Language of document : ECLI:EU:T:2002:78

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quarta Secção Alargada)

20 de Março de 2002(1)

«Concorrência - Abuso de posição dominante - Sector postal - Serviços de interesse económico geral - Utilização de lucros obtidos num mercado reservado - Aquisição do controlo conjunto de uma empresa activa no mercado não reservado - Fundamentação»

No processo T-175/99,

UPS Europe SA, com sede em Bruxelas (Bélgica), representada por T. R. Ottervanger e D. Arts, advogados, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrente,

contra

Comissão das Comunidades Europeias, representada por B. Doherty e K. Wiedner, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

recorrida,

apoiada pela

Deutsche Post AG, com sede em Bona (Alemanha), representada por J. Sedemund, advogado, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

interveniente,

que tem por objecto um pedido de anulação da Decisão SG (99) D/4155 da Comissão, de 10 de Junho de 1999, que rejeita a denúncia da recorrente de 8 de Junho de 1998, na medida em que esta decisão respeita ao artigo 82.° CE e à aquisição parcial da DHL International Ltd pela Deutsche Post AG,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS (Quarta Secção Alargada),

composto por: P. Mengozzi, presidente, R. García-Valdecasas, V. Tiili, R. M. Moura Ramos e J. D. Cooke, juízes,

secretário: D. Christensen, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 25 de Abril de 2001,

profere o presente

Acórdão

Factos na origem do recurso

1.
    A demandante é uma sociedade do grupo United Parcel Service, que exerce a sua actividade de distribuição de encomendas a nível mundial. Possui escritórios em todos os Estados-Membros da Comunidade Europeia, nomeadamente na Alemanha.

2.
    Em 11 de Maio de 1998, a Comissão foi notificada, nos termos do artigo 4.° do Regulamento (CEE) n.° 4064/89 do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, relativo ao controlo das operações de concentração de empresas (JO L 395, p. 1), de um projecto pelo qual a empresa Deutsche Post AG pretendia adquirir, na acepção do artigo 3.°, n.° 1, alínea b), do referido regulamento, o controlo conjunto da DHL International Ltd (a seguir «DHL») através da compra de 22,498% das acções desta última. Desta forma, a Deutsche Post passaria a controlar a DHLconjuntamente com a Deutsche Lufthansa AG (a seguir «Lufthansa») e a Japanese Airlines Company Ltd (a seguir «JAL»).

3.
    Em 19 de Maio de 1998, foi publicado um aviso da notificação prévia desta concentração (processo IV/M.1168 - DHL/Deutsche Post) (JO C 154, p. 6), convidando terceiros a submeter as suas observações à Comissão.

4.
    A recorrente submeteu as suas observações à Comissão em 29 de Maio de 1998. Nomeadamente, referiu que a Deutsche Post só podia reunir os recursos financeiros suficientes para adquirir acções da DHL graças aos lucros obtidos no mercado reservado dos serviços postais. A recorrente sublinhou igualmente que a Deutsche Post não podia utilizar os seus direitos exclusivos para outro fim que não fosse cumprir o serviço de interesse económico geral que lhe foi confiado.

5.
    Por carta de 8 de Junho de 1998, a recorrente apresentou uma denúncia junto a Comissão contra a República Federal da Alemanha, a Deutsche Post e a DHL. A denúncia respeitava a alegadas violações dos artigos 81.° CE, 82.° CE e 87.° CE. A recorrente pediu à Comissão que instaurasse, nomeadamente, um processo contra a Deutsche Post por abuso de posição dominante.

6.
    Em 26 de Junho de 1998, a Comissão adoptou uma decisão que declarava a compatibilidade com o mercado comum de uma concentração (processo IV/M.1168 - DHL/Deutsche Post) com base no Regulamento n.° 4064/89, cujo aviso foi publicado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias (JO C 307, p. 3).

7.
    Por carta de 7 de Julho de 1998, a Comissão pediu à recorrente que lhe indicasse se desejava manter a denúncia de 8 de Junho de 1998. Por carta de 10 de Julho de 1998, a recorrente respondeu-lhe afirmativamente.

