Language of document : ECLI:EU:T:2022:301

Processo T577/20

Ryanair DAC

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Décima Secção Alargada) de 11 de maio de 2022

«Auxílios de Estado — Mercado alemão dos transportes aéreos — Empréstimo concedido pela Alemanha à Condor Flugdienst — Decisão que declara o auxílio compatível com o mercado interno — Artigo 107.°, n.° 3, alínea c), TFUE — Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas em dificuldade — Dificuldades específicas e que não resultam de uma afetação arbitrária dos custos no âmbito do grupo — Dificuldades demasiado graves para serem resolvidas pelo próprio grupo — Risco de interrupção de um serviço importante»

1.      Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito — Decisão da Comissão que declara a compatibilidade de um auxílio de Estado com o mercado interno sem dar início ao procedimento formal de investigação — Recurso dos interessados na aceção do artigo 108.°, n.° 2, TFUE — Recurso destinado a salvaguardar os direitos processuais dos interessados — Admissibilidade

[Artigos 108.°, n.° 2, e 263.°, quarto parágrafo, TFUE; Regulamento n.° 2015/1589 do Conselho, artigos 1.°, alínea h), 4.°, n.° 3, e 6.°, n.° 1]

(cf. n.os 13‑20)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados — Projetos de auxílios — Exame pela Comissão — Fase preliminar e fase contraditória — Compatibilidade de um auxílio com o mercado interno — Dificuldades de apreciação — Obrigação que incumbe à Comissão de abrir o procedimento contraditório — Dificuldades sérias — Conceito — Caráter objetivo — Ónus da prova — Circunstâncias que permitem comprovar a existência de tais dificuldades — Obrigação de a Comissão procurar, por sua própria iniciativa e na falta de qualquer indício nesse sentido, informações potencialmente pertinentes não levadas ao seu conhecimento — Inexistência

(Artigo 108.o, n.os 2 e 3, TFUE; Regulamento 2015/1589 do Conselho, artigo 4.°, n.os 3 e 4)

(cf. n.os 25‑28)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios que podem ser considerados compatíveis com o mercado interno — Auxílios de emergência a uma empresa em dificuldade — Apreciação à luz do artigo 107.°, n.° 3, alínea c), TFUE e das Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade — Critérios — Empresa em dificuldade — Sociedade em dificuldade que pertence a um grupo — Sociedade excluída do benefício dos auxílios ao abrigo das Orientações — Exceção — Condições — Dificuldades específicas da sociedade e que não resultam de uma afetação arbitrária dos custos no âmbito do grupo — Dificuldades demasiado graves para serem resolvidas pelo próprio grupo

[Artigo 107.°, n.° 3, alínea c), TFUE; Comunicação da Comissão 2014/C 249/01, ponto 22]

(cf. n.os 39‑65)

4.      Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios que podem ser considerados compatíveis com o mercado interno — Auxílios de emergência a uma empresa em dificuldade — Apreciação à luz do artigo 107.°, n.° 3, alínea c), TFUE e das Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade — Critérios — Prossecução de um objetivo comum — Medida destinada a impedir dificuldades sociais ou a colmatar uma falha de mercado — Risco de interrupção de um serviço importante e difícil de reproduzir em caso de falha do beneficiário dos auxílios

[Artigo 107.°, n.° 3, alínea c), TFUE; Comunicação da Comissão 2014/C 249/01, pontos 43 e 44]

(cf. n.os 68‑88)

5.      Auxílios concedidos pelos Estados — Decisão da Comissão de não levantar objeções relativamente a uma medida nacional — Dever de fundamentação — Alcance

[Artigos 107.°, n.° 3, alínea c), e 296.° TFUE]

(cf. n.os 100‑109)

Resumo

O Tribunal Geral da União Europeia confirma a compatibilidade do auxílio de emergência alemão à Condor com o direito da União

O facto de as dificuldades financeiras da Condor terem a sua origem na entrada em liquidação do grupo Thomas Cook não obstava à aprovação deste auxílio pela Comissão

Em 25 de setembro 2019, a companhia área Condor Flugdienst GmbH (a seguir «Condor»), que presta serviços de transporte aéreo principalmente a operadores turísticos a partir de vários aeroportos alemães, pediu a abertura de um processo de insolvência devido à entrada em liquidação da Thomas Cook Group plc (a seguir «grupo Thomas Cook»), que a detém a 100 %.

