Language of document : ECLI:EU:T:2011:498

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção)

20 de Setembro de 2011 (*)

«Marca comunitária – Pedido de marca figurativa comunitária que representa o emblema soviético – Motivo absoluto de recusa – Contrariedade à ordem pública ou aos bons costumes – Artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento (CE) n.° 207/2009»

No processo T‑232/10,

Couture Tech Ltd, com sede em Tortola (Ilhas Virgens britânicas), representada por B. Whyatt, barrister,

recorrente,

contra

Instituto de Harmonização do Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos) (IHMI), representado por G. Schneider, na qualidade de agente,

recorrido,

que tem por objecto um recurso da decisão da Segunda Câmara de Recurso do IHMI de 5 de Março de 2010 (processo R 1509/2008‑2), relativa a um pedido de registo como marca comunitária do sinal figurativo que representa o emblema soviético,

O TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção),

composto por: I. Pelikánová (relatora), presidente, K. Jürimäe e M. van der Woude, juízes,

secretário: E. Coulon,

vista a petição entrada na Secretaria do Tribunal Geral em 21 de Maio de 2010,

vista a contestação apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 7 de Setembro de 2010,

vista a decisão do presidente do Tribunal Geral de 9 de Dezembro de 2010, de julgar improcedente o pedido de suspeição apresentado pela recorrente,

vista a inexistência de pedido de fixação de audiência apresentado pelas partes no prazo de um mês a contar da notificação do encerramento da fase escrita do processo e tendo, por isso, decidido, com base em relatório do juiz‑relator e em aplicação do artigo 135.°‑A do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, julgar a causa prescindindo da fase oral do processo,

profere o presente

Acórdão

 Antecedentes do litígio

1        Em 22 de Dezembro de 2006, a recorrente, Couture Tech Ltd, apresentou um pedido de registo de marca comunitária no Instituto de Harmonização do Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos) (IHMI), ao abrigo do Regulamento (CE) n.° 40/94 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1993, sobre a marca comunitária (JO 1994, L 11, p. 1), conforme alterado [substituído pelo Regulamento (CE) n.° 207/2009 do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária (JO L 78, p. 1)].

2        A marca cujo registo foi pedido é o sinal figurativo a seguir reproduzido:

Image not found

3        Os produtos e os serviços para os quais o registo foi pedido pertencem às classes 3, 14, 18, 23, 26 e 43, na acepção do Acordo de Nice relativo à Classificação Internacional dos Produtos e dos Serviços para o registo de marcas, de 15 de Junho de 1957, conforme revisto e alterado.

4        Por decisão de 27 de Agosto de 2008, o examinador indeferiu o pedido de registo com o fundamento de que a marca pedida era contrária à ordem pública ou aos bons costumes na acepção do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 40/94 [actual artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009], lido em conjugação com o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 40/94 [actual artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009].

5        Em 20 de Outubro de 2008, a recorrente interpôs recurso da decisão do examinador.

6        Por decisão de 5 de Março de 2010 (a seguir «decisão impugnada»), a Segunda Câmara de Recurso do IHMI negou provimento ao recurso. A Câmara de Recurso constatou, a título liminar, que a marca pedida consistia na representação exacta do emblema da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Tendo por fundamento a legislação e a prática administrativa na Hungria, na Letónia e na República Checa, a Câmara de Recurso considerou que os símbolos ligados à antiga URSS iam ser apreendidos como contrários à ordem pública e aos bons costumes por uma parte substancial do público em questão, a saber, o público em geral, que vive na parte da União Europeia que foi sujeita ao regime soviético. A Câmara de Recurso deduziu que a marca pedida era contrária ao artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009, pelo menos no que respeita ao território da Hungria e da Letónia. Ora, segundo a Câmara de Recurso, decorre do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 que basta que um sinal seja julgado contrário à ordem pública ou aos bons costumes num único Estado‑Membro para que lhe seja recusado o registo. Nestas circunstâncias, a Câmara de Recurso concluiu que devia ser recusado o registo da marca por força do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009.

 Pedidos das partes

7        A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        julgar o recurso admissível;

–        anular a decisão impugnada;

–        condenar o IHMI nas despesas.

8        O IHMI conclui pedindo que o Tribunal se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

 Questão de direito

9        A recorrente invoca dois fundamentos. O primeiro fundamento é baseado numa violação do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 e o segundo fundamento é baseado numa violação dos princípios da protecção da confiança legítima e da segurança jurídica.

