Language of document : ECLI:EU:C:2024:195

Processo C392/22

X

contra

Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e da Segurança)

(pedido de decisão prejudicial,
apresentado pelo Rechtbank Den Haag, zittingsplaats ’s‑Hertogenbosch)

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 29 de fevereiro de 2024

«Reenvio prejudicial – Política comum em matéria de imigração e de asilo – Pedido de proteção internacional – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Artigo 4.° – Risco de tratamento desumano ou degradante – Critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional – Regulamento (UE) n.° 604/2013 – Artigo 3.°, n.° 2 – Alcance das obrigações do Estado‑Membro que solicitou a retomada a cargo do requerente pelo Estado‑Membro responsável e que pretende proceder à transferência do requerente para este último Estado‑Membro – Princípio da confiança mútua – Meios e nível de prova do risco real de tratamento desumano ou degradante devido a falhas sistémicas – Práticas de repulsão sumária (pushback) para um país terceiro e de detenção nos postos fronteiriços»

1.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração – Política de asilo – Critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional – Regulamento n.° 604/2013 – Transferência de um requerente de proteção internacional para o EstadoMembro responsável pela análise do seu pedido – Presunção inilidível de que este último EstadoMembro respeitou os direitos fundamentais da União – Inexistência

(Artigo 2.° TUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 1.° e 4.°; Regulamento n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho)

(cf. n.os 43‑46)

2.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração – Política de asilo – Procedimentos de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional – Diretiva 2013/32 – Procedimento de análise de um pedido de proteção internacional – Acessibilidade do processo – Práticas de repulsão sumária (pushback) para um país terceiro – Inadmissibilidade

(Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 18.° e 19.°, n.° 2; Diretiva 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerando 3; Diretiva 2013/32 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 6.°)

(cf. n.os 50‑53)

3.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração – Política de asilo – Normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional – Diretiva 2013/33 – Critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional – Regulamento n.° 604/2013 – Detenção – Motivos – Detenção pelo mero facto de ter pedido proteção internacional – Inadmissibilidade – Medida que pode ser decretada ou prorrogada apenas no cumprimento das normas gerais e abstratas fixando as condições e modalidades

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 6.°; Regulamento n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerando 20; Diretiva 2013/33 do Parlamento Europeu e do Conselho, considerando 15)

(cf. n.os 54‑56)

4.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração – Política de asilo – Critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional – Regulamento n.° 604/2013 – Transferência de um requerente de proteção internacional para o EstadoMembro responsável pela análise do seu pedido – Circunstâncias que excluem a transferência – Falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes do EstadoMembro responsável, implicando um risco de tratamento desumano ou degradante – EstadoMembro responsável que procedeu a práticas de repulsão sumária e de detenção nos postos fronteiriços – EstadoMembro responsável que procedeu a práticas de repulsão sumária e de detenção nos postos fronteiriços – Práticas que obstam à transferência em caso de risco real de colocar o requerente numa situação que pode ser equiparada a um tratamento desumano ou degradante

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 4.°; Regulamento n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 3.°, n.° 2, segundo parágrafo)

(cf. n.os 57‑65, disp. 1)

5.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração – Política de asilo – Critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional – Regulamento n.° 604/2013 – Transferência de um requerente de proteção internacional para o EstadoMembro responsável pela análise do seu pedido – Circunstâncias que excluem a transferência – Falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes do EstadoMembro responsável, implicando um risco de tratamento desumano ou degradante – Obrigações do EstadoMembro requerente quanto à apreciação desse risco – Faculdade que consiste em procurar obter do EstadoMembro responsável garantias individuais que excluem esse risco

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 4.°; Regulamento n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 3.°, n.° 2, segundo parágrafo, 5.°, 21.°, n.° 3, e 22.°, n.os 2 a 5)

(cf. n.os 67‑81, disp. 2)

Resumo

Chamado a pronunciar‑se a título prejudicial pelo rechtbank Den Haag, zittingsplaats ’s‑Hertogenbosch (Tribunal de Primeira Instância de Haia, com local da audiência em’s Hertogenbosch, Países Baixos), o Tribunal de Justiça pronuncia‑se sobre o alcance das obrigações do Estado‑Membro que solicita a retomada a cargo do requerente de proteção internacional pelo Estado‑Membro responsável pela análise desse pedido na situação em que este último Estado recorre a práticas como a repulsão sumária (pushback) (1) e a detenção nos postos fronteiriços.

