, não obstante esse acto não ser o seu fundamento jurídico, uma vez que não teve a possibilidade de pedir a anulação desse acto antes de receber a notificação da decisão controvertida. Consequentemente, as disposições do regulamento interno da Comissão podem ser objecto de uma questão de ilegalidade, uma vez que garantem a protecção dos particulares. A questão de ilegalidade deve ser limitada ao indispensável à decisão da causa. O artigo 241.° CE não tem por objectivo permitir a uma parte contestar a aplicabilidade de todo e qualquer acto de carácter geral a favor de um recurso qualquer, o acto geral cuja ilegalidade é arguida deve, além disso, ser aplicável, directa ou indirectamente, ao caso concreto em recurso e tem de existir uma ligação jurídica directa entre a decisão individual recorrida e o acto geral em causa.

(cf. n.os 165‑167)

6.      O artigo 16.°, primeiro parágrafo, do regulamento interno da Comissão de 1999 dispõe que os actos adoptados em reunião devem ser anexados de forma indissociável, na(s) língua(s) em que faz(em) fé, à nota recapitulativa elaborada no final da reunião da Comissão em que foram adoptados. Estes actos são autenticados pelas assinaturas do presidente e do secretário‑geral, apostas na última página da nota recapitulativa. Esta disposição não está ferida de ilegalidade. As formalidades de autenticação que prevê estão de acordo com as exigências do princípio da segurança jurídica.

(cf. n.os 170, 175‑176)

7.      Quando a Comissão, depois da anulação de uma decisão que aplica sanções a empresas que infringiram o artigo 81.°, n.° 1, CE, com fundamento em vício de forma relativo exclusivamente às modalidades da sua adopção definitiva pelo colégio dos comissários, adopta uma nova decisão, com um conteúdo substancialmente idêntico e com base nas mesmas acusações, não tem de proceder a nova audição das empresas em causa.

A Comissão não tinha de proceder a uma nova consulta do comité consultivo em matéria de acordos, decisões e práticas concertadas e de posições dominantes mesmo apesar de, entre essa consulta e a adopção da nova decisão, terem aderido vários Estados‑Membros à Comunidade Europeia e a composição desse comité ter sido consequentemente alterada. Com efeito, a alteração da composição de uma instituição não afecta a continuidade da própria instituição, cujos actos definitivos ou preparatórios mantêm, em princípio, todos os seus efeitos. Além disso, não existe nenhum princípio geral de direito comunitário que imponha a continuidade da composição do órgão administrativo ao qual esteja submetido um procedimento que possa levar à aplicação de uma coima.

Quanto às questões de direito susceptíveis de surgir no âmbito da aplicação do artigo 233.° CE, como as relativas ao decurso do tempo, à possibilidade de recomeço do procedimento, ao acesso ao processo que seria inerente a esse recomeço, à intervenção do consultor‑auditor, bem como a eventuais implicações do artigo 20.° do Regulamento n.° 17, não exigem novas audições, na medida em que não alteram o conteúdo das acusações, sendo unicamente passíveis de fiscalização jurisdicional posterior.

(cf. n.os 184‑185, 202, 207‑209)

8.      Tanto a finalidade do Regulamento n.° 17 como a enumeração contida no seu artigo 14.° dos poderes atribuídos aos agentes da Comissão tornam patente que as inspecções podem ter um alcance muito lato.

A este respeito, o direito de acesso a todas as instalações, terrenos ou meios de transporte das empresas tem especial importância na medida em que permite à Comissão recolher as provas das infracções às regras de concorrência nos locais em que normalmente se encontram, ou seja, nas instalações comerciais das empresas.

Esse direito de acesso ficaria desprovido de utilidade se os agentes da Comissão tivessem de se limitar a solicitar a apresentação de documentos ou processos que pudessem anteriormente identificar de forma precisa. implica, pelo contrário, a faculdade de procurar diversos elementos de informação ainda não conhecidos ou não totalmente identificados. Sem essa faculdade, a Comissão não teria a possibilidade de recolher os elementos de informação necessários à inspecção no caso de se deparar com uma recusa de colaboração ou mesmo com uma atitude de obstrução por parte das empresas em causa.

