Language of document : ECLI:EU:C:2023:901

Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

TAMARA ĆAPETA

apresentadas em 23 de novembro de 2023(1)

Processos apensos C29/22 P e C44/22 P

KS,

KD

contra

Conselho da União Europeia (C29/22 P)

Comissão Europeia (C29/22 P)

Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE) (C29/22 P)

e

Comissão Europeia

contra

KS,

KD,

Conselho da União Europeia (C44/22 P)

Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE) (C44/22 P)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Política externa e de segurança comum (PESC) — Ação Comum 2008/124/PESC — Missão da União Europeia para o Estado de Direito no Kosovo (Eulex Kosovo) — Responsabilidade extracontratual da União Europeia — Crimes cometidos no Kosovo em 1999 — Danos alegadamente sofridos por particulares devido à insuficiência das investigações relativas ao desaparecimento e ao assassinato de membros da sua família — Alegada violação dos direitos fundamentais — Competência dos órgãos jurisdicionais da União — Artigos 2.°, 6.°, 19.° e 24.° TUE — Artigos 268.°, 275.° e 340.° TFUE»






I.      Introdução

1.        KS e KD perderam os seus familiares em 1999 na sequência do conflito no Kosovo. Estes assassinatos e desaparecimentos nunca foram esclarecidos. Em 2008, a União Europeia estabeleceu uma missão civil, a Missão da União Europeia para o Estado de Direito no Kosovo («Eulex Kosovo») (2), encarregada, nomeadamente, de investigar estes crimes. KS e KD intentaram uma ação de indemnização contra a União Europeia, alegando a violação dos seus direitos fundamentais pelo facto de esses crimes não terem sido devidamente investigados.

2.        Podem os órgãos jurisdicionais da União conhecer dos seus pedidos? O Tribunal Geral considerou que não podiam. Daí decorrem os presentes recursos.

3.        O Tribunal de Justiça conhece destes recursos paralelamente a outro processo, Neves 77 Solutions (C‑351/22), no qual as minhas conclusões são apresentadas no mesmo dia. Esse processo suscita igualmente, embora num contexto diferente, a questão do alcance da limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União em matéria de política externa e de segurança comum («PESC») prevista no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.° TFUE.

4.        Ambos os conjuntos de processos se inscrevem num contexto mais amplo que é o das negociações em curso sobre a adesão da União Europeia à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais («CEDH»). Todos os outros capítulos da negociação, que foram abertos em resultado do Parecer 2/13 (3), parecem estar encerrados, com exceção de uma questão remanescente: o alcance da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC. 

II.    Antecedentes

5.        O presente processo decorre dos recursos interpostos por dois particulares, KS e KD, e pela Comissão Europeia do despacho do Tribunal Geral (a seguir «despacho recorrido») (4). Com este despacho, o Tribunal Geral julgou improcedente a ação intentada por KS e KD contra a União Europeia com base no artigo 268.° TFUE e no artigo 340.°, segundo parágrafo, TFUE. KS e KD pediram uma indemnização por alegadas violações da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e da CEDH no âmbito da execução da Ação Comum do Conselho que estabeleceu a Eulex Kosovo. O Tribunal Geral declarou que não era competente para conhecer da ação. Esta declaração é impugnada nos presentes recursos.

A.      Factos na origem do processo no Tribunal Geral

1.      Estabelecimento e atribuições da Eulex Kosovo

6.        Os antecedentes do presente processo remontam ao conflito do Kosovo, ocorrido em 1998 e 1999, que envolveu albaneses kosovares e pessoas de etnia sérvia, estas últimas apoiadas pelo exército da (então) República Federal da Jugoslávia. Entre 28 de março e 8 de junho de 1999, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (a seguir «OTAN») interveio através do lançamento de ataques aéreos, após os quais o exército jugoslavo retirou as suas forças do Kosovo. Imediatamente a seguir, em 10 de junho de 1999, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a Resolução 1244 (1999), que previu a presença de forças internacionais no Kosovo, que ainda hoje aí se encontram. Esta resolução autorizou o estabelecimento no Kosovo de uma força de segurança internacional liderada pela OTAN, conhecida como Força do Kosovo ou KFOR, bem como de uma presença civil internacional, conhecida como Missão de Administração Provisória das Nações Unidas no Kosovo (a seguir «MINUK»).

7.        A MINUK foi investida de autoridade, semelhante à de um Estado, sobre o território e a população do Kosovo, incluindo os poderes legislativo e executivo e a administração do sistema judiciário. No entanto, na sequência da declaração de independência por parte das autoridades do Kosovo e da entrada em vigor de uma nova Constituição em 15 de junho de 2008, as atribuições da MINUK foram alteradas, passando a centrar‑se principalmente na promoção da segurança, da estabilidade e do respeito pelos direitos humanos no Kosovo (5).

8.        Em 2008, a União Europeia estabeleceu a Eulex Kosovo. Após a aprovação do seu plano de operação (a seguir «OPLAN»), as responsabilidades executivas da MINUK foram transferidas para a Eulex Kosovo.

9.        A Eulex Kosovo é uma missão civil da política comum de segurança e defesa («PCSD») estabelecida pela Ação Comum 2008/124 (6). A PCSD faz parte integrante da PESC (7), no âmbito da qual a União Europeia dispõe de capacidade operacional para realizar missões e operações civis e militares fora da União Europeia para a manutenção da paz, a prevenção de conflitos e o reforço da segurança internacional (8).

