Language of document : ECLI:EU:C:2018:1030

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

JULIANE KOKOTT

apresentadas em 19 de dezembro de 2018 (1)

Processo C202/18

Ilmārs Rimšēvičs

contra

República da Letónia



e



Processo C238/18



Banco Central Europeu

contra

República da Letónia

«Recurso baseado na violação do artigo 14.o‑2, segundo parágrafo, dos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu – Decisão de uma autoridade nacional de suspender o Governador do banco central nacional das suas funções»






Índice



I.      Introdução

1.        Em que condições podem os Estados‑Membros da União Europeia demitir das suas funções os governadores dos respetivos bancos centrais?

2.        É esta a questão que se coloca nos presentes processos relativamente a Ilmārs Rimšēvičs, Governador do Latvijas Banka (Banco da Letónia), que foi suspenso das suas funções por decisão do Korupcijas novēršanas un apkarošanas birojs (Departamento de Prevenção e Luta contra a corrupção, Letónia) (a seguir «KNAB») por suspeita de tráfico de influência a favor do banco letão Trasta Komercbanka (2).

3.        O Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre esta questão, pela primeira vez, no âmbito da competência que lhe confere o artigo 14.o‑2 do Protocolo n.o 4 do Tratado FUE, relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu (3) (a seguir «Estatutos do SEBC e do BCE»), no que se refere às decisões de demitir das suas funções os governadores dos bancos centrais dos Estados‑Membros.

4.        Esta competência baseia‑se, nomeadamente, no facto de os governadores dos bancos centrais dos Estados‑Membros cuja moeda é o euro, apesar de serem nomeados e demitidos das suas funções pelos Estados‑Membros, serem também membros de um órgão de uma instituição da União, a saber, do Conselho do Banco Central Europeu (a seguir «Conselho do BCE»). Ora, este é o principal órgão de decisão do BCE e do Eurosistema (4) e também desempenha um papel importante na supervisão prudencial das instituições de crédito na União (5).

5.        A independência dos governadores dos bancos centrais nacionais, bem como a do BCE, beneficia, portanto, de uma proteção particular, nomeadamente porque é uma condição essencial para a estabilidade dos preços, principal objetivo da política económica e monetária da União (6) cuja importância é realçada pela sua menção no artigo 3.o do Tratado UE (7).

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia

6.        Os artigos 129.o a 131.o TFUE dispõem:

«Artigo 129.o

1.      O SEBC é dirigido pelos órgãos de decisão do Banco Central Europeu, que são o Conselho do Banco Central Europeu e a Comissão Executiva.

2.      Os Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu, adiante designados “Estatutos do SEBC e do BCE”, constam de um Protocolo anexo aos Tratados.

[…]

Artigo 130.o

No exercício dos poderes e no cumprimento das atribuições e deveres que lhes são conferidos pelos Tratados e pelos Estatutos do SEBC e do BCE, o Banco Central Europeu, os bancos centrais nacionais, ou qualquer membro dos respetivos órgãos de decisão não podem solicitar ou receber instruções das instituições, órgãos ou organismos da União, dos Governos dos Estados‑Membros ou de qualquer outra entidade. As instituições, órgãos ou organismos da União, bem como os Governos dos Estados‑Membros, comprometem‑se a respeitar este princípio e a não procurar influenciar os membros dos órgãos de decisão do Banco Central Europeu ou dos bancos centrais nacionais no exercício das suas funções.

Artigo 131.o

Cada um dos Estados‑Membros assegurará a compatibilidade da respetiva legislação nacional, incluindo os estatutos do seu banco central nacional, com os Tratados e com os Estatutos do SEBC e do BCE.»

7.        Os artigos 282.o e 283.o TFUE têm a seguinte redação:

«Artigo 282.o

1.       O Banco Central Europeu e os bancos centrais nacionais constituem o Sistema Europeu de Bancos Centrais (adiante designado “SEBC”). O Banco Central Europeu e os bancos centrais nacionais dos Estados‑Membros cuja moeda seja o euro, que constituem o Eurosistema, conduzem a política monetária da União.

[…]

Artigo 283.o

1.      O Conselho do Banco Central Europeu é composto pelos membros da Comissão Executiva do Banco Central Europeu e pelos governadores dos bancos centrais nacionais dos Estados‑Membros cuja moeda seja o euro.

[…]»

2.      Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu

8.        O artigo 14.o dos Estatutos do SEBC e do BCE tem como epígrafe «Bancos centrais nacionais» e prevê:

«14.o‑1.      De acordo com o disposto no artigo 131.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, cada Estado‑Membro assegurará a compatibilidade da respetiva legislação nacional, incluindo os estatutos do seu banco central nacional, com os Tratados e com os presentes Estatutos.

14.o‑2.      Os estatutos dos bancos centrais nacionais devem prever, designadamente, que o mandato de um governador de um banco central nacional não seja inferior a cinco anos.

Um governador só pode ser demitido das suas funções se deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas ou se tiver cometido falta grave. O governador em causa ou o Conselho do BCE podem interpor recurso da decisão de demissão para o Tribunal de Justiça com fundamento em violação dos Tratados ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação. Esses recursos devem ser interpostos no prazo de dois meses a contar, conforme o caso, da publicação da decisão ou da sua notificação ao recorrente ou, na falta desta, do dia em que o recorrente tiver tomado conhecimento da decisão.

14.o‑3.      Os bancos centrais nacionais constituem parte integrante do SEBC, devendo atuar em conformidade com as orientações e instruções do BCE. O Conselho do BCE tomará as medidas adequadas para assegurar o cumprimento das orientações e instruções do BCE e pode exigir que lhe seja prestada toda a informação necessária.

[…]»

B.      Direito letão

1.      Código de Processo Penal

9.        O artigo 249.o, n.o 1, do Kriminālprocesa likums (Código de Processo Penal, Letónia) tem a seguinte redação:

«(1) Se, durante a aplicação da medida restritiva, o seu fundamento ficar sem objeto ou se alterar, se as condições de aplicação ou a conduta da pessoa se alterarem, ou se se verificaram outras circunstâncias, que determinaram a escolha da medida restritiva, o responsável pelo procedimento deve alterar ou revogar a referida medida.»

10.      O artigo 262.o, n.o 1, pontos 2 e 3, e n.os 2 a 5, do Código de Processo Penal, tem a seguinte redação:

«(1)      Na fase preliminar do processo, pode ser interposto um recurso da decisão adotada pelo responsável do procedimento contra:

[…]

2)      a proibição de exercer uma determinada atividade profissional;

3)      a proibição de sair do território nacional;

[…]

(2)      Só pode ser interposto recurso da decisão referida no n.o 1 do presente artigo se a pessoa a quem foi aplicada a medida restritiva puder comprovar que os termos dessa medida não podem ser aplicados contra ela. O recurso pode ser interposto perante o juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos pela própria pessoa, pelo seu advogado ou pelo seu representante, no prazo de sete dias a contar da receção da cópia da decisão que aplica a medida restritiva.

(3)      O juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos examina o recurso, no âmbito de um procedimento escrito, no prazo de três dias úteis. Se necessário, o juiz pede os documentos dos autos e esclarecimentos à pessoa encarregada do inquérito ou ao recorrente.

(4)      O juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos pode, ao proferir uma decisão, negar provimento ao recurso, ordenar à pessoa encarregada do inquérito que altere a medida restritiva aplicada ou algumas das suas disposições no prazo de três dias úteis ou fixar o montante da caução.

(5)      É enviada uma cópia da decisão proferida pelo juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos à pessoa encarregada do inquérito, à pessoa a quem foi aplicada a medida restritiva em causa e ao recorrente. Esta decisão não é suscetível de recurso.»

11.      O artigo 375.o, n.o 1, do Código de Processo Penal dispõe:

«(1)      No decurso do processo penal, os elementos dos autos estão abrangidos pelo segredo de justiça e os agentes responsáveis pelo processo penal, bem como as pessoas a quem estes comuniquem os elementos em questão nos termos do procedimento previsto na presente lei estão autorizadas a deles tomar conhecimento.»

2.      Lei relativa ao Banco da Letónia

12.      O artigo 22.o da Likums par Latvijas Banku (Lei do Banco da Letónia) dispõe:

«O Governador do Banco da Letónia é nomeado pelo Parlamento sob recomendação de, pelo menos, dez dos seus membros.

O vice‑governador e os membros do Conselho do Banco da Letónia são designados pelo Parlamento, sob recomendação do Governador do Banco da Letónia.

O mandato do governador, do vice‑governador e dos membros do Conselho do Banco da Letónia é de seis anos. Em caso de cessação de funções de um membro do Conselho antes do termo do seu mandato, é nomeado um novo membro do Conselho do Banco da Letónia para um mandato de seis anos.

O Parlamento apenas pode demitir das suas funções o governador, o vice‑governador e os membros do Conselho do Banco da Letónia antes do termo do mandato previsto no terceiro parágrafo do presente artigo nos seguintes casos:

1.      demissão voluntária;

2.      falta grave na aceção do artigo 14.o‑2 [dos Estatutos do SEBC e do BCE];

3.      outros motivos de demissão de funções estabelecidos no artigo 14.o2 [dos Estatutos do SEBC e do BCE].

No caso do ponto 2 do quarto parágrafo do presente artigo, o Parlamento pode decidir demitir das suas funções o governador, o vice‑governador e os membros do Conselho do Banco da Letónia após o trânsito em julgado de uma decisão condenatória.

O governador do Banco da Letónia pode interpor recurso da decisão do Parlamento de o demitir das suas funções, de acordo com o procedimento previsto no artigo 14.o‑2 dos [Estatutos do SEBC e do BCE]. O vice‑governador ou um membro do Conselho do Banco da Letónia podem submeter a decisão do Parlamento de os demitir das suas funções ao órgão jurisdicional previsto no Código de Processo Administrativo.»

3.      A Lei relativa ao Departamento de Prevenção e Luta contra a Corrupção

13.      Nos termos do artigo 2.o, n.os 1 e 2, do Korupcijas novēršanas un apkarošanas biroja likums (Lei relativa ao Departamento de Prevenção e Luta contra a Corrupção):

«(1)      O Departamento é uma autoridade da administração direta que exerce as funções de prevenção e de luta contra a corrupção estabelecidas na presente lei […]

(2)      O Departamento está sob a supervisão do Conselho de Ministros. O Conselho de Ministros exerce a supervisão institucional através do primeiro‑ministro. A supervisão inclui o direito do primeiro‑ministro de fiscalizar a legalidade das decisões administrativas tomadas pelo chefe do Departamento e de anular as decisões ilegais, bem como, caso constate uma abstenção ilegal de atuar, de ordenar a tomada de decisão. O direito de supervisão pelo Conselho de Ministros não diz respeito às decisões tomadas pelo Departamento no exercício das funções referidas nos artigos 7.o, 8.o, 9.o e 91.o da presente lei.»

14.      O artigo 8.o, n.o 1, ponto 2, da Lei relativa ao Departamento de Prevenção e Luta contra a Corrupção tem a seguinte redação:

«(1)      No âmbito da luta contra a corrupção, o Departamento exerce as seguintes funções:

[…]

2)      Procede a inquéritos e conduz atividades operacionais, a fim de detetar infrações penais previstas pelo Código Penal cometidas ao serviço das instituições públicas, se estas infrações estiveram relacionadas com a corrupção.»

III. Antecedentes do litígio

15.      Em 31 de outubro de 2013, por decisão do Parlamento, Ilmārs Rimšēvičs foi reconduzido no cargo de governador do Banco da Letónia para um novo mandato de 6 anos, entre 21 de dezembro de 2013 e 21 de dezembro de 2019.

16.      Em 17 de fevereiro de 2018, I. Rimšēvičs foi detido na sequência da abertura, em 15 de fevereiro de 2018, de um inquérito preliminar levado a cabo pelo KNAB por ser suspeito de ter cometido um crime de solicitação e de aceitação de suborno, na qualidade de governador do Banco da Letónia.

17.      Em 19 de fevereiro de 2018, I. Rimšēvičs foi libertado mediante o pagamento de uma caução. Nesse mesmo dia, o chefe adjunto da Divisão dos Inquéritos do KNAB adotou uma decisão relativa à constituição de I. Rimšēvičs como arguido, especificando os factos que lhe são imputados e apresentando as provas disponíveis, bem como uma decisão que lhe aplica várias medidas restritivas, nomeadamente, além do pagamento da caução, a proibição de exercer determinadas atividades oficiais, em especial as funções de governador do Banco da Letónia, a proibição de se aproximar de determinadas pessoas e a proibição de sair do território nacional sem autorização prévia. Referia‑se que estas medidas restritivas deviam vigorar durante o inquérito preliminar e até serem alteradas ou retiradas.

18.      Em 27 de fevereiro de 2018, o juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga, Letónia) negou provimento ao recurso interposto por I. Rimšēvičs contra duas das medidas restritivas impostas pelo KNAB, nomeadamente a proibição de exercer determinadas atividades oficiais e a de sair do território nacional sem autorização.

19.      Em 1 de junho de 2018, o chefe adjunto da Divisão dos Inquéritos do KNAB adotou uma nova decisão relativa à constituição de I. Rimšēvič como arguido, completada por novos factos.

20.      Em 28 de junho de 2018, o procurador da Procuradoria‑Geral da República da Letónia decidiu invocar a responsabilidade penal (acusação) de I. Rimšēvičs.

21.      Em 20 de julho de 2018, o vice‑presidente do Tribunal de Justiça ordenou à República da Letónia que tomasse as medidas necessárias para suspender, até à prolação da decisão que porá termo ao processo C‑238/18, as medidas restritivas adotadas em relação a I. Rimšēvičs, na medida em que essas medidas o impedem de nomear um suplente para o substituir como membro do Conselho do BCE (8).