X, um nacional sírio, apresentou um pedido de proteção internacional na Polónia em 9 de novembro de 2021. Em seguida, entrou nos Países Baixos em 21 de novembro de 2021, onde apresentou um novo pedido de proteção internacional no dia seguinte. Em 1 de fevereiro de 2022, a Polónia deferiu o pedido dos Países Baixos de retomar a cargo X nos termos das disposições do Regulamento Dublim III (2). Em seguida, por Decisão de 20 de abril de 2022, o Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e da Segurança, Países Baixos) não tomou em consideração o pedido de proteção internacional apresentado por X nos Países Baixos, pelo facto de a Polónia ser responsável pela análise desse pedido, e rejeitou os argumentos invocados por X para se opor à sua transferência.

X interpôs recurso dessa decisão no órgão jurisdicional de reenvio, pedindo a proibição da sua transferência para a Polónia, alegando, nomeadamente, que as autoridades polacas violaram os seus direitos fundamentais. Segundo as suas afirmações, por um lado, foi objeto, por três vezes, da prática de repulsões sumárias para a Bielorrússia após a sua entrada no território polaco. Por outro lado, esteve detido durante cerca de uma semana no centro dos guardas de fronteira, onde foi sujeito a um tratamento muito negativo, nomeadamente devido à falta de alimentação e à inexistência de qualquer controlo médico. X indica recear que os seus direitos fundamentais fossem novamente violados se fosse transferido para a Polónia.

O órgão jurisdicional de reenvio considerou que informações objetivas, fiáveis, precisas e devidamente atualizadas mostram que a Polónia viola de forma sistemática, desde há vários anos, vários direitos fundamentais dos nacionais de países terceiros ao praticarem repulsões sumárias, regularmente acompanhadas de um recurso à violência, e ao deterem sistematicamente e em condições qualificadas de «degradantes» os nacionais de países terceiros que entram ilegalmente no seu território.

Nestas condições, questionou o Tribunal de Justiça, em substância, sobre a questão de saber se o facto de o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional de um nacional de país terceiro proceder, relativamente a esses nacionais que procuram apresentar o referido pedido na sua fronteira, a repulsões sumárias e detenções nos seus postos fronteiriços obsta à transferência desse nacional para este último Estado‑Membro. Solicitou igualmente ao Tribunal de Justiça esclarecimentos quanto à apreciação da existência do risco de esse nacional estar sujeito a tratos desumanos ou degradantes.

Apreciação do Tribunal de Justiça

O Tribunal de Justiça começa por confirmar que práticas de repulsão sumária e medidas de detenção nos postos fronteiriços como as constatadas no caso em apreço pelo órgão jurisdicional de reenvio são incompatíveis com o direito da União e constituem falhas graves no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes. Com efeito, por um lado, a prática de repulsão sumária viola o artigo 6.° da Diretiva 2013/32 (3), que é um dos fundamentos do sistema europeu comum de asilo (4). Por outro lado, pode pôr em causa o princípio da não repulsão, garantido, enquanto direito fundamental, no artigo 18.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), lido em conjugação com o artigo 33.° da Convenção de Genebra (5), bem como no artigo 19.°, n.° 2, da Carta. Quanto à prática de retenção nos postos fronteiriços, o considerando 15 da Diretiva 2013/33/UE (6), tal como o considerando 20 do Regulamento Dublim III, recordam o princípio segundo o qual ninguém deve ser retido apenas pelo facto de pedir proteção internacional.