10.      A Eulex Kosovo foi inicialmente prevista para um período de dois anos e meio (9), mas já está em operação há mais de quinze anos. O seu atual mandato termina em 14 de junho de 2025 (10). No entanto, em 2018, a União Europeia decidiu reduzir a missão e as atribuições da Eulex Kosovo (11).

11.      No cumprimento da sua missão, a Eulex Kosovo recebeu instruções para exercer uma série de atribuições, que incluíam, nomeadamente, «[assegurar] que os casos de crimes de guerra, terrorismo, criminalidade organizada, corrupção, crimes interétnicos, crimes económicos/financeiros e outros crimes graves sejam objeto, de forma adequada, de investigação, de ação penal e de julgamento, com a devida execução das sentenças correspondentes» (12).

12.      Um ano após o início das operações da Eulex Kosovo, o Conselho instituiu o Painel de Análise dos Direitos Humanos («PADH») (13) para apreciar as queixas de alegadas violações dos direitos humanos cometidas pela Eulex Kosovo no exercício do seu mandato executivo (14).

13.      O PADH é competente para analisar as queixas relativas a alegadas violações dos direitos humanos cometidas pela Eulex Kosovo desde 9 de dezembro de 2008. Tem competência para apreciar as queixas apresentadas ao abrigo de uma série de instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos, mas, na prática, as queixas baseiam‑se principalmente na CEDH (15).

14.      O PADH tem apenas funções consultivas; as suas conclusões e recomendações não são vinculativas, mas pode sugerir medidas corretivas a tomar pelo chefe de missão. No entanto, está expressamente previsto que o PADH não pode recomendar uma indemnização pecuniária (16).

2.      Ações anteriores intentadas por KS e KD

15.      KS e KD são familiares diretos de pessoas que desapareceram ou foram assassinadas no Kosovo, após o estabelecimento da MINUK, em junho de 1999. Os pedidos apresentados por KS e KD às autoridades competentes, ao longo dos anos, para investigar estes crimes tiveram pouca ou nenhuma resposta.

16.      Por conseguinte, KS e KD apresentaram primeiro queixas ao Painel Consultivo dos Direitos Humanos («PCDH»), um órgão instituído para analisar alegadas violações dos direitos humanos cometidas pela MINUK (17), e, mais tarde, com o estabelecimento da Eulex Kosovo, ao PADH.

17.      Em relação a KS, o PADH concluiu que a Eulex Kosovo tinha violado os seus direitos decorrentes das disposições processuais dos artigos 2.° e 3.° da CEDH, por não ter realizado uma investigação efetiva. Concluiu igualmente por uma violação dos seus direitos em matéria de família decorrentes do artigo 8.° da CEDH e do direito a um recurso efetivo decorrente do artigo 13.° da CEDH. O PADH dirigiu uma série de recomendações ao chefe de missão (18).

18.      Em relação a KD, o PADH considerou que os esforços de investigação da Eulex Kosovo tinham sido insuficientes e resultado na violação dos seus direitos garantidos pelos artigos 2.° e 3.° da CEDH e pelo artigo 13.° da CEDH, em conjugação com o artigo 2.° da CEDH. Como no caso de KS, o PADH dirigiu uma série de recomendações ao chefe de missão (19).

19.      No âmbito do acompanhamento da execução das suas recomendações (20), o PADH declarou, em substância, que o chefe de missão tinha executado as suas recomendações apenas parcialmente e decidiu encerrar os processos.

20.      Em 19 de julho de 2017, KS interpôs no Tribunal Geral um recurso contra o Conselho, a Comissão e o Serviço Europeu para a Ação Externa («SEAE»), pedindo a «anulação ou alteração» da Ação Comum 2008/124 e das medidas subsequentes que a alteram, por infração ao artigo 47.° da Carta e ao artigo 13.° da CEDH, bem como a declaração de «responsabilidade extracontratual», com base na violação dos artigos 2.°, 3.°, 6.°, 13.° e 14.° da CEDH (21).

21.      Por Despacho de 14 de dezembro de 2017 (22), o Tribunal Geral negou provimento ao recurso, invocando, nomeadamente, que era manifestamente incompetente para dirigir injunções às instituições da União e que o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE o impediam de se declarar competente para anular os atos da PESC. O Tribunal Geral não tratou este processo como uma ação de indemnização.

22.      No ano seguinte, em 14 de junho de 2018, KS e KD, juntamente com outras seis pessoas, intentaram uma ação no High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Secção do Foro da Rainha, Reino Unido]. Pediram uma indemnização à União Europeia, ao Conselho e ao Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, bem como à Eulex Kosovo, por alegadas violações dos seus direitos humanos decorrentes da Carta e da CEDH.

23.      Por Acórdão de 13 de fevereiro de 2019 (23), o High Court of Justice (England & Wales), Queen's Bench Division [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Secção do Foro da Rainha] declarou‑se incompetente para conhecer da ação. Na opinião desse órgão jurisdicional, o Tribunal de Justiça tinha competência exclusiva para conhecer dessa ação e conceder a indemnização solicitada.

B.      Contexto mais amplo: adesão da União Europeia à CEDH

24.      Como referido na introdução, a questão do alcance da limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC por força do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE insere‑se no contexto mais amplo das novas negociações sobre a adesão da União Europeia à CEDH.

25.      No Parecer 2/13, o Tribunal de Justiça considerou que o projeto de tratado de adesão, como proposto nessa altura, era incompatível com várias disposições da ordem jurídica da União, conforme estabelecida pelos Tratados. No entanto, deixou em aberto a questão da compatibilidade desse projeto de tratado de adesão com as disposições pertinentes dos Tratados relativas à PESC. O Tribunal de Justiça considerou que ainda não tinha tido oportunidade de precisar o alcance das restrições da sua competência por força do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE (24).