8.
    Em 21 de Dezembro de 1998, a recorrente enviou um carta à Comissão convidando-a a tomar uma decisão na sequência da sua denúncia, nomeadamente nos termos dos artigos 81.° CE e 82.° CE.

9.
    Por carta de 8 de Fevereiro de 1999, a Comissão comunicou à recorrente as suas conclusões preliminares, nos termos do artigo 6.° do Regulamento (CE) n.° 2842/98 da Comissão de 22 de Dezembro de 1998, relativo às audições dos interessados directos em certos processos, nos termos dos artigos [81.°] e [82.°] do Tratado CE (JO L 354, p. 18), segundo as quais o pedido da recorrente, na medida em que assentava nos artigos 81.° CE e 82.° CE, era improcedente.

10.
    Por carta de 29 de Março de 1999, a recorrente informou a Comissão do seu desacordo relativamente às conclusões desta última e convidou-a a examinar mais detalhadamente a questão à luz do artigo 82.° CE.

11.
    Por decisão de 10 de Junho de 1999, a Comissão rejeitou a denúncia da recorrente na medida em que se baseava nos artigos 81.° CE e 82.° CE (a seguir «decisão controvertida»).

12.
    A decisão controvertida precisava:

«16. Tal como a Comissão salientou na sua decisão de 26 de Junho de 1998, [a Deutsche Post] afirma que esta aquisição foi financiada pela venda de activos imobiliários colocados à sua disposição aquando da sua conversão em sociedade anónima. Se tal se vier a confirmar, a denúncia carece de fundamento.

17. Na sua carta de 29 de Março de 1999, a UPS [Europa] observa, a justo título, que a veracidade da afirmação [da Deutsche Post] quanto à origem dos fundos não foi verificada. Todavia, contrariamente ao que a UPS [Europa] indica na mesma carta, a Comissão não é obrigada a abrir um inquérito a esse respeito. Com efeito, a denúncia não está, de qualquer forma, juridicamente fundamentada. Ainda que se concluísse que [a Deutsche Post] utilizou receitas realizadas no mercado da correspondência e que todas as outras condições do artigo 82.° CE estivessem reunidas, não existiria uma prática abusiva na acepção desta disposição.

18. O simples facto de uma sociedade decidir utilizar os recursos de que dispõe para adquirir uma participação numa outra sociedade não suscita dificuldades à luz do direito da concorrência da UE, desde que essa aquisição não conduza à constituição ou ao reforço de uma posição dominante.

19. Na sua decisão de 26 de Junho de 1998, a Comissão concluiu que a operação que lhe tinha sido notificada não suscitava dificuldades sérias quanto à sua compatibilidade com o mercado comum.

20. Por conseguinte, há que analisar a questão mais específica de saber se, numa situação em que, para financiar a aquisição do controlo de uma sociedade que exerce as suas actividades num sector não protegido, uma empresa utiliza (sempre na hipótese de as afirmações da UPS [Europa] serem fundadas) receitas provenientes de actividades relativamente às quais goza de um monopólio de direito, tal constitui um abuso de posição dominante na acepção do artigo [82.°] do Tratado CE. A Comissão entende dever responder-se negativamente. Mesmo as sociedades às quais foi concedido pelos Estados-Membros um direito exclusivo para determinada actividade não estão proibidas pelo artigo 82.° CE de se expandir noutros sectores de actividade. Tal não impede que o artigo 82.° CE possa ser oposto ao comportamento dessas sociedades relativamente a mercados onde gozem de um monopólio.»

Tramitação processual e pedidos das partes

13.
    Por petição entrada na Secretaria do Tribunal de Primeira Instância em 2 de Agosto de 1999, a recorrente interpôs o presente recurso.

14.
    Por pedido entrado naquela Secretaria em 23 de Dezembro de 1999, a Deutsche Post pediu autorização para intervir em apoio do pedido da recorrida.

15.
    Por despacho do presidente da Quarta Secção do Tribunal de Primeira Instância de 8 de Fevereiro de 2000, a Deutsche Post foi autorizada a intervir em apoio do pedido da recorrida.

16.
    Nos termos dos artigos 14.°, n.° 1, e 51.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, o processo foi atribuído a uma secção composta por cinco juízes.