O exercício de amplos poderes de investigação de que a Comissão dispõe está sujeito a condições que se destinam a garantir o respeito dos direitos das empresas em causa. A esse propósito, a obrigação de a Comissão mencionar o objecto e finalidade de uma inspecção constitui uma exigência fundamental não apenas para revelar a justificação da intervenção pretendida no interior das empresas em causa como também para lhes dar a possibilidade de tomarem consciência do alcance do seu dever de colaboração, preservando ao mesmo tempo os respectivos direitos de defesa.

Daí resulta que o alcance do dever de fundamentação das decisões de inspecção não pode ser restringido em função de considerações relativas à eficácia da investigação. A este respeito, embora seja certo que a Comissão não tem de comunicar ao destinatário de uma decisão de inspecção todas as informações de que dispõe a respeito de presumíveis infracções nem de proceder à qualificação jurídica rigorosa dessas infracções, deve, em contrapartida, indicar claramente as presunções que pretende investigar.

Uma vez que a Comissão não tem de proceder a uma qualificação jurídica rigorosa das infracções, o facto de uma decisão de verificação fazer referência unicamente ao artigo 81.° CE e não referir expressamente o artigo 82.° CE não pode, só por si, levar a considerar que a Comissão violou o artigo 14.° do Regulamento n.° 17. Com efeito, embora resulte da redacção da decisão de inspecção que a Comissão só pretende expressamente verificar se uma empresa participou em acordos e/ou práticas concertadas, nenhum elemento permite considerar que se suspeitava também de um abuso de posição dominante, a apreensão de documentos não excedeu o quadro de legalidade constituído pela decisão de inspecção, uma vez que uma parte dos factos relativamente aos quais os agentes da Comissão tinham sido mandatados com vista à obtenção das provas de uma infracção ao artigo 81.° CE eram os mesmos que vieram depois a constituir o fundamento das acusações de abuso de posição dominante imputadas à empresa em causa e que a decisão de inspecção contém os elementos essenciais exigidos pelo artigo 14.°, n.° 3, do Regulamento n.° 17.

(cf. n.os 218‑222, 225‑226)

9.      Na sistemática do artigo 82.° CE, o mercado geográfico pode ser definido como o território em que todos os operadores económicos se encontram em condições de concorrência semelhantes no que respeita, precisamente, aos produtos em causa. De modo nenhum é necessário que as condições objectivas da concorrência entre os operadores económicos sejam perfeitamente homogéneas. Basta que sejam semelhantes ou suficientemente homogéneas. Assim, só se pode considerar que não constituem um mercado uniforme as zonas em que as condições objectivas de concorrência são heterogéneas.

Embora o juiz comunitário exerça, de modo geral, uma fiscalização integral no que respeita à questão de saber se estão ou não reunidas as condições de aplicação das normas da concorrência, a fiscalização que exerce sobre as apreciações económicas complexas feitas pela Comissão deve limitar‑se à verificação do respeito das regras processuais e de fundamentação, bem como da exactidão material dos factos, da inexistência de erro manifesto de apreciação e de desvio de poder.

(cf. n.os 249‑250)

10.    A posição dominante referida no artigo 82.° CE diz respeito a uma situação de poder económico detido por uma empresa, que lhe dá o poder de impedir a manutenção de uma concorrência efectiva no mercado em questão, ao possibilitar‑lhe a adopção de comportamentos independentes, numa medida apreciável, relativamente aos seus concorrentes, aos seus clientes e, por fim, relativamente aos consumidores. Essa posição, ao contrário de uma situação de monopólio ou de quase monopólio, não exclui a existência de alguma concorrência, mas permite à empresa que dela desfruta, senão determinar, pelo menos ter uma influência considerável nas condições em que se desenvolve a concorrência e, de qualquer modo, agir em grande medida em seu desrespeito e sem que isso lhe cause prejuízo.

A existência de uma posição dominante resulta geralmente da reunião de vários factores, que, isoladamente, não seriam necessariamente determinantes. A análise da existência de uma posição dominante no mercado em causa deve ser feita examinando primeiro a sua estrutura e, seguidamente, a situação da concorrência nesse mercado.