26.      Para responder às preocupações suscitadas por esse parecer, foi criado um grupo de negociação ad hoc, conhecido como Grupo «46 + 1» (25). Em março de 2023, o Grupo «46 + 1» chegou a um acordo provisório unânime sobre quase todas as questões suscitadas pelo Parecer 2/13 (26). O único tema em aberto continuou a ser o denominado cabaz 4, relativo ao alcance da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC. Foi acordado que a União Europeia resolveria esta questão internamente e informaria os seus parceiros de negociação sobre a solução encontrada (27).

C.      Tramitação do processo no Tribunal Geral e despacho recorrido

27.      Depois de o órgão jurisdicional do Reino Unido ter julgado as suas ações improcedentes, KS e KD voltaram a recorrer aos órgãos jurisdicionais da União. Em 29 de dezembro de 2020, intentaram uma ação no Tribunal Geral, pedindo uma indemnização pelos danos sofridos devido à violação dos seus direitos fundamentais, imputável ao Conselho, à Comissão e ao SEAE, conjunta e solidariamente.

28.      KS e KD alegaram as seis violações seguintes:

–        violação dos artigos 2.° e 3.° da CEDH e dos correspondentes artigos 2.° e 4.° da Carta pela Eulex Kosovo;

–        violação do artigo 6.°, n.° 1, e do artigo 13.° da CEDH, bem como do artigo 47.° da Carta por falta de previsão de apoio judiciário;

–        falta de medidas corretivas quando as conclusões do PADH foram levadas ao conhecimento da União Europeia pelo chefe de missão da Eulex Kosovo em 29 de abril de 2016;

–        desvio ou abuso do poder executivo pelo Conselho e pelo SEAE em 12 de outubro de 2017, ao afirmarem que a Eulex Kosovo tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para investigar o rapto e o provável homicídio do marido de KS e os homicídios do marido e do filho de KD e que o PADH não se destinava a ser uma instância judicial;

–        desvio ou falta de exercício adequado do poder executivo devido à revogação do mandato executivo da Eulex Kosovo pela Decisão 2018/856, quando as violações ainda subsistiam;

–        desvio ou abuso do poder executivo por não ter sido assegurada a realização de uma apreciação juridicamente sólida no processo de KS, um caso de crime de guerra à primeira vista, pela Eulex Kosovo e/ou pela Procuradoria Especializada em matéria de investigação e ação penal perante a Câmara Especializada do Kosovo.

29.      Em 25 de março de 2021, KS e KD apresentaram um pedido com vista a adicionar a Eulex Kosovo como demandada no processo, que foi indeferido por Decisão do presidente de secção de 31 de março de 2021.

30.      Em 5 de junho de 2021, KS e KD apresentaram um pedido de medidas de instrução para obter a apresentação do OPLAN, um documento classificado e que foi mencionado pelo SEAE nos seus fundamentos.

31.      Através do despacho recorrido, o Tribunal Geral declarou que era manifestamente incompetente para conhecer do processo.

32.      Primeiro, o Tribunal Geral observou que o processo resultava de atos ou de comportamentos que se enquadram no âmbito de questões políticas ou estratégicas relacionadas com a definição das atividades, das prioridades e dos recursos da Eulex Kosovo, bem como da decisão de criar um painel de análise como parte integrante dessa missão. Em conformidade com a Ação Comum 2008/124, o estabelecimento e as atividades da referida missão estão abrangidos pelas disposições dos Tratados relativas à PESC (n.° 28 do despacho recorrido).

33.      Segundo, o Tribunal Geral assinalou que a competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC é circunscrita pelo artigo 24.°, n.° 1, segundo parágrafo, TUE e pelo artigo 275.°, primeiro parágrafo, TFUE. Considerou que os órgãos jurisdicionais da União não dispõem, por regra, de competência no que diz respeito às disposições do Tratado relativas à PESC e aos atos adotados com base nestas disposições. Embora os Tratados prevejam expressamente duas exceções a este princípio, nenhuma delas — o controlo da observância do artigo 40.° TFUE e a fiscalização da legalidade das medidas restritivas contra pessoas singulares e coletivas — se aplica no caso em apreço (n.os 29 a 33 do despacho recorrido).

34.      Terceiro, o Tribunal Geral diferenciou o presente processo de outros processos no âmbito da PESC em que o Tribunal de Justiça se declarou competente, a saber, os Acórdãos proferidos nos processos Elitaliana (28), H (29) e Bank Refah (30) (n.os 34 a 39 do despacho recorrido).

35.      Quarto, o Tribunal Geral invocou o Acórdão Carvalho (31) para excluir a possibilidade de afastar as condições expressamente previstas pelos Tratados apenas com base no princípio da tutela jurisdicional efetiva (n.os 40 e 41 do despacho recorrido).

36.      O Tribunal Geral concluiu que o processo deve ser julgado improcedente por incompetência, sem analisar as exceções de inadmissibilidade suscitadas pelo Conselho, pela Comissão e pelo SEAE e sem se pronunciar sobre o pedido de medidas de instrução apresentado por KS e KD com vista à apresentação do OPLAN (n.° 42 do despacho recorrido).