 Quanto ao primeiro fundamento, baseado numa violação do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009

10      O primeiro fundamento está dividido em duas partes. A primeira parte é relativa a um erro de direito na interpretação do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 por parte da Câmara de Recurso. A segunda parte deste fundamento é relativa a um erro manifesto de apreciação por parte da Câmara de Recurso ao aplicar estas mesmas disposições à marca pedida.

 Quanto à primeira parte, relativa a um erro de direito na interpretação do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009

–       Argumentos das partes

11      Em primeiro lugar, a recorrente defende que, contrariamente ao sustentado pela Câmara de Recurso, não decorre do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 que deve ser recusado o registo de um sinal se o mesmo for abrangido por um motivo absoluto de recusa, previsto no artigo 7.°, n.° 1, do mesmo regulamento, apenas numa parte da União.

12      Com efeito, segundo a recorrente, o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 tem outra finalidade. Esta disposição é aplicável quando certos direitos nacionais não prevêem disposições que correspondam a cada um dos motivos absolutos de recusa previstos no artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009, ou quando prevêem motivos absolutos de recusa suplementares aos previstos na referida disposição. A sua aplicação tem como consequência que, independentemente dos motivos absolutos de recusa previstos nos diferentes Estados‑Membros, no âmbito do processo de registo de uma marca comunitária, só são relevantes os enumerados no artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009.

13      A recorrente considera que a sua posição é corroborada pela utilização dos termos «mesmo que» no artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009. Com efeito, a interpretação desta disposição defendida pela Câmara de Recurso pressupõe que estes termos são entendidos no sentido de «quando», «se» ou «basta que», repousando assim numa leitura errónea.

14      A recorrente acrescenta que, apesar de o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 abranger todos os motivos absolutos de recusa previstos no artigo 7.°, n.° 1, do mesmo regulamento, a interpretação da Câmara de Recurso não pode ser aplicada a cada um dos referidos motivos e, em particular, ao previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea b), do regulamento acima mencionado.

15      Em segundo lugar, apoiando‑se na sua interpretação do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009, a recorrente alega que, contrariamente ao entendimento da Câmara de Recurso, os conceitos de «ordem pública» e de «bons costumes» que figuram no artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do mesmo regulamento devem ser interpretados no sentido de que visam a ordem pública e os bons costumes da União. Assim, o conteúdo desses conceitos deve ser analisado tendo como referência o direito da União, os objectivos e os princípios fundamentais nos quais assenta e nos quais todos os Estados‑Membros participam, bem como as convenções internacionais como a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950 (a seguir «CEDH»). Em contrapartida, são irrelevantes a legislação, a ordem pública e os bons costumes dos diferentes Estados‑Membros, que podem divergir dos existentes ao nível da União.

16      A este respeito, a recorrente alega que, ao invés das marcas nacionais, o papel da marca comunitária é participar no desenvolvimento da actividade económica no interior do mercado comum. Por conseguinte, por força, nomeadamente, dos considerandos 2 a 4 do Regulamento n.° 207/2009, a marca comunitária rege‑se por um direito da União único, gozando de uma protecção uniforme e produzindo os seus efeitos em todo o território da União.

17      Do mesmo modo, nos termos do considerando 12 do Regulamento n.° 207/2009, o IHMI é um órgão independente que opera no âmbito do direito da União. Nestas circunstâncias, a recorrente entende que tanto o IHMI como o juiz da União devem aplicar o dito regulamento com base numa política independente da de cada Estado‑Membro individualmente considerado.

18      Além disso, a abordagem que consiste em tomar em consideração a ordem pública e os bons costumes dos diferentes Estados‑Membros torna o processo de registo de uma marca comunitária excessivamente pesado, em detrimento do requerente. Obriga igualmente o requerente de uma marca, que só é contrária à ordem pública ou aos bons costumes num dos 27 Estados‑Membros da União, a obter e manter 26 registos nacionais. Esta circunstância é ainda mais marcante se tivermos em conta que o artigo 110.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 prevê que o uso de uma marca comunitária pode ser proibido num Estado‑Membro, nomeadamente com base no seu direito penal, sem que tal justifique a perda de direitos do titular da marca comunitária.