22.      Em 25 de julho de 2018, o procurador da Procuradoria‑Geral da República da Letónia proferiu uma decisão que altera os termos das medidas restritivas adotadas em relação a I. Rimšēvičs. Em 1 de agosto de 2018, I. Rimšēvičs apresentou uma reclamação contestando as medidas restritivas alteradas. Em 22 de agosto de 2018, o juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas pilsētas Vidzemes priekšpilsētas tiesa (Tribunal da Comarca de Vidzeme da cidade de Riga, Letónia) julgou parcialmente procedente a reclamação de I. Rimšēvičs. Em 28 de agosto de 2018, o procurador da Procuradoria‑Geral da República da Letónia proferiu uma decisão que altera novamente as medidas restritivas adotadas em relação a I. Rimšēvičs.

IV.    Tramitação dos processos no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

23.      Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 16 de março de 2018, I. Rimšēvičs interpôs o recurso no processo C‑202/18.

24.      I. Rimšēvičs pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

1)      Declarar que o recorrente foi ilicitamente demitido do cargo de governador do Latvijas Banka (Banco da Letónia) por decisão do Departamento de Prevenção e Luta contra a Corrupção, relativa à aplicação de medidas restritivas, adotada em nome da República da Letónia em 19 de fevereiro de 2018;

2)      Declarar ilícita a medida restritiva aplicada ao recorrente por força da decisão do Departamento de Prevenção e Luta contra a Corrupção, relativa à aplicação de medidas restritivas, adotada em nome da República da Letónia em 19 de fevereiro de 2018 [proibição do exercício de determinadas atividades profissionais — através da qual o recorrente foi proibido de desempenhar as funções e atribuições de governador do Latvijas Banka (Banco da Letónia)].

3)      Declarar ilícitas as restrições impostas ao exercício das funções e atribuições de membro do Conselho do Banco Central Europeu, decorrentes da decisão do Departamento de Prevenção e Luta contra a Corrupção, relativa à aplicação de medidas restritivas, adotada em nome da República da Letónia em 19 de fevereiro de 2018.

25.      Na sua contestação apresentada no processo C‑202/18, a República da Letónia pede ao Tribunal de Justiça que negue integralmente provimento ao recurso de I. Rimšēvičs.

26.      Por requerimento apresentado na Secretaria do Tribunal de Justiça em 3 de abril de 2018, o BCE interpôs recurso no processo C‑238/18.

27.      O BCE pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

1)      Ordenar à República da Letónia que, em conformidade com o disposto no artigo 24.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 62.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, forneça toda a informação pertinente relacionada com as investigações atualmente levada a cabo pelo KNAB contra o governador do Banco da Letónia, e

2)      Declarar, em conformidade com o disposto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, que a República da Letónia violou o segundo parágrafo da referida disposição:

–        ao demitir das suas funções o titular do cargo de governador do Banco da Letónia sem haver uma sentença condenatória proferida por um órgão jurisdicional independente que tenha analisado o mérito do processo e,

–        se os factos alegados pela República da Letónia se confirmarem, sem que haja circunstâncias excecionais que justifiquem a demissão das funções no presente processo.

3.      Condenar a República da Letónia nas despesas.

28.      Além disso, por requerimentos separados, apresentados na Secretaria do Tribunal de Justiça no mesmo dia que a sua petição, o BCE pediu ao Tribunal de Justiça que o processo C‑238/18 fosse submetido a tramitação acelerada em aplicação dos artigos 53.o, n.o 4, e 133.o do Regulamento de Processo, e apresentou um pedido de medidas provisórias ao abrigo do artigo 279.o TFUE e do artigo 160.o do Regulamento de Processo, registado sob o número C‑238/18 R.

29.      Na sua contestação apresentada no processo C‑238/18, a República da Letónia pede ao Tribunal de Justiça que negue integralmente provimento ao recurso do BCE.

30.      Por Despachos de 12 de junho de 2018, Rimšēvičs/Letónia (9) e BCE/Letónia (10), o Presidente do Tribunal de Justiça decidiu submeter os processos C‑202/18 e C‑238/18 à tramitação acelerada nos termos do artigo 133.o do Regulamento de Processo.

31.      Por Despacho de medidas provisórias de 20 de julho de 2018, BCE/Letónia(11), o Vice‑Presidente do Tribunal de Justiça ordenou à República da Letónia que tomasse as medidas necessárias para suspender, até à prolação da decisão que porá termo ao processo C‑238/18, as medidas restritivas adotadas em 19 de fevereiro de 2018 pelo KNAB contra I. Rimšēvičs, na parte em que estas medidas impedem este último de nomear um suplente para o substituir enquanto membro do Conselho do BCE. O pedido de medidas provisórias foi indeferido quanto ao restante, e foi reservada para final a decisão quanto às despesas.

32.      Uma audiência comum aos processos C‑202/18 e C‑238/18 teve lugar em 25 de setembro de 2018.

33.      Na audiência comum, o Tribunal de Justiça solicitou à República da Letónia que apresentasse, no prazo de oito dias, todos os documentos necessários para justificar as medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs bem como a decisão de invocar a sua responsabilidade penal.

34.      Em 2 de outubro de 2018, a República da Letónia apresentou a decisão de invocar a responsabilidade penal de I. Rimšēvičs, de 28 de junho de 2018, juntamente com 43 documentos. Estes documentos foram transmitidos a I. Rimšēvičs e ao BCE, que apresentaram as suas observações em 19 de outubro de 2018.

V.      Apreciação

35.      Os presentes processos são os primeiros a ser apresentados com base no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE. Por conseguinte, importa abordar certos aspetos relativos aos contornos dos recursos interpostos com base nesta disposição (A), antes de abordar a admissibilidade (B) e depois o mérito (C) dos recursos interpostos no caso em apreço por I. Rimšēvičs e pelo BCE.

A.      Sobre os contornos do recurso previsto no artigo 14.o2 dos Estatutos do SEBC e do BCE

1.      Quanto à natureza do recurso

36.      A via de recurso prevista pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE constitui uma via sui generis no sistema de recurso perante o juiz da União, uma vez que oferece ao governador de um banco central nacional e ao BCE (12) a possibilidade de submeter diretamente à fiscalização do Tribunal de Justiça um ato adotado por uma autoridade nacional.

37.      Com efeito, os bancos centrais nacionais desempenham um papel fundamental no âmbito do SEBC e na execução da política monetária da União. Todavia, à semelhança dos outros órgãos dos Estados‑Membros, responsáveis pela execução do direito da União, continuam sujeitos à esfera nacional no que respeita à sua composição e às suas regras de funcionamento. No quadro estabelecido pelo artigo 131.o TFUE e pelo artigo 14.o dos Estatutos do SEBC e do BCE, a aprovação e a aplicação das regras que regem a nomeação e a demissão dos governadores dos bancos centrais dos Estados‑Membros são, portanto, da competência dos Estados‑Membros.

38.      Deve assim entender‑se que a via de recurso prevista no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE é um recurso de anulação apesar de, no sistema de vias de recurso do Tratado FUE, o recurso de anulação ser, em princípio, reservado à impugnação dos atos dos órgãos da União? (13) Ou deve ser entendida, à semelhança da ação por incumprimento, como uma ação destinada a obter a declaração de que um Estado‑Membro não cumpriu as suas obrigações, ainda que, regra geral, o poder de submeter ao juiz da União tal incumprimento caiba à Comissão e aos outros Estados‑Membros? (14)

39.      Além dos aspetos teóricos, as implicações práticas da resposta à questão da natureza dos presentes recursos não são negligenciáveis: se o Tribunal de Justiça anular a decisão do KNAB que impõe as medidas restritivas controvertidas a I. Rimšēvičs, este poderá retomar as suas funções a partir da prolação do acórdão do Tribunal de Justiça. Em contrapartida, se o Tribunal de Justiça se limitar a declarar a incompatibilidade das medidas em causa com os Estatutos do SEBC e do BCE, caberá à República da Letónia tomar as medidas necessárias para assegurar a execução do acórdão do Tribunal de Justiça no seu ordenamento jurídico interno.

40.      Tal como resulta da formulação dos seus pedidos e como o confirmaram na audiência, I. Rimšēvičs e o BCE procuram obter do Tribunal de Justiça uma decisão declaratória de que, ao impor as medidas restritivas controvertidas a I. Rimšēvičs, a República da Letónia violou o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE. Na sequência dessa decisão declaratória do Tribunal de Justiça, incumbirá às autoridades letãs tomar as medidas necessárias para lhe dar seguimento a nível nacional.

41.      A fim de determinar a natureza do recurso previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, bem como o papel do Tribunal de Justiça chamado a pronunciar‑se ao abrigo desta disposição, há que ter em conta não apenas os seus termos mas também a economia geral e o contexto da regulamentação de que faz parte, as finalidades e os objetivos prosseguidos por esta última (15), bem como a sua génese (16).

a)      Redação e génese

42.      Em primeiro lugar, a redação do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE não especifica a natureza do recurso para efeitos da fiscalização pelo Tribunal de Justiça da decisão de demissão de um governador de banco central das suas funções.

43.      É certo que, em algumas versões linguísticas, nomeadamente em francês, o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE prevê um recurso «contra» («contre») a decisão de demitir das suas funções um governador, tal como o artigo 263.o, parágrafo 4, TFUE prevê um recurso «contra os atos» («contre les actes […]») (17). Além disso, na maioria das versões linguísticas do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, a referência de que o recurso pode ser interposto «com fundamento em violação dos Tratados ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação», bem como a última frase relativa ao prazo, são praticamente idênticas aos termos semelhantes do artigo 263.o, parágrafos 2 e 6, TFUE.

44.      No entanto, tendo em conta a génese do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, estes elementos terminológicos não parecem refletir uma escolha deliberada do legislador a favor da classificação do recurso previsto por esta disposição enquanto recurso de anulação.

45.      Assim, por um lado, os Estatutos do SEBC e do BCE, destinados a ser incorporados no Tratado de Maastricht, foram redigidos pelos presidentes dos bancos centrais nacionais apenas em língua inglesa (18).

46.      Ora, as propostas apresentadas neste contexto continham apenas a formulação, que se mantém hoje na versão inglesa, segundo a qual uma decisão que demita das suas funções um governador «may be referred to the Court of Justice» (19). É igualmente o caso da proposta da Presidência da Conferência Intergovernamental sobre a União Económica e Monetária de 30 de outubro de 1991 (20).

47.      Por conseguinte, a circunstância de algumas versões linguísticas do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE referirem um recurso «contra» a decisão de demissão resulta das contingências de tradução. Não pode, portanto, demonstrar que o legislador decidiu conceber o recurso previsto nesta disposição como um recurso de anulação. Esta análise é corroborada pela inexistência, em muitas versões linguísticas do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, de uma formulação semelhante ao artigo 263.o, parágrafo 4, TFUE.(21)

48.      Por outro lado, a versão do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE prevista no Tratado de Maastricht, adotado na Conferência do Conselho Europeu de Maastricht de 9 a 11 de dezembro de 1991 e assinado em fevereiro de 1992, contém a seguir a expressão segundo a qual o recurso pode ser interposto «com fundamento em violação dos Tratados ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação», bem como a última frase relativa ao prazo para interposição do recurso.

49.      É certo que estes dois elementos parecem, mesmo na sua versão inglesa, «emprestados» da disposição predecessora do artigo 263.o, parágrafos 2 e 6, TFUE. No entanto, as observações que acompanham as diferentes versões e os respetivos debates (22) não contêm qualquer referência a debates sobre a natureza do recurso previsto contra a decisão de demissão de um governador de banco central das suas funções.

50.      Por conseguinte, não há nenhum indício que permita inferir que a introdução, no último minuto (23), dos dois elementos mencionados nos números anteriores traduz uma escolha concecional do legislador a favor de um recurso de anulação configurado nos mesmos termos do previsto no artigo 263.o TFUE. É possível que a introdução de um prazo corresponda antes a uma preocupação de celeridade e de segurança jurídica em caso de contestação da demissão de um governador de banco central das suas funções.

51.      Esta interpretação é confirmada pela inexistência, no artigo 14.o dos Estatutos do SEBC e do BCE, de uma disposição equivalente ao artigo 264.o TFUE, que determina a função do juiz no âmbito do recurso previsto no artigo 263.o TFUE ao estipular que, se o recurso tiver fundamento, o juiz anulará o ato impugnado.

b)      Interpretação sistemática e teleológica

52.      Na medida em que a redação e a génese do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE não permitem esclarecer o Tribunal de Justiça sobre a natureza do recurso previsto nesta disposição, é necessário abordar a economia geral e ao contexto da regulamentação de que faz parte, bem como às finalidades e aos objetivos prosseguidos por esta.

53.      Ora, tendo em conta a arquitetura das vias de recurso instituída pelos Tratados, é coerente analisar a via de recurso prevista no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE não como um recurso de anulação, mas como uma ação declarativa semelhante à ação por incumprimento.

54.      Assim, o sistema das vias de recurso perante o juiz da União tem duas esferas certamente interligadas, mas, no entanto, bem separadas. A primeira é a das instituições, órgãos e organismos da União, cujos atos estão sujeitos à fiscalização da legalidade e ao poder de anulação do juiz da União. Em resultado do exercício desse poder de anulação, o ordenamento jurídico da esfera dos atos da União é diretamente alterado: o ato anulado cessa imediatamente de produzir efeitos. O facto do artigo 266.o TFUE prever que a execução de um acórdão pode incluir outras medidas que devem ser tomadas pela instituição de que emana o ato anulado não invalida esta consequência formativa do recurso de anulação.

55.      Em contrapartida, na segunda esfera, que é a dos Estados‑Membros e dos seus órgãos e instituições, o juiz da União não intervém diretamente sobre o ordenamento jurídico nacional, mas apenas declarando a incompatibilidade de um ato ou de uma situação jurídica de direito nacional com o direito da União e as obrigações que incumbem ao Estado‑Membro em causa por força dos Tratados. Esta diferença na natureza da intervenção do juiz é o reflexo da diferença sistemática entre a esfera das instituições, órgãos e organismos da União e a dos Estados‑Membros: enquanto o juiz da União faz diretamente parte da primeira e atua enquanto instituição da União, permanece exterior à segunda que é, em cada Estado‑Membro, um sistema próprio no qual os órgãos nacionais, incluindo os órgãos jurisdicionais, se encarregam da aplicação dos seus acórdãos. Na esfera dos Estados‑Membros, compete assim a estes alterar o ordenamento jurídico nacional, tirando as consequências dos acórdãos do Tribunal de Justiça quanto à existência jurídica dos atos de direito nacional em causa.