D.      Tramitação processual no Tribunal de Justiça

37.      Com o seu recurso interposto em 12 de janeiro de 2022 no processo C‑29/22 P e com a sua contestação apresentada em 2 de março de 2022 no processo C‑44/22 P, KS e KD pedem que o Tribunal de Justiça dê provimento ao recurso, anule o despacho recorrido e julgue procedentes os pedidos apresentados no Tribunal Geral ou, a título subsidiário, que dê provimento ao recurso e remeta o processo ao Tribunal Geral para decisão final. KS e KD pedem igualmente que o Tribunal de Justiça condene o Conselho, a Comissão e o SEAE no pagamento das despesas.

38.      Com o seu recurso interposto em 19 de janeiro de 2022 no processo C‑44/22 P e com a sua contestação apresentada em 1 de abril de 2022 no processo C‑29/22 P, a Comissão pede que o Tribunal de Justiça anule o despacho recorrido, declare que os órgãos jurisdicionais da União têm competência exclusiva para conhecer do processo e remeta o processo ao Tribunal Geral para que este profira decisão quanto à admissibilidade e ao mérito do processo. A Comissão pede igualmente que o Tribunal de Justiça reserve para final a decisão quanto às despesas.

39.      Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 21 de março de 2022, os processos C‑29/22 P e C‑44/22 P foram apensados para efeitos da fase escrita e da fase oral e da decisão que ponha termo à instância.

40.      Na sua contestação apresentada em 4 de abril de 2022, o Conselho pede que o Tribunal de Justiça negue provimento aos recursos e condene KS e KD no pagamento das despesas.

41.      Na sua contestação apresentada em 1 de abril de 2022, o SEAE pede que o Tribunal de Justiça, caso considere que é competente e que dispõe de elementos suficientes para decidir do recurso, declare o recurso inadmissível no que diz respeito ao SEAE e condene KS e KD no pagamento das despesas.

42.      Por Despachos de 16 de maio de 2022 e de 12 de maio de 2023, o presidente do Tribunal de Justiça deferiu o pedido de intervenção da República Francesa e da República Checa em apoio dos pedidos do Conselho.

43.      Por Despachos de 27 de abril de 2023 e de 12 de maio de 2023, o presidente do Tribunal de Justiça deferiu o pedido de intervenção do Reino da Bélgica, do Grão‑Ducado do Luxemburgo, do Reino dos Países Baixos, da República da Áustria, da Roménia, da República da Finlândia e do Reino da Suécia em apoio dos pedidos da Comissão.

44.      Em 27 de junho de 2023, foi realizada uma audiência na qual KS e KD, o Conselho, a Comissão, o SEAE e esses Estados‑Membros apresentaram alegações orais.

III. Análise

45.      O artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE preveem a limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC. O presente processo convida o Tribunal de Justiça a interpretar se essa limitação abrange uma ação de indemnização por danos alegadamente causados por violações dos direitos fundamentais cometidas na execução da missão Eulex Kosovo.

46.      O Tribunal Geral concluiu em sentido afirmativo e, por conseguinte, declarou‑se incompetente. KS e KD, assim como a Comissão (a seguir, conjuntamente, «recorrentes»), contestam esta conclusão do Tribunal Geral.

47.      KS e KD invocam um único fundamento de recurso, dividido em quatro partes. A primeira parte baseia‑se numa interpretação incorreta do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE. A segunda parte baseia‑se numa aplicação incorreta do Acórdão Bank Refah. A terceira parte baseia‑se numa aplicação incorreta do Acórdão Carvalho. A quarta parte baseia‑se no facto de não terem sido apreciadas as alegadas violações dos direitos fundamentais e de a ação ter sido incorretamente caracterizada como visando contestar as opções políticas tomadas no âmbito da PESC.

48.      A Comissão, apoiada pelos Governos Belga, luxemburguês, neerlandês, austríaco, romeno, finlandês e sueco, invoca quatro fundamentos de recurso. O primeiro fundamento baseia‑se na interpretação incorreta do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE. O segundo fundamento baseia‑se no facto de a ação não ter sido qualificada como sendo relativa a alegadas violações dos direitos fundamentais. O terceiro fundamento baseia‑se na aplicação incorreta do Acórdão Bank Refah. O quarto fundamento baseia‑se no facto de não ter sido declarado que os órgãos jurisdicionais da União têm competência exclusiva e de não ter sido assegurada uma via judicial efetiva aos demandantes.

49.      No Acórdão Bank Refah, o Tribunal de Justiça já declarou que é competente para conhecer dos pedidos de indemnização relativos a medidas restritivas. No entanto, fora do contexto das medidas restritivas, esta é uma questão nova submetida ao Tribunal de Justiça.

50.      Antes de mais, importa explicar que o presente processo não suscita questões substantivas. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça não é chamado a decidir se as omissões alegadas perante o Tribunal Geral constituem uma violação dos direitos fundamentais e, em caso afirmativo, quem na União Europeia deve ser considerado responsável e se estão preenchidos os requisitos para a concessão de uma indemnização (32). Se o Tribunal de Justiça considerar o recurso procedente, estas questões terão ainda de ser tratadas pelo Tribunal Geral. O presente recurso apenas suscita a questão de saber se os órgãos jurisdicionais da União podem conhecer dos pedidos de indemnização apresentados por KS e KD.

51.      Alguns comentadores jurídicos parecem discordar que os órgãos jurisdicionais da União tenham competência no domínio da PESC, mesmo que as ações de indemnização se baseiem em alegadas violações dos direitos fundamentais (33). Outros defendem o contrário (34).