17.
    Com base no relatório do juiz-relator, o Tribunal de Primeira Instância (Quarta Secção Alargada) decidiu iniciar a fase oral e, no quadro das medidas de organização do processo, convidou a Comissão a apresentar, antes da respectiva publicação, a sua decisão 2001/354/CE, de 20 de Março de 2001, relativa a um processo de aplicação do artigo 82.° do Tratado CE (Processo COMP/35.141 Deutsche Post AG) (JO L 125, p. 27).

18.
    Foram ouvidas as alegações das partes e as suas respostas às perguntas do Tribunal na audiência de 25 de Abril de 2001.

19.
    A recorrente conclui pedindo que o Tribunal se digne:

-    anular a decisão controvertida na parte em que rejeita a sua denúncia baseada no artigo 82.° CE;

-    condenar a recorrida e a interveniente nas despesas e

-    ordenar qualquer medida que o Tribunal entenda necessária.

20.
    A recorrida conclui pedindo que o Tribunal:

-    negue provimento ao recurso;

-    condene a recorrente nas despesas.

21.
    A interveniente conclui pedindo que o Tribunal:

-    negue provimento ao recurso;

-    condene a recorrente nas despesas.

Questão de direito

22.
    A recorrente invoca dois fundamentos de anulação em apoio do seu recurso. O primeiro baseia-se numa insuficiência de fundamentação. O segundo baseia-se numa violação do artigo 82.° CE.

Quanto ao primeiro fundamento, baseado numa insuficiência de fundamentação

Argumentação das partes

23.
    Segundo a recorrente, a decisão controvertida infringe o artigo 253.° CE na medida em que, nas circunstâncias do presente processo, a Comissão não pode limitar-se a declarar que o artigo 82.° CE não proíbe a uma empresa em posição de monopólio de se expandir em domínios diferentes dos que são objecto desse monopólio.

24.
    Entende que a decisão controvertida não demonstra por que motivo os recursos previstos para desempenhar um determinado serviço de interesse económico geral podem igualmente ser utilizados para outros fins, como seja a aquisição do controlo conjunto de uma empresa activa num mercado vizinho. Alega que, tanto quanto sabe, a decisão controvertida é a primeira decisão em que a Comissão formula a sua posição acerca desta questão. Consequentemente, considera que a mesma deveria ter fundamentado essa decisão com particular cuidado.

25.
    A recorrente sublinha que a obrigação de fundamentar é corroborada pelo facto de o artigo 82.° ser uma proibição «aberta», cujo significado evoluiu com o passar do tempo, em função da prática da Comissão e da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Assim, uma decisão que exclua de forma explícita determinado comportamento do campo de aplicação do artigo 82.° CE é tão reveladora e pertinente para efeitos da determinação do alcance deste artigo quanto uma decisão que qualifique um comportamento de abusivo na acepção do mesmo artigo.

26.
    A recorrida, por sua vez, apoiada pela interveniente, deduz do facto de o artigo 82.° estabelecer uma proibição que não é necessário qualquer fundamentação especial para demonstrar que determinado comportamento é autorizado.

Apreciação do Tribunal

27.
    Importa recordar, a título liminar, que, nos termos de jurisprudência constante, a fundamentação exigida pelo artigo 253.° CE deve ser adaptada à natureza do acto em causa e revelar, de modo claro e inequívoco, o raciocínio da instituição autora do acto, de modo a permitir aos interessados conhecer as justificações da medida tomada e ao Tribunal exercer a sua fiscalização (acórdãos de 2 de Fevereiro de 1988, Van der Kooy e o./Comissão, 67/85, 68/85 e 70/85, Colect., p. 219, n.° 71, e de 14 de Julho de 1994, Grécia/Conselho, C-353/92, Colect., p. I-3411, n.° 19).

28.
    Além disso, a exigência de fundamentação deve ser apreciada em função das circunstâncias do caso concreto, tais como o conteúdo do acto e a natureza dos fundamentos invocados (acórdão de 13 de Março de 1985, Países Baixos e Leeuwarder Papierwarenfabriek/Comissão, 296/82 e 318/82, Recueil, p. 809, n.° 19).