56.      É, aliás, de acordo com a separação destas duas esferas que o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se, no âmbito do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, sobre a decisão de um Estado‑Membro que demitiu das suas funções um governador de banco central e não sobre um pedido desse Estado‑Membro para que o Tribunal de Justiça proceda ele próprio a essa demissão. Com efeito, diferentemente do que está previsto para os membros das instituições da União (24), o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar diretamente sobre a demissão dos governadores dos bancos centrais nacionais das suas funções, uma vez que estes apenas podem ser nomeados e demitidos das suas funções pelas autoridades nacionais (25).

57.      Por conseguinte, é também coerente que o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE preveja, como fundamento de interposição do recurso, apenas a violação dos Tratados ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação e não, como no artigo 263.o, parágrafo 2, TFUE, a incompetência, a violação de formalidades essenciais ou ainda o desvio de poder. Com efeito, estes três fundamentos não são pertinentes para a fiscalização pelo Tribunal de Justiça da decisão de demissão de um governador de banco central das suas funções. No que respeita à sua legalidade externa e à competência do seu autor, esta decisão enquadra‑se na esfera dos Estados‑Membros, nomeadamente as regras do direito nacional e a fiscalização dos órgãos jurisdicionais nacionais. A fiscalização do Tribunal de Justiça incide apenas sobre a questão de saber se os requisitos impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE para demitir um governador estão preenchidos (26).

58.      A implementação de um poder de anulação do juiz da União no âmbito do recurso previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE equivale, portanto, a desvirtuar a esfera da União e a dos Estados‑Membros.

59.      É certo que atribuir ao Tribunal de Justiça o poder de anular uma decisão que demite indevidamente das suas funções um governador seria uma arma muito eficaz para efeitos da proteção do objetivo do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, a saber, a salvaguarda da independência dos governadores dos bancos centrais nacionais.

60.      No entanto, a anulação de um ato adotado por uma autoridade nacional constituiria uma ingerência não só inabitual, mas também extremamente profunda no domínio da competência e da autonomia processual dos Estados‑Membros. Ora, tendo em conta a importância constitucional dos princípios da subsidiariedade e de atribuição de competências consagrados nos artigos 4.o e 5.o TUE, a possibilidade de tal ingerência deveria estar explicitamente prevista nos Tratados.

61.      Além disso, o facto do juiz da União ser apenas chamado a proferir uma sentença declaratória e não uma decisão de anulação não retira nada à força jurídica da sua intervenção: os Estados‑Membros, bem como as instituições, órgãos e organismos da União, são obrigados a acatar os seus acórdãos.

62.      Por conseguinte, se, no âmbito do recurso previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, o Tribunal de Justiça declarar a inadmissibilidade de uma decisão de demissão de um governador das suas funções em vez de a anular, os Estados‑Membros são obrigados a dar cumprimento imediato à decisão do Tribunal de Justiça. Na falta desse cumprimento, a Comissão poderá iniciar o procedimento previsto nos artigos 258.o a 260.o TFUE, que constitui a via prevista pelos Tratados para levar os Estados‑Membros a cumprir as suas obrigações.

2.      Quanto ao demandado na ação

63.      Analisar o recurso previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE como ação declarativa inspirada na ação por incumprimento é igualmente coerente com a sua aplicação prática.

64.      Assim, o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE não especifica quem é o demandado no âmbito da via de recurso que prevê.

65.      Nestas condições, inspirar‑se na ação por incumprimento permite considerar que o recurso relativo à decisão de demissão do governador de um banco central nacional das suas funções deve ser interposto contra o Estado‑Membro em causa na sua globalidade, ao qual são imputáveis as ações de todos os seus órgãos e administrações. Assim, é ao Estado‑Membro que compete defender a decisão de demissão do governador do seu banco central das suas funções, bem como assegurar a execução do acórdão subsequente do Tribunal de Justiça nas suas relações jurídicas internas.

66.      Imaginar que o interlocutor do Tribunal de Justiça possa não ser o Estado‑Membro na sua globalidade, mas a autoridade que, nesse Estado, é responsável pela adoção da medida controvertida – como poderia ser o caso num recurso inspirado no recurso de anulação — afigura‑se, por outro lado, difícil. Será que incumbe ao Tribunal de Justiça identificar, a nível nacional, o autor de uma decisão que demite um governador das suas funções, ou até determinar se uma autoridade nacional dispõe, ao abrigo do direito nacional, de personalidade jurídica própria, distinta da personalidade jurídica do Estado‑Membro, para que possa ser demandada judicialmente? E o que aconteceria se a decisão de demissão de um governador de banco central das suas funções não tivesse sido tomada por uma administração, mas sim pelo parlamento do Estado‑Membro em causa ou por um tribunal nacional? Estas reflexões são reveladoras do caráter pouco viável da ação diretamente interposta contra uma autoridade nacional perante o Tribunal de Justiça para efeitos da anulação de um dos seus atos.

67.      Daqui resulta que foi acertadamente que I. Rimšēvičs e o BCE interpuseram os seus recursos contra a República da Letónia.

3.      Conclusão intercalar

68.      Resulta do exposto que os presentes recursos devem ser analisados como recursos destinados a que o Tribunal de Justiça declare que, ao adotar contra I. Rimšēvičs medidas restritivas que o impedem de exercer as suas funções de governador do Banco da Letónia, a República da Letónia não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.

B.      Quanto à competência do Tribunal de Justiça para conhecer das medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs pelo KNAB

1.      Quanto à competência do Tribunal de Justiça

69.      Uma vez que o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE faz referência ao «Tribunal de Justiça», o recurso instituído por esta disposição é, no âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia, da competência do Tribunal de Justiça e não do Tribunal Geral.

70.      Com efeito, em conformidade com o artigo 19.o TUE, os termos «Tribunal de Justiça» ou «Tribunal Geral» designam as duas jurisdições que compõem a instituição «Tribunal de Justiça da União Europeia». Os Estatutos do SEBC e do BCE estão de acordo com esta terminologia, pois os seus artigos 35.o e 36.o fazem menção ao «Tribunal de Justiça da União Europeia» para os processos do BCE perante os órgãos jurisdicionais da União distintos do processo previsto no artigo 14.o‑2. dos referidos estatutos ou para outros processos específicos. Por conseguinte, para efeitos de processos judiciais gerais do BCE perante os órgãos jurisdicionais da União, aplicam‑se as regras tradicionais de distribuição de competências.

71.      Por outro lado, a atribuição da competência para conhecer do pedido específico previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE ao Tribunal de Justiça é justificada à luz da importância constitucional da independência dos governadores dos bancos centrais (27) e da sensibilidade política das questões relacionadas com a sua demissão de funções. Por último, a necessidade de resolver com celeridade um conflito sobre a decisão de demissão de um governador das suas funções para garantir o bom funcionamento do SEBC e do BCE milita contra a criação de um duplo grau de jurisdição no que respeita ao recurso contra tal decisão.

2.      Quanto às medidas impostas a I. Rimšēvičs como demissão de funções na aceção do artigo 14.o2 dos Estatutos do SEBC e do BCE

72.      A República da Letónia alega que o Tribunal de Justiça não é competente para conhecer, com base no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, das medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs pelo KNAB, porquanto estas não consubstanciam uma demissão de funções na aceção dessa disposição. Estas medidas têm por único objetivo permitir a boa tramitação do inquérito e têm apenas um caráter provisório, sendo aplicáveis por um período limitado. Assim, nos termos do artigo 249.o, n.o 1, do Código de Processo Penal letão (28), são suscetíveis de ser alteradas ou revogadas a todo o momento e, em conformidade com o artigo 389.o, n.o 1, ponto 4, do mesmo código, não podem ter uma duração superior a 22 meses. Em contrapartida, o conceito de demissão de funções na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE implica uma rutura do vínculo jurídico e institucional entre o agente e a instituição em causa. Ora, tal rutura só pode ser decidida, em relação a I. Rimšēvičs, pelo Parlamento letão nos termos do artigo 22.o da lei relativa ao Banco da Letónia.(29)

73.      O BCE e I. Rimšēvičs sustentam, pelo contrário, que as medidas restritivas impostas a este último pelo KNAB o impedem efetivamente de exercer as suas funções de governador do Banco da Letónia e de membro do Conselho do BCE. Por conseguinte, para conferir um efeito útil ao artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, cujo objetivo é preservar a independência dos governadores dos bancos centrais nacionais contra qualquer pressão exercida pelos Estados‑Membros, há que considerar que as medidas controvertidas podem estar sujeitas a uma fiscalização do Tribunal de Justiça por força da referida disposição.

74.      Esta última argumentação é convincente.

75.      Assim, sem que seja necessário que o Tribunal de Justiça proceda, no caso em apreço, a uma definição exaustiva do conceito de demissão de funções na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, basta observar que esta disposição ficaria privada do seu efeito útil se medidas como as que foram impostas a I. Rimšēvič pelo KNAB pela decisão de 19 de fevereiro de 2018 não estivessem abrangidas pelo seu âmbito de atuação.

76.      Como já referido, o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE tem por objetivo preservar a independência dos governadores dos bancos centrais nacionais e do Conselho do BCE, principal órgão de decisão deste último, enquanto condição indispensável para a estabilidade dos preços, principal objetivo da política económica e monetária da União e do SEBC (30). Ora, uma proteção efetiva da independência dos governadores dos bancos centrais nacionais exige que o mérito de uma medida nacional possa estar sujeito à fiscalização do Tribunal de Justiça caso essa medida tenha por efeito concreto impedir um governador de exercer as suas funções, independentemente da sua classificação formal no direito nacional. De acordo com o que foi dito supra sobre os fundamentos do recurso previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE (31), não compete aliás ao Tribunal de Justiça examinar se uma medida que afeta o exercício das funções do governador de um banco central nacional corresponde formalmente a uma demissão de funções em direito nacional ou se os procedimentos previstos por este direito para esse efeito foram respeitados (32).

77.      Sem que deva necessariamente ser objeto de uma definição exaustiva, o conceito de demissão de funções na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE não deixa assim de ser um conceito autónomo do direito da União que, no que respeita ao seu âmbito de aplicação, atenta não à forma de uma medida e ao seu estatuto no direito nacional, mas à sua substância e aos seus efeitos concretos.

78.      A este respeito, é certo que as versões francesa e letã do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE utilizam, como outras versões linguísticas desta disposição, termos que sugerem que se ponha fim ao exercício das funções ou à ocupação do cargo ou mandato pelo governador em causa (33). Esta constatação não pode ser atenuada, como propõe o BCE, pelo facto de as disposições do Tratado relativas ao afastamento forçado dos membros de determinadas instituições ou órgãos da União se referirem a uma «demissão compulsiva» e não a uma «demissão», o que sublinharia, segundo o BCE, o caráter mais geral deste último conceito. Este argumento não é, de resto, corroborado por todas as versões linguísticas.(34)

79.      No entanto, o caráter temporário de uma medida ou o facto de não ter como efeito a rutura definitiva do vínculo jurídico e institucional entre o governador e o banco central nacional em causa não podem impedir que essa medida seja qualificada como de demissão de funções na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, se tiver efetivamente como consequência impedir o Governador de exercer as suas funções. Se assim não fosse, os Estados‑Membros poderiam contornar a proibição prevista na referida disposição adotando medidas não formalmente qualificadas de demissão de funções, mas que teriam, na prática, um efeito equivalente. Além disso, como refere com razão o BCE, uma medida aparentemente provisória pode tornar‑se definitiva se os seus efeitos perduram até ao termo do mandato do governador em causa. Igualmente, como observam tanto o BCE como I. Rimšēvičs, mesmo um impedimento temporário de exercício das suas funções constitui uma pressão exercida sobre o governador de um banco central nacional e, portanto, uma ameaça à sua independência, o que o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE pretende justamente evitar.

80.      Daqui resulta que as medidas restritivas impostas, no caso em apreço, pelo KNAB a I. Rimšēvičs através da decisão de 19 de fevereiro de 2018, a saber, a proibição de exercer as funções de governador do Banco da Letónia, bem como a proibição de sair do território nacional sem autorização prévia (na medida em que impede I. Rimšēvičs de participar nas reuniões do Conselho do BCE), devem ser qualificadas de demissão de funções na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE. A este respeito, a circunstância invocada pela República da Letónia de que as proibições impostas a I. Rimšēvičs não prejudicaram o funcionamento do Banco da Letónia — admitindo que seja demonstrada — não é pertinente. O artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE tem por objetivo proteger a independência institucional e pessoal dos governadores dos bancos centrais nacionais e da função que ocupam no âmbito do SEBC e do BCE, e não só o bom funcionamento corrente dos bancos centrais nacionais.

81.      Por uma questão de exaustividade, importa referir que a República da Letónia também não pode validamente invocar o artigo 276.o TFUE para contestar a competência do Tribunal de Justiça no caso em apreço. Nos termos do artigo 276.o TFUE, no exercício das suas atribuições relativamente às disposições dos capítulos 4 («Cooperação judiciária em matéria penal») e 5 («Cooperação policial») do título V da parte III do TFUE, relativas ao espaço de liberdade, segurança e justiça, o Tribunal de Justiça da União Europeia não é competente para fiscalizar a validade ou a proporcionalidade de operações efetuadas pelos serviços de polícia ou outros serviços responsáveis pela aplicação da lei num Estado‑Membro, nem para decidir sobre o exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados‑Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna.

