Language of document : ECLI:EU:C:2021:602

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

15 de julho de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União — Nacional de um Estado‑Membro sem atividade económica que reside no território de outro Estado‑Membro ao abrigo do ordenamento jurídico nacional — Artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE — Não discriminação em razão da nacionalidade — Diretiva 2004/38/CE — Artigo 7.o — Condições de obtenção de um direito de residência por mais de três meses — Artigo 24.o — Prestações de assistência social — Conceito — Igualdade de tratamento — Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte — Período de transição — Disposição nacional que exclui do benefício de uma prestação de assistência social os cidadãos da União que beneficiam de um direito de residência por tempo determinado ao abrigo do ordenamento jurídico nacional — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 1.o, 7.o e 24.o»

No processo C‑709/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo Appeal Tribunal for Northern Ireland (Tribunal de Recurso da Irlanda do Norte, Reino Unido), por Decisão de 21 de dezembro de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 30 de dezembro de 2020, no processo

CG

contra

The Department for Communities in Northern Ireland,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, J.–C. Bonichot, A. Prechal, E. Regan, M. Ilešič, L. Bay Larsen, A. Kumin e N. Wahl, presidentes de Secção, T. von Danwitz, K. Jürimäe (relatora), C. Lycourgos, I. Jarukaitis, N. Jääskinen, I. Ziemele e J. Passer, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 4 de maio de 2021,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de CG, por R. Drabble e T. de la Mare, QC, T. Royston e G. Sarathy, barristers, e por M. Black e S. Park, solicitors,

–        em representação de The Department for Communities in Northern Ireland, por C. Cooley, na qualidade de agente, assistida por T. McGleenan, QC, e por L. McMahon, BL,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por F. Shibli e S. McCrory, na qualidade de agentes, assistidos por D. Blundell, QC, e J. Smyth, barrister,

–        em representação da Comissão Europeia, por E. Montaguti e J. Tomkin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 24 de junho de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 18.o TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe CG, nacional que possui a dupla nacionalidade croata e neerlandesa e reside na Irlanda do Norte (Reino Unido) desde o ano de 2018, ao Department for Communities in Northern Ireland (Departamento para as Comunidades na Irlanda do Norte, Reino Unido) a propósito da recusa, por este último, de lhe conceder uma prestação de assistência social.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE dispõe:

«No âmbito de aplicação dos Tratados, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade.»

4        Nos termos do artigo 20.o, n.o 1, TFUE:

«É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.»

5        O artigo 21.o, n.o 1, TFUE enuncia:

«Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação.»

 Acordo sobre a Saída do Reino Unido

6        O sexto, oitavo e nono parágrafos do preâmbulo do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 7, a seguir «Acordo sobre a Saída do Reino Unido»), adotado em 17 de outubro de 2019 e entrado em vigor em 1 de fevereiro de 2020, enunciam:

«Reconhecendo que é necessário prever a proteção recíproca dos cidadãos da União e dos nacionais do Reino Unido, bem como dos respetivos familiares, sempre que tenham exercido o direito à livre circulação antes de uma data fixada no presente Acordo, e assegurar que os seus direitos ao abrigo do presente Acordo podem ser invocados e são baseados no princípio da não‑discriminação; reconhecendo igualmente que os períodos de cobertura da segurança social deverão ser garantidos,

[…]

Considerando que é do interesse da União e do Reino Unido determinar o período de transição ou de execução, durante o qual — não obstante todas as consequências da saída do Reino Unido da União no que diz respeito à participação do Reino Unido nas instituições, órgãos e organismos da União, em especial a cessação, na data de entrada em vigor do presente Acordo, dos mandatos de todos os membros das instituições, órgãos e organismos da União designados, nomeados ou eleitos em resultado da adesão do Reino Unido à União — o direito da União, incluindo os acordos internacionais, é aplicável ao Reino Unido e no seu território, e, como regra geral, produz os mesmos efeitos em relação aos Estados‑Membros, a fim de evitar perturbações durante o período de negociação do(s) acordo(s) sobre as futuras relações,

Reconhecendo que, mesmo se o direito da União vier a ser aplicável ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição, as especificidades do Reino Unido enquanto Estado que se retirou da União implicam que será importante que o Reino Unido possa tomar medidas para preparar e estabelecer novos acordos internacionais próprios, nomeadamente em domínios da competência exclusiva da União, desde que esses acordos não entrem em vigor nem sejam aplicáveis durante tal período, salvo autorização nesse sentido da União.»

7        A primeira parte desse acordo, consagrada às disposições comuns, inclui os artigos 1.o a 8.o deste. Nos termos do artigo 2.o, alíneas a) e c), do referido acordo:

«Para efeitos do presente Acordo, entende‑se por:

a)      “Direito da União”:

i)      o Tratado da União Europeia (“TUE”), o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e o Tratado que institui a Comunidade Europeia da Energia Atómica (“Tratado Euratom”), tal como alterados ou complementados, bem como os Tratados de Adesão e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, adiante designados conjuntamente como os “Tratados”;

ii)      os princípios gerais do direito da União;

iii)      os atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União;

[…]

c)      “Cidadão da União”, qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro.»

8        O artigo 4.o desse mesmo acordo, sob a epígrafe «Métodos e princípios relativos aos efeitos, à execução e à aplicação do presente Acordo», determina, nos n.os 1 a 4:

«1.      As disposições do presente Acordo e as disposições do direito da União aplicáveis por força do presente Acordo produzem, no que respeita ao Reino Unido e no seu território, os mesmos efeitos jurídicos que produzem na União e nos seus Estados‑Membros.

Por conseguinte, as pessoas singulares ou coletivas podem, em especial, invocar diretamente as disposições incluídas ou referidas no presente Acordo que preenchem as condições do efeito direto por força do direito da União.

2.      O Reino Unido assegura o cumprimento do n.o 1, incluindo no respeitante aos poderes necessários das suas autoridades judiciais e administrativas, para afastar a aplicação de disposições nacionais incoerentes ou incompatíveis, através de legislação primária nacional.

3.      As disposições do presente Acordo que remetem para o direito da União ou para conceitos ou disposições deste último devem ser interpretadas e aplicadas em conformidade com os métodos e os princípios gerais do direito da União.

4.      As disposições do presente Acordo que remetem para o direito da União ou para conceitos ou disposições deste último devem ser interpretadas, no âmbito da sua execução e aplicação, em conformidade com a jurisprudência aplicável do Tribunal de Justiça da União Europeia proferida antes do termo do período de transição.»

9        A segunda parte do Acordo sobre a Saída do Reino Unido, intitulada «Direitos dos cidadãos», é constituída pelos artigos 9.o a 39.o deste. Nos termos do artigo 9.o, alínea c), i), deste acordo:

«Para efeitos da presente parte, e sem prejuízo do título III, entende‑se por:

[…]

c)      “Estado de acolhimento”:

i)      no que respeita aos cidadãos da União e membros das suas famílias, o Reino Unido, caso estes tenham exercido o seu direito de residência nesse país, em conformidade com o direito da União, antes do termo do período de transição, e continuem a residir no país após esse período.»