19      A recorrente considera que a sua posição é corroborada pela jurisprudência segundo a qual o regime comunitário das marcas constitui um sistema autónomo cuja aplicação é independente de qualquer sistema nacional. Com efeito, esta jurisprudência implica que não se devem tomar em consideração os elementos provenientes dos Estados‑Membros nem a compatibilidade da utilização da marca comunitária com o direito penal desses mesmos Estados.

20      A título subsidiário, caso o Tribunal Geral entenda que devem ser tidos em conta a ordem pública e os bons costumes nos Estados‑Membros, individualmente considerados, a recorrente alega que o exame efectuado pelo IHMI deve levar em conta o conjunto dos Estados‑Membros ou certos grupos de Estados, e não apenas aqueles que escolher indicar. Em particular, há que proceder a um «exercício de equilíbrio», não devendo o ponto de vista de um Estado‑Membro ou de um grupo de Estados‑Membros impor‑se a toda a União.

21      O IHMI contesta a justeza dos argumentos da recorrente.

–       Apreciação do Tribunal

22      Em primeiro lugar, segundo a jurisprudência, o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 deve ser interpretado no sentido de que deve ser recusado o registo de uma marca se a mesma for abrangida por um motivo de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, do mesmo regulamento numa parte da União. Essa parte pode ser eventualmente constituída por um só Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2006, Storck/IHMI, C‑25/05 P, Colect., p. I‑5719, n.os 81 e 83).

23      Quanto aos argumentos da recorrente que contrariam esta interpretação, importa antes de mais observar que a mesma não é contrária à letra do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009. Com efeito, a utilização dos termos «mesmo que» nesta disposição implica que o facto de um sinal só ser abrangido por um motivo absoluto de recusa numa parte da União não impede a aplicação do artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009. Assim, segundo uma leitura combinada dos n.os 1 e 2 do artigo 7.° do referido regulamento, o registo de uma marca deve ser recusado quando a mesma é abrangida por um motivo absoluto de recusa em todo o território da União ou, se for caso disso, apenas numa parte deste território.

24      Em seguida, apesar de o artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 ter uma formulação geral, não decorre todavia da sua letra que a regra que prevê deva necessariamente ser aplicada a cada um dos motivos de recusa enumerados no artigo 7.°, n.° 1, do dito regulamento. De resto, tratando‑se de um motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 207/2009, especificamente realçado pela recorrente, é perfeitamente possível que um sinal apenas seja desprovido de carácter distintivo numa parte da União, nomeadamente, devido ao facto de apenas ter um significado semântico em algumas línguas ou devido a práticas divergentes relacionadas com a comercialização dos produtos ou serviços em causa.

25      Por fim, importa realçar que, apesar de os motivos de recusa previstos no artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 serem os únicos relevantes no âmbito do processo de registo de uma marca comunitária, independentemente dos motivos absolutos de recusa previstos no direito dos Estados‑Membros, tal decorre da natureza do regulamento enquanto acto obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados‑Membros. A este respeito, a letra da referida disposição prevê uma lista exaustiva dos motivos absolutos de recusa que não faz referência aos previstos pelos direitos dos Estados‑Membros. Do mesmo modo, o artigo 1.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 precisa que as marcas comunitárias são registadas nas condições e segundo as modalidades previstas no dito regulamento. Por conseguinte, não pode ser acolhida a interpretação do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 proposta pela recorrente, na medida em que priva o referido n.° 2 de efeito útil.

26      Nestas circunstâncias, deve concluir‑se que, como constatou a Câmara de Recurso, decorre do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 que deve ser recusado o registo de uma marca quando esta é contrária à ordem pública ou aos bons costumes numa parte da União, podendo esta parte ser composta, sendo caso disso, por um único Estado‑Membro.

27      Em segundo lugar, importa realçar, no que respeita à questão de saber se os conceitos de «ordem pública» e de «bons costumes» devem ser interpretados fazendo unicamente referência às circunstâncias comuns a todos os Estados‑Membros ou se devem igualmente tomar‑se em consideração as circunstâncias particulares aos Estados‑Membros individualmente considerados, que, segundo a jurisprudência, a função essencial da marca é identificar a origem comercial do produto ou do serviço a fim de assim permitir ao consumidor que adquire o produto ou o serviço designado pela marca fazer, aquando de uma ulterior aquisição, a mesma escolha se a experiência se revelar positiva ou fazer outra escolha se se revelar negativa [acórdão do Tribunal Geral de 27 de Fevereiro de 2002, Eurocool Logistik/IHMI (EUROCOOL), T‑34/00, Colect., p. II‑683, n.° 37].