As grandes quotas de mercado constituem por si só, e salvo circunstâncias excepcionais, a prova da existência de uma posição dominante. Com efeito, a posse de uma quota de mercado extremamente importante coloca a empresa que a detém durante um certo período, em razão do volume de produção e de oferta que representa – sem que os detentores de quotas sensivelmente mais reduzidas tenham a possibilidade de satisfazer rapidamente a procura que pretende afastar‑se da empresa que detém a quota mais importante –, numa situação de força, transformando‑a num parceiro obrigatório e que, só por isso, lhe assegura, pelo menos durante períodos relativamente longos, a independência de comportamento característico da posição dominante.

Assim, uma quota de mercado de 70% a 80% constitui, só por si, um indício claro da existência de uma posição dominante. Do mesmo modo, uma quota de mercado de 50% constitui só por si, e salvo circunstâncias excepcionais, a prova da existência de uma posição dominante.

(cf. n.os 275‑279)

11.    Um sistema de descontos que tenha um efeito de encerramento do mercado será considerado contrário ao artigo 82.° CE se for aplicado por uma empresa em posição dominante. É esse o caso de um desconto de fidelidade concedido como contrapartida de um compromisso de um cliente se abastecer exclusivamente ou quase exclusivamente na empresa em posição dominante. Esse desconto destina‑se a impedir, através da concessão de vantagens económicas, o abastecimento dos clientes nos produtores concorrentes.

(cf. n.os 316‑317)

12.    Os sistemas de descontos pela quantidade, ligados apenas ao volume de compras efectuadas a uma empresa na situação de posição dominante, não têm o efeito de encerramento proibido pelo artigo 82.° CE. Com efeito, se o aumento da quantidade fornecida se traduzir num custo inferior para o fornecedor, este tem o direito de fazer o seu cliente beneficiar dessa redução através de uma tarifa mais favorável. É suposto, portanto, que os descontos pela quantidade reflictam os ganhos de eficiência e as economias de escala realizados pela empresa em posição dominante.

Daí resulta que um sistema de descontos cuja taxa de redução aumente em função do volume comprado não viola o artigo 82.° CE, a não ser que os critérios e as modalidades de concessão dos descontos demonstrem que o sistema não assenta numa contrapartida economicamente justificada, antes se destinando, como no caso de um desconto de fidelização e de objectivo, a impedir o abastecimento dos clientes na concorrência.

Para apreciar o eventual carácter abusivo de um sistema de descontos pela quantidade, há que analisar, portanto, todas as circunstâncias, nomeadamente os critérios e as modalidades da concessão de descontos e apurar se esses descontos se destinam, através de uma vantagem que não assenta em qualquer prestação económica que a justifique, a suprimir ou restringir a possibilidade de o comprador escolher as suas fontes de abastecimento, impedir o acesso ao mercado dos concorrentes, aplicar a parceiros comerciais condições desiguais para prestações equivalentes ou reforçar a posição dominante através de uma concorrência falseada.

(cf. n.os 318‑320)

13.    O facto, para uma empresa em posição dominante num mercado, vincular – ainda que a seu pedido – compradores por uma obrigação ou promessa de se abastecerem na totalidade ou em parte considerável das suas necessidades exclusivamente junto da referida empresa, constitui uma exploração abusiva de uma posição dominante na acepção do artigo 82.° CE, quer essa obrigação tenha sido estipulada sem mais quer tenha a sua contrapartida na concessão de descontos. Isto vale também quando essa empresa, sem vincular os compradores por uma obrigação formal, aplica, quer por força de acordos celebrados com esses compradores quer unilateralmente, um sistema de descontos de fidelidade, isto é, descontos ligados à condição de o cliente se abastecer exclusivamente, na totalidade ou em parte considerável das suas necessidades, na empresa em posição dominante. Com efeito, os compromissos de abastecimento exclusivo dessa natureza, com ou sem contrapartida de reduções ou de descontos de fidelidade com o fim de incentivar o comprador a abastecer‑se junto da empresa em posição dominante, são incompatíveis com o objectivo de uma concorrência não falseada no mercado comum, pois não assentam numa prestação económica que justifique esse encargo ou essa vantagem, antes se destinam a eliminar ou a restringir, a possibilidade de o comprador escolher as suas fontes de abastecimento e a barrar o acesso dos outros produtores ao mercado.