10      O artigo 10.o, n.o 1, desse acordo enuncia:

«Sem prejuízo do título III, a presente parte é aplicável às seguintes pessoas:

a)      Cidadãos da União que tenham exercido o seu direito de residir no Reino Unido, em conformidade com o direito da União, antes do termo do período de transição, e que continuem a residir no país após esse período;

[…]»

11      O artigo 12.o do Acordo sobre a Saída do Reino Unido dispõe:

«No âmbito da presente parte, e sem prejuízo das suas disposições especiais, é proibida toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, na aceção do artigo 18.o, primeiro parágrafo, do TFUE, no Estado de acolhimento e no Estado de emprego, no que respeita às pessoas referidas no artigo 10.o do presente Acordo.»

12      O artigo 13.o, n.o 1, desse acordo prevê:

«Os cidadãos da União e os nacionais do Reino Unido têm o direito de residir no Estado de acolhimento com as limitações e nas condições estabelecidas no artigo 21.o, no artigo 45.o ou no artigo 49.o do TFUE, e no artigo 6.o, n.o 1, no artigo 7.o, n.o 1, alínea a), alínea b) ou alínea c), ou n.o 3, no artigo 14.o, no artigo 16.o, n.o 1, ou no artigo 17.o, n.o 1, da [Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77, retificações no JO 2004, L 229, p. 35; no JO 2005, L 197, p. 34, e no JO 2020, L 191, p. 6)].»

13      Nos termos do artigo 18.o do referido acordo, sob a epígrafe «Emissão de documentos de residência»:

«1.      O Estado de acolhimento pode exigir que os cidadãos da União ou os nacionais do Reino Unido, bem como os membros das suas famílias e outras pessoas, que residam no seu território em conformidade com as condições estabelecidas no presente título, solicitem um novo estatuto de residente, que lhes confira os direitos previstos no presente título, e um documento comprovativo desse estatuto, que pode ser em formato digital.

O pedido desse estatuto de residente está sujeito às seguintes condições:

[…]

k)      Além dos documentos de identificação referidos na alínea i) do presente número, o Estado de acolhimento só pode exigir aos cidadãos da União e aos nacionais do Reino Unido a apresentação dos documentos comprovativos abaixo indicados, referidos no artigo 8.o, n.o 3, da Diretiva 2004/38/CE:

[…]

ii)      se residirem no Estado de acolhimento na qualidade de pessoas economicamente inativas em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2004/38/CE, prova de que dispõem de recursos suficientes para si próprios e para os membros da sua família, a fim de não se tornarem uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado de acolhimento durante o período de residência, e de que dispõem de uma cobertura extensa de seguro de doença no Estado de acolhimento, ou;

[…]

[…]

4.      Sempre que um Estado de acolhimento tenha decidido não exigir que os cidadãos da União ou os nacionais do Reino Unido, bem como os membros das suas famílias e outras pessoas, que residam no seu território em conformidade com as condições estabelecidas no presente título, solicitem o novo estatuto de residência a que se refere o n.o 1 como condição para a residência legal, as pessoas elegíveis para direito de residência ao abrigo do presente título devem receber, em conformidade com as condições estabelecidas na Diretiva 2004/38/CE, um documento de residência, que pode ser em formato digital, acompanhado de uma declaração de que foi emitido nos termos do presente Acordo.»

14      O artigo 19.o do Acordo sobre a Saída do Reino Unido, sob a epígrafe «Emissão de documentos de residência durante o período de transição», prevê, no n.o 1:

«Durante o período de transição, um Estado de acolhimento pode permitir que os pedidos de estatuto de residência ou de documento de residência a que se referem o artigo 18.o, n.os 1 e 4, sejam apresentados de forma voluntária a partir da data de entrada em vigor do presente Acordo.»

15      O artigo 23.o desse acordo, sob a epígrafe «Igualdade de tratamento», estabelece:

«1.      Em conformidade com o artigo 24.o da Diretiva 2004/38/CE e sob reserva das disposições específicas previstas no presente título e nos títulos I e IV da presente parte, todos os cidadãos da União e todos os nacionais do Reino Unido que, nos termos do presente Acordo, residam no território do Estado de acolhimento beneficiam de igualdade de tratamento em relação aos nacionais desse Estado, no âmbito de aplicação da presente parte. O benefício desse direito é extensível aos membros da família de cidadãos da União ou de nacionais do Reino Unido que tenham direito de residência ou direito de residência permanente.

2.      Em derrogação do n.o 1, o Estado de acolhimento pode não conceder o direito a prestações de assistência social durante os períodos de residência com base no artigo 6.o ou no artigo 14.o, n.o 4, alínea b), da Diretiva 2004/38/CE, assim como pode, antes de a pessoa adquirir o direito de residência permanente em conformidade com o artigo 15.o do presente Acordo, não conceder ajuda de subsistência, incluindo a formação profissional, constituída por bolsas de estudo ou empréstimos estudantis, a pessoas que não sejam trabalhadores assalariados ou trabalhadores não assalariados, que não conservem esse estatuto ou que não sejam membros das famílias dos mesmos.»

16      Nos termos do artigo 38.o, n.o 1, do referido acordo:

«A presente parte não afeta as disposições legislativas, regulamentares ou administrativas aplicáveis num Estado de acolhimento ou num Estado de emprego que sejam mais favoráveis para as pessoas em causa. O presente número não é aplicável ao título III.»

17      A terceira parte do Acordo sobre a Saída do Reino Unido, intitulada «Disposições relativas à separação», comporta os artigos 40.o a 125.o O artigo 86.o desse acordo, sob a epígrafe «Processos pendentes no Tribunal de Justiça da União Europeia», estabelece, nos n.os 2 e 3:

«2.      O Tribunal de Justiça da União Europeia continua a ser competente para decidir, a título prejudicial, sobre os pedidos dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido apresentados antes do termo do período de transição.

3.      Para efeitos do presente capítulo, considera‑se que um processo é instaurado no Tribunal de Justiça da União Europeia, e que um pedido de decisão prejudicial é apresentado, no momento em que o ato introdutório da instância foi registado pela secretaria do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Geral, consoante o caso.»

18      Nos termos do artigo 89.o, n.o 1, do referido acordo:

«Os acórdãos e despachos do Tribunal de Justiça da União Europeia proferidos antes do termo do período de transição, bem como os referidos acórdãos e despachos proferidos após o termo do período de transição nos processos referidos nos artigos 86.o e 87.o, são plenamente vinculativos para o Reino Unido e no seu território.»

19      O artigo 126.o do Acordo sobre a Saída do Reino Unido, sob a epígrafe «Período de transição», enuncia:

«É estabelecido um período de transição ou de execução, com início na data de entrada em vigor do presente Acordo e termo em 31 de dezembro de 2020.»

20      O artigo 127.o desse acordo, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação da transição», dispõe, nos n.os 1 e 3:

«1.      Salvo disposição em contrário do presente Acordo, o direito da União é aplicável ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição.