52.      A jurisprudência do Tribunal de Justiça posterior ao Parecer 2/13 oferece muitos elementos para responder à questão suscitada pelos presentes recursos. Por conseguinte, é oportuno rever esses processos e identificar os princípios já estabelecidos nos mesmos.

A.      A limitação da competência no domínio da PESC é uma exceção e tem de ser interpretada restritivamente

53.      A jurisprudência que interpreta o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE assenta no entendimento de que a limitação da competência geral dos órgãos jurisdicionais da União baseada no artigo 19.°, n.° 1, TUE é uma exceção e, como tal, deve ser interpretada restritivamente (35).

54.      No Acórdão  Maurícia (36), o Tribunal de Justiça declarou que «os referidos artigos 24.°, n.° 1, segundo parágrafo, último período, e 275.°, primeiro parágrafo, introduzem uma derrogação à regra da competência geral que o artigo 19.° TUE confere ao Tribunal de Justiça para assegurar o respeito do direito na interpretação e na aplicação dos Tratados, pelo que devem ser interpretados restritivamente». Em processos posteriores, foi utilizada uma formulação semelhante (37).

55.      Esta interpretação restritiva foi até agora aplicada em três grupos de processos. Estes processos têm por objeto três tipos de medidas que a União Europeia pode adotar ao abrigo das bases jurídicas da PESC: i) medidas restritivas, ii) missões da União e iii) acordos internacionais.

1.      Processos relativos a medidas restritivas

56.      O primeiro grupo de processos está relacionado com medidas restritivas adotadas ao abrigo do artigo 29.° TUE. O artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE prevê expressamente que os órgãos jurisdicionais da União têm competência para fiscalizar a legalidade das medidas restritivas adotadas no âmbito da PESC quando estas sejam impugnadas por particulares através da interposição de recursos de anulação em conformidade com o artigo 263.°, quarto parágrafo, TFUE.

57.      Apesar da inexistência de uma referência expressa no texto do artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE, o Tribunal de Justiça considerou que também pode fiscalizar a legalidade de medidas restritivas noutros tipos de processos.

58.      No Acórdão Rosneft (38), o Tribunal de Justiça considerou que pode fiscalizar a legalidade de medidas restritivas no âmbito do processo de reenvio prejudicial.

59.      O Tribunal de Justiça interpretou o artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE no sentido de que não se refere ao tipo de processo no âmbito do qual a legalidade pode ser fiscalizada (ou seja, apenas os recursos de anulação), mas sim ao tipo de decisões que podem ser fiscalizadas (ou seja, as medidas restritivas) (39). Recordou que os artigos 263.° e 267.° TFUE fazem parte de um sistema completo de fiscalização da legalidade das medidas da União, o que significa que o Tribunal de Justiça pode também fiscalizar indiretamente a validade de uma medida restritiva, quando essa questão se coloca no processo pendente no órgão jurisdicional nacional (40). Isto é assim, embora não esteja expressamente previsto no artigo 275.° TFUE. O Tribunal de Justiça remeteu igualmente para o Acórdão proferido no processo Foto‑Frost (41), dando a entender que o órgão jurisdicional nacional teria a obrigação de remeter para o Tribunal de Justiça e deixar para este a declaração de invalidade das medidas restritivas.

60.      No Acórdão Bank Refah (42), o Tribunal de Justiça confirmou a sua competência para conhecer de uma ação de indemnização contra a União Europeia por danos pretensamente sofridos por particulares devido a medidas restritivas. Explicou que a ação de indemnização constitui um meio processual autónomo com a sua função própria no quadro do sistema dos meios processuais da União.

61.      O Tribunal de Justiça reconheceu que o artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE não se refere expressamente à competência dos órgãos jurisdicionais da União em matéria de ações de indemnização. No entanto, esta falta de formulação expressa não exclui a sua competência, uma vez que as limitações que lhe são impostas pela PESC devem ser interpretadas restritivamente(43).

62.      Parece resultar desses processos que, apesar da menção expressa apenas a recursos de anulação no artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE, os particulares podem impugnar medidas restritivas em todos os outros tipos de processos disponíveis nos órgãos jurisdicionais da União para apreciar a sua legalidade.

2.      Processos relativos a missões da União

63.      O segundo grupo de processos em que o Tribunal de Justiça interpretou restritivamente a limitação da sua competência está relacionado com as missões da União. Nesses processos, o Tribunal de Justiça baseou a sua competência na constatação de que a medida que estava a fiscalizar ou a interpretar não dizia respeito a matérias da PESC, embora se enquadrasse nesse domínio e se baseasse num ato da PESC. 

64.      No processo Elitaliana (44), o Tribunal de Justiça concluiu que os atos impugnados diziam respeito à adjudicação de um contrato público de serviços de helicópteros a um proponente concorrente e davam origem a despesas a cargo do orçamento da União, sujeitas ao Regulamento Financeiro da União. Estes atos, cuja legalidade foi impugnada através de recursos de anulação e pedidos de indemnização, foram adotados pela Eulex Kosovo com base na Ação Comum 2008/124. Todavia, o Tribunal de Justiça considerou que excluir a sua competência nessa situação pelo simples facto de os atos em causa terem sido adotados no âmbito da PESC seria uma interpretação demasiado restritiva da limitação da sua competência no âmbito dessa política da União. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE não excluíam a sua competência para interpretar e aplicar as disposições do Regulamento Financeiro da União, mesmo que as decisões relativas a contratos públicos fossem adotadas no domínio da PESC. 