(cf. n.° 365)

14.    Uma empresa em posição dominante tem o direito de conceder descontos pela quantidade aos seus clientes, ligados exclusivamente ao volume das compras feitas a ela. Contudo, as formas de cálculo desses descontos não se devem traduzir na aplicação, aos parceiros comerciais, de condições desiguais a prestações equivalentes, em violação do artigo 82.°, segundo parágrafo, alínea c), CE.

A esse respeito, faz parte da própria essência de um sistema de reduções de quantidades que os maiores compradores ou utilizadores de um produto ou de um serviço beneficiem de preços médios unitários menores ou, o que é a mesma coisa, de taxas médias de redução superiores às concedidas aos adquirentes ou aos utilizadores menos importantes desse produto ou serviço. Mesmo em caso de progressão linear das taxas de redução de quantidades com um desconto máximo, a taxa média de redução aumenta (ou o preço médio diminui) matematicamente, num primeiro momento, em proporção superior ao aumento das compras e, num segundo momento, em proporção inferior ao aumento das compras, antes de se estabilizar na taxa máxima de redução. O simples facto de o resultado de um sistema de redução de quantidades conduzir a que determinados clientes beneficiem, relativamente a determinadas quantidades, de uma taxa média de redução proporcionalmente maior que outros, com referência à diferença dos respectivos volumes de compras, faz parte deste tipo de sistema e daí não se pode inferir que o sistema seja discriminatório.

Todavia, quando os limiares dos diferentes escalões de redução, conjugados com as taxas praticadas, conduzem a que as reduções, ou reduções suplementares, só beneficiem determinados parceiros comerciais, concedendo‑lhes uma vantagem económica não justificada pelo volume de actividade que implicam e pelas eventuais economias de escala que permitem ao fornecedor realizar relativamente aos seus concorrentes, um sistema de redução de quantidades leva à aplicação de condições desiguais a prestações equivalentes.

Podem constituir indícios de um tal tratamento discriminatório um elevado limiar de funcionamento do sistema, que só pode interessar a alguns parceiros particularmente importantes da empresa em posição dominante, ou a inexistência de linearidade do aumento das taxas de redução com as quantidades.

(cf. n.° 396)

15.    Corolário do princípio do respeito dos direitos de defesa, o direito de acesso ao processo implica, num procedimento administrativo em matéria de aplicação das normas de concorrência, que a Comissão faculte à empresa em causa a possibilidade de proceder a um exame de todos os documentos que figuram no processo instrutor e que possam ser pertinentes para a sua defesa. Estes incluem elementos de prova tanto de acusação como de defesa, com a ressalva dos segredos comerciais de outras empresas, dos documentos internos da Comissão e de outras informações confidenciais.

Quanto aos elementos incriminatórios, incumbe à empresa em questão demonstrar que o resultado a que a Comissão chegou na sua decisão teria sido diferente se um documento não comunicado no qual a Comissão se baseou para a incriminar viesse a ter sido afastado como meio de prova incriminatório. Quanto aos elementos de defesa, a empresa em causa deve demonstrar que a sua não divulgação pôde influenciar, em seu prejuízo, a tramitação do processo e o conteúdo da decisão da Comissão. Basta que a empresa demonstre que poderia ter feito uso dos referidos documentos de defesa, no sentido de que, se os pudesse ter utilizado durante o procedimento administrativo, poderia ter invocado elementos que não concordavam com as deduções feitas nessa fase pela Comissão e, consequentemente, poderia ter influenciado, de uma maneira ou de outra, as apreciações por ela feitas na eventual decisão, pelo menos no que respeita à gravidade e à duração do comportamento que lhe era imputado, e, portanto, ao nível da coima. A possibilidade de um documento não divulgado influenciar a tramitação do procedimento e o conteúdo da decisão da Comissão só pode ser provada através de um exame provisório de certos meios de prova, do qual resulte que os documentos não divulgados podiam ter tido – em relação a esses meios de prova – uma importância que não deveria ter sido menosprezada.