29.
    Tal como o Tribunal de Justiça lembrou no seu acórdão de 2 de Abril de 1998, Comissão/Sytraval e Brink's France (C-367/95 P, Colect., p. I-1719), não é exigido que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito pertinentes, na medida em que a questão de saber se a fundamentação de um acto satisfaz as exigências do artigo 253.° CE deve ser apreciada à luz não somente do seu teor mas também do seu contexto e do conjunto das normas jurídicas que regem a matéria em causa (n.° 63).

30.
    Devem aqui ser recordadas as circunstâncias na sequência das quais a decisão controvertida foi adoptada.

31.
    Por carta de 29 de Maio de 1998, a recorrente respondeu ao convite para apresentar observação sobre o projecto de concentração DHL/Deutsche Post. No n.° 3 da sua resposta, a recorrente refere, por um lado, que o financiamento da aquisição das acções da DHL pela Deutsche Post era efectuado em violação do artigo 82.° CE e/ou do artigo 87.° CE, independentemente da posição final da Comissão acerca da compatibilidade da concentração proposta com o mercado comum. Por outro lado, sustentou que, de acordo com a estrutura da empresa comum prevista pela Deutsche Post e pela DHL, as futuras relações entre estas duas empresas violariam os artigos 81.° CE e/ou 82.° CE e/ou 87.° CE. Por fim, a recorrente precisou nessa mesma carta ter intenção de pedir à Comissão que instaurasse um processo formal contra a Deutsche Post e a República Federal da Alemanha por violação do Tratado.

32.
    Por carta de 8 de Junho de 1998, a recorrente apresentou denúncia sobre o problema acima referido e pediu à Comissão que instaurasse um processo contra a Deutsche Post e contra a República Federal da Alemanha com fundamento, respectivamente, em abuso de posição dominante e na concessão de um auxílio de Estado em violação dos artigos 87.° CE e 88.° CE. Além disso, a recorrente afirmou que os futuros vínculos entre a DHL e a Deutsche Post infringiriam os artigos 81.° CE e/ou 82.° CE e/ou 87.° CE.

33.
    Na decisão controvertida, a Comissão afirmou que mesmo que a Deutsche Post tivesse utilizado lucros provenientes do «mercado da correspondência» e que todas as outras condições previstas pelo artigo 82.° CE estivessem preenchidas, não se tratava, ainda assim, de um abuso na acepção desta disposição. Acrescentou que o simples facto de uma empresa decidir utilizar os recursos de que dispõe para adquirir uma participação numa outra empresa não suscita dificuldades à luz do direito da concorrência, desde que essa aquisição não crie nem reforce uma posição dominante. Precisou que a denúncia da recorrente carecia de fundamentojurídico, uma vez que o artigo 82.° CE não proíbe a expansão noutros domínios, mesmo a empresas às quais os Estados-Membros concederam um direito exclusivo num domínio especial.

34.
    Nestas condições, deve concluir-se que a fundamentação da decisão controvertida, não obstante estar formulada sucintamente, foi suficiente para dar a conhecer à recorrente os motivos de facto e de direito em que a Comissão se baseou para rejeitar a denúncia.

35.
    Daqui decorre que o primeiro fundamento não procede.

Quanto ao segundo fundamento, baseado na violação do artigo 82.° CE

Argumentação das partes

36.
    A recorrente entende que a decisão controvertida ignora o facto de que a utilização de lucros provenientes de um direito exclusivo, concedido apenas com o objectivo de garantir a prestação de um serviço de interesse económico geral, para adquirir o controlo de empresas activas em mercados vizinhos equivale a um abuso de posição dominante, proibido pelo artigo 82.° CE. Refere o acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 1993, Corbeau (C-320/91, Colect., p. I-2533, n.° 19), e alega que, sendo a exclusividade concedida a uma empresa encarregada de uma obrigação de serviço universal para preservar o equilíbrio económico do referido serviço, a empresa em causa não deve utilizar o lucro proveniente da exclusividade para outros fins.

37.
    Acrescenta que o efeito no mercado é o mesmo quer os lucros do domínio reservado sejam utilizados para financiar a aquisição de uma empresa activa num mercado aberto à concorrência quer sejam utilizados para subvencionar actividades exercidas num mercado liberalizado. Segundo ela, em ambos os casos, a utilização desses lucros falseia a concorrência.