[…]

3.      Durante o período de transição, o direito da União aplicável nos termos do n.o 1 produz, no que respeita ao Reino Unido e no seu território, os mesmos efeitos jurídicos que produz na União e nos seus Estados‑Membros, e deve ser interpretado e aplicado em conformidade com os mesmos métodos e princípios gerais que são aplicáveis na União.»

 Diretiva 2004/38

21      Os considerandos 10 e 16 da Diretiva 2004/38 dispõem:

«(10)      As pessoas que exercerem o seu direito de residência não deverão, contudo, tornar‑se uma sobrecarga não razoável para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento durante o período inicial de residência. Em consequência, o direito de residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias por períodos superiores a três meses deverá estar sujeito a condições.

[…]

(16)      Os titulares do direito de residência não podem ser afastados enquanto não se tornarem um encargo excessivo para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento. Por conseguinte, a medida de afastamento não poderá ser a consequência automática do recurso ao regime de segurança social. O Estado‑Membro de acolhimento deverá examinar se se está perante um caso de dificuldades temporárias e ter em conta a duração da residência, a situação pessoal e o montante de ajuda concedida para poder considerar se o titular se tornou uma sobrecarga não razoável para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento e proceder ao seu afastamento. Os trabalhadores assalariados, os trabalhadores não assalariados ou as pessoas à procura de emprego, conforme definidas pelo Tribunal de Justiça, não poderão em circunstância alguma ser objeto de medida de afastamento, salvo por razões de ordem pública ou de segurança pública.»

22      O artigo 1.o dessa diretiva enuncia:

«A presente diretiva estabelece:

a)      As condições que regem o exercício do direito de livre circulação e residência no território dos Estados‑Membros pelos cidadãos da União e membros das suas famílias;

b)      O direito de residência permanente no território dos Estados‑Membros para os cidadãos da União e membros das suas famílias;

c)      As restrições aos direitos a que se referem as alíneas a) e b), por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública.»

23      Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva:

«A presente diretiva aplica‑se a todos os cidadãos da União que se desloquem ou residam num Estado‑Membro que não aquele de que são nacionais, bem como aos membros das suas famílias, na aceção do ponto 2 do artigo 2.o, que os acompanhem ou que a eles se reúnam.»

24      O artigo 7.o da mesma diretiva, sob a epígrafe «Direito de residência por mais de três meses», determina, no seu n.o 1:

«Qualquer cidadão da União tem o direito de residir no território de outro Estado‑Membro por período superior a três meses, desde que:

[…]

b)      Disponha de recursos suficientes para si próprio e para os membros da sua família, a fim de não se tornar uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento durante o período de residência, e de uma cobertura extensa de seguro de doença no Estado‑Membro de acolhimento; ou,

[…]»

25      Nos termos do artigo 24.o da Diretiva 2004/38, sob a epígrafe «Igualdade de tratamento»:

«1.      Sob reserva das disposições específicas previstas expressamente no Tratado e no direito secundário, todos os cidadãos da União que, nos termos da presente diretiva, residam no território do Estado‑Membro de acolhimento beneficiam de igualdade de tratamento em relação aos nacionais desse Estado‑Membro, no âmbito de aplicação do Tratado. O benefício desse direito é extensível aos membros da família que não tenham a nacionalidade de um Estado‑Membro e tenham direito de residência ou direito de residência permanente.

2.      Em derrogação do n.o 1, o Estado‑Membro de acolhimento pode não conceder o direito a prestações de assistência social durante os primeiros três meses de residência ou, quando pertinente, o período mais prolongado previsto na alínea b) do n.o 4 do artigo 14.o, assim como, antes de adquirido o direito de residência permanente, pode não conceder ajuda de subsistência, incluindo a formação profissional, constituída por bolsas de estudo ou empréstimos estudantis, a pessoas que não sejam trabalhadores assalariados ou trabalhadores não assalariados, que não conservem este estatuto ou que não sejam membros das famílias dos mesmos.»

26      O artigo 37.o dessa diretiva, sob a epígrafe «Disposições nacionais mais favoráveis», prevê:

«As disposições da presente diretiva não afetam disposições legislativas, regulamentares e administrativas de um Estado‑Membro que sejam mais favoráveis às pessoas abrangidas pela presente diretiva.»

 Direito do Reino Unido

 Anexo EU do regime de residência

27      O EU Settlement Scheme — Appendix EU of the UK Immigration Rules [Regime de Residência «EU Settlement Scheme» — Anexo «UE» das regras sobre imigração (a seguir «Anexo UE do Regime de Residência»)] é um ato através do qual as autoridades britânicas adotaram, prevendo a saída do Reino Unido da União, um novo regime jurídico aplicável aos nacionais do Espaço Económico Europeu (EEE) e, consequentemente, aos cidadãos da União a viver no Reino Unido. Permite que todos os cidadãos da União residentes no Reino Unido antes de 31 de dezembro de 2020, e os membros das suas famílias, peçam a autorização para permanecerem no Reino Unido. Este regime jurídico entrou em vigor em 30 de março de 2019.

28      O Anexo UE do Regime de Residência prevê o procedimento e as condições da obtenção do direito de residência permanente e do direito de residência temporária no território do Reino Unido de diversas categorias de cidadãos da União e dos membros das suas famílias. Prevê, assim, que os cidadãos da União que dispunham do direito de residir de forma permanente nesse território beneficiem do estatuto de residente permanente e àqueles que residem há menos de cinco anos no Reino Unido é reconhecido o estatuto de residente não permanente (Pre‑Settled Status), que lhes confere um direito de residência temporária de cinco anos.

 Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal

29      As Universal Credit Regulations (Northern Ireland) 2016 [Regulamento de 2016, Relativo ao Crédito Universal (Irlanda do Norte)], conforme alterado pelas Social Security (Income‑related Benefits) (Updating and Amendment) (EU Exit) Regulations (Northern Ireland) 2019 [Regulamento da Segurança Social (Prestações com Case nos Rendimentos) (Atualização e Alteração) (Saída da UE) (Irlanda do Norte) de 2019] (a seguir «Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal»), prevê, no artigo 9.o:

«Pessoas que se considera não estarem na Irlanda do Norte.

(1)      Para determinar se uma pessoa preenche a condição de base para estar na Irlanda do Norte, exceto no caso de estar abrangida pelo n.o 4, considera‑se que uma pessoa não está na Irlanda do Norte se não tiver a sua residência habitual no Reino Unido, nas Ilhas Anglo‑Normandas, na Ilha de Man ou na República da Irlanda.

(2)      Considera‑se que uma pessoa tem a sua residência habitual no Reino Unido, nas Ilhas Anglo‑Normandas, na Ilha de Man ou na República da Irlanda unicamente se dispuser de um direito de residência num destes lugares.