82.      Ora, como já declarou o vice‑presidente do Tribunal de Justiça (35), as medidas em causa no caso em apreço não se enquadram no âmbito da cooperação judiciaria em matéria penal entre Estados‑Membros nem da cooperação policial. Por conseguinte, o artigo 276.o TFUE não se opõe a que o Tribunal de Justiça examine, no âmbito dos presentes processos, as medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs pelo KNAB à luz dos critérios previstos no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.

83.      Por último, também não merecem acolhimento os argumentos da República da Letónia que alega que, no caso em apreço, reconhecer a competência do Tribunal de Justiça equivaleria a conferir uma imunidade penal ao governador do banco central em causa e a interferir no processo penal nacional. Com efeito, não se trata, de forma alguma, de conceder uma imunidade penal a I. Rimšēvičs (36) ou de impedir o KNAB, ou qualquer outra autoridade letã com poderes coercivos, de conduzir um inquérito criminal. Trata‑se apenas de verificar se as medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs, com o objetivo de assegurar a boa tramitação do inquérito do KNAB, são justificadas à luz dos critérios estabelecidos no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.

84.      É certo que, se o Tribunal de Justiça chegar à conclusão de que tal não é o caso, pode ser levado a declarar a incompatibilidade de uma medida imposta para assegurar a boa tramitação de um inquérito penal com o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE. No entanto, é razoável presumir que, se não se demonstrar que o governador de um banco central nacional deixou de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções ou que cometeu uma falta grave, poderá ser realizado um inquérito sobre outros factos sem que seja necessário impedir o governador em causa de exercer as suas funções. Porém, se se demonstrar que a boa tramitação de um inquérito penal exige que o governador de um banco central seja impedido de exercer as suas funções, é provável que seja igualmente demonstrado que deixou de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções ou que cometeu uma falta grave.

85.      Em todo o caso, é provável que, na maior parte dos casos, os factos suscetíveis de demonstrar que um governador deixou de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções ou que cometeu uma falta grave serão igualmente pertinentes à luz do direito penal nacional. Por conseguinte, parece muito provável que um inquérito penal nacional decorra em paralelo ao processo do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE. Isto é tanto mais assim se partirmos do princípio que um governador deve poder ser suspenso das suas funções mesmo sem uma condenação penal, se existirem provas suscetíveis de demonstrar que os requisitos para o demitir das suas funções estão preenchidos (37).

86.      Daqui resulta que a República da Letónia também não pode sustentar que a comunicação de elementos dos autos do inquérito penal ao Tribunal de Justiça para efeitos do processo previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE impediria a boa tramitação do referido inquérito. Assim, é verdade que o artigo 375.o, n.o 1, do Código de Processo Penal letão prevê que os elementos dos autos estão abrangidos pelo segredo de justiça e não podem ser comunicados a outras pessoas para além das previstas no referido código (38). Contudo, ao interpretar este último em conformidade com o direito da União, o Tribunal de Justiça deve ser equiparado, no exercício das competências que lhe são conferidas pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, a uma pessoa à qual os autos do inquérito podem ser comunicados. Com efeito, o Tribunal de Justiça não é um qualquer terceiro, mas o juiz da compatibilidade, com os referidos estatutos, das medidas nacionais que tenham por efeito impedir o governador de um banco central de exercer as suas funções. Além disso, a República da Letónia não fundamentou em que medida a comunicação ao Tribunal de Justiça dos elementos dos autos do inquérito penal nacional seria, em concreto, suscetível de perturbar a boa tramitação do referido inquérito.

87.      Resulta das considerações precedentes que o Tribunal de Justiça é competente para conhecer, com base no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, das medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs pela decisão do KNAB de 19 de fevereiro de 2018.

C.      Quanto ao mérito

88.      Nos termos do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, o governador de um banco central nacional só pode ser demitido das suas funções se deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas ou se tiver cometido uma falta grave. Por outras palavras e inversamente, os Estados‑Membros não podem demitir das suas funções o Governador do seu banco central se esses requisitos ou, pelo menos, um deles não estiverem preenchidos.

89.      É a partir desta regra que decorrem tanto os fundamentos que podem ser invocados em apoio de um recurso interposto contra uma decisão que demita das suas funções um governador como o papel do Tribunal de Justiça quando chamado a conhecer desse recurso.

90.      Assim, tanto o governador em causa como o BCE devem alegar, em apoio a um recurso interposto nos termos do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, que o Estado‑Membro em causa não demonstrou que estavam preenchidos os requisitos para demitir um governador das suas funções. O papel do Tribunal de Justiça consiste, portanto, em determinar se o Estado‑Membro em causa provou de forma juridicamente bastante que esses requisitos estavam preenchidos.

91.      É certo que, como já se referiu, o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE prevê que um recurso contra a decisão de demitir de um governador das suas funções pode ser interposto «com fundamento em violação dos Tratados ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação» (39). Resta, porém, saber quais podem ser as disposições do Tratado ou as normas jurídicas cuja violação é suscetível de ser invocada no quadro de um recurso com base no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE diferentes deste mesmo artigo. Além deste artigo, pode‑se eventualmente considerar as disposições, cuja violação é efetivamente invocada por I. Rimšēvičs no caso em apreço, que têm por objeto proteger os governadores de qualquer pressão exercida pelos Estados‑Membros (40) (uma vez que demitir indevidamente das suas funções um governador consubstancia exatamente o exercício de uma pressão deste tipo). Igualmente, pode‑se, como sugerido pelo BCE, considerar as regras relacionadas com o funcionamento do Conselho do BCE e do Eurosistema, bem como, de um modo geral, os princípios transversais do direito da União como o dever de cooperação leal entre as instituições da União e os Estados‑Membros.

92.      De qualquer modo, no caso em apreço, não é necessário determinar de forma exaustiva as disposições cuja violação pode eventualmente ser invocada como fundamento de um recurso interposto nos termos do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE. Com efeito, basta constatar que, no âmbito dos presentes processos, tanto I. Rimšēvičs como o BCE criticam, em substância, a República da Letónia por não ter provado, no que diz respeito a I. Rimšēvičs, que estavam preenchidos os requisitos impostos pela referida disposição para a demissão de funções de um governador (v., a seguir, ponto 1). Por uma questão de exaustividade, há que questionar a pertinência de duas outras disposições normativas de que I. Rimšēvičs alega a violação, a saber, por um lado, o Protocolo n.o 7 do TFUE relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia (v., a seguir, ponto 2) e, por outro lado, algumas disposições do direito letão (v., a seguir, ponto 3)

1.      Quanto à violação do artigo 14.o2 dos Estatutos do SEBC e do BCE

93.      I. Rimšēvičs e o BCE alegam que a República da Letónia não apresentou provas suscetíveis de corroborar os factos de corrupção imputados a I. Rimšēvičse. Por conseguinte, a República da Letónia não demonstrou que, no caso em apreço, estavam preenchidos os requisitos impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE para demitir um governador de um banco central das suas funções.

a)      Observações preliminares

94.      Como indicou o advogado‑geral L. A. Geelhoed no processo Comissão/Cresson (41), é inerente às funções dos membros das instituições da União e aos mais altos cargos públicos nos Estados‑Membros que os seus titulares não estejam sujeitos a nenhuma espécie de subordinação hierárquica e não possam ser destituídos por razões relacionadas com o exercício das suas funções. Por conseguinte, o exercício do poder sancionatório que visa punir um eventual abuso de poder por parte do titular de tais funções cabe, em geral, à instituição de que a pessoa em causa é membro ou a outra instituição com estatuto equivalente no ordenamento constitucional.

95.      A este respeito, já foi referido que os membros das instituições da União só podem ser demitidos das suas funções pelo Tribunal de Justiça, se for caso disso (ou seja, exceto os membros do próprio Tribunal de Justiça da União Europeia), a pedido da respetiva instituição ou de uma instituição com estatuto constitucional equivalente (42). Embora o ónus da prova do incumprimento dos seus deveres pela pessoa em causa recaia, por conseguinte, sobre a instituição que o invoca, cabe exclusivamente ao Tribunal de Justiça proceder, na plenitude do seu poder de apreciação, à qualificação jurídica e ao apuramento da realidade material dos factos em causa. Por conseguinte, as conclusões de uma decisão de um órgão jurisdicional nacional podem, certamente, ser tomadas em consideração pelo Tribunal de Justiça na apreciação desses factos, mas este não pode ficar vinculado pela qualificação jurídica dos factos efetuada nessa decisão (43).

96.      Como observou o BCE, a razão pela qual o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar diretamente sobre a demissão dos governadores dos bancos centrais nacionais das suas funções decorre do facto desses governadores serem nomeados e só poderem ser demitidos nos termos dos procedimentos aplicáveis nos respetivos Estados‑Membros (44). Por conseguinte, no âmbito do processo instituído pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, o Tribunal de Justiça não decide diretamente da demissão de um titular das suas funções a pedido de uma instituição, mas examina se foi com razão que o Estado‑Membro em causa demitiu o governador do seu banco central das suas funções. Esta diferença face aos procedimentos que permitem a demitir os membros das instituições da União das suas funções é, no entanto, apenas de ordem processual; de um ponto de vista material, os critérios de apreciação são os mesmos, uma vez que se trata, em ambos os casos, de determinar se estão preenchidos os requisitos a que a demissão está subordinada.

97.      Compete, portanto, ao Tribunal de Justiça, num primeiro momento, proceder à qualificação jurídica dos factos imputados ao governador em causa, ou seja, determinar se esses factos são suscetíveis de demonstrar que este deixou de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções ou se são constitutivos de uma falta grave na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE [v., infra, alínea b)]. Em caso afirmativo, o Tribunal de Justiça deve, num segundo momento, tendo em conta os elementos de prova apresentados pelo Estado‑Membro em causa e, se for caso disso, por meio dos poderes de instrução que lhe confere o seu Regulamento de Processo, examinar a realidade dos factos imputados ao governador em questão [v., infra, alínea c)].

b)      Quanto aos conceitos de requisitos necessários ao exercício das funções de governador de um banco central e de falta grave

98.      O artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE dispõe que um governador de um banco central só pode ser demitido das suas funções se deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas ou se tiver cometido falta grave, sem, no entanto, definir mais precisamente estes conceitos.

99.      No caso em apreço, resulta da decisão do KNAB de 19 de fevereiro de 2018, relativa à constituição de I. Rimšēvičs como arguido (45), que este é acusado de ter solicitado e aceitado um suborno de pelo menos 100 000 EUR de um membro do conselho de administração de um banco e de se ter comprometido, em troca, a não entravar as atividades desse banco e a apoia‑lo com conselhos e recomendações para efeitos da sua cooperação com a Comissão dos Mercados Financeiros e de Capitais letã (Finanšu un kapitāla tirgus komisija). Além disso, I. Rimšēvičs comprometeu‑se a atuar do mesmo modo no âmbito do exercício das suas funções oficiais e através da sua influência sobre as atividades da Comissão dos Mercados Financeiros e de Capitais e das informações de que dispunha em razão das suas funções.

100. Face a tais alegações, não é necessário que o Tribunal de Justiça defina de forma exaustiva os conceitos de requisitos necessários ao exercício das funções de governador de um banco central ou de falta grave na aceção do artigo 14.o‑.2 dos Estatutos do SEBC e do BCE. Com efeito, basta declarar que, no caso em apreço, de qualquer modo, os factos imputados pelo KNAB a I. Rimšēvičs, concretamente factos de corrupção no exercício das suas funções oficiais, bem como desvio destas funções no interesse de um organismo privado, são — se se provar a sua existência — não só constitutivos de uma falta grave do governador em causa, mas demonstram também que este deixou de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções. Por conseguinte, contrariamente ao que sustenta o BCE, o presente processo não se enquadra apenas na segunda mas também na primeira hipótese prevista no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SBEC e do BCE.

101. Por um lado, mesmo sem procurar definir exaustivamente os requisitos necessários ao exercício das funções de governador de um banco central, é forçoso concluir que, em todo o caso, a independência constitui o seu núcleo duro intangível (46). Com efeito, como já foi mencionado duas vezes, a independência dos bancos centrais nacionais membros do SEBC e do Conselho do BCE, enquanto principal órgão de decisão deste e do Eurosistema, é consagrada pelo Tratado FUE como corolário indispensável da estabilidade dos preços, objetivo principal da política económica e monetária da União e do SEBC (47). É por esta razão que o artigo 130.o TFUE e o artigo 7.o dos Estatutos do SEBC e do BCE estabelecem expressamente que os membros dos órgãos de decisão do BCE e dos bancos centrais nacionais não podem, no exercício dos poderes e no cumprimento das atribuições e deveres que lhes são cometidos pelos Tratados e pelos Estatutos do SEBC e do BCE, solicitar ou receber instruções de qualquer organismo.

102. Por outro lado, a independência é a qualidade primeira exigida aos membros de todas as instituições da União (48). Como o Tribunal de Justiça declarou em relação aos membros da Comissão, tendo em conta as grandes responsabilidades que lhes são confiadas, importa que estes observam as normas mais rigorosas em matéria de comportamento, o que implica nomeadamente agir com total independência e no interesse geral da União e privilegiar sempre este sobre os interesses pessoais (49).

103. Daqui resulta que um governador de um banco central que é condenado por factos como os que são imputados a I. Rimšēvičs, no caso em apreço, demonstra, por esse facto, que deixou de dispor da independência exigida para o exercício das suas funções.

104. Por outro lado, como refere com razão o BCE, o conceito de falta grave designa, nas disposições de direito disciplinar da União, um comportamento ilícito adotado pelo titular de uma função, que assume uma gravidade suficiente para justificar que o seu autor seja demitido das suas funções (50).

105. Os factos de corrupção imputados, no caso em apreço, a I. Rimšēvičs, que constituiriam — caso a sua existência fosse confirmada – uma violação do artigo 320.o, n.o 4, do Código Penal letão, revestem, tendo em conta a importância primordial do princípio da independência dos governadores dos bancos centrais, uma gravidade suficiente para justificar a demissão de um governador das suas funções e para constituir, assim, uma falta grave na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.