38.
    A recorrente alega, por último, que a empresa que utiliza os lucros do monopólio pode imputar os custos da aquisição às actividades objecto desse monopólio. Daqui resulta poder oferecer um preço melhor que o dos seus concorrentes, os quais, privados dos lucros do monopólio, são obrigados a financiar a aquisição através de recursos gerados num mercado liberalizado e a ter em conta o rendimento dos capitais investidos que esperam obter. Como consequência, a concorrência é afectada não apenas no mercado não reservado em causa mas também no mercado da aquisição de empresas activas no mercado não reservado.

39.
    A recorrente contesta a interpretação da Comissão segundo a qual, caso o comportamento impugnado pela recorrente fosse condenado, a Deutsche Post se veria impedida de aceder ao mercado das encomendas ou de se expandir neste mercado. A recorrente alega que, neste caso, a Deutsche Post poderia, à semelhança de qualquer outra empresa, recorrer a outros meios financeiros, como,por exemplo, a emissão de obrigações ou de acções, a venda de uma filial ou a contracção de um empréstimo. Poderia também utilizar livremente para esse efeito os lucros gerados pelas suas actividades nos mercados concorrenciais. Apenas lhe seria vedado o acesso a um outro mercado mediante a utilização dos lucros provenientes do seu monopólio.

40.
    No que respeita à alegada proibição de utilizar determinado tipo de lucros, a recorrente precisa nunca ter defendido que a Deutsche Post não podia legitimamente realizar lucros no mercado monopolístico; apenas defendeu que a Deutsche Post não tinha o direito de utilizá-los para financiar actividades em mercados concorrenciais. Referindo-se ao acórdão Corbeau, citado n.° 36, supra, sustenta que a concessão de direitos exclusivos tem por finalidade permitir às empresas encarregadas de uma obrigação de serviço universal atingir o equilíbrio

financeiro. Este acórdão apoiaria a tese de que a utilização de lucros provenientes de um monopólio para fins diversos da cobertura das perdas causadas pelo cumprimento de um serviço universal constitui um abuso na acepção do artigo 82.° CE. Consequentemente, a Deutsche Post não tem o direito de realizar, lucros no mercado da correspondência, lucros superiores aos custos adicionais que tem de suportar enquanto encarregada de uma obrigação de serviço universal.

41.
    A recorrente lembra que um dos objectivos do artigo 82.° CE é garantir a lealdade entre as diferentes sociedades que operam num determinado mercado e proteger a posição da concorrência, impedindo do mesmo modo que, a longo prazo, os consumidores sejam prejudicados. Por conseguinte, constituem abuso as práticas que não assentam numa condução normal dos negócios e que contrariam os objectivos acima referidos. Acrescenta que a utilização de lucros resultantes de uma posição protegida por um monopólio legal para adquirir o controlo de uma sociedade que opera num mercado concorrencial não constitui uma condução normal dos negócios e, nessa medida, é injusta e falseia a concorrência. Por outras palavras, sendo a obrigação de serviço universal a única justificação possível de um direito exclusivo, qualquer outra utilização dos lucros provenientes de um direito dessa natureza corresponde inevitavelmente a um abuso.

42.
    A recorrente acrescenta que a sua argumentação é corroborada pela comunicação da Comissão relativa à aplicação das regras de concorrência ao sector postal e à apreciação de certas medidas estatais referentes aos serviços postais (JO 1998, C 39, p. 2). No décimo-sétimo parágrafo do prefácio desta comunicação, a Comissão afirma explicitamente que, «[c]om o objectivo de garantir o financiamento do serviço universal, poderá reservar-se um sector aos operadores deste serviço universal». No ponto 3.4 da mesma comunicação, a Comissão afirma que «[o]s operadores referidos no ponto 4.2 [isto é, as empresas às quais foram concedidos direitos exclusivos] não devem utilizar as receitas obtidas no âmbito do domínio reservado para concederem subvenções cruzadas a domínios abertos à concorrência. Tal prática poderá impedir, restringir ou falsear a concorrência no domínio não reservado».