(3)      Para efeitos do n.o 2, um direito de residência não inclui um direito que existe ao abrigo ou em conformidade com:

(a)      a regulation 13 das [Immigration (European Economic Area) Regulations 2016 (Regulamento de 2016, Relativo à Imigração (Espaço Económico Europeu) (SI 2016/1052) a seguir “Regulamento EEE”] ou com o artigo 6.o da Diretiva 2004/38,

(b)      a regulation 14 do Regulamento EEE, mas unicamente nos casos em que tal direito existe ao abrigo do Regulamento EEE pelo facto de a pessoa ser:

(i)      uma pessoa elegível para efeitos da regulation 6(1) deste regulamento enquanto pessoa à procura de emprego, ou

(ii)      um membro da família (na aceção a regulation 7 do referido regulamento) dessa pessoa à procura de emprego,

(c)      a regulation 16 do Regulamento EEE, mas apenas nos casos em que existe um direito ao abrigo deste regulamento pelo facto de a pessoa preencher os critérios enunciados a regulation 16(5) do referido regulamento ou no artigo 20.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (nos casos em que o direito de residência tem origem no facto de que, caso contrário, um cidadão britânico seria privado do gozo efetivo dos seus direitos enquanto cidadão europeu), ou;

(d)      uma pessoa que tenha obtido uma autorização temporária para entrar ou permanecer no Reino Unido ao abrigo do Immigration Act 1971 (Lei de 1971 Relativa à Imigração) por força do:

(i)      [Anexo UE do Regime de Residência] com base na section 3(2) da Lei Relativa à Imigração,

[…]

[…]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

30      CG, nacional que possui a dupla nacionalidade croata e neerlandesa, é mãe de duas crianças de tenra idade que está a criar sozinha. Declarou ter chegado à Irlanda do Norte com o seu companheiro, de nacionalidade neerlandesa e pai dos seus filhos, no ano de 2018. Nunca exerceu uma atividade económica no Reino Unido e vivia nesse Estado com o seu companheiro até se mudar para um centro de acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica. CG não possui recursos para prover às suas necessidades e às dos seus filhos.

31      Em 4 de junho de 2020, o Home Office (Ministério do Interior, Reino Unido) concedeu a CG, com fundamento no Anexo UE do Regime de Residência, o estatuto de residente provisório no Reino Unido (Pre‑Settled Status), com base no qual lhe foi reconhecido um direito de residência temporária. A concessão do referido estatuto não está sujeita a uma condição de recursos.

32      Em 8 de junho de 2020, CG apresentou um pedido de prestação de assistência social, denominada crédito universal (Universal Credit), no Departamento para as Comunidades na Irlanda do Norte. Por Decisão de 17 de junho de 2020, esse pedido foi indeferido com fundamento no facto de que CG não preenchia as condições de residência para dela beneficiar.

33      A autoridade administrativa competente entendeu que só as pessoas que dispusessem de um direito de residência no Reino Unido, na aceção do artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal, podem ser consideradas como tendo a sua residência habitual no Reino Unido e podem, portanto, reclamar a obtenção do crédito universal. Em contrapartida, os nacionais dos Estados‑Membros, como CG, que dispõem de um direito de residência ao abrigo do Anexo UE do Regime de Residência, estão, por força do artigo 9.o, n.o 3, alínea d), i), do Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal, excluídos da categoria dos beneficiários potenciais do crédito universal.

34      O direito de residência que foi criado pelo Anexo UE do Regime de Residência para os nacionais dos Estados‑Membros não figura, conforme resulta desse artigo 9.o, n.o 3, alínea d), i), entre os direitos de residência que permitem caracterizar a existência de uma residência habitual no Reino Unido. Através dessa disposição, que foi inserida no Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal pelo Regulamento de 2019 Relativo à Segurança Social (a seguir «Regulamento de 2019»), as autoridades nacionais quiseram excluir as pessoas visadas da categoria de potenciais beneficiários do crédito universal, ao prever que o direito de residência de que essas pessoas passaram a dispor não é pertinente para efeitos do estabelecimento de uma «residência habitual», na aceção do artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal.

35      A Decisão de 17 de junho de 2020 do Departamento para as Comunidades na Irlanda do Norte foi confirmada em 30 de junho de 2020, na sequência do recurso gracioso que CG dela interpôs.

36      CG interpôs então recurso da Decisão de 17 de junho de 2020 no Appeal Tribunal (Northern Ireland) (Tribunal de Recurso da Irlanda do Norte, Reino Unido). Contesta, designadamente, a legalidade do artigo 9.o, n.o 3, alínea d), i), do Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal, que serviu de fundamento a essa decisão. Esta disposição violava o artigo 18.o TFUE, bem como as obrigações que incumbem ao Reino Unido por força do European Communities Act 1972 (Lei de 1972 sobre as Comunidades Europeias), relativo à adesão do Reino Unido à União Europeia, porquanto excluía do benefício de uma prestação de assistência social cidadãos da União que o Reino Unido tinha reconhecido como residindo legalmente no seu território.

37      CG alega, a este respeito, que, uma vez que dispõe de um direito de residência temporária que decorre do estatuto de residente não permanente que lhe foi reconhecido em 4 de junho de 2020, deve ser considerada como estando no território da Irlanda do Norte, na aceção do artigo 9.o do Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal. Por essa razão, deveria poder reclamar a concessão do crédito universal. A recusa de lhe conceder essa prestação de assistência social, com o fundamento de que o seu estatuto não é pertinente para efeitos do estabelecimento da «residência habitual» no Reino Unido, constitui uma diferença de tratamento entre os cidadãos da União que residem legalmente no Reino Unido e os nacionais britânicos e, portanto, uma discriminação em razão da nacionalidade na aceção do artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE. Sustenta que, em aplicação do Acórdão de 7 de setembro de 2004, Trojani (C‑456/02, EU:C:2004:488), e da jurisprudência nacional pertinente, pode invocar diretamente essa disposição a fim de lhe ser concedido o benefício de uma prestação de assistência social, devido ao facto de que dispõe de um direito de residência ao abrigo da legislação nacional, mesmo que não preencha as condições para obter um direito de residência ao abrigo do direito da União.

38      O Departamento para as Comunidades na Irlanda do Norte sustenta que, de acordo com o direito nacional, o estatuto de residente não permanente (Pre‑Settled Status) não confere, por si só, um direito às prestações de assistência social, as quais ficam sujeitas às suas condições próprias de elegibilidade.

39      Foi nestas condições que o Appeal Tribunal (Northern Ireland) (Tribunal de Recurso da Irlanda do Norte) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 9.o, n.o 3, alínea [d)], i), do [Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal], introduzido pelo [Regulamento de 2019], que exclui os cidadãos da União Europeia com direito de residência no Reino Unido (autorização temporária de residência) [no caso em apreço, o “estatuto provisório de residente permanente” ao abrigo do Anexo UE do Regime de Residência] do direito a prestações da Segurança Social, constitui uma discriminação ilegal (direta ou indireta) na aceção do artigo 18.o [TFUE] e é incompatível com as obrigações do Reino Unido decorrentes da [Lei de 1972 sobre as Comunidades Europeias]?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão e se se considerar que o artigo 9.o, n.o 3, alínea [d)]), [i)], do [Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal] constitui uma discriminação indireta, o artigo 9.o, n.o 3, alínea c), [i)], do [Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal] está justificado ao abrigo do artigo 18.o [TFUE] e é incompatível com as obrigações do Reino Unido decorrentes da [Lei de 1972 sobre as Comunidades Europeias]?»