106. Resulta das considerações que precedem que, se a realidade dos factos imputados a I. Rimšēvičs fosse demonstrada, haveria que considerar que estão preenchidos os requisitos previstos no artigo 14..°2 dos Estatutos do SEBC e do BCE para o demitir das suas funções. Importa, portanto, examinar agora se a República da Letónia fez prova bastante da realidade dos factos que imputa a I. Rimšēvičs.

c)      Quanto às provas requeridas para demonstrar que estão preenchidos os requisitos para demitir um governador das suas funções

107. Como salienta acertadamente o BCE, a realidade de factos como os que a República da Letónia invoca no caso em apreço deve, em princípio, ser confirmada por decisão de mérito proferida por um órgão jurisdicional independente para que o Tribunal de Justiça possa considerar esses factos como provados para efeitos da aplicação do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE (v., a seguir, ponto 1) Na falta de tal decisão, o Tribunal de Justiça deve dispor de elementos de prova suficientes para basear a firme convicção de que os factos alegados contra o governador em causa tiveram lugar (v., a seguir, ponto 2)

1)      Decisão de mérito proferida por um tribunal independente

108. Na presença de uma decisão de mérito proferida por um tribunal independente que confirme a materialidade dos factos imputados ao governador em causa, incumbe a este último apresentar os elementos suscetíveis de demonstrar que, devido a deficiências sistémicas ou generalizadas no que diz respeito à independência do poder judiciário do Estado‑Membro em causa, bem como em razão da sua situação pessoal, existem motivos sérios e comprovados para considerar que o seu direito a um julgamento imparcial foi violado e que a decisão em causa se baseia em verificações de facto incorretas (51). Na falta de tais elementos, o Tribunal de Justiça pode, de acordo com o princípio da confiança mútua no respeito, por todos os Estados‑Membros, do direito da União e dos direitos fundamentais reconhecidos por este (52), considerar provados os factos cuja realidade é confirmada pela decisão, sem proceder ele próprio a uma apreciação das prova.

109. Todavia, no caso em apreço, os factos imputados a I. Rimšēvičs pelo KNAB ainda não foram objeto de uma decisão de mérito proferida por um tribunal independente. Nestas condições, não é necessário interrogarmo‑nos sobre a questão, suscitada pelo BCE, de saber se, para efeitos do apuramento dos factos invocados no âmbito do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, uma decisão de primeira instância ainda não definitiva seria suficiente.

110. De qualquer modo, no caso em apreço, é verdade que as medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs pelo KNAB através da decisão de 19 de fevereiro de 2018 (53) foram objeto de recurso por parte de I. Rimšēvičs junto do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga), bem como de uma decisão por este proferida em de 27 de fevereiro de 2018 (54), que faz parte dos elementos transmitidos ao Tribunal de Justiça. Resulta dessa decisão que o referido recurso foi interposto com base no artigo 262.o do Código de Processo Penal letão, que permite a interposição de um recurso contra medidas restritivas como as que estão em causa no caso em apreço, por ser impossível à pessoa em causa cumprir as condições estabelecidas pelas referidas medidas (55).

111. No entanto, segundo I. Rimšēvičs e o BCE, a análise do juiz chamado a conhecer de tal recurso apenas incide sobre a adequação e a proporcionalidade das medidas restritivas em causa em relação à infração alegada e ao objetivo prosseguido (ou seja, por exemplo, a boa tramitação do inquérito ou a prevenção de outros danos), bem como sobre a salvaguarda dos direitos fundamentais do interessado. Em contrapartida, não é examinado o fundamento das acusações formuladas contra este último ou a materialidade dos factos que estão na base dessas acusações. Os fundamentos da decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) de 27 de fevereiro de 2018 só incidem, com efeito, sobre o mérito das medidas restritivas em relação às acusações formuladas contra I. Rimšēvičs, e não, de modo algum, sobre o mérito dessas acusações em relação a eventuais elementos de prova.

112. É certo que resulta do artigo 262.o, n.o 3, do Código de Processo Penal letão que o juiz encarregado de examinar o recurso interposto ao abrigo desta disposição pode solicitar a transmissão de elementos dos autos do inquérito penal, bem como explicações por parte da pessoa responsável pelo inquérito ou por parte do autor do recurso. Além disso, a decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) de 27 de fevereiro de 2018 contém a menção «à luz dos elementos dos autos do inquérito penal n.o […]» (56). Por conseguinte, não se pode excluir que o juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) responsável por conhecer do recurso em questão tenha tido em conta os elementos de prova dos autos do inquérito penal.

113. Porém, a decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) de 27 de fevereiro de 2018 não refere qualquer apreciação d elementos de prova nem uma confirmação da materialidade dos factos com base em tais elementos de prova. Essa decisão apenas refere, com efeito, a «informação sobre os factos que constam dos documentos processuais contidos nos autos [do inquérito penal]» (57). Assim, não se pode excluir que os elementos dos autos do inquérito penal transmitido ao juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) consistem apenas, assim como os elementos transmitidos ao Tribunal de Justiça (58), em documentos processuais elaborados pelas autoridades de inquérito, contendo uma descrição dos factos com exclusão de qualquer elemento de prova suscetível de demonstrar a materialidade desses factos.

114. Por outro lado, a República da Letónia não apresentou, apesar de expressamente questionada sobre este ponto na audiência, nenhum elemento suscetível de refutar as alegações de I. Rimšēvičs e do BCE, segundo as quais a fiscalização do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) responsável pela apreciação das medidas restritivas não incidiu sobre o mérito das acusações formuladas contra I. Rimšēvičs nem sobre a materialidade dos factos que estão na base dessas acusações. A República da Letónia também não apresentou elementos ou, pelo menos, explicações para fundamentar a sua posição segundo a qual o Tribunal de Justiça pode reconhecer a decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) de 27 de fevereiro de 2018 como prova da realidade dos factos imputados a I. Rimšēvičs e, por conseguinte, não proceder, ele próprio, à apreciação das provas e à determinação da materialidade desses factos.

115. Por maioria de razão, o Tribunal de Justiça não se pode basear na decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) de 27 de fevereiro de 2018 para determinar a realidade dos factos imputados a I. Rimšēvičs na medida em que este sustenta não ter tido acesso, na data da referida decisão e até hoje, a provas que permitam fundamentar as acusações a seu respeito. A República da Letónia não contestou esta alegação. Portanto, mesmo admitindo que o juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) teve acesso a certas provas dos autos do inquérito penal, não é possível determinar se as apreciou no decurso de um procedimento contraditório adequado para garantir os direitos da defesa de I. Rimšēvičs.

116. As medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs foram, além disso, objeto de uma decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas pilsētas Vidzemes priekšpilsētas (Tribunal da Comarca de Vidzeme da cidade de Riga) em 22 de agosto de 2018 (59). Essa decisão foi proferida na sequência de uma queixa pela qual I. Rimšēvičs contestou a forma como as autoridades letãs tinham dado seguimento ao Despacho de medidas provisórias do vice‑presidente do Tribunal de Justiça de 20 de julho de 2018, BCE/Letónia (60). O juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas pilsētas Vidzemes priekšpilsētas (Tribunal da Comarca de Vidzeme da cidade de Riga) deferiu parcialmente esta queixa, declarando que, dadas as contradições nos termos relativos às medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs, estas não podiam ser executadas. Subsequentemente, as autoridades da Letónia adotaram uma nova decisão que alterou as medidas restritivas em causa (61).

117. Ora, decorre da decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas pilsētas Vidzemes priekšpilsētas (Tribunal da Comarca de Vidzeme da cidade de Riga) de 22 de agosto de 2018 que a fiscalização efetuada por este se limitou igualmente à possibilidade de aplicação das medidas restritivas controvertidas. Por conseguinte, mesmo que esse juiz tivesse recebido as peças dos autos do inquérito penal, não parece que tenha efetuado qualquer fiscalização quanto ao mérito das alegações de facto formuladas contra I. Rimšēvičs.

118. Nestas condições, o Tribunal de Justiça não pode basear‑se na decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) de 27 de fevereiro de 2018, nem na decisão do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas pilsētas Vidzemes priekšpilsētas (Tribunal da Comarca de Vidzeme da cidade de Riga) de 22 de agosto de 2018, para efeitos da determinação da materialidade dos factos imputados a I. Rimšēvičs.

2)      Elementos de prova suficientes para permitir ao Tribunal de Justiça verificar a materialidade dos factos

119. Como alega com razão o BCE, uma decisão de mérito proferida por um tribunal independente não pode, todavia, ser o único meio de que dispõe um Estado‑Membro, no âmbito de um processo nos termos do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, para provar a materialidade dos factos que justificam, na sua opinião, a demissão do governador do seu banco central das suas funções.

120. Assim, ao prever a possibilidade de demitir um governador de um banco central das suas funções em casos estritamente definidos, o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE não protege apenas a independência dos governadores dos bancos centrais nacionais mas também o bom funcionamento do SEBC e do BCE. Com efeito, o facto de um governador de um banco central culpado de factos como os que são imputados a I. Rimšēvičs continuar a exercer as suas funções, participar no processo de tomada de decisão e ter acesso às informações no âmbito do seu banco central, do SEBC e do Conselho do BCE constituiria uma ameaça grave para o bom funcionamento destas instituições. Ora, o inquérito e o processo conducente à prolação de uma decisão condenatória quanto ao mérito por um tribunal podem demorar um tempo considerável.

121. Por conseguinte, a fim de preservar o bom funcionamento do SEBC e do BCE, deve ser possível suspender temporariamente um governador das suas funções na pendência de um processo penal se existirem prova adequados para demonstrar, por si só e não apenas por meio de suposições, a existência dos factos alegados. Esses elementos de prova devem ser suficientemente precisos e concordantes para basear a firme convicção, no espírito do Tribunal de Justiça, que esses factos ocorreram efetivamente (62).

122. Daqui decorre que em circunstâncias excecionais como as invocadas pela República da Letónia no presente caso, o Tribunal de Justiça pode concluir que estão preenchidos os requisitos para demitir um governador de um banco central das suas funções se o Estado‑Membro lhe apresentar elementos de prova suscetíveis de sustentar que o governador é culpado de factos que demonstram que deixou de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções ou que cometeu uma falta grave, na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.

123. Ora, é forçoso constatar desde já que, no caso em apreço, a República da Letónia não conseguiu apresentar tais elementos de prova. O Tribunal de Justiça não dispõe de nenhum elemento que lhe permita verificar o mérito das alegações factuais apresentadas pelo KNAB a respeito de I. Rimšēvičs.

124. Assim, num primeiro tempo, a República da Letónia não apresentou qualquer elemento de prova em apoio dos seus articulados iniciais nos processos C‑202/18 e C‑238/18 (63). Por conseguinte, na audiência comum a ambos os processos, o Tribunal de Justiça pediu‑lhe que apresentasse no prazo de oito dias todos os documentos necessários para justificar as medidas restritivas impostas a I. Rimšēvičs (64). Ao formular este pedido, o Tribunal de Justiça destacou especificamente a importância da apresentação desses documentos que serviam de fundamentação e prova do mérito da decisão em causa. Consequentemente, o Tribunal recomendou à República da Letónia que escolhesse com muito cuidado os documentos a apresentar.

125. No seguimento, a República da Letónia comunicou ao Tribunal de Justiça 44 documentos correspondentes a cerca de 270 páginas, contendo, por um lado, um conjunto de documentos processuais relativos à constituição de I. Rimšēvičs como arguido, à aplicação das medidas restritivas contra ele e à sua acusação (65) e, por outro, as trocas de correspondência entre o KNAB, o Banco da Letónia, o BCE e as autoridades alemãs acerca das atividades de I. Rimšēvičs no BCE e das decisões deste relativas ao banco em benefício da qual I. Rimšēvičs alegadamente atuou. Alguns desses documentos, bastante volumosos, foram apresentados em duplicado, bem como em versões linguísticas diferentes.

126. Além das duas decisões dos juízes competentes para fiscalizar o respeito dos direitos humanos já analisadas (66), bem como de simples documentos administrativos, os documentos transmitidos pela República da Letónia consistem exclusivamente em documentos elaborados por autoridades administrativas a respeito do papel e dos alegados atos de I. Rimšēvičs.

127. Estes documentos contêm, é certo, uma enumeração das críticas e acusações formuladas pelas autoridades letãs e uma descrição dos factos imputados a I. Rimšēvičs. Além disso, permitem ao Tribunal de Justiça perceber a evolução dos acontecimentos e dos processos que tiveram lugar na Letónia desde a detenção de I. Rimšēvičs, em 17 de fevereiro de 2018, bem como a comunicação entre as autoridades de inquérito letãs, o Banco da Letónia e o BCE, com um nível de pormenor que abrange as cartas de transmissão de documentos entre autoridades, a nota de um tradutor e diversos pedidos de tradução.

128. Contudo, esses documentos não contêm nenhum elemento factual suscetível de sustentar as alegações das autoridades letãs e determinar, em consequência, a materialidade dos factos imputados a I. Rimšēvičs.

129. De acordo com a decisão do KNAB, de 19 de fevereiro de 2018, relativa à constituição de I. Rimšēvičs como arguido (67), os elementos de prova que sustentam as acusações formuladas incluem gravações áudio e transcrições de conversas telefónicas, testemunhos, objetos apreendidos, bem como relatórios de inspeção. Não se pode deixar de observar que nenhum elemento de prova deste género foi apresentado ao Tribunal de Justiça.

130. Como salienta acertadamente o BCE, os documentos apresentados não permitem de modo algum concluir, nem mesmo presumir, que os comportamentos imputados a I. Rimšēvičs, resumidos no n.o 99 supra, ocorreram. Admitindo que existem meios de prova suscetíveis de demonstrar a existência destes factos, estes elementos não figuram entre os documentos transmitidos ao Tribunal de Justiça pela República da Letónia.