28      Assim, uma marca destina‑se a ser utilizada junto do público composto por consumidores dos produtos e serviços que ela designa.

29      O interesse geral subjacente ao motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009 é o de evitar o registo de sinais que são contrários à ordem pública ou aos bons costumes quando da sua utilização no território da União.

30      Nestas circunstâncias, a existência de um motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009 deve ser apreciada tendo como referência a percepção dos produtos e serviços para os quais o registo é pedido por parte do consumidor médio situado no território da União.

31      Ora, por um lado, por definição, os consumidores situados no território da União estão situados no território de um Estado‑Membro.

32      Por outro lado, os sinais susceptíveis de serem apreendidos pelo público relevante como contrários à ordem pública ou aos bons costumes não são os mesmos em todos os Estados‑Membros, nomeadamente, por razões linguísticas, históricas, sociais ou culturais.

33      Por conseguinte, a percepção de uma marca como sendo ou não contrária à ordem pública ou aos bons costumes é influenciada por circunstâncias próprias do Estado‑Membro no qual se situam os consumidores que fazem parte do público relevante.

34      Por conseguinte, deve considerar‑se que, em aplicação do motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009, há que ter em consideração não apenas as circunstâncias comuns a todos os Estados‑Membros da União mas igualmente as circunstâncias particulares de cada Estado‑Membro, individualmente considerado, susceptíveis de influenciar a percepção do público relevante situado no seu território.

35      Esta conclusão não é contrariada pelos argumentos da recorrente.

36      Assim, em primeiro lugar, é certo que o regime comunitário das marcas constitui um sistema autónomo cuja aplicação é independente de qualquer sistema nacional [v. acórdão do Tribunal Geral de 13 de Setembro de 2005, Sportwetten/IHMI – Intertops Sportwetten (INTERTOPS), T‑140/02, Colect., p. II‑3247, n.° 31 e jurisprudência referida]. Esta circunstância implica, nomeadamente, que a existência de um motivo absoluto de recusa previsto pelo artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009 deve, em todos os casos, ser apreciada segundo o critério previsto nesta disposição, interpretado com referência à percepção do público relevante situado no território da União ou numa parte deste território. Em contrapartida, o carácter autónomo do regime comunitário das marcas não se opõe a que sejam tomadas em consideração as circunstâncias particulares dos Estados‑Membros susceptíveis de influenciar esta percepção.

37      Neste contexto, tratando‑se da legislação e da prática administrativa de certos Estados‑Membros, invocadas pela Câmara de Recurso na decisão impugnada, importa realçar que estes elementos foram tidos em consideração não em razão do seu valor normativo, mas enquanto indícios factuais que permitem apreciar a percepção dos símbolos relacionados com a antiga URSS por parte do público relevante situado nos Estados‑Membros em causa. Nestas circunstâncias, não se pode criticar a Câmara de Recurso por violação do carácter autónomo do regime comunitário das marcas.

38      Em segundo lugar, o objectivo de desenvolvimento do mercado comum não justifica que a ordem pública ou os bons costumes sejam ameaçados numa parte desse mercado.

39      Em terceiro lugar, não se pode considerar que a interpretação acima exposta no n.° 34 dificulta excessivamente o processo de registo em detrimento do requerente, na medida em que o artigo 76.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 prevê que o IHMI procede ao exame oficioso dos factos. Com efeito, compete ao IHMI verificar a existência de motivos absolutos de recusa em todas as partes da União. Em seguida, compete ao requerente apresentar as suas observações a respeito das objecções concretamente invocadas pelo examinador no fim do seu exame.

40      Em quarto lugar, a necessidade de obter e de manter os registos nacionais quando a marca é abrangida por um motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 207/2009 apenas numa parte da União é uma consequência directa do carácter unitário da marca comunitária, consagrado no considerando 3 do Regulamento n.° 207/2009 e no seu artigo 1.°, n.° 2. Por conseguinte, esta circunstância é inerente à economia do referido regulamento.

41      Em quinto lugar, o artigo 110.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 tem por objectivo a proibição do uso de uma marca comunitária que foi objecto de registo. Por conseguinte, esta disposição não pode ser invocada no âmbito da análise da existência do motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009, que precede o registo da marca.