 Quanto ao pedido de tramitação acelerada

40      O Appeal Tribunal for Northern Ireland (Tribunal de Recurso da Irlanda do Norte) solicitou ao Tribunal de Justiça que o presente processo fosse submetido à tramitação acelerada prevista no artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, dada a urgência manifesta deste processo e a difícil situação financeira de CG.

41      O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal pode, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada.

42      Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 26 de janeiro de 2021, foi enviado um pedido de informações ao órgão jurisdicional de reenvio. Foi‑lhe pedido, em especial, que precisasse se havia um risco potencial de violação, a respeito de CG e dos seus filhos dos direitos fundamentais consagrados nos artigos 7.o e 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais (a seguir «Carta») e indicasse os recursos financeiros de que CG dispunha, bem como as suas condições de alojamento e as dos filhos.

43      Por correio eletrónico de 5 de fevereiro de 2021, o órgão jurisdicional de reenvio confirmou, por um lado, que CG não dispunha de recursos financeiros, que não tinha atualmente acesso às prestações do Estado e que vivia num centro de acolhimento para mulheres vítimas de violência doméstica e, por outro, que os direitos fundamentais dos seus filhos corriam o risco de serem violados.

44      Nestas condições, atenta a indigência material de CG e dos seus filhos e a impossibilidade de esta, por força da legislação nacional, beneficiar de prestações de assistência social, o presidente do Tribunal de Justiça, por Decisão de 11 de fevereiro de 2021, ouvidos a juíza‑relatora e o advogado‑geral, deferiu o pedido de aplicação da tramitação acelerada prevista no artigo 105.o do Regulamento de Processo.

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

45      Segundo jurisprudência constante, cabe ao Tribunal de Justiça examinar as condições em que é chamado a pronunciar‑se pelo juiz nacional a fim de verificar a sua própria competência (Acórdão de 10 de dezembro de 2020, J & S Service, C‑620/19, EU:C:2020:1011, n.o 32 e jurisprudência referida).

46      A este respeito, resulta do artigo 19.o, n.o 3, alínea b), TUE e do artigo 267.o, primeiro parágrafo, TFUE que o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições da União. O segundo parágrafo desse artigo 267.o precisa, em substância, que sempre que uma questão suscetível de ser objeto de um reenvio prejudicial seja suscitada num processo pendente num órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, esse órgão jurisdicional pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária para proferir a sua decisão, pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre essa questão.

47      No caso vertente, em 1 de fevereiro de 2020, data em que o Acordo sobre a Saída do Reino Unido entrou em vigor, esse Estado saiu da União, tornando‑se assim um Estado terceiro. Daqui decorre que os órgãos jurisdicionais do Reino Unido deixaram de poder, a partir dessa data, ser considerados órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro.

48      Esse acordo prevê, porém, no artigo 126.o, um período de transição compreendido entre a data de entrada em vigor do referido acordo, isto é, 1 de fevereiro de 2020, e 31 de dezembro de 2020. O artigo 127.o desse mesmo acordo prevê que, durante esse período, salvo disposição em contrário do mesmo acordo, o direito da União é aplicável ao Reino Unido e no seu território, produz os mesmos efeitos que produz na União e nos seus Estados‑Membros e é interpretado e aplicado em conformidade com os mesmos métodos e princípios gerais que são aplicáveis na União.

49      O artigo 86.o do Acordo sobre a Saída do Reino Unido prevê igualmente, no n.o 2, que o Tribunal de Justiça continua a ser competente para decidir, a título prejudicial, sobre os pedidos dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido apresentados antes do termo do período de transição. Além disso, resulta do n.o 3 desse artigo que um pedido de decisão prejudicial se considera apresentado, na aceção do n.o 2, na data em que a petição inicial foi registada pela secretaria do Tribunal de Justiça.

50      O presente pedido de decisão prejudicial foi submetido ao Tribunal de Justiça por um órgão jurisdicional do Reino Unido em 30 de dezembro de 2020, ou seja, antes do termo do período de transição, no âmbito de um litígio sobre um pedido de prestação de assistência social apresentado em 8 de junho de 2020 por GC ao Departamento para as Comunidades na Irlanda do Norte.

51      Daqui decorre, por um lado, que a situação em causa no processo principal é abrangida pelo âmbito de aplicação ratione temporis do direito da União, ao abrigo dos artigos 126.o e 127.o do Acordo sobre a Saída do Reino Unido, e, por outro, que o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar a título prejudicial sobre o pedido do órgão jurisdicional de reenvio, em aplicação do artigo 86.o, n.o 2, desse acordo, desde que esse pedido vise obter a interpretação do artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE.

52      Em contrapartida, o Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre a primeira questão, na medida em que esta se destina a apreciar a compatibilidade do artigo 9.o, n.o 3, alínea d), i), do Regulamento de 2016 Relativo ao Crédito Universal com as obrigações que incumbem ao Reino Unido por força da Lei de 1972 sobre as Comunidades Europeias, uma vez que essa questão não tem por objeto a interpretação do direito da União nem a validade de um ato adotado pelas instituições da União, na aceção do artigo 267.o, primeiro parágrafo, TFUE.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade das questões

53      O Governo do Reino Unido indica, nas suas observações escritas, que a situação em causa no processo principal é regida unicamente pelo direito nacional e, portanto, não é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União. Considera que o direito de residência temporária em causa no processo principal foi concedido a CG exclusivamente com fundamento no direito nacional e que a circunstância de essa pessoa ter podido ter acesso ao território do Reino Unido ao abrigo do direito da União por um período inicial de três meses carece de pertinência para efeitos da apreciação da situação em causa no processo principal.

54      Recorde‑se que, segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, cabe exclusivamente ao juiz nacional que conhece do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as particularidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões submetidas tenham por objeto a interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 10 de dezembro de 2020, J & S Service, C‑620/19, EU:C:2020:1011, n.o 31 e jurisprudência referida).

55      O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas [Acórdão de 24 de novembro de 2020, Openbaar Ministerie (Falsificação de documentos), C‑510/19, EU:C:2020:953, n.o 26 e jurisprudência referida].

56      No caso vertente, resulta dos elementos dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que CG, que possui a dupla nacionalidade croata e neerlandesa, entrou no território do Reino Unido durante o ano de 2018 e que aí reside, ao abrigo do direito nacional, desde 4 de junho de 2020.