65.      No Acórdão H (45), o Tribunal de Justiça confirmou a competência dos órgãos jurisdicionais da União para conhecerem dos recursos de anulação e pedidos de indemnização apresentados por um membro do pessoal de uma missão civil da União relativos a decisões tomadas pelo chefe dessa missão no sentido de transferir esse membro para um posto regional. Do mesmo modo que no Acórdão Elitaliana, o Tribunal de Justiça considerou que, embora os atos da União em causa se inscrevessem no âmbito da PESC e estivessem relacionados com ações operacionais ao abrigo da PESC, não constituíam atos referidos no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.° TFUE. Esses atos diziam essencialmente respeito a questões de gestão do pessoal. Consequentemente, a competência do Tribunal de Justiça para os fiscalizar não foi excluída.

66.      Parece resultar desses processos que os atos, mesmo que adotados no âmbito da PESC e assentes numa base jurídica da PESC, não são subtraídos à competência dos órgãos jurisdicionais da União se a sua legalidade for apreciada em relação às disposições do Tratado FUE ou a atos de direito derivado adotado ao abrigo dessas disposições.

3.      Processos relativos a acordos internacionais

67.      O último grupo de processos diz respeito ao terceiro tipo de medidas que podem ser adotadas no âmbito da PESC: os acordos internacionais. No Acórdão Maurícia (46), o Parlamento Europeu pediu a anulação de uma decisão da PESC adotada com base no artigo 37.° TUE, através da qual a União Europeia tinha celebrado um acordo com a República da Maurícia (47). Embora o processo tivesse por objeto a fiscalização de uma medida da PESC, o Parlamento impugnou‑a com base em erros relacionados com o processo utilizado para a sua adoção: o artigo 218.° TFUE, que rege o processo para a celebração de acordos internacionais, tanto no âmbito da PESC como de outras políticas da União. O Tribunal de Justiça declarou que o alcance da limitação de competência prevista no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.° TFUE não pode ir ao ponto de obstar a que o Tribunal de Justiça interprete e aplique o artigo 218.° TFUE, mesmo que seja para apreciar a legalidade de uma medida da PESC.

68.      A principal questão suscitada por este processo era saber se a base jurídica da PESC era a única base jurídica substantiva em que se devia ter baseado o acordo com a República da Maurícia. É interessante notar que o Tribunal de Justiça não decidiu este processo com base no artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE, que prevê expressamente a competência do Tribunal de Justiça para controlar a observância do artigo 40.° TUE. Em vez disso, o Tribunal de Justiça optou por abordar a questão da competência restringindo o âmbito da própria limitação da competência (48) e baseou a sua decisão numa lógica semelhante à aplicada nos Acórdãos Elitaliana e H, segundo a qual a fiscalização de uma medida da PESC é possível se for efetuada à luz do Tratado FUE ou do direito derivado.

69.      Tendo em conta a jurisprudência acima referida, considero que os argumentos apresentados pelas recorrentes (49), segundo os quais o Tribunal Geral cometeu um erro de direito por ter tratado a limitação de competência prevista no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.° TFUE como regra, e não como exceção, devem ser acolhidos.

B.      Contexto mais amplo dos Tratados

70.      O entendimento do Tribunal de Justiça de que a limitação imposta à sua competência no domínio da PESC constitui uma exceção e não a regra, com a consequência de que essa limitação deve ser interpretada restritivamente, baseia‑se nos princípios constitucionais da União.

71.      Para explicar a interpretação restritiva da limitação da competência nos processos acima referidos, o Tribunal de Justiça invocou os valores fundamentais da ordem jurídica da União, essencialmente, o Estado de direito, o princípio da tutela jurisdicional efetiva e a proteção dos direitos humanos. Por força dos artigos 21.° e 23.° TUE, estes princípios aplicam‑se igualmente à PESC (50).

1.      A PESC na estrutura dos Tratados

72.      O Tratado de Lisboa abandonou a estrutura em pilares e incluiu a PESC no regime constitucional da União. O exercício das competências da PESC passou assim a estar sujeito aos mesmos princípios constitucionais que as restantes políticas da União.

73.      O artigo 23.° TUE confirma o exposto, ao afirmar que os princípios e objetivos fundamentais da União Europeia, conforme expressos no capítulo 1 do título V TUE, se aplicam igualmente à PESC.

74.      No Acórdão Bank Refah (51), o Tribunal de Justiça assinalou que a estrutura dos Tratados se alterou e que o Tratado de Lisboa dotou a União de uma personalidade jurídica única no artigo 47.° TUE e pôs termo à dissociação entre a antiga Comunidade Europeia e a União Europeia. Isto traduziu‑se, nomeadamente, na integração das disposições relativas à PESC no quadro geral do direito da União, apesar de a PESC continuar sujeita a regras e a procedimentos específicos, conforme previsto no artigo 24.° TUE (52).

75.      Esta evolução da PESC, negligenciada na fundamentação do despacho recorrido, é um elemento importante a ter em conta quando se decide sobre o alcance da limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União.

76.      Passo agora a abordar o contexto constitucional mais amplo que permitiu ao Tribunal de Justiça concluir que a limitação da competência no domínio da PESC deve ser interpretada restritivamente. Os princípios desenvolvidos nestes processos devem orientar o Tribunal de Justiça na decisão sobre a sua competência no presente processo.

2.      Estado de direito, direitos fundamentais e papel dos órgãos jurisdicionais da União

77.      A inclusão da PESC no quadro constitucional da União significa que os princípios fundamentais da ordem jurídica da União também se aplicam a todas as atividades da União realizadas no âmbito dessa política. Estes princípios, expressos no artigo 2.° TUE, dos quais o Estado de direito, a tutela jurisdicional efetiva e a proteção dos direitos humanos são os mais relevantes para o presente processo, fazem parte da identidade constitucional da União Europeia (53).