Uma violação do direito de acesso ao processo só pode originar uma anulação total ou parcial da decisão da Comissão se o acesso irregular ao processo instrutor no procedimento administrativo tiver impedido a ou as empresas em causa de tomarem conhecimento de documentos susceptíveis de ser úteis à sua defesa, violando, assim, os seus direitos de defesa. Será esse o caso se, com a divulgação de um documento, pudesse ter existido uma possibilidade, mesmo que reduzida, de o procedimento administrativo ter chegado a um resultado diferente no caso de a empresa em causa ter podido invocar esse documento nesse procedimento.

(cf. n.os 405‑407)

16.    O acesso ao processo faz parte das garantias procedimentais que protegem os direitos de defesa e a violação do direito de acesso ao processo da Comissão no procedimento administrativo prévio à adopção da decisão é susceptível, em princípio, de levar à anulação dessa decisão se tiverem sido lesados os direitos de defesa da empresa em causa.

Uma violação dos direitos de defesa deve ser examinada em função das circunstâncias específicas de cada caso concreto, uma vez que depende essencialmente das acusações em que a Comissão se baseia para demonstrar a infracção imputada à empresa em causa. Há que proceder, portanto, a uma análise sumária das acusações de fundo em que a Comissão se baseou na comunicação de acusações e na decisão recorrida.

Numa situação em que, no procedimento administrativo prévio à adopção da decisão que pune uma empresa, a Comissão não elaborou uma lista enumerativa dos documentos do processo nem comunicou à empresa em causa todos os documentos do processo acessíveis, mas unicamente os documentos incriminatórios, sem a convidar a vir às suas instalações consultar todos os documentos o procedimento administrativo é irregular. Contudo, não há que anular a decisão final se não se tiver demonstrado que a empresa não teve a possibilidade de proceder a um exame de todos os documentos do processo eventualmente relevantes para a sua defesa, mesmo apesar de, no recurso jurisdicional interposto da decisão, na sequência de medidas de organização do processo destinadas a assegurar um acesso completo ao processo, se verificar que falta uma parte do processo.

(cf. n.os 450, 454, 456, 458, 465, 467‑468, 481‑482)

17.    O Tribunal Geral, no âmbito de um recurso jurisdicional interposto uma decisão da Comissão que pune uma empresa por infracção às normas comunitárias de concorrência, pode ordenar medidas de organização do processo destinadas a assegurar um acesso completo ao processo, a fim de apreciar se a recusa da Comissão de divulgar um documento ou de comunicar um elemento pôde prejudicar a defesa da empresa arguida. Uma vez que esse exame se limitou a uma fiscalização jurisdicional dos fundamentos invocados, não tem por objectivo ou por efeito substituir uma instrução completa do processo no âmbito de um procedimento administrativo. O conhecimento tardio de certos documentos do processo não volta a colocar a empresa que recorreu de uma decisão na situação em que se encontraria se tivesse podido basear‑se nos mesmos documentos para apresentar as suas observações escritas e orais nessa instituição. Além disso, quando o acesso ao processo é garantido na fase do processo jurisdicional, a empresa em causa não tem de demonstrar que, se tivesse tido acesso aos documentos não comunicados, a decisão da Comissão teria tido um conteúdo diferente, mas apenas que esses documentos poderiam ter sido úteis à sua defesa.

(cf. n.os 458‑459)

18.    Quando uma decisão da Comissão em matéria de concorrência é anulada por vício de forma, a Comissão pode adoptar nova decisão sem abrir novo procedimento administrativo. Uma vez que o conteúdo da nova decisão é quase idêntico ao da anterior e essas duas decisões se baseiam nos mesmos fundamentos, a nova decisão está sujeita, no âmbito da fixação do montante da coima, às normas em vigor no momento da adopção da decisão anterior. Com efeito, a Comissão retoma o procedimento no ponto em que se produziu o erro procedimental e, sem proceder a uma nova apreciação do caso à luz de normas que não existiam à época da adopção da primeira decisão, adopta uma nova decisão.