57      Sendo o direito da União aplicável nesse Estado até ao fim do período de transição por força do artigo 127.o do Acordo sobre a Saída do Reino Unido, salvo disposição em contrário desse mesmo acordo, importa recordar que um cidadão da União, nacional de um Estado‑Membro, que se deslocou para outro Estado‑Membro, fez uso da sua liberdade de circulação, pelo que a sua situação é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2020, ZW, C‑454/19, EU:C:2020:947, n.o 23 e jurisprudência referida).

58      Do mesmo modo, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que um nacional de um Estado‑Membro, que tenha a esse título o estatuto de cidadão da União, que reside legalmente no território de outro Estado‑Membro é abrangido, igualmente por esse motivo, pelo âmbito de aplicação do direito da União. Assim, em razão da sua qualidade de cidadão da União, um nacional de um Estado‑Membro que resida noutro Estado‑Membro tem o direito de invocar o artigo 21.o, n.o 1, TFUE e é abrangido pelo âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE, que contém o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia), C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.os 29 e 30 e jurisprudência referida].

59      Daqui resulta que a situação de CG foi abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União até ao fim do período de transição previsto no Acordo sobre a Saída do Reino Unido. Nestas condições, há que considerar que as questões submetidas são admissíveis na medida em que têm por objeto a interpretação do artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE.

 Quanto ao mérito

 Quanto à primeira questão

60      Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 18.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que uma disposição nacional que exclui do benefício das prestações sociais os cidadãos que gozam de um direito de residência temporária ao abrigo do direito nacional é abrangida pela proibição de discriminação em razão da nacionalidade prevista nesse artigo.

61      A título preliminar, importa recordar que, em conformidade com jurisprudência constante, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir do litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça reformular, sendo caso disso, as questões que lhe são submetidas (Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Hamburg, C‑416/20 PPU, EU:C:2020:1042, n.o 27 e jurisprudência referida).

62      No caso em apreço, no que diz respeito, em primeiro lugar, às disposições pertinentes para responder às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio, saliente‑se que o artigo 20.o, n.o 1, TFUE confere a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado‑Membro o estatuto de cidadão da União e que esse estatuto está vocacionado para ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros que permite àqueles, de entre esses nacionais, que se encontram na mesma situação, obter, no domínio de aplicação ratione materiae do Tratado FUE, independentemente da sua nacionalidade e sem prejuízo das exceções expressamente previstas a este respeito, o mesmo tratamento jurídico (Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.os 57 e 58 e jurisprudência referida).

63      Qualquer cidadão da União pode, por conseguinte, invocar a proibição de discriminação em razão da nacionalidade que figura no artigo 18.o TFUE em todas as situações abrangidas pelo domínio de aplicação ratione materiae do direito da União. Estas situações incluem as decorrentes do exercício da liberdade de circular e de permanecer no território dos Estados‑Membros conferida pelo artigo 20.o, n.o 2, alínea a), TFUE e pelo artigo 21.o TFUE (Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.o 59 e jurisprudência referida).

64      Sendo CG uma cidadã da União que fez uso da sua liberdade de circular e de residir para se instalar no Reino Unido, a sua situação é abrangida pelo domínio de aplicação ratione materiae do direito da União, pelo que pode, em princípio, invocar a proibição de discriminação em razão da nacionalidade constante do artigo 18.o TFUE.

65      Porém, em conformidade com jurisprudência constante, o artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE só está vocacionado para ser aplicado de maneira autónoma em situações reguladas pelo direito da União para as quais o Tratado FUE não preveja regras específicas de não discriminação (Acórdão de 6 de outubro de 2020, Jobcenter Krefeld, C‑181/19, EU:C:2020:794, n.o 78). Além disso, o artigo 20.o, n.o 2, segundo parágrafo, TFUE precisa expressamente que os direitos que este artigo confere aos cidadãos da União «são exercidos nas condições e nos limites definidos pelos Tratados e pelas medidas adotadas para a sua aplicação», uma vez que o artigo 21.o TFUE subordina, também ele, o direito dos cidadãos da União de circular e permanecer livremente no território dos Estados‑Membros ao respeito «das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adotadas em sua aplicação» (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.o 60 e jurisprudência referida).

66      Assim, o princípio da não discriminação encontra expressão no artigo 24.o da Diretiva 2004/38 no que respeita aos cidadãos da União que exercem a sua liberdade de circular e de residir no território dos Estados‑Membros.

67      A este propósito, cabe recordar que, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2004/38, são abrangidos pelo âmbito de aplicação desta diretiva e são titulares dos direitos por esta conferidos os cidadãos da União que se desloquem ou residam num Estado‑Membro diferente daquele de que são nacionais, bem como os membros da sua família, como definidos no artigo 2.o, n.o 2, da referida diretiva, que os acompanham ou que a eles se reúnam (Acórdão de 10 de setembro de 2019, Chenchooliah, C‑94/18, EU:C:2019:693, n.o 54 e jurisprudência referida). Ora, esse é o caso de uma pessoa como CG, que possui dupla nacionalidade croata e neerlandesa, que fez uso da liberdade de circular e de residir no território do Reino Unido antes do termo do período de transição previsto no artigo 126.o do Acordo sobre a Saída do Reino Unido. Daqui decorre que uma pessoa que se encontre na situação de CG é abrangida pelo âmbito de aplicação da mesma diretiva, pelo que é atendendo ao artigo 24.o da Diretiva 2004/38, e não ao artigo 18.o, primeiro parágrafo, TFUE, que deve ser apreciada a questão de saber se essa pessoa foi discriminada em razão da nacionalidade.

68      No que respeita, em segundo lugar, à natureza das prestações sociais em causa no processo principal, importa sublinhar que o conceito de «prestação de assistência social», na aceção do artigo 24.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38, se refere a todos os regimes de ajuda instituídos por autoridades públicas, ao nível nacional, regional ou local, aos quais recorre um indivíduo que não dispõe de recursos suficientes para fazer face às suas necessidades elementares nem às da sua família, e que, em virtude deste facto, corre o risco de se tornar, durante a sua permanência, num encargo para as finanças públicas do Estado‑Membro de acolhimento, suscetível de ter consequências no nível global da ajuda que pode ser concedida por esse Estado (Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.o 63 e jurisprudência referida).

69      Assim, prestações de subsistência que visam conferir aos seus beneficiários os meios de subsistência necessários mínimos para levarem uma vida conforme com a dignidade humana devem ser consideradas «prestações de assistência social» na aceção do artigo 24.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38 (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, Jobcenter Krefeld, C‑181/19, EU:C:2020:794, n.o 57 e jurisprudência referida).

70      Resulta dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que a prestação pedida por CG, a saber, o crédito universal, é uma prestação de subsistência em dinheiro, abrangida por um regime de proteção social financiado pelo imposto, cuja concessão está sujeita a uma condição de recursos. O seu objetivo é substituir várias outras prestações de assistência social, como o subsídio baseado no rendimento para quem procura emprego (income based jobseeker’s allowance), o subsídio de emprego e de apoio baseado no rendimento (incomerelated employment and support allowance), o apoio ao rendimento (income support), o crédito fiscal para pessoas em atividade (working tax credit), o crédito fiscal por filho (child tax credit) e o subsídio de habitação (housing benefit).