131. Nestas circunstâncias, sem que seja sequer necessário determinar os requisitos de admissibilidade de provas ou as modalidades da sua apreciação pelo Tribunal de Justiça no âmbito do recurso previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, é forçoso concluir que o Tribunal de Justiça não está em condições de verificar se estão preenchidos os requisitos impostos por esta disposição para a demissão do governador de um banco central das funções. Na falta de qualquer elemento de prova, o Tribunal de Justiça não pode fiscalizar a veracidade das alegações factuais apresentadas pela República da Letónia para justificar que I. Rimšēvičs cometeu uma falta grave e que, portanto, deixou de preencher os requisitos necessários ao exercício das suas funções.

132. Como o Tribunal de Justiça já referiu noutros domínios, a eficácia da fiscalização jurisdicional na ordem jurídica da União implica a comunicação dos fundamentos de cada decisão desfavorável ao juiz competente para que este último possa exercer plenamente a sua fiscalização (68). Ora, a efetividade desta fiscalização jurisdicional implica uma verificação dos factos alegados na exposição de motivos de uma decisão, de modo a que a fiscalização jurisdicional não se limita à apreciação da probabilidade abstrata dos motivos invocados, tendo antes por objeto a questão de saber se estes motivos têm fundamento (69).

133. Assim, no caso em apreço, a fim de permitir ao Tribunal de Justiça exercer a sua fiscalização, a República da Letónia deveria ter‑lhe transmitido não só os documentos elaborados para efeitos do inquérito e da acusação de I. Rimšēvičs pelas autoridades letãs, mas também elementos que comprovem, por si só, a ocorrência dos factos alegados. A mera existência de um processo penal em curso em que ainda não foi proferida uma decisão judicial com a determinação dos factos não pode ser equiparada a elementos factuais apurados (70).

134. Com efeito, contrariamente ao que acontece com os factos apurados por decisão de mérito proferida por um tribunal independente(71), o Tribunal de Justiça não pode aceitar como provados factos cuja ocorrência é alegada apenas por autoridades administrativas. Essas autoridades não beneficiam das mesmas garantias de independência orgânica e funcional do que os juízes e não tomam as suas decisões no termo de um processo contraditório, acompanhado das garantias de um recurso efetivo (72). Aceitar os factos alegados por uma autoridade administrativa como provados sem exercer fiscalização sobre a sua materialidade equivaleria, assim, a privar os interessados do seu direito a uma fiscalização jurisdicional efetiva e, neste caso, a esvaziar da sua substância e do seu efeito útil a via de recurso prevista no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.

135. Embora a República da Letónia alegue, nos seus articulados, elementos suscetíveis de demonstrar uma certa independência do KNAB no exercício das suas funções, não é contestado que o KNAB faz parte do poder executivo e não pode, de modo algum, ser equiparado a um tribunal independente (73). Não foi demonstrado nem sequer alegado que é diferente no caso da Procuradoria‑Geral da República da Letónia. Além disso, esta, como sublinha I. Rimšēvičs, apenas tomou, até ao momento, uma decisão de acusação, mas ainda não encerrou o inquérito nem remeteu o processo a um juiz.

136. Por conseguinte, não se pode deixar de concluir que a República da Letónia não apresentou ao Tribunal de Justiça os elementos de prova necessários para justificar as medidas adotadas contra I. Rimšēvičs.

137. Além disso, como já foi referido, a República da Letónia não pode invocar a confidencialidade dos elementos dos autos do inquérito penal para justificar a não transmissão ao Tribunal de Justiça dos elementos de prova suscetíveis de fundamentar as suas alegações sobre I. Rimšēvičs.(74) Além disso, na audiência, o Tribunal de Justiça indicou à República da Letónia que noutros domínios, existe a possibilidade, excecional e estritamente delimitada, de não comunicar ao interessado os elementos de prova produzidos perante o juiz da União (75). No mesmo sentido, o BCE indicou que estava disposto a renunciar ao seu direito de acesso ao processo se a integridade do inquérito penal exigisse um tratamento confidencial de eventuais informações que a República da Letónia transmitisse ao Tribunal de Justiça. Ora, a República da Letónia não deu nenhum seguimento a esta evocação da possibilidade de pedir o tratamento confidencial de eventuais provas a transmitir ao Tribunal de Justiça nem tão‑pouco apresentou razões imperiosas suscetíveis de justificar esse tratamento confidencial.

138. Por último, os artigos 24.o a 30.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e o artigo 64.o do Regulamento de Processo colocam à disposição do Tribunal de Justiça uma panóplia de medidas de instrução, incluindo, nomeadamente, além do pedido de informações e de apresentação de documentos, a comparência pessoal das partes, a prova testemunhal ou ainda a inspeção. No entanto, o Tribunal de Justiça não pode ser obrigado a recorrer ex officio a tais medidas na falta de apresentação de provas ou de qualquer indicação nesse sentido por parte do Estado‑Membro em causa. Ora, no caso em apreço, a República da Letónia não sugeriu ao Tribunal de Justiça a utilidade de qualquer medida de instrução.

139. Além disso, de acordo com o que foi dito supra sobre a natureza do presente recurso e o facto de o demandado ser o Estado‑Membro em causa na sua globalidade (76), o Tribunal de Justiça também não pode dirigir‑se diretamente às entidades nesse Estado‑Membro como, por exemplo, no caso em apreço, o KNAB, a fim de lhes pedir diretamente informações. Pelo menos no âmbito do recurso previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, as entidades infraestatais não podem assim ser equiparadas às instituições, órgãos ou organismos aos quais o Tribunal pode pedir todas as informações que considere necessárias, nos termos do artigo 24.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

d)      Conclusão intercalar

140. Decorre das considerações precedentes que os factos imputados a I. Rimšēvičs são, se se comprovar a sua realidade, suscetíveis de demonstrar que estão preenchidos os requisitos impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE para demitir o governador de um banco central das suas funções.

141. No entanto, a República da Letónia não apresentou qualquer elemento de prova suscetível de demonstrar a materialidade desses factos. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça encontra‑se na impossibilidade de verificar se estão preenchidos os requisitos impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE para demitir I. Rimšēvičs das suas funções.

142. Daqui resulta que a República da Letónia violou o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE ao demitir I. Rimšēvičs das suas funções sem demonstrar que estavam preenchidos os requisitos impostos pela referida disposição. Por conseguinte, o fundamento de I. Rimšēvičs e do BCE relativo à violação do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE pela República da Letónia deve ser julgado procedente.

2.      Quanto à alegada violação do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia

143. I. Rimšēvičs sustenta que a sua demissão das funções de governador do Banco da Letónia constitui uma violação da imunidade de que beneficia enquanto membro do Conselho do BCE nos termos do Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, que é também aplicável, por força do seu artigo 22.o, primeiro parágrafo, ao BCE, aos membros dos seus órgãos e ao seu pessoal.

144. Nos termos do artigo 11.o alínea a), do Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, os funcionários e outros agentes da União gozam, no território de cada Estado‑Membro, de imunidade de jurisdição no que diz respeito aos atos por eles praticados na sua qualidade oficial, incluindo as suas palavras e escritos. Embora esta disposição só se refira a uma «imunidade de jurisdição» (77), não se pode excluir que esta imunidade seja, pelo menos em casos que envolvam funcionários com funções de gestão a nível superior, interpretada como conferindo também uma imunidade em matéria de procedimento penal em relação a estes últimos (78). Tendo em conta a importância da independência dos membros do Conselho do BCE (79), afigura‑se aliás coerente que estes não possam ser objeto de um procedimento penal que implique medidas como as adotadas pelo KNAB contra I. Rimšēvičs, isto é, a prisão preventiva ou inspeções (80), sem a aprovação de uma decisão de levantamento da imunidade pelo Conselho do BCE.

145. A imunidade conferida aos membros do Conselho do BCE pelo Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia é distinta da proteção contra a demissão de funções de que beneficiam os governadores dos bancos centrais nacionais ao abrigo dos Estatutos do SEBC e do BCE. Assim, quando se trata de demitir um governador das suas funções, a sua independência é garantida pelo artigo 14.o‑2 dos referidos estatutos, que prevalece, como lex specialis, sobre as disposições gerais do Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia. Se estão preenchidos os requisitos impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE — o que compete, sendo caso disso, ao Tribunal de Justiça verificar — um governador pode, portanto, ser demitido das suas funções sem que seja necessário adotar também uma decisão relativa ao levantamento da sua imunidade. Por conseguinte, a violação das disposições do Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia não pode, enquanto tal, ser invocada contra a decisão de demissão de um governador das suas funções no âmbito de um recurso com base no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.

146. No entanto, a imunidade conferida aos governadores pelo Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia proteja‑os contra procedimentos penais instaurados independentemente de uma decisão de demissão de funções, antes da sua adoção (81), ou ainda na hipótese de revogação de tal decisão na sequência da sua contestação no Tribunal de Justiça. Por conseguinte, tal imunidade pode revelar‑se pertinente no âmbito de um recurso relativo à decisão de demissão de um governador das suas funções se as provas apresentadas pelo Estado‑Membro em causa para fundamentar essa decisão tiverem sido obtidas em violação dessa imunidade.

147. No caso em apreço, não é de facto necessário interrogarmo‑nos sobre a admissibilidade de provas eventualmente obtidas em violação da imunidade de I. Rimšēvičs antes da sua demissão de funções, uma vez que, em todo o caso, a República da Letónia não apresentou elementos de prova, pelo que não há que decidir sobre a alegação de I. Rimšēvičs quanto à violação do Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia.

148. Pelo contrário, a imunidade conferida a I. Rimšēvičs pelo referido protocolo pode readquirir pertinência na hipótese de este ser readmitido nas suas funções na sequência de uma decisão do Tribunal de Justiça que declare que não estavam preenchidos os requisitos para o demitir destas funções.

149. A este respeito, o BCE alega, é certo, que a imunidade conferida a I. Rimšēvičs pelo Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia se aplica apenas aos atos praticados na sua qualidade de membro do Conselho do BCE, ao passo que os atos que as autoridades letãs lhe imputam foram praticados por I. Rimšēvičs unicamente na sua qualidade de governador do Banco da Letónia. Assim, nomeadamente, o banco a favor do qual I. Rimšēvičs alegadamente atuou, o Trasta Komercbanka, estava sujeito à supervisão prudencial direta da Comissão dos Mercados Financeiros e de Capitais letã. Por conseguinte, este banco não foi objeto de qualquer decisão prudencial do BCE, com exceção da decisão relativa à revogação da autorização adotada em 2016. Além disso, esta decisão não foi preparada pelo Conselho do BCE e só foi adotada por este no âmbito de um procedimento de não objeção, que não carece de acordo expresso por parte dos seus membros (82).

150. Contudo, o Conselho do BCE, nos termos do Regulamento n.o 1024/2013 e não obstante a objeção do BCE reproduzida no número precedente, participa pelo menos na supervisão prudencial das instituições de crédito como o Trasta Komercbanka e é responsável pela tomada de decisões relativas à respetiva autorização. Por conseguinte, à luz dos factos imputados a I. Rimšēvičs pelo KNAB (83), não se pode, à partida, excluir que o inquérito do KNAB bem como atualmente o inquérito do procurador da Procuradoria‑Geral da República da Letónia também incidem sobre atos praticados por I. Rimšēvičs no exercício das suas funções como membro do Conselho do BCE.

3.      Quanto à alegada violação do direito letão

151. I. Rimšēvičs alega que, ao impor‑lhe as medidas restritivas controvertidas através da decisão de 19 de fevereiro de 2018, o KNAB violou a Lei relativa ao Banco da Letónia e o Código de Processo Penal letão.

152. Por um lado, o KNAB violou a Lei relativa ao Banco da Letónia, adotada para transpor as disposições pertinentes do TFUE, uma vez que esta só permite a demissão do governador do Banco da Letónia das suas funções em determinados casos bem definidos e unicamente através de uma decisão adotada pelo Parlamento da República da Letónia.

153. Por outro lado, o KNAB violou o Código de Processo Penal letão, uma vez que os requisitos impostos para a aplicação de medidas restritivas, a saber, o risco de que uma pessoa entrave o inquérito ou cometa outras infrações, não estavam preenchidos no que diz respeito a I. Rimšēvičs. Assim, I. Rimšēvičs cooperou ativamente desde o início com os investigadores. Além disso, no âmbito das suas competências enquanto governador do Banco da Letónia, I. Rimšēvičs não dispunha, em todo o caso, dos poderes necessários para exercer, como lhe é imputado, uma influência a favor de um determinado banco. Por último, a detenção de I. Rimšēvičs é ilegal porque as condições impostas pelo Código de Processo Penal a fim de poder proceder a tal detenção também não estavam preenchidas.

154. Antes de mais, importa salientar, para todos os efeitos úteis, que, no caso em apreço, é submetida ao Tribunal de Justiça apenas a apreciação das medidas restritivas impostas pelo KNAB a I. Rimšēvičs através da decisão de 19 de fevereiro de 2018, o que não inclui a detenção deste último. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça não é chamado a apreciar a regularidade da detenção de I. Rimšēvičs (84).

155. Em seguida, as alegações relativas à violação do direito letão devem ser afastadas sem que seja necessário o Tribunal interrogar‑se sobre a sua procedência.

156. Com efeito, a admissibilidade da demissão do governador de um banco central nacional das suas funções deve ser apreciada exclusivamente à luz do direito da União, em especial, dos requisitos impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, que devem ser interpretados de forma autónoma, a fim de garantir a sua aplicação uniforme (85).

157. Por conseguinte, se os requisitos estabelecidos nestas disposições estiverem preenchidos — o que cabe, sendo caso disso, ao Tribunal de Justiça verificar — um governador de um banco central nacional pode ser demitido das suas funções independentemente de eventuais requisitos adicionais impostos pelo direito nacional para essa demissão. Pelo contrário, se esses requisitos não estiverem preenchidos, um governador de um banco central não pode ser demitido das suas funções, ainda que os requisitos previstos ou estabelecidos pelo direito nacional para esse efeito tenham sido respeitados.