Todavia, o facto de o Estado‑Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional de um nacional de um país terceiro ter procedido a repulsões sumárias e a detenções nos seus postos fronteiriços não obsta, por si só, à transferência desse nacional para o referido Estado‑Membro. Com efeito, para excluir essa transferência, as falhas constatadas devem preencher os dois requisitos cumulativos enunciados no artigo 3.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III, segundo o qual só as falhas «sistémicas» que «impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.° da [Carta]» impossibilitam essa transferência (7). Daqui resulta que, por um lado, as falhas constatadas devem dizer respeito, de maneira geral, ao procedimento de asilo e às condições de acolhimento aplicáveis aos requerentes de proteção internacional ou, pelo menos, a certos grupos desses requerentes considerados no seu conjunto. Por outro lado, é necessário que existam motivos sérios e comprovados para crer que o nacional correria, quando da transferência ou na sequência deste, um risco real de ser sujeito às práticas acima referidas e que estas sejam suscetíveis de o colocar numa situação de privação material extrema de tal gravidade que possa ser equiparada a um tratamento desumano ou degradante, proibido pelo artigo 4.° da Carta.

No que diz respeito ao nível e ao regime de prova que permitem desencadear a aplicação do artigo 3.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III, há que, na falta de especificações nesta disposição, fazer referência às disposições gerais e à sistemática deste regulamento.

Daqui decorre que, em primeiro lugar, o Estado‑Membro que pretende transferir um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável deve, antes de poder proceder a essa transferência, tomar em consideração todas as informações que o referido requerente lhe fornece, nomeadamente no que respeita à eventual existência de um risco real de ser sujeito, no momento ou na sequência da referida transferência, a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.° da Carta.

Em segundo lugar, o Estado‑Membro que solicitou a retomada a cargo de um requerente de proteção internacional deve cooperar na demonstração dos factos, apreciando a realidade desse risco, com base em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados, e à luz do padrão de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União, se for caso disso, tendo em conta, por sua própria iniciativa, as informações relevantes que não podia ignorar relativamente a eventuais falhas sistémicas do procedimento de asilo e das condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional no Estado‑Membro responsável.

Em terceiro lugar, este Estado‑Membro não deve proceder a essa transferência caso existam motivos sérios e comprovados para crer que existe um risco real de tratamento contrário ao artigo 4.° da Carta em caso de transferência. Nessa hipótese, o Estado‑Membro encarregado da determinação do Estado‑Membro responsável deve prosseguir a análise dos critérios enunciados no capítulo III do Regulamento Dublim III para determinar se outro Estado‑Membro pode ser designado responsável.

No entanto, o Estado‑Membro que pretenda proceder à transferência pode procurar obter do Estado‑Membro responsável garantias individuais que sejam suficientes para excluir o risco real de tratos desumanos ou degradantes em caso de transferência e, se essas garantias forem prestadas e se se afigurarem simultaneamente credíveis e suficientes para excluir qualquer risco real desses tratamentos, proceder à transferência.


1      A prática de repulsão sumária para as fronteiras externas da União equivale a afastar do território da União pessoas que pretendam apresentar um pedido de proteção internacional ou a afastar desse território pessoas que tenham apresentado tal pedido, apresentado à entrada do referido território, antes de o mesmo pedido ter sido objeto do exame previsto pela legislação da União.


2      Regulamento (UE) n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31, a seguir «Regulamento Dublim III»).


3      Diretiva 2013/32/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 60).


4      Esta disposição implica que todo o nacional de um país terceiro ou apátrida tem o direito de apresentar um pedido de proteção internacional, incluindo nas fronteiras de um Estado‑Membro, manifestando a sua vontade de beneficiar de proteção internacional junto de uma das autoridades referidas nesta mesma disposição. Este direito deve ser‑lhe reconhecido, mesmo que se encontre em situação irregular nesse território e independentemente das hipóteses de aceitação desse pedido [Acórdão de 22 de junho de 2023, Comissão/Hungria (Declaração de intenções prévia ao pedido de asilo), C‑823/21, EU:C:2023:504, n.° 43 e jurisprudência referida].


5      Convenção de Genebra de 28 de julho de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados, completada pelo Protocolo de Nova Iorque de 31 de janeiro de 1967.


6      Diretiva 2013/33/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece normas em matéria de acolhimento dos requerentes de proteção internacional (JO 2013, L 180, p. 96).


7      O artigo 3.°, n.° 2, segundo parágrafo, do Regulamento Dublim III dispõe: «Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado‑Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado‑Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.° da [Carta], o Estado‑Membro que procede à determinação do Estado‑Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado‑Membro seja designado responsável».