No mesmo dia, a República Federal da Alemanha notificou à Comissão Europeia uma medida de auxílio de emergência a favor da Condor, limitada a uma duração de seis meses. O auxílio notificado destinava‑se a manter um transporte aéreo ordenado e a limitar as consequências negativas para a Condor, para os seus passageiros e para o seu pessoal causadas pela liquidação da sua sociedade‑mãe, permitindo‑lhe continuar as suas atividades até chegar a um acordo com os seus credores e até que, eventualmente, a sua cessão seja efetuada.

Sem dar início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.°, n.° 2, TFUE, a Comissão qualificou, por Decisão de 14 de outubro de 2019 (a seguir «decisão recorrida») (1), a medida notificada de auxílio estatal compatível com o mercado interno com fundamento no artigo 107.°, n.° 3, alínea c), TFUE e nas Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade (2).

A Décima Secção Alargada do Tribunal Geral nega provimento ao recurso de anulação desta decisão, interposto pela companhia aérea Ryanair DAC (a seguir «recorrente»). Nesta ocasião, o órgão jurisdicional presta esclarecimentos, nomeadamente, sobre a apreciação da compatibilidade dos auxílios de emergência e à restruturação com o mercado interno à luz da regra, prevista nas Orientações, segundo a qual uma empresa que pertence a um grupo apenas pode beneficiar de tais auxílios se as suas dificuldades lhe forem específicas e não resultarem de uma afetação arbitrária dos custos no âmbito do grupo, e se essas dificuldades forem demasiado graves para serem resolvidas pelo próprio grupo.

Apreciação do Tribunal Geral

O Tribunal Geral julga improcedentes, em primeiro lugar, os fundamentos de anulação relativos ao facto de a Comissão ter cometido um erro de direito ao decidir não dar início ao procedimento formal de investigação apesar das dúvidas que deveria ter tido na análise preliminar da compatibilidade do auxílio notificado com o mercado interno.

A este respeito, a recorrente alegava mais especificamente que a declaração da compatibilidade do auxílio notificado com o mercado interno era contrária aos pontos 22, 44, alínea b), e 74 das Orientações, o que seria revelador de dúvidas que deveriam ter levado a Comissão a dar início ao procedimento formal de investigação.

Embora confirmando que a Comissão tem a obrigação de dar início ao procedimento formal de investigação em caso de dúvidas quanto à compatibilidade de um auxílio notificado com o mercado interno, o Tribunal Geral afasta, desde logo, a acusação relativa à violação do ponto 22 das Orientações pela Comissão.

Em conformidade com o referido ponto 22, «[u]ma empresa que pertencer a […] um grupo […] não pode, em princípio, beneficiar de auxílios ao abrigo das […] Orientações, salvo se puder demonstrar que as suas dificuldades lhe são específicas e não resultam de uma afetação arbitrária dos custos no âmbito do grupo e que essas dificuldades são demasiado graves para serem resolvidas pelo próprio grupo».

Quanto ao elemento da frase «salvo se puder demonstrar que as suas dificuldades lhe são específicas e não resultam de uma afetação arbitrária dos custos no âmbito do grupo», resulta, segundo o Tribunal Geral, de uma interpretação textual, teleológica e contextual do referido ponto 22 que este elemento da frase inclui apenas uma única condição que deve ser interpretada no sentido de que as dificuldades de uma empresa que pertence a um grupo devem ser consideradas específicas ao mesmo se não resultarem de uma afetação arbitrária dos custos no âmbito do grupo.

A este respeito, o Tribunal Geral assinala que a finalidade do ponto 22 das Orientações é evitar que um grupo de empresas transfira os seus custos, as suas dívidas ou o seu passivo para uma entidade do grupo, tornando‑a assim elegível para o benefício de um auxílio de emergência, quando de outra forma não o seria. Em contrapartida, o objetivo deste ponto não é excluir do âmbito de aplicação dos auxílios de emergência uma empresa que pertence a um grupo pelo simples facto de as suas dificuldades terem origem nas dificuldades enfrentadas pelo restante grupo ou por outra sociedade do grupo, desde que as referidas dificuldades não tenham sido criadas artificialmente ou afetadas arbitrariamente no âmbito do referido grupo.