42      Em face do exposto, deve concluir‑se que a Câmara de Recurso não cometeu um erro de direito ao considerar, por um lado, que, por força do artigo 7.°, n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009, deve ser recusado o registo de um sinal se o mesmo for abrangido pelo motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do mesmo regulamento apenas numa parte da União, e, sendo caso disso, num único Estado‑Membro, e, por outro, que, para a interpretação dos conceitos de «ordem pública» e de «bons costumes», devem ter‑se em consideração os elementos particulares de cada Estado‑Membro individualmente considerado.

43      Por conseguinte, deve julgar‑se improcedente a primeira parte do primeiro fundamento.

 Quanto à segunda parte, relativa a um erro de apreciação na aplicação do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 à marca pedida

–       Argumentos das partes

44      Apoiando‑se numa interpretação do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009 exposta no âmbito da primeira parte, a recorrente alega que a marca pedida não é contrária à ordem pública ou aos bons costumes da União e que, por conseguinte, não devia ter sido recusado o seu registo.

45      A recorrente alega, a este respeito, que, ao contrário da cruz suástica, a conotação política do emblema da antiga URSS foi diluída e transformada numa conotação provocante, ligada ao conceito de «avant‑garde», de modo que a marca pedida adquiriu um «novo carácter distintivo».

46      A recorrente acrescenta que o emblema que compõe a marca pedida não foi proibido em nenhum Estado‑Membro da União, tendo além do mais a Comissão, em 2005, recusado um pedido de proibição geral dos símbolos comunistas. O facto de certas utilizações desses símbolos serem eventualmente proibidas na Hungria e na Letónia é irrelevante no âmbito do processo de registo.

47      Por fim, a recorrente alega que não é de excluir que as proibições de utilização de símbolos como o da marca pedida, previstas pelo direito húngaro e letão, sejam contrárias à CEDH.

48      O IHMI contesta a justeza dos argumentos da recorrente.

–       Apreciação do Tribunal

49      Nos termos do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009, é recusado o registo às marcas que são contrárias à ordem pública ou aos bons costumes.

50      Decorre do exposto no âmbito da primeira parte do presente fundamento que a análise da contrariedade de um sinal à ordem pública ou aos bons costumes deve ser feita com referência à percepção desse sinal por parte público relevante situado na União, ou numa parte desta, quando da sua utilização enquanto marca. A referida parte pode ser constituída, eventualmente, por um único Estado‑Membro.

51      No caso em apreço, a título liminar, é pacífico que o público relevante é o grande público. Por conseguinte, como acertadamente realçou a Câmara de Recurso no n.° 37 da decisão impugnada, deve tomar‑se em consideração a percepção do consumidor que faz parte deste público, o qual possui limiares normais de sensibilidade e de tolerância.

52      A conclusão da Câmara de Recurso, nos termos da qual a marca pedida é contrária à ordem pública ou aos bons costumes, é baseada, nomeadamente, na análise dos elementos relativos à situação na Hungria, devido à influência determinante da antiga URSS na história recente desse Estado‑Membro.

53      A Câmara de Recurso referiu‑se, em primeiro lugar, ao artigo 269.° B da 1978. évi IV. törvény a Büntetö Törvénykönyvröl (Lei n.° IV de 1978 que aprova o Código Penal, a seguir «Código Penal húngaro»), intitulado «Utilização de símbolos de despotismo». Esta disposição prevê o seguinte:

«(1)      Quem:

a)      distribuir,

b)      utilizar perante um grande público,

c)      exibir em público

uma cruz suástica, uma insígnia das SS, uma cruz com braços em flecha, uma foice e um martelo, uma estrela vermelha de cinco pontas ou um símbolo em que figure um destes sinais, se não se verificar uma infracção de maior gravidade, comete um crime punível com multa.

(2)      Não é punível a prática do acto definido no n.° 1 quando obedeceu a finalidades de difusão dos conhecimentos, educativas, científicas, artísticas ou de informação sobre acontecimentos históricos ou contemporâneos.

(3)      As disposições dos n.os 1 e 2 não se aplicam aos emblemas oficiais actuais dos Estados.»

54      A Câmara de Recurso precisou que, segundo os comentários ao Código Penal húngaro, um símbolo designa uma ideia, uma pessoa ou um acontecimento e é composto por uma insígnia ou uma imagem concebida para estabelecer um nexo entre o referido sinal e a ideia, a pessoa ou o acontecimento em causa. Além disso, a utilização em público abrange um sinal que, enquanto marca, figura num produto que é distribuído no mercado.