158. A questão de saber se um governador de um banco central foi demitido das suas funções através do procedimento «oficial» previsto para esse efeito pelo direito nacional em causa ou com recurso a uma outra medida é, portanto, irrelevante para efeitos da apreciação da admissibilidade dessa demissão de funções à luz do direito da União. Isto é tanto mais assim quanto, como já foi afirmado (86), o conceito de demissão de funções na aceção do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE é um conceito autónomo do direito da União que atenta não à forma de uma medida e ao seu estatuto no direito nacional, mas à sua substância e aos seus efeitos concretos.

159. Além disso, tal como também já foi referido (87), se existirem provas suficientes para demonstrar que estão preenchidos os requisitos materiais impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE para a demissão de um governador das suas funções, deve ser possível suspender temporariamente esse governador das suas funções na pendência de um processo penal ou da aplicação do procedimento «oficial» de demissão de funções nos termos do direito nacional.

160. Resulta do exposto que a alegação de I. Rimšēvičs referente à violação da Lei relativa ao Banco da Letónia e do Código de Processo Penal letão é inoperante e deve, por conseguinte, ser julgada improcedente.

D.      Conclusão intercalar

161. Como já foi referido (88), resulta do exame dos presentes processos que a República da Letónia não apresentou qualquer elemento de prova suscetível de demonstrar a realidade dos factos imputados a I. Rimšēvičs. O Tribunal de Justiça encontra‑se, portanto, na impossibilidade de verificar se estão preenchidos os requisitos impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE para demitir I. Rimšēvičs das suas funções de governador do Banco da Letónia.

162. Nestas condições, em conformidade com o que foi acima referido a respeito da natureza dos presentes recursos (89), há que concluir que, ao demitir I. Rimšēvičs das suas funções sem demonstrar que estavam preenchidos os requisitos impostos pelo artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE, a República da Letónia não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força desta disposição.

VI.    Despesas

163. Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se a parte vencedora o tiver requerido.

164. Resulta dos fundamentos acima enunciados que a República da Letónia é a parte vencida nos presentes processos.

165. Além disso, no processo C‑238/18, o BCE pediu a condenação da República da Letónia nas despesas. Por conseguinte, há que condenar a República da Letónia a suportar as suas próprias despesas e as despesas do BCE no processo C‑238/18. Tal é igualmente válido para as despesas efetuadas no âmbito do processo de medidas provisórias que deu origem ao Despacho do vice‑presidente do Tribunal de Justiça de 20 de julho de 2018 (C‑238/18 R, não publicado, EU:C:2018:581), no qual as despesas foram reservadas para final.

166. Em contrapartida, no processo C‑202/18, I. Rimšēvičs não pediu a condenação da República da Letónia nas despesas, nem a República da Letónia pediu a condenação de I. Rimšēvičs nas despesas. Por conseguinte, na falta de pedido sobre as despesas, há que decidir que cada parte suportará as suas próprias despesas no processo C‑202/18 (90).

VII. Conclusão

167. Tendo em conta o que precede, proponho ao Tribunal de Justiça que declare o seguinte no processo C‑202/18:

1)      Ao proibir Ilmars Rimšēvičs de exercer as funções de governador do Latvijas Banka (Banco da Letónia) por decisão do Korupcijas novēršanas um apkarošanas birojs (Departamento de Prevenção e Luta contra a corrupção) de 19 de fevereiro de 2018, a República da Letónia não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 14.o‑2 do Protocolo n.o 4 relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu.

2)      I. Rimšēvičse e a República da Letónia suportam, cada um, as suas próprias despesas.

168. Além disso, proponho ao Tribunal de Justiça que decida o seguinte no processo C‑238/18:

1)      Ao proibir I. Rimšēvičs de exercer as funções de governador do Latvijas Banka (Banco da Letónia) por decisão do Korupcijas novēršanas um apkarošanas birojs (Departamento de Prevenção e Luta contra a corrupção) de 19 de fevereiro de 2018, a República da Letónia não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 14.o‑2 do Protocolo n.o 4 relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu.

2)      A República da Letónia suportará as suas próprias despesas e as despesas do Banco Central Europeu, incluindo as do processo de medidas provisórias.


1      Língua original: francês.


2      Por outro lado, foram submetidos ao Tribunal de Justiça e ao Tribunal Geral diferentes processos relativos à revogação da licença da Trasta Komercbanka pelo Banco Central Europeu em 3 de março de 2016; V. processos T‑247/16, Fursin e o./BCE, e T‑698/16, Trasta Komercbanka e o./BCE, pendentes no Tribunal Geral, Despacho do Tribunal Geral de 12 de setembro de 2017, Fursin e o./BCE (T‑247/16, não publicado, EU:T:2017:623), bem como os recursos contra o referido despacho nos processos C‑663/17 P, BCE/Trasta Komercbanka e o., C‑665/17 P, Comissão/Trasta Komercbanka e o. e BCE, e C‑669/17 P, Trasta Komercbanka e o./BCE, pendentes no Tribunal de Justiça.


3      Protocolo (n.o 4) relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) e do Banco Central Europeu (BCE), anexo ao TUE e ao TJUE (JO 2016, C 202, p. 230).


4      V., nomeadamente, o artigo 12.o‑1 dos Estatutos do SEBC e do BCE.


5      V., nomeadamente, o artigo 26.o, n.o 8, do Regulamento (UE) n.o 1024/2013 do Conselho, de 15 de outubro de 2013, que confere ao BCE atribuições específicas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das instituições de crédito (JO 2013, L 287, p. 63).


6      V., nomeadamente, artigo 119.o, n.os 2 e 3, artigo 127.o, n.o 1, artigo 219.o, n.os 1 e 2, e artigo 282.o, n.o 2, TFUE.


7      Segundo os termos do advogado‑geral F. G. Jacobs, a independência do BCE não constitui um fim em si mesma, mas visa permitir ao BCE prosseguir efetivamente o objetivo da estabilidade dos preços; V. Conclusões no processo Comissão/BCE (C‑11/00, EU:C:2002:556, n.o 150). V. também, sobre a relação entre a independência do BCE e o objetivo de estabilidade dos preços, o projeto de Tratado que altera o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, com vista à criação da União Económica e Monetária, Comunicação da Comissão de 21 de agosto de 1990, Boletim das Comunidades Europeias, Suplemento 2/91, especialmente pp. 14, 20 e 58.


8      V. n.o 31 das presentes conclusões.


9      C‑202/18, não publicado, EU:C:2018:489.


10      C‑238/18, não publicado, EU:C:2018:488.


11      C‑238/18 R, não publicado, EU:C:2018:581.


12      Nos termos do artigo 35.o‑5 dos Estatutos do SEBC e do BCE, regra geral, uma decisão do BCE de recorrer ao Tribunal de Justiça da União Europeia é tomada pelo Conselho do BCE. O artigo 14.o‑2 dos referidos Estatutos prevê, pelo contrário, que o recurso previsto nesta disposição pode ser interposto pelo governador em causa ou pelo Conselho do BCE. No entanto, há que considerar que o artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE reflete apenas a competência interna do Conselho do BCE para decidir da interposição de um recurso e não pretende atribuir o direito de interposição de recurso ao Conselho do BCE em vez de ao BCE no seu todo. Por conseguinte, foi corretamente que, no caso em apreço, foi o BCE a interpor o recurso no processo C‑238/18, indicando que foi o Conselho do BCE que tomou a decisão de recorrer ao Tribunal de Justiça.


13      V., neste sentido, Despacho de 5 de outubro de 1983, Chatzidakis Nevas/Caixa dos Juristas em Atenas (142/83, EU:C:1983:267, n.os 3 e 4), e Acórdão de 30 de junho de 1993, Parlamento/Conselho e Comissão (C‑181/91 e C‑248/91, EU:C:1993:271, n.o 12).


14      Despacho do Tribunal Geral de 23 de janeiro de 1995, Bilanzbuchhalter/Comissão (T‑84/94, EU:T:1995:9, n.o 26). Sobre o poder específico do BCE de recorrer ao Tribunal de Justiça para obter a declaração de que um banco central nacional não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 271. o, alínea d), TFUE, v. nota 25 das presentes conclusões.


15      V., ex multis, Acórdãos de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito (C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 61); de 14 de janeiro de 2016, Vodafone (C‑395/14, EU:C:2016:9, n.o 40); e de 25 de janeiro de 2018, Comissão/República Checa (C‑314/16, EU:C:2018:42, n.o 47).


16      V. Tomada de posição que adotei no processo Pringle (C‑370/12, EU:C:2012:675, n.o s 127 a 131); Acórdão de 27 de novembro de 2012, Pringle (C‑370/12, EU:C:2012:756, n.o 135); Conclusões que apresentei no processo Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:21, n.o 32); bem como Acórdão de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.os 59 e 70).


17      V., em francês, «[u]n recours contre la décision prise à cet effet peut être introduit » (artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE) vs. «[t]oute personne […] peut former […] un recours contre les actes […]» (artigo 263.o, parágrafo 4, TFUE); em neerlandês, «[t]egen een besluit daartoe presidente of de betrokken kan de Raad van bestuur beroep instellen» (artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE) vs. «[i]edere natuurlijke of rechtspersoon kan […] beroep instellen tegen handelingen […]» (artigo 263.o, parágrafo 4, TFUE); em alemão, «[g]egen einen entsprechenden Beschluss kann der betreffende Präsident einer nationalen Zentralbank oder der EZB‑Rat […] den Gerichtshof anrufen» (artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE) vs. «[j]ede […] Person kann […] gegen […] Handlungen […] Klage erheben» (artigo 263.o, parágrafo 4, TFUE); em letão, «var apstrīdēt šo lēmumu» (artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE) vs «jebkura […] persona […] var celt prasību par tiesību aktu» artigo 263.o, parágrafo 4, TFUE)..


18      V. a proposta dos governadores dos bancos centrais de 27 de novembro de 1990, publicada na Agence Europe, Europe/Documents, n.o 1669/1670, 8 de dezembro de 1990, pp. 1 e 6 do documento PDF (https://www.ecb.europa.eu/ecb/access_to_documents/document/cog_pubaccess/shared/data/ecb.dr.parcg2007_0005draftstatute.en.pdf?c34e41042567a5832ffd2adb7e5baa48), bem como a proposta de 26 de abril de 1991 (CONF‑UEM 1613/91), p. 1, 12 do documento PDF (https://www.ecb.europa.eu/ecb/access_to_documents/document/cog_pubaccess/shared/data/ecb.dr.parcg2007_0010draftstatute.en.pdf?77031b02df114d03b2da29d4d1ccf33d).


19      Enquanto a versão inglesa do artigo 263.o, parágrafo 4, TFUE, estipula que «[a]ny natural or legal person may […] institute proceedings against an act […]».


20      V. proposta da Presidência da Conferência Intergovernamental sobre a União Económica e Monetária de 28 de outubro de 1991 [SN 3738/91 (UEM 82)], p. 47 do documento PDF (http://ec.europa.eu/dorie/fileDownload.do;jsessionid=Xy2HP92HJVCBrNG02Sws0jJ2QqCrpL968JlDwYGhB2GL1BTJ2Q1V!233738690?docId=409907&cardId=409907).


21      V., além das versões inglesas (n.o 46 e nota 19 das presentes conclusões), as versões espanholas: «[e]l gobernador afectado o el Consejo de Gobierno podrán recurrir las decisiones al respecto ante el Tribunal de Justicia » (artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE) vs. «[t]oda persona […] podrá interponer recurso[…] contra los actos » (artigo 263.o, parágrafo 4 TFUE); as versões italianas: «[u]na decisione in questo senso può essere portata dinanzi alla Corte di giustizia » (artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE) vs. «[q]ualsiasi persona […] può proporre[…] un ricorso contro gli atti » (artigo 263.o, parágrafo 4 TFUE); as versões portuguesas: «[o] governador em causa ou o Conselho do BCE podem interpor recurso da decisão de demissão para o Tribunal de Justiça» (artigo 14.o‑2 dos estatutos do SEBC e do BCE) vs. «[q]ualquer pessoa […] pode interpor…] recursos contra os atos […] » (artigo 263.o, parágrafo 4 TFUE); ou ainda as versões dinamarquesa: «[e]n afgørelse om afskedigelse kan af den pågældende centralbankchef eller af Styrelsesrådet indbringes for Domstolen » (artigo 14.o‑2 dos estatutos do SEBC e do BCE) vs. «[e]nhver […] person kan […] indbringe klage med henblik på prøvelse af retsakter […]» (artigo 263.o, parágrafo 4 TFUE).


22      V. Van den Berg, C. C. A., The Making of the Statute of the European System of Central Banks, Amesterdão, 2005, p. 137 e seguintes (narrativa dos debates sobre os artigos 14.o‑1. e 14.o‑2. dos Estatutos do SEBC e do BCE, inexistência de qualquer referência a debates sobre a natureza do recurso do artigo 14.o‑2), bem como pp. 495 a 497 (o autor enumera aí o conjunto dos documentos consultados e explica ter assistido pessoalmente à maior parte dos debates dos grupos de trabalho [p. 496]); por outro lado, os exemplares da publicação da Agence Europe, Bulletin quotidien Europe, dos meses de novembro e dezembro de 1991, que incluem, nomeadamente, informações relativas aos debates sobre a União Económica e Monetária a nível ministerial, não contêm quaisquer referências a um debate relativo ao recurso previsto no artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.


23      Resulta das datas e documentos referidos nos n.o os 46 e 48 das presentes conclusões que estes elementos foram inseridos nas semanas entre a Conferência Intergovernamental sobre a União Económica e Monetária de 30 de outubro de 1991 e a adoção do Tratado de Maastricht na conferência do Conselho Europeu de 9 a 11 de dezembro de 1991.