No caso em apreço, uma vez que a recorrente não conseguiu refutar as conclusões da Comissão segundo as quais as dificuldades da Condor resultavam principalmente da entrada em liquidação do grupo Thomas Cook e não de uma afetação arbitrária dos custos no âmbito do grupo, não demonstrou a existência de dúvidas quanto à compatibilidade da medida de auxílio notificada com a condição prevista no ponto 22 das Orientações.

Esta conclusão não é posta em causa pela constatação de que as dificuldades da Condor estavam, a este respeito, ligadas à anulação de créditos de montantes significativos detidos por esta face ao grupo Thomas Cook no âmbito da utilização em comum da tesouraria deste. Com efeito, a utilização em comum da tesouraria no âmbito de um grupo é uma prática comum e generalizada nos grupos de sociedades, que tem por objetivo facilitar o financiamento do grupo, permitindo às sociedades que o integram economizar nos custos de financiamento. Além disso, no caso em apreço, este sistema de utilização em comum da tesouraria tinha sido implementado pelo grupo Thomas Cook há vários anos e não estava na origem das suas dificuldades.

Na falta de qualquer indício concreto que permita estabelecer o caráter arbitrário do sistema de utilização em comum da tesouraria do grupo Thomas Cook, não incumbia à Comissão procurar, por sua própria iniciativa, o caráter equitativo do referido sistema.

Além disso, a recorrente também não conseguiu demonstrar a existência de dúvidas na apreciação da condição prevista no ponto 22 das Orientações, segundo a qual as dificuldades de uma empresa que, tal como a Condor, pertence a um grupo, devem ser demasiado graves para serem resolvidas pelo próprio grupo. A este respeito, o Tribunal Geral recorda, por um lado, que o próprio grupo Thomas Cook estava em liquidação e tinha cessado todas as suas atividades. Precisa, por outro, que a Comissão não estava obrigada a aguardar o desfecho das discussões sobre uma eventual cessão da Condor com vista à resolução das suas dificuldades financeiras, tendo em conta a urgência em torno de qualquer auxílio de emergência e a incerteza inerente a qualquer negociação comercial em curso.

Em seguida, o Tribunal Geral rejeita a acusação relativa ao facto de que a Comissão deveria ter tido dúvidas sobre a questão de saber se o auxílio notificado satisfazia as condições previstas no ponto 44, alínea b), das Orientações, que precisa as modalidades segundo as quais os Estados‑Membros podem demonstrar que a falha do beneficiário é suscetível de acarretar dificuldades sociais graves ou uma falha de mercado grave.

Em conformidade com o ponto 44, alínea b), das Orientações, os Estados‑Membros podem apresentar essa prova demonstrando que «[e]xiste um risco de interrupção de um serviço importante, difícil de reproduzir e de ser facilmente assumido por um concorrente (por exemplo, um fornecedor nacional de infraestruturas)».

Para que um serviço seja considerado «importante», não é exigido, segundo o Tribunal Geral, que a empresa que presta este serviço desempenhe um papel sistémico importante para a economia de uma região do Estado‑Membro em causa, nem que esteja encarregada de um serviço de interesse económico geral ou de um serviço com uma importância à escala nacional. Assim, tendo em conta que um repatriamento imediato dos 200 000 a 300 000 passageiros da Condor distribuídos por 50 a 150 destinos diferentes não poderia ter sido assegurado por outras companhias aéreas concorrentes a curto prazo, a Comissão tinha concluído corretamente que existia um risco de interrupção de um serviço importante que é difícil de reproduzir, pelo que a saída da Condor do mercado podia conduzir a uma falha grave desse mercado.

Por último, o Tribunal Geral julga igualmente improcedente a acusação da recorrente segundo a qual a Comissão efetuou uma apreciação incompleta e insuficiente da condição de auxílio único do auxílio de emergência previsto no ponto 74 das Orientações.

Em segundo lugar, o Tribunal Geral rejeita o fundamento relativo à violação do dever de fundamentação que incumbe à Comissão e, por conseguinte, nega provimento ao recurso na íntegra.


1      Decisão C(2019) 7429 final da Comissão, de 14 de outubro de 2019, relativa ao auxílio de Estado SA.55394 (2019/N) — Alemanha — Auxílio de emergência à Condor (JO 2020, C 294, p. 3).


2      Orientações relativas aos auxílios estatais de emergência e à reestruturação concedidos a empresas não financeiras em dificuldade (JO 2014, C 249, p. 1, a seguir «Orientações»).