55      Em segundo lugar, a Câmara de Recurso referiu‑se às orientações do Magyar Szabadalmi Hivatal (Serviço de Patentes húngaro), actual, desde 1 de Janeiro de 2011, Szellemi Tulajdon Nemzeti Hivatala (Serviço da propriedade intelectual húngaro), nos termos das quais os sinais que contenham «símbolos de despotismo» são considerados contrários à ordem pública.

56      Tendo em conta estes elementos, a Câmara de Recurso considerou que a marca pedida seria entendida como contrária à ordem pública ou aos bons costumes pelo público relevante situado na Hungria pelo facto de simbolizar a antiga URSS.

57      No que diz respeito à justeza desta constatação, deve observar‑se, a título liminar, que, no âmbito da apreciação da existência do motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009, os elementos de direito nacional, como os analisados pela Câmara de Recurso no caso em apreço, não são aplicáveis devido ao seu valor normativo e, por conseguinte, não são regras que vinculam o IHMI. Com efeito, como acima recordado no n.° 36, o regime comunitário das marcas constitui um sistema autónomo cuja aplicação é independente de qualquer sistema nacional.

58      Contudo, estes elementos são indícios factuais que permitem apreciar a percepção de certas categorias de sinais pelo público relevante situado no Estado‑Membro em causa.

59      Assim, no caso em apreço, decorre do artigo 269.°‑B do Código Penal húngaro, como interpretado pela doutrina e aplicado na prática administrativa, que o legislador húngaro considerou necessário proibir certas utilizações de «símbolos de despotismo», nomeadamente, a foice e o martelo e a estrela vermelha de cinco pontas. Esta proibição, que visa igualmente a utilização dos sinais em causa enquanto marcas, é acompanhada de sanções penais.

60      Ora, a recorrente não contesta a conclusão da Câmara de Recurso segundo a qual a proibição da utilização de «símbolos de despotismo» enquanto marca implica que esses símbolos possam ser entendidos como contrários à ordem pública ou aos bons costumes na Hungria.

61      Também é pacífico que a marca pedida é uma reprodução do emblema da antiga URSS e que a mesma inclui, nomeadamente, uma foice e um martelo e uma estrela vermelha de cinco pontas.

62      Nestas circunstâncias, deve considerar‑se que a Câmara de Recurso não cometeu um erro de apreciação ao declarar que a utilização, enquanto marca, da marca pedida é apreendida por uma parte substancial do público relevante situado na Hungria como contrária à ordem pública ou aos bons costumes na acepção do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009.

63      Os argumentos da recorrente não são susceptíveis de contrariar esta conclusão.

64      Assim, decorre do exposto que, no que respeita à Hungria, o conteúdo semântico do emblema da antiga URSS não foi diluído ou transformado ao ponto de este último já não ser apreendido como símbolo político. Com efeito, como evocou a Câmara de Recurso, uma parte substancial do público relevante situado na Hungria viveu o período de influência determinante da antiga URSS.

65      A tal acresce o facto de a marca pedida se limitar a reproduzir o emblema da antiga URSS e de assim não conter elementos adicionais susceptíveis de diluir ou transformar o conteúdo semântico deste símbolo.

66      No caso em apreço, é irrelevante a circunstância de certas utilizações de «símbolos de despotismo» não serem proibidas pelo direito húngaro. Com efeito, decorre dos n.os 27 a 29 e 50 supra que a análise da existência do motivo absoluto de recusa previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea f), do Regulamento n.° 207/2009 deve ser feita com referência ao modo como este sinal é apreendido enquanto marca.

67      Em último lugar, o Tribunal Geral não é competente para apreciar a compatibilidade do artigo 269.° B do Código Penal húngaro com a CEDH. De qualquer modo, esta circunstância é irrelevante no caso em apreço na medida em que decorre dos n.os 57 e 58 supra que a referida disposição deve ser tomada em consideração não em razão do seu valor normativo, mas enquanto indício factual que permite apreciar a percepção do público relevante situado na Hungria.

68      Em contrapartida, nos termos do artigo 6.°, n.° 3, TUE, os direitos fundamentais, como garantidos pela CEDH e como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, fazem parte do direito da União enquanto princípios gerais. Por conseguinte, o respeito destes direitos fundamentais é um requisito da legalidade dos actos da União, como é o caso da decisão impugnada, devendo o juiz da União garantir o seu cumprimento.