43.
    A recorrida sublinha não existir qualquer regra jurídica comunitária nem jurisprudência que aponte no sentido da interpretação do artigo 82.° CE preconizada pela recorrente.

44.
    Alega que da tese da recorrente resultaria que o artigo 82.° CE ou se oporia à expansão da Deutsche Post no mercado das encomendas postais ou a impediria de fazê-lo mediante a utilização dos lucros provenientes de outras actividades.

45.
    No que respeita à afirmação da recorrente segundo a qual a Deutsche Post não deve utilizar os lucros gerados por um sector reservado para financiar actividades num sector não reservado, a recorrida entende que o lucro proveniente de um direito exclusivo, conferido para assegurar um serviço universal, pode igualmente ser utilizado para outros fins. Afirma que o acórdão Corbeau não estabeleceu que um direito exclusivo é ilegal salvo se tiver sido conferido para financiar um serviço universal.

46.
    Quanto à questão relativa à possibilidade de subvenções cruzadas, a recorrida alega que a recorrente confunde os argumentos relativos ao artigo 82.° CE e os relativos ao artigo 86.° CE. Trata-se, porém, de duas disposições distintas que prosseguem objectivos diferentes: o artigo 82.° CE visa apenas os comportamentos anticoncorrenciais adoptados por iniciativa das próprias empresas, ao passo que os argumentos da recorrente respeitam de facto a medidas estatais, que devem ser examinadas à luz do artigo 86.° CE. Acrescenta que, de qualquer modo, não existe qualquer regra absoluta que proíba as subvenções cruzadas. A razão para tal reside em que, embora possa ser utilizada para disfarçar um abuso, por exemplo preços predatórios, preços excessivos ou uma discriminação em matéria de preços, uma subvenção cruzada não constitui em si mesma um abuso.

47.
    Em conclusão, a recorrida entende que o artigo 82.° CE não pressupõe a existência de uma regra que impede que uma empresa em posição dominante, beneficiando até de direitos exclusivos, realize lucros. Precisa que a interpretação do artigo 82.° CE não depende da questão de saber se uma posição dominante foi conferida pela lei ou adquirida de outra forma. Acrescenta que tal não significa que os monopólios gozem de liberdade total: todas as empresas em posição dominante estão sujeitas ao artigo 82.° CE, que proíbe os preços excessivos, os preços predatórios e os preços discriminatórios. Daqui deduz que o artigo 82.° não contém qualquer regra positiva que impeça a Deutsche Post de estender as suas actividades a novos domínios, através dos lucros que obtenha no sector que lhe está reservado ou em qualquer outra actividade. Por fim, observa que a denúncia da UPS não refere um comportamento da Deutsche Post que corresponda aos comportamentos acima descritos.

48.
    A Deutsche Post sublinha que uma sociedade à qual foram concedidos determinados direitos exclusivos, em conformidade com o direito comunitário, não deve ser proibida de exercer actividades comerciais normais que qualquer outra sociedade, incluindo as que detêm uma posição dominante, pode legalmenteprosseguir. Acrescenta que, embora o artigo 82.° CE possa impedir uma empresa em posição dominante de facturar preços excessivos, aquela disposição não interfere com a liberdade económica das sociedades de utilizarem os lucros que obtenham legalmente nas suas actividades comerciais, quer seja em mercados reservados ou não reservados, para penetrarem em novos mercados.

49.
    Afirma que a aquisição em causa foi financiada através da venda de bens imobiliários que constituíam a sua dotação em capital na época em que foi convertida numa sociedade por acções. Ora, a recorrente não invocou qualquer argumento para contestar este facto.

50.
    A Deutsche Post salienta que a recorrente não forneceu qualquer prova de comportamento abusivo. Segundo ela, a recorrente não conseguiu demonstrar que aquela aquisição conduziria ao reforço de uma posição dominante a ponto de o grau de dominação assim atingido entravar substancialmente a concorrência. A recorrente também não demonstrou que a aquisição em causa criou condições estruturais favoráveis a um futuro abuso. Por último, alega que o facto de ter adquirido apenas uma participação minoritária de 22,498% na DHL torna improvável o seu envolvimento, enquanto accionista minoritária, em financiamentos cruzados.