78.      Nas palavras do Tribunal de Justiça, «o artigo 2.° TUE não constitui uma simples enunciação de orientações ou intenções de natureza política, mas contém valores que se enquadram [...] na própria identidade da União enquanto ordem jurídica comum» (54).

79.      Nos processos em que o Tribunal de Justiça considerou necessário interpretar restritivamente a limitação da competência no domínio da PESC, sublinhou que os artigos 21.° e 23.° TUE, relativos, respetivamente, à ação externa da União em geral e à PESC em especial, aplicam à PESC os valores expressos no artigo 2.° (55).

80.      O Estado de direito, como valor atualmente expresso no artigo 2.° TUE, exige que tanto as autoridades da União como as dos Estados‑Membros estejam sujeitas a fiscalização jurisdicional. O Tribunal de Justiça já o expressou há muito tempo no Acórdão proferido no processo Les Verts (56).

81.      Assim, o Estado de direito exige que seja garantida aos particulares que beneficiam de direitos decorrentes do direito da União uma tutela jurisdicional efetiva contra as autoridades da União e dos Estados‑Membros. No processo Associação Sindical dos Juízes Portugueses (57), o Tribunal de Justiça explicou que esta exigência é concretizada no artigo 19.°, n.° 1, TUE.

82.      Esta disposição atribui aos órgãos jurisdicionais da União a tarefa de proteger os direitos baseados na União, a qual é partilhada por todos os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros (58). Em princípio, as ações ou recursos destinados a obter proteção contra os atos (ou omissões) das instituições da União são da competência dos órgãos jurisdicionais da União, enquanto os particulares devem pedir proteção contra os atos (ou omissões) dos Estados‑Membros perante os órgãos jurisdicionais nacionais.

83.      Uma vez que a PESC está, por força do Tratado de Lisboa, sujeita aos mesmos princípios constitucionais fundamentais, o Estado de direito na ordem jurídica da União exige que os órgãos jurisdicionais da União garantam a legalidade das ações das instituições e dos organismos da União quando executam essa política.

84.      Para assegurar a tutela jurisdicional efetiva dos particulares que alegam que os seus direitos fundamentais, conforme garantidos pela ordem jurídica da União, foram infringidos por instituições ou organismos da União no exercício da PESC, os órgãos jurisdicionais da União devem, em princípio, ter competência para conhecer desses processos.

85.      Como o Tribunal de Justiça recordou no Acórdão Kadi I (59), o respeito dos direitos humanos é um requisito da legalidade dos atos da União e os atos incompatíveis com os direitos humanos não podem ser admitidos na União. Nesse processo, isso implicou a competência do Tribunal de Justiça para apreciar as alegações dos particulares de que os seus direitos humanos tinham sido violados, mesmo que as instituições da União se tivessem limitado a transpor (mecanicamente) as suas obrigações internacionais. O Tribunal de Justiça considerou que uma obrigação internacional não pode prevalecer sobre a promessa constitucional de que a União, através dos seus órgãos jurisdicionais, garante aos particulares que as instituições da União não violarão os direitos humanos.

86.      Nas palavras do advogado‑geral M. Poiares Maduro, «[a] alegação de que uma medida é necessária para a manutenção da paz e da segurança internacionais não pode ter o efeito de silenciar os princípios gerais de direito [da União] e de privar os indivíduos dos seus direitos fundamentais»(60). Esta é a razão pela qual «o Tribunal de Justiça não pode [...] virar as costas aos valores fundamentais que estão na base do ordenamento jurídico [da União] e que tem o dever de proteger» (61).

87.      Mais recentemente, no Acórdão Ledra Advertising (62), o Tribunal de Justiça esclareceu que a Carta se dirige sempre às instituições da União, incluindo quando atuam fora do ordenamento jurídico da União. O facto de a Comissão ter atuado no âmbito do Mecanismo Europeu de Estabilidade (a seguir «MEE»), que é um acordo internacional criado fora do quadro jurídico da União, não significa que a Comissão não esteja vinculada pelos direitos fundamentais da União. Em consequência, os órgãos jurisdicionais da União não podiam ser impedidos de conhecer de ações de indemnização contra a União baseadas em comportamentos ilícitos associados a esses atos do MEE.

88.      Nos processos acima referidos, o princípio de que a conformidade com os direitos fundamentais é um requisito da legalidade das medidas da União resultou na conclusão de que os órgãos jurisdicionais da União têm competência para conhecer de ações intentadas por particulares que alegam que os seus direitos fundamentais foram violados. No processo Ledra Advertising, o Tribunal de Justiça pôde mesmo conhecer de uma ação de indemnização por danos alegadamente causados por uma instituição da União fora do quadro do direito da União, por um ato do qual não podia ser interposto recurso de anulação, por ser externo à União. Do mesmo modo, no Acórdão Kadi I, um particular pôde pedir a anulação de uma medida de execução da União, alegando que esta violava os direitos fundamentais, embora esse particular não pudesse impugnar perante o Tribunal de Justiça a medida que estava a ser executada, uma vez que esta pertencia ao sistema das Nações Unidas e não ao sistema do direito da União.