24      V., nomeadamente, para a Comissão, artigo 247.o TFUE (os membros podem ser demitidos pelo Tribunal de Justiça, a pedido do Conselho ou da Comissão); para o Tribunal de Justiça da União Europeia, artigo 6.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia (os membros podem ser afastados das suas funções por decisão unânime dos juízes e advogados‑gerais do Tribunal de Justiça); para a Comissão Executiva do BCE, artigo 11.o‑4 dos Estatutos do SEBC e do BCE (os membros podem ser demitidos pelo Tribunal de Justiça, a pedido do Conselho do BCE ou da Comissão Executiva); para o Tribunal de Contas da União Europeia, artigo 286.o, n.o 6, TFUE (os membros podem ser afastados das suas funções pelo Tribunal de Justiça, a pedido do Tribunal de Contas,); para o Provedor de Justiça Europeu, artigo 228.o, n.o 2, TFUE (a pedido do Parlamento Europeu, o Tribunal de Justiça pode demitir o Provedor de Justiça).


25      Contrariamente ao previsto para os membros da Comissão Executiva do BCE (v. nota anterior), que são nomeados de acordo com o procedimento previsto no artigo 11.o dos Estatutos do SEBC e do BCE e enquadram‑se assim na esfera de competência da União, o BCE não pode pedir diretamente a demissão de funções dos governadores dos bancos centrais membros do Conselho do BCE. Se o BCE considerar que o governador de um banco central nacional deve ser demitido das suas funções, poderá recorrer ao artigo 271.o, alínea d), TFUE, que lhe permite submeter ao Tribunal de Justiça uma ação por incumprimento contra um banco central nacional se considerar que este não cumpriu com qualquer das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados.


26      V., a este respeito, n.os 151 a 160 das presentes conclusões.


27      V. n.o 5 das presentes conclusões.


28      V. n.o 9 das presentes conclusões.


29      V. n.o 12 das presentes conclusões.


30      V. n.o 5 das presentes conclusões.


31      V. n.o 57 das presentes conclusões.


32      V., também, a este propósito, n.os 151 a 160 das presentes conclusões.


33      V., além das versões francesa («[u]n gouverneur ne peut être relevé de ses fonctions»), e letã («Tikai tad, ja vadītājs vairs neatbilst nosacījumiem, kas vajadzīgi pienākumu veikšanai, vai ir izdarījis smagu pārkāpumu, viņu var atbrīvot no amata»), por exemplo, a versão inglesa («[a] Governor may be relieved from office only»); a versão espanhola («[u]n gobernador sólo podrá ser relevado de su mandato»); a versão italiana («[u]n governatore può essere sollevato dall’incarico solo»); a versão alemã («[d]er Präsident einer nationalen Zentralbank kann aus seinem Amt nur entlassen werden»); a versão neerlandesa («[e]n president kan slechts van zijn ambt worden ontheven»); a versão dinamarquesa («[e]n centralbankchef kan kun afskediges»); a versão portuguesa («[u]m governador só pode ser demitido das suas funções»); ou ainda a versão romena («[u]n guvernator poate fi eliberat din funcție numai») do artigo 14.o‑2 dos Estatutos do SEBC e do BCE.


34      V., para os membros da Comissão, artigos 246.o e 247.oTFUE; para os membros da Comissão Executiva do BCE, artigo 11.o‑4 dos Estatutos do SEBC e do BCE; para o Provedor de Justiça Europeu, artigo 228.o, n.o 2, segundo parágrafo, TFUE; e para os membros do Tribunal de Contas, artigo 286.o, n.o 5, TFUE (o n.o 6 dessa mesma disposição refere‑se, diferentemente, em certas versões linguísticas, ao afastamento de funções, tal como o artigo 6.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia no que respeita aos membros desta última instituição).


35      Despacho de medidas provisórias de 20 de julho de 2018, BCE/Letónia (C‑238/18 R, não publicado, EU:C:2018:581, n.o 29).


36      Sobre o aspeto particular da imunidade conferida aos membros do Conselho do BCE pelo Protocolo (n.o 7) relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia, anexo ao TUE e ao TFUE (JO 2016, C 202, p. 266), v. n.os 143 a 150 das presentes conclusões.


37      V. n.os 119 e segs. das presentes conclusões.


38      V. n.o 11 das presentes conclusões.


39      V. n.o 57 das presentes conclusões.


40      Artigo 130.o TFUE e artigo 7.o dos Estatutos do SEBC e do BCE.


41      C‑432/04, EU:C:2006:140, n.o 70.


42      V. n.o 56 e nota 24 das presentes conclusões.


43      V., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2006, Comissão/Cresson (C‑432/04, EU:C:2006:455, n.os 120 e 121).


44      V. n.os 37 e 56 das presentes conclusões.


45      V. n.o 17 das presentes conclusões.


46      V., para uma reflexão semelhante quanto às normas de conduta que devem ser observadas no exercício das funções dos comissários, Conclusões do advogado‑geral L. A. Geelhoed no processo Comissão/Cresson (C‑432/04, EU:C:2006:140, n.o 78).


47      V. n.os 5 e 76 das presentes conclusões.


48      Ver, nomeadamente, para os membros da Comissão, artigo 17.o, n.o 3, TUE e artigo 245.o TFUE, bem como, para os membros do Tribunal de Justiça da União Europeia, artigo 19.o, n.o 2, TUE e artigos 253.o e 254.o TFUE.


49      Acórdão de 11 de julho de 2006, Comissão/Cresson (C‑432/04, EU:C:2006:455, n.o 70).


50      Ver, nomeadamente, para o Provedor de Justiça Europeu, o artigo 228.o, n.o 2, TFUE; para os membros da Comissão, artigo 247.o TFUE; para os membros da Comissão Executiva do BCE, artigo 11.o‑4 dos Estatutos do SEBC e do BCE; para os funcionários e outros agentes da União, artigo 86.o, n.o 1, do Estatuto dos funcionários da União Europeia, artigos 9.o e 10.o do seu anexo IX, e artigo 49.o do Regime aplicável aos outros agentes da União Europeia.


51      V., neste sentido e por analogia, Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (falhas do sistema judicial) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 79).


52      V. Acórdão de 25 de julho de 2018, o Minister for Justice and Equality (falhas do sistema judicial) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.os 35 a 37 e jurisprudência aí referida).


53      V. n.o 17 das presentes conclusões.


54      V. n.o 18 das presentes conclusões.


55      V. n.o 10 das presentes conclusões.


56      Tradução livre.


57      Tradução livre.


58      V., imediatamente a seguir, n.os 125 a 130 das presentes conclusões.


59      V. n.o 22 das presentes conclusões.


60      C‑238/18 R, não publicado, EU:C:2018:581; v. n.os 21 e 31 das presentes conclusões.


61      V. n.o 22 das presentes conclusões.


62      V., neste sentido e por analogia, Acórdão do Tribunal Geral de 16 de junho de 2015, FSL e o./Comissão (T‑655/11, EU:T:2015:383, n.os 175 e 176 e jurisprudência aí referida).


63      Os únicos elementos apresentados pela República da Letónia com a sua contestação no processo C‑238/18 são um projeto de lei que altera a Lei relativa ao Banco da Letónia, um parecer do BCE de 2 de outubro de 2012 relativo aos trabalhos preparatórios e às alterações legislativas necessárias à introdução do euro, e uma carta do Banco da Letónia, de 13 de abril de 2018, relativa às informações necessárias no âmbito do processo C‑238/18.


64      V. n.o 33 das presentes conclusões.


65      A saber, decisões e articulados do KNAB e do procurador, queixas e articulados do advogado de I. Rimšēvičs, decisões do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) de 27 de fevereiro de 2018 e do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas pilsētas Vidzemes priekšpilsētas (Tribunal da Comarca de Vidzeme da cidade de Riga) de 22 de agosto de 2018 (v. n.os 110 a 118 das presentes conclusões), bem como documentos relativos ao despacho de medidas provisórias do vice‑presidente do Tribunal de Justiça, de 20 de julho de 2018, e à sua execução na Letónia (v. n.os 21 e 22 das presentes conclusões).


66      As decisões do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas rajona tiesa (Tribunal de Primeira Instância de Riga) de 27 de fevereiro de 2018, e do juiz competente para fiscalizar o respeito dos direitos humanos do Rīgas pilsētas Vidzemes priekšpilsētas (Tribunal da Comarca de Vidzeme da cidade de Riga) de 22 de agosto de 2018 (v. n.os 110 a 118 das presentes conclusões).


67      V. n.o 17 das presentes conclusões.


68      V., nomeadamente, Acórdãos de 15 de maio de 1986, Johnston (222/84, EU:C:1986:206, n.o 21), e de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (processos apensos C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461, n.os 336 e 337 e jurisprudência aí referida).


69      Acórdão de 18 de julho de 2013, Comissão e o./Kadi (processos apensos C‑584/10 P, C‑593/10 P e C‑595/10 P, EU:C:2013:518, n.o 119).


70      V., mutatis mutandis, Acórdão do Tribunal da Função Pública de 7 de outubro de 2009, Y/Comissão (F‑29/08, EU:F:2009:136, n.os 74 e 75).


71      V. n.o 108 das presentes conclusões.


72      V. sobre estas condições, nomeadamente, Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses (C‑64/16, EU:C:2018:117, n.os 38, 42, 44 e 45, e jurisprudência aí referida).


73      V. disposições legislativas sobre o KNAB citadas no n.o 13 das presentes conclusões.


74      V. n.o 86 das presentes conclusões.


75      V., a este respeito, nomeadamente Acórdão de 18 de julho de 2013, Comissão e o./Kadi (processos apensos C‑584/10 P, C‑593/10 P e C‑595/10 P, EU:C:2013:518, n.os 125 a 129), bem como artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal Geral de 4 de março de 2015 (JO 2015, L 105, p. 1), conforme alterado em 13 de julho de 2016 (JO 2016, L 217, p. 72).


76      V. n.o 65 das presentes conclusões.


77      Por oposição, o artigo 9.o do referido protocolo refere, a propósito dos membros do Parlamento, a «não sujeição a qualquer medida de detenção e a qualquer procedimento judicial». O artigo 8.o do Protocolo n.o 7 relativo aos Privilégios e Imunidades da União Europeia confere aos membros do Parlamento uma imunidade material ou isenção de responsabilidade pelas opiniões ou votos emitidos no exercício das suas funções, enquanto o artigo 9.o do referido protocolo garante a imunidade processual ou a inviolabilidade em relação aos processos judiciais; v. sobre esta distinção, Acórdãos de 21 de outubro de 2008, Marra (C‑200/07 e C‑201/07, EU:C:2008:579, n.o 24), e de 6 de setembro de 2011, Patriciello (C‑163/10, EU:C:2011:543, n.o 18), bem como Conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro nos processos apensos Marra (C‑200/07 e C‑201/07, EU:C:2008:369, n.o 13), e Conclusões do advogado‑geral N. Jääskinen no processo Patriciello (C‑163/10, EU:C:2011:379, n.o 3).


78      V., neste sentido, Acórdão do Tribunal Geral de 24 de outubro de 2018, RQ/Comissão (T‑29/17, EU:T:2018:717, n.os 5 a 12); v., igualmente, no mesmo contexto, Despacho do presidente do Tribunal Geral de 20 de julho de 2016, Diretor‑Geral do OLAF/Comissão (T‑251/16 R, não publicado, EU:T:2016:424, n.os 10 a 16), bem como, noutro contexto, Acórdão do Tribunal da Função Pública de 13 de janeiro de 2010, A e G/Comissão (F‑124/05 e F‑96/06, EU:F:2010:2, n.o 60).


79      V. n.os 5, 76 e 101 das presentes conclusões.


80      V. n.os 16, 17 e 129 das presentes conclusões.


81      Assim, não é de excluir que o KNAB devia, antes de iniciar o inquérito a respeito de I. Rimšēvičs em 15 de fevereiro de 2018, antes de realizar inspeções ou pelo menos antes de deter I. Rimšēvičs em 17 de fevereiro de 2018 (v. n.o 16 das presentes conclusões), ter solicitado o levantamento da imunidade deste junto do Conselho do BCE.


82      Nos termos do artigo 26.o, n.o 8, do Regulamento n.o 1024/2013 (v. nota 5 das presentes conclusões).


83      V. n.o 99 das presentes conclusões.


84      I. Rimšēvičs indica, sem mais, que a sua detenção foi objeto de um processo judicial a nível nacional que foi julgado improcedente por razões formais, e que prepara um recurso perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por privação indevida de liberdade.


85      V., neste sentido, Acórdãos de 29 de abril de 1982, Pabst & Richarz (17/81, EU:C:1982:129, n.o 18), de 11 de julho de 2006, Chacón Navas (C‑13/05, EU:C:2006:456, n.o 40), e de 21 de dezembro de 2016, Associazione Italia Nostra Onlus, C‑444/15, EU:C:2016:978, n.o 66).


86      V. n.o 77 das presentes conclusões.


87      V. n.os 119 a 122 das presentes conclusões.


88      V. n.os 140 a 142 das presentes conclusões.


89      V. n.os 52 a 68 das presentes conclusões.


90      Uma parte só pode, efetivamente, ser condenada nas despesas se a outra parte o tiver requerido expressamente (V. Acórdãos de 9 de junho de 1992, Lestelle/Comissão, C‑30/91 P, EU:C:1992:252, n.o 38, e de 29 de abril de 2004, Parlamento/Ripa di Meana e o., C‑470/00 P, EU:C:2004:241, n.o 86). Em caso de falta de pedido sobre as despesas, o Tribunal procede assim, mesmo não havendo desistência, à aplicação por analogia do artigo 141.o, n.o 4 («Despesas em caso de desistência») do Regulamento de Processo, nos termos do qual, «[n]a falta de pedido sobre as despesas, cada uma das partes suporta as suas próprias despesas» (v., a respeito do artigo 69.o, n.o 5, terceiro parágrafo, do Regulamento de Processo de 19 de junho de 1991, Acórdão de 6 de outubro de 2005, Scott/Comissão [C‑276/03 P, EU:C:2005:590, n.o 39]; v., igualmente, Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 6 de outubro de 2015, Comité d’entreprise SNCM/Comissão [C‑410/15 P (I), EU:C:2015:669, n.o 22].