Apreciação do Tribunal

51.
    A título liminar, importa salientar que, como a própria recorrente admite, o mero facto de um direito exclusivo ser concedido a um empresa para garantir a prestação por parte desta de um serviço de interesse económico geral não se opõe a que essa empresa obtenha lucros das actividade que lhe estão reservadas nem obsta a que a mesma estenda as suas actividades a domínios não reservados.

52.
    Deve observar-se que, no essencial, a recorrente acusa a Comissão de não ter tido em conta, na decisão controvertida, o facto de que, em princípio, uma empresa investida de um direito exclusivo para garantir a prestação de um serviço de interesse económico geral não pode utilizar os lucros que obtém das suas actividades no mercado reservado para adquirir uma participação numa empresa activa num mercado vizinho aberto à concorrência sem abusar da sua posição dominante decorrente desse direito exclusivo, em violação do artigo 82.° CE.

53.
    A tese da recorrente, tal como resulta do conteúdo das suas cartas de 29 de Maio e 8 de Junho de 1998 dirigidas à Comissão, pode ser analisada sob dois aspectos:

a)    o financiamento pela Deutsche Post da aquisição da sua participação na DHL implica que aquela financiou o custo dessa aquisição com os lucros provenientes das suas actividades no mercado reservado da correspondência, abusando assim da sua posição dominante neste mercado; e

b)    a futura relação entre a Deutsche Post e a DHL levará necessariamente a uma subvenção cruzada das actividades da DHL no mercado liberalizado das encomendas postais através dos lucros que a Deutsche Post retira do mercado reservado.

54.
    Importa desde logo recordar que a aquisição pela Deutsche Post de 22,498% das acções da DHL se inscreve no âmbito de um acordo entre a Deutsche Post, a Lufthansa e a JAL. Perante as disposições desse acordo, relativas à composição e à organização dos órgãos de gestão da DHL, bem como à distribuição e ao exercício dos direitos de voto relativamente às decisões estratégicas, a Comissão concluiu, na sua decisão de 26 de Junho de 1998, adoptada nos termos do Regulamento n.° 4064/89, que a Deutsche Post havia adquirido o controlo conjunto da DHL com a Lufthansa e a JAL.

55.
    Contrariamente ao que a Comissão deixa entender nos n.os 17 e 18 da decisão controvertida, a aquisição de uma participação deste tipo poderia suscitar problemas à luz das regras comunitárias da concorrência no caso de os fundos utilizados pela empresa que possui o monopólio resultarem de preços excessivos ou discriminatórios, ou de outras práticas abusivas, impostos no seu mercado reservado. Perante indícios que permitam, numa situação desta natureza, suspeitar da existência de uma violação do artigo 82.° CE, é necessário examinar a origem dos fundos utilizados para a aquisição em causa a fim de determinar se essa aquisição não resulta de um abuso de posição dominante.

56.
    Seguidamente, deve referir-se que a Comissão, na sua decisão de 26 de Junho de 1998, não contestada pela recorrente, decidiu não opor objecções à aquisição pela Deutsche Post do controlo conjunto da DHL, uma vez que esta aquisição não tinha como efeito criar ou reforçar uma posição dominante e, por conseguinte, não era incompatível com o mercado comum.

57.
    Nestas circunstâncias, cabe ao Tribunal determinar se, não obstante a autorização da concentração pela decisão de 26 de Junho de 1998, os dois aspectos acima referidos invocados pela recorrente têm fundamento e permitem concluir no sentido da existência de uma violação do artigo 82.° CE.

58.
    No que toca ao primeiro aspecto da tese da recorrente, segundo o qual o financiamento da aquisição da participação na DHL através de lucros provenientes das actividades no mercado reservado implica necessariamente um comportamento abusivo da Deutsche Post neste mercado, importa recordar, em primeiro lugar, que a Comissão não considerou necessário provar a origem dos fundos utilizados naquela aquisição, pois, em seu entender, ainda que os mesmos tivessem origem no mercado da correspondência, e não, como defendia a Deutsche Post, em transacções imobiliárias, o artigo 82.° não se opõe à sua utilização para a aquisição em causa.