(cf. n.os 492‑494)

19.    Para apreciar a gravidade das infracções às normas comunitárias de concorrência imputáveis a uma empresa, a fim de determinar um montante de coima que lhe seja proporcional, a Comissão pode ter em conta a duração particularmente longa de certas infracções, o número e a diversidade das infracções, que abrangeram a totalidade ou a quase totalidade dos produtos da empresa em causa, algumas das quais afectando todos os Estados‑Membros, a gravidade particular de infracções integradas numa estratégia deliberada e coerente com vista, através de diversas práticas eliminatórias dos concorrentes e de uma política de fidelização dos clientes, a manter artificialmente ou a reforçar a posição dominante da empresa em mercados onde a concorrência já era limitada, os efeitos de abuso particularmente nefastos no plano da concorrência e a vantagem obtida pela empresa com as suas infracções.

A Comissão pode qualificar de extremamente graves as práticas de uma empresa em posição dominante que, ao conceder descontos sobre a tonelagem marginal aos seus clientes e ao celebrar acordos de fidelização com eles, mantém artificialmente ou reforça a sua posição dominante no mercado em causa, onde a concorrência já é limitada.

(cf. n.os 498‑500)

20.    A análise da gravidade de uma infracção às normas comunitárias da concorrência deve ter em conta uma eventual reincidência. O conceito de reincidência, tal como entendido num certo número de ordenamentos jurídicos nacionais, implica que uma pessoa tenha cometido novas infracções após ter sido punida por infracções semelhantes. As Orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17 e do n.° 5 do artigo 65.° do Tratado CECA vão no mesmo sentido quando se referem a uma «infracção do mesmo tipo». A Comissão não pode, portanto imputar uma circunstância agravante de reincidência a uma empresa que explora de forma abusiva a posição dominante que detém num mercado, na acepção do artigo 82.° CE, por práticas de colusão ligadas ao artigo 81.° CE, de resto muito diferentes das que deram origem à infracção ao artigo 82.° CE.

(cf. n.os 507‑511)

21.    A análise da gravidade de uma infracção às normas comunitárias de concorrência deve ter em conta uma eventual reincidência, que pode justificar um aumento do montante da coima. Em contrapartida, a inexistência de reincidência não constitui uma circunstância atenuante, uma vez que, por princípio, uma empresa tem a obrigação de não cometer infracções às normas comunitárias de concorrência.

(cf. n.os 522‑523)

22.    A cooperação de uma empresa com a Comissão nas inspecções efectuadas nas suas instalações é também uma das obrigações da empresa e que não constitui uma circunstância atenuante que justifique uma redução do montante da coima aplicada por infracção às normas comunitárias de concorrência.

(cf. n.os 527, 529)

23.    Em matéria de determinação do montante das coimas nos processos de concorrência, o volume de negócios a que se refere o artigo 15.°, n.° 2, do Regulamento n.° 17 como limite máximo da coima a aplicar considera‑se ser o volume de negócios global da empresa em causa, o único que dá uma indicação aproximativa da sua importância e influência no mercado. A disposição do Regulamento n.° 17 acima referida não prevê qualquer limite territorial quanto ao volume de negócios realizado. Dentro do respeito do limite fixado nessa disposição, a Comissão pode fixar a coima a partir do volume de negócios da sua escolha, em termos de base geográfica e de produtos em causa.

(cf. n.° 548)

24.    Na determinação do montante das coimas por infracção às normas comunitárias de concorrência, a Comissão deve não só ter em consideração a gravidade da infracção e as circunstâncias específicas do caso concreto mas também o contexto em que a infracção foi cometida e zelar pelo carácter dissuasivo da sua acção, sobretudo para os tipos de infracção particularmente nocivos para a realização dos objectivos da Comunidade. Uma coima não perde, portanto, o seu carácter punitivo e dissuasor, quando se demonstre que a empresa em causa violou o direito da concorrência, nomeadamente por uma infracção de extrema gravidade, mesmo se for novamente decidida depois de um certo lapso de tempo, na sequência da anulação de uma primeira decisão.

(cf. n.os 554‑555)