69      A este propósito, nos termos do artigo 10.°, n.° 1, da CEDH, qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão, a qual abrange, nomeadamente, a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas.

70      Nos termos do artigo 10.°, n.° 2, da CEDH, o exercício da liberdade de expressão pode ser sujeito a restrições previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, nomeadamente para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime ou a protecção da moral.

71      Ora, a recorrente não apresentou nenhum argumento que demonstre que a recusa de registo da marca pedida constitui uma ingerência no exercício da liberdade garantida pelo artigo 10.°, n.° 1, da CEDH que não preenche os requisitos do n.° 2 do mesmo artigo. De qualquer modo, a recorrente não pode validamente invocar a CEDH no âmbito do presente litígio.

72      Em face do exposto, há que concluir que a Câmara de Recurso não cometeu um erro de apreciação ao declarar que a marca pedida era contrária à ordem pública ou aos bons costumes na percepção do público relevante situado na Hungria e que, por conseguinte, devia ser recusado o seu registo ao abrigo do artigo 7.°, n.° 1, alínea f), e n.° 2, do Regulamento n.° 207/2009.

73      Por conseguinte, deve julgar‑se improcedente a segunda parte do primeiro fundamento, sem que seja necessário apreciar os demais elementos examinados pela Câmara de Recurso, relativos à percepção do público relevante situado na Letónia e na República Checa.

74      Tendo sido rejeitadas as duas partes do primeiro fundamento, há que julgar este fundamento improcedente.

 Quanto ao segundo fundamento, baseado numa violação dos princípios da protecção da confiança legítima e da segurança jurídica

 Argumentos das partes

75      A recorrente sustenta que a Câmara de Recurso violou os princípios da confiança legítima e da segurança jurídica na medida em que recusou o registo da marca pedida, apesar de o IHMI ter aceitado o registo da sua marca n.° 3958154, que diz respeito ao mesmo símbolo e examinada nas mesmas condições que a marca pedida. Com efeito, ao proceder ao registo da marca n.° 3958154, o IHMI forneceu à recorrente garantias implícitas, precisas e incondicionais sobre o carácter registável do sinal em causa.

76      Neste contexto, a recorrente contesta o argumento da Câmara de Recurso nos termos do qual o registo da marca n.° 3958154 é resultado de um erro. Com efeito, não cabe ao requerente determinar se o resultado do exame é fiável. Compete, pelo contrário, ao IHMI levar a cabo uma análise profunda e adequada e aplicar o Regulamento n.° 207/2009 de forma clara e certa.

77      A recorrente acrescenta que, tanto quanto lhe é dado saber, o processo de exame da marca n.° 3958154 não padece de nenhum erro.

78      O IHMI contesta a justeza dos argumentos da recorrente.

 Apreciação do Tribunal

79      Segundo a jurisprudência, a legalidade das decisões das Câmaras de Recurso deve ser apreciada unicamente com base no Regulamento n.° 207/2009, tal como interpretado pelo juiz da União, e não com base na prática decisória anterior do IHMI [v., neste sentido, acórdão do Tribunal Geral de 27 de Fevereiro de 2002, Streamserve/IHMI (STREAMSERVE), T‑106/00, Colect., p. II‑723, n.° 66].

80      Por conseguinte, a recorrente não pode alegar, com razão, que, ao registar a marca n.° 3958154, o IHMI lhe deu garantias quanto ao carácter registável da marca pedida. A fortiori, a recorrente não pode invocar validamente uma violação do princípio da segurança jurídica a este respeito.

81      De resto, independentemente da questão de saber se o registo da marca n.° 3958154 é resultado de um erro, a análise do primeiro fundamento não permitiu concluir que a decisão impugnada, que é a única decisão visada pelo presente recurso, viola o Regulamento n.° 207/2009.

82      Nestas circunstâncias, deve julgar‑se improcedente o segundo fundamento e, assim, negar provimento ao recurso na sua totalidade.

 Quanto às despesas

83      Por força do disposto no artigo 87.°, n.° 2, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená‑la nas despesas, em conformidade com os pedidos do IHMI.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Quarta Secção)

decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      A Couture Tech Ltd é condenada nas despesas.

Pelikánová

Jürimäe

Van der Woude

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 20 de Setembro de 2011.

Assinaturas


* Língua do processo: inglês.