71      Donde se conclui que o crédito universal, sob reserva das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, deve ser qualificado de prestação de assistência social, na aceção do artigo 24.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38.

72      Nestas condições, importa reformular a primeira questão no sentido de que, através desta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, em substância, saber se o artigo 24.o da Diretiva 2004/38 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro de acolhimento que exclui do benefício de prestações de assistência social os cidadãos da União economicamente inativos e que não dispõem de recursos suficientes aos quais esse Estado‑Membro concedeu, com base no direito nacional, um direito de residência temporária quando essas prestações são garantidas aos nacionais do Estado‑Membro em causa que se encontrem na mesma situação.

73      Resulta da decisão de reenvio que a recorrente no processo principal reside no Reino Unido há mais de três meses, que não está à procura de emprego e que entrou no território desse Estado para acompanhar o seu companheiro, pai dos seus filhos de tenra idade, de quem se separou em razão de violência conjugal. Esta situação não se enquadra em nenhum dos casos que, ao abrigo do artigo 24.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38 admitem uma derrogação à igualdade de tratamento, designadamente no que respeita ao acesso a uma prestação de assistência social como o crédito universal.

74      Em conformidade com o artigo 24.o, n.o 1, dessa diretiva, todos os cidadãos da União que residam no território do Estado‑Membro de acolhimento ao abrigo da referida diretiva beneficiam, no domínio de aplicação do Tratado, de igualdade de tratamento em relação aos nacionais desse Estado‑Membro.

75      O Tribunal de Justiça declarou que, no que respeita ao acesso a prestações de assistência social, um cidadão da União só pode pedir para beneficiar, ao abrigo dessa disposição, da igualdade de tratamento em relação aos nacionais do Estado‑Membro de acolhimento se a sua residência no território desse Estado‑Membro respeitar as condições impostas pela Diretiva 2004/38 (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.os 68 e 69).

76      A este propósito, recorde‑se que, relativamente a uma residência com uma duração superior a três meses mas inferior a cinco anos no território do Estado‑Membro de acolhimento, o benefício do direito de residência está subordinado às condições enunciadas no artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 2004/38, que prevê, designadamente, na alínea b), para um cidadão economicamente inativo, a obrigação de dispor, para ele e para os membros da sua família, de recursos suficientes para si próprios e para. Com efeito, resulta do considerando 10 dessa diretiva que essas condições têm como finalidade, nomeadamente, evitar que essas pessoas se tornem uma sobrecarga não razoável para o regime de segurança social do Estado‑Membro de acolhimento (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.o 71 e jurisprudência referida).

77      Ora, o facto de admitir que cidadãos da União que não beneficiam de um direito de residência ao abrigo da Diretiva 2004/38 possam pedir para beneficiar de um direito a prestações de assistência social nas mesmas condições que os cidadãos nacionais seria contrário a esse objetivo e poderia permitir que cidadãos da União economicamente inativos utilizassem o sistema de proteção social do Estado‑Membro de acolhimento para financiar a sua subsistência (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.os 74, 76 e 77 e jurisprudência referida).

78      Daqui decorre que um Estado‑Membro dispõe, em aplicação do artigo 7.o da Diretiva 2004/38, da faculdade de recusar a concessão de prestações de assistência social a cidadãos da União economicamente inativos que exerçam a sua liberdade de circulação e não disponham de recursos suficientes para reclamar o benefício de um direito de residência ao abrigo dessa diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.o 78).

79      Consequentemente, há que efetuar um exame concreto da situação económica de cada interessado, sem ter em conta as prestações de assistência social pedidas, a fim de apreciar se o mesmo satisfaz a condição de dispor de recursos suficientes prevista no artigo 7.o, n.o 1, alínea b), da Diretiva 2004/38 e se pode, por conseguinte, invocar, no Estado‑Membro de acolhimento, o princípio da não discriminação previsto no artigo 24.o, n.o 1, dessa diretiva para beneficiar da igualdade de tratamento em relação aos nacionais do referido Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2014, Dano, C‑333/13, EU:C:2014:2358, n.os 80 e 81).

80      No processo principal, resulta da resposta dada pelo órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informação do Tribunal de Justiça que CG não dispõe de recursos suficientes. Por conseguinte, essa pessoa pode vir a tornar‑se um encargo não razoável para o sistema de assistência social do Reino Unido e não pode, portanto, invocar o princípio da não discriminação previsto no artigo 24.o, n.o 1, da Diretiva 2004/38.

81      Esta apreciação não pode ser posta em causa pelo facto de CG dispor de um direito de residência temporária, ao abrigo da legislação nacional, que lhe foi concedido sem condição de recursos. Com efeito, se um cidadão da União economicamente inativo e sem recursos suficientes que resida no Estado‑Membro de acolhimento à margem das condições previstas pela Diretiva 2004/38 pudesse invocar o princípio da não discriminação enunciado no artigo 24.o, n.o 1, dessa diretiva, beneficiaria de uma proteção mais vasta do que aquela de que teria beneficiado em aplicação das disposições da referida diretiva, que teriam levado a que fosse recusado ao referido cidadão um direito de residência.

82      Além disso, importa decerto salientar que disposições nacionais, como as em causa no litígio no processo principal, que atribuem um direito de residência a um cidadão da União embora não estejam satisfeitas todas as condições previstas pela Diretiva 2004/38 para o efeito, são abrangidas pela hipótese referida no artigo 37.o dessa diretiva, segundo o qual esta não se opõe a que o direito dos Estados‑Membros institua um regime mais favorável do que o estabelecido pelas disposições da referida diretiva.

83      Esse direito de residência não pode, porém, de forma alguma ser considerado concedido «nos termos» da Diretiva 2004/38, na aceção do seu artigo 24.o, n.o 1. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que o facto de não prejudicar as disposições nacionais mais favoráveis do que as da Diretiva 2004/38 no que respeita ao direito de residência dos cidadãos da União não implica de modo nenhum que estas disposições devam ser integradas no sistema implementado por esta diretiva, e daí inferiu, em especial, que cabe a cada Estado‑Membro que tenha decidido instituir um regime mais favorável do que o estabelecido pelas disposições da referida diretiva precisar quais são as consequências jurídicas de um direito de residência concedido unicamente com fundamento no direito nacional (Acórdão de 21 de dezembro de 2011, Ziolkowski et Szeja, C‑424/10 e C‑425/10, EU:C:2011:866, n.os 49 e 50).

84      Dito isto, conforme sublinhado no n.o 57 do presente acórdão, um cidadão da União que, como GC, se deslocou para outro Estado‑Membro exerceu a sua liberdade fundamental de circular e de residir no território dos Estados‑Membros, conferida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE, pelo que a sua situação é abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, e isto mesmo que o seu direito de residência se funda no direito nacional.