59.
    A este respeito, deve referir-se que a recorrente nunca identificou, nem nas suas cartas de denúncia à Comissão nem aquando do presente processo, o menor comportamento por parte da Deutsche Post no mercado da correspondência susceptível de constituir uma violação do artigo 82.° CE. Com efeito, a recorrente limitou-se a invocar o facto de que as tarifas postais na Alemanha são as mais elevadas da Europa e que o Governo alemão renunciou aos dividendos que lhe cabiam enquanto accionista da Deutsche Post.

60.
    Ora, o simples facto de a Deutsche Post dispor de fundos que lhe permitem concretizar a aquisição em causa não autoriza que se presuma a existência de um comportamento abusivo no mercado reservado.

61.
    Na falta de elementos que permitam demonstrar que os fundos à disposição da Deutsche Post utilizados na aquisição em causa resultavam de práticas abusivas por parte desta no mercado reservado da correspondência, o mero facto de aquela ter utilizado esses fundos para adquirir o controlo conjunto de uma empresa activa num mercado vizinho aberto à concorrência não suscita, em si mesmo, qualquer problema do ponto de vista das regras da concorrência, ainda que tais fundos provenham do mercado reservado, e, portanto, não pode ser constitutivo de uma violação do artigo 82.° CE, nem pode criar à Comissão a obrigação de apreciar a origem de tais fundos à luz desta disposição.

62.
    A recorrente não pode invocar a comunicação da Comissão relativa à aplicação das regras de concorrência ao sector postal e à apreciação de certas medidas estatais referentes aos serviços postais, citada no n.° 42, supra. Com efeito, se é verdade que esta comunicação menciona, no seu ponto 3.3, que subvencionar actividades concorrenciais imputando os seus custos a actividades reservadas é susceptível de falsear a concorrência e que este comportamento poderia constituir uma prática abusiva de uma empresa com uma posição dominante, não é menos verdade que a Comissão afirma, nesse mesmo ponto, que, não obstante, as empresas dominantes podem igualmente competir a nível dos preços ou aumentar os respectivos fluxos de tesouraria, salvo se os preços forem predatórios ou se violarem regras nacionais ou comunitárias relevantes.

63.
    A recorrente também não pode invocar o acórdão Corbeau, citado no n.° 36, supra, pois a questão submetida ao Tribunal de Justiça neste processo foi a de saber se o monopólio conferido à Régie des postes belga era contrário ao Tratado e, em especial, se determinados mercados postais deviam ser abertos à concorrência. O Tribunal de Justiça não examinou a questão de saber se um organismo como a Régie des postes belga estava impedido de participar na concorrência em sectores liberalizados.

64.
    No que toca ao segundo aspecto da tese da recorrente, segundo o qual a futura relação entre a Deutsche Post e a DHL implicará necessariamente uma subvenção cruzada das actividades da DHL no mercado das encomendas postais, bastaobservar que resulta do compromisso assumido pela Deutsche Post perante a Comissão, em resposta à condição imposta a este respeito na decisão de 26 de Junho de 1998, que qualquer subvenção cruzada deste tipo lhe está vedada. Nesta medida tal questão reveste-se de carácter hipotético, no âmbito do presente recurso. Consequentemente, se, no futuro, puder provar que a Deutsche Post levou a cabo essa subvenção cruzada, a recorrente pode legitimamente requerer as sanções apropriadas, quer junto da Comissão quer junto do órgão jurisdicional competente, em razão do efeito directo do artigo 82.° CE.

65.
    Daqui decorre que o segundo fundamento também não procede.

Quanto às despesas

66.
    Por força do disposto no n.° 2 do artigo 87.° do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená-la nas despesas da recorrida e da interveniente, tal como estas requereram.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA (Quarta Secção Alargada),

decide:

1)    É negado provimento ao recurso.

2)    A recorrente suportará, além das suas próprias despesas, as da parte recorrida e da interveniente.

Mengozzi
García-Valdecasas
Tiili

Moura Ramos

Cooke

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 20 de Março de 2002.

O secretário

O presidente

H. Jung

P. Mengozzi


1: Língua do processo: inglês.