85      A este propósito, importa sublinhar que o âmbito de aplicação da Carta está definido no seu artigo 51.o, n.o 1, nos termos do qual, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, as disposições da Carta têm estes por destinatários apenas quando apliquem o direito da União (Acórdão de 13 de junho de 2017, Florescu e o., C‑258/14, EU:C:2017:448, n.o 44 e jurisprudência referida). Segundo o seu artigo 51.o, n.o 2, a Carta não torna o âmbito de aplicação do direito da União extensivo a competências que não sejam as da União Europeia, não cria novas atribuições ou competências para a União, nem modifica as atribuições e competências definidas pelos tratados (Acórdão de 19 de novembro de 2019, TSN e AKT, C‑609/17 e C‑610/17, EU:C:2019:981, n.o 42).

86      Por outro lado, em conformidade com jurisprudência constante, os direitos fundamentais garantidos pela ordem jurídica da União são aplicáveis em todas as situações reguladas pelo direito da União (Acórdão de 19 de novembro de 2019, TSN e AKT, C‑609/17 e C‑610/17, EU:C:2019:981, n.o 43 e jurisprudência referida).

87      No caso vertente, resulta da decisão de reenvio que as autoridades do Reino Unido concederam a CG um direito de residência ainda que esta não dispusesse de recursos suficientes. Como foi salientado no n.o 82 do presente acórdão, essas autoridades aplicaram, em termos de direito de residência, um regime mais favorável do que o instituído pelas disposições da Diretiva 2004/38, pelo que não se pode considerar que essa ação constitua uma aplicação dessa diretiva. Ao procederem assim, as referidas autoridades reconheceram, em contrapartida, o direito de um nacional de um Estado‑Membro residir livremente no seu território, conferido aos cidadãos da União pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE, sem invocar as condições e as limitações previstas a esse direito na Diretiva 2004/38.

88      Daqui resulta que, quando concedem esse direito em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, as autoridades do Estado‑Membro de acolhimento aplicam as disposições do Tratado FUE relativas ao estatuto de cidadão da União, o qual, como foi sublinhado no n.o 62 do presente acórdão, está vocacionado para ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados‑Membros, e que são, por isso, obrigadas a atuar em conformidade com as disposições da Carta.

89      Em especial, cabe ao Estado‑Membro de acolhimento, em conformidade com o artigo 1.o da Carta, garantir que um cidadão da União que tenha feito uso da sua liberdade de circular e de residir no território dos Estados‑Membros, que é titular de um direito de residência ao abrigo do direito nacional e que se encontra numa situação de vulnerabilidade, possa viver em condições dignas.

90      Além disso, o artigo 7.o da Carta reconhece o direito ao respeito da vida privada e familiar. Esse artigo deve ser lido em conjugação com a obrigação de tomar em consideração, em todos os atos relativos às crianças, o interesse superior da criança, reconhecido no artigo 24.o, n.o 2, da mesma [v., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2019, SM (Menor colocado em kafala argelina), C‑129/18, EU:C:2019:248, n.o 67 e jurisprudência referida].

91      O Estado‑Membro de acolhimento é obrigado a permitir às crianças, que são particularmente vulneráveis, estarem alojadas em condições dignas com o ou os progenitores que as têm a cargo.

92      No caso vertente, resulta da decisão de reenvio que CG é mãe de duas crianças de tenra idade, que não dispõe de recursos para fazer face às suas necessidades e às dos seus filhos, e está isolada por ter fugido de um companheiro violento. Em tal situação, as autoridades nacionais competentes só podem opor uma recusa a um pedido de prestações de assistência social, como o crédito universal, depois de terem verificado que essa recusa não exporá o cidadão em causa e as crianças que tem a seu cargo a um risco efetivo e atual de violação dos seus direitos fundamentais, conforme consagrados nos artigos 1.o, 7.o e 24.o da Carta. No contexto desse exame, essas autoridades podem ter em conta o conjunto dos dispositivos de assistência previstos pelo direito nacional de que o cidadão em causa e os seus filhos podem efetivamente e atualmente beneficiar. No litígio no processo principal, caberá em especial ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se CG e os seus filhos podem efetivamente e atualmente beneficiar das ajudas, que não sejam o crédito universal, às quais os representantes do Governo do Reino Unido e do Departamento para as Comunidades na Irlanda do Norte se referiram nas suas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça.

93      Atento o conjunto destas considerações, há que responder à primeira questão da seguinte forma:

–        O artigo 24.o da Diretiva 2004/38 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro de acolhimento que exclui do benefício de prestações de assistência social os cidadãos da União economicamente inativos que não dispõem de recursos suficientes e aos quais o referido Estado concedeu um direito de residência temporária, quando essas prestações são garantidas aos nacionais do Estado‑Membro em causa que se encontram na mesma situação.

–        Porém, quando um cidadão da União reside legalmente, ao abrigo do direito nacional, no território de um Estado‑Membro diferente daquele de que é nacional, as autoridades nacionais competentes para conceder prestações de assistência social são obrigadas a verificar que a recusa de concessão dessas prestações com base nessa regulamentação não expõe esse cidadão, bem como os filhos que tem a seu cargo, a um risco concreto e atual de violação dos seus direitos fundamentais, conforme estes estão consagrados nos artigos 1.o, 7.o e 24.o da Carta. Quando esse cidadão não dispõe de nenhuns recursos para fazer face às suas necessidades e às dos seus filhos e está isolado, essas autoridades devem certificar‑se de que, em caso de recusa das prestações de assistência social, o referido cidadão pode, no entanto, viver com os seus filhos em condições dignas. No âmbito desse exame, as referidas autoridades podem ter em conta o conjunto dos dispositivos de assistência previstos pelo direito nacional e de que o cidadão em causa e os seus filhos podem efetivamente beneficiar.

 Quanto à segunda questão

94      Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

95      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

O artigo 24.o da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos EstadosMembros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à regulamentação de um EstadoMembro de acolhimento que exclui do benefício de prestações de assistência social os cidadãos da União economicamente inativos que não dispõem de recursos suficientes e aos quais o referido Estado concedeu um direito de residência temporária, quando essas prestações são garantidas aos nacionais do EstadoMembro em causa que se encontram na mesma situação.

Porém, quando um cidadão da União reside legalmente, ao abrigo do direito nacional, no território de um EstadoMembro diferente daquele de que é nacional, as autoridades nacionais competentes para conceder prestações de assistência social são obrigadas a verificar que a recusa de concessão dessas prestações com base nessa regulamentação não expõe esse cidadão, bem como os filhos que tem a seu cargo, a um risco concreto e atual de violação dos seus direitos fundamentais, conforme estes estão consagrados nos artigos 1.o, 7.o e 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Quando esse cidadão não dispõe de nenhuns recursos para fazer face às suas necessidades e às dos seus filhos e está isolado, essas autoridades devem certificarse de que, em caso de recusa das prestações de assistência social, o referido cidadão pode, no entanto, viver com os seus filhos em condições dignas. No âmbito desse exame, as referidas autoridades podem ter em conta o conjunto dos dispositivos de assistência previstos pelo direito nacional e de que o cidadão em causa e os seus filhos podem efetivamente beneficiar.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.