89.      Por maioria de razão, pode, por conseguinte, afirmar‑se que os órgãos jurisdicionais da União devem ter competência para conhecer de uma ação de indemnização intentada por particulares que alegam que os seus direitos fundamentais foram violados, mesmo que essa ação impugne a legalidade de um ato da União no âmbito da PESC, que, em comparação com o ato em causa no processo Ledra Advertising, é um ato da competência da União.

90.      Estes princípios fundamentais do direito constitucional da União, a saber, o Estado de direito, a tutela jurisdicional efetiva e a proteção dos direitos humanos — que justificam os acórdãos do Tribunal de Justiça nos quais este considerou que a limitação da sua competência prevista no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.° TFUE é uma exceção, e não a regra, e tem de ser interpretada restritivamente — foram ignorados pelo Tribunal Geral no despacho recorrido. O Tribunal Geral diferenciou os Acórdãos do Tribunal de Justiça proferidos nos processos Elitaliana, H e Bank Refah do presente processo com base num raciocínio restrito e formalista. Considerou, em substância, que esses acórdãos não eram comparáveis à situação do presente processo pelo simples facto de terem surgido num contexto factual diferente (63), negligenciando assim totalmente os princípios gerais que estão na base desses processos e são aplicáveis em qualquer processo que exija uma interpretação dos limites da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC.

91.      Por conseguinte, a argumentação apresentada pelas recorrentes (64), segundo a qual o Tribunal Geral diferenciou incorretamente estes processos, deve ser acolhida.

92.      Por esta razão, o Tribunal Geral não abordou a seguinte questão: de que forma estes postulados fundamentais dos Tratados, conforme interpretados pela jurisprudência, influenciam a resposta à questão suscitada pelo presente processo?

C.      Interpretação do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE no presente processo

1.      Interpretação, e não alteração, dos Tratados

93.      À luz dos princípios acima referidos, parece‑me evidente que a competência dos órgãos jurisdicionais da União para conhecer de um pedido através do qual um particular requer proteção contra violações dos seus direitos fundamentais não pode ser excluída pelo simples facto de essa violação ter ocorrido no âmbito da PESC. Por conseguinte, o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se aplicam a ações de indemnização por alegada violação dos direitos fundamentais resultante de uma medida da PESC.

94.      Dito isto, o Estado de direito não só confere aos órgãos jurisdicionais da União competência para garantir que as outras instituições e organismos da União respeitem a lei, como também obriga os próprios órgãos jurisdicionais da União a cumprirem a lei.

95.      A questão que se pode colocar é a seguinte: o que exige a fidelidade ao direito do Tribunal de Justiça? Deverá o Tribunal de Justiça respeitar estritamente a redação dos Tratados que limitam a sua competência no domínio da PESC ou deverá dar preferência aos princípios constitucionais da União e determinar a competência necessária para proteger os direitos fundamentais, mesmo que tal não esteja expressamente previsto na redação dos Tratados?

96.      No Acórdão «Les Verts», o Tribunal de Justiça considerou que o Estado de direito ficava mais bem servido através da intervenção na redação do Tratado (65). Como o advogado‑geral G. F. Mancini referiu nas suas Conclusões nesse processo, «[a] obrigação de respeitar o direito [...] prevalece sobre os termos estritos da lei escrita. Sempre que a proteção dos interessados o exija, o Tribunal está disposto a corrigir ou a completar as normas que delimitam a sua competência, em nome do princípio que orienta a sua missão» (66).

97.      No despacho recorrido, porém, o Tribunal Geral considerou que a jurisprudência, conforme recentemente reiterada no Acórdão Carvalho (67), o impede de se declarar competente no presente processo. O Tribunal Geral explicou que, embora as disposições relativas à competência dos órgãos jurisdicionais da União devam ser interpretadas à luz do princípio da tutela jurisdicional efetiva, tal não pode ter por efeito anular as condições expressamente previstas nos Tratados.

98.      As recorrentes alegam (68) que esta jurisprudência pode ser diferenciada e, por conseguinte, não é aplicável ao caso em apreço, uma vez que diz respeito às condições que regem os recursos de anulação interpostos por particulares e não às ações de indemnização.

99.      Não concordo que seja esta a razão para diferenciar esta jurisprudência. Pelo contrário, considero o raciocínio do Tribunal de Justiça no Acórdão Carvalho aplicável ao caso em apreço, na medida em que expressa o princípio segundo o qual a exigência de uma tutela jurisdicional efetiva não pode, por si só, conduzir à alteração dos Tratados pelos órgãos jurisdicionais da União.

100. Contudo, tal não impede os órgãos jurisdicionais da União de interpretarem os Tratados em conformidade com o princípio da tutela jurisdicional efetiva. Na minha opinião, os órgãos jurisdicionais da União são mesmo obrigados a fazê‑lo.

101.  Nas suas Conclusões no processo SatCen/KF (69), o advogado‑geral M. Bobek concluiu de forma semelhante: «Dito de uma forma simples, o artigo 47.° da Carta não permite que o Tribunal reescreva os Tratados, mas requer que o mesmo interprete as disposições existentes de modo que possam atingir o seu pleno potencial para proporcionar uma tutela jurisdicional para quem seja afetado pelos atos das instituições e órgãos da União.»

102. Com efeito, no despacho recorrido, o Tribunal Geral reconheceu a necessidade de interpretar o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE à luz do princípio da tutela jurisdicional efetiva (70). No entanto, não o tentou fazer.

103. Por conseguinte, o Tribunal Geral deixou em aberto a questão de saber se a limitação da competência no domínio da PESC pode ser interpretada no sentido de garantir uma tutela jurisdicional efetiva no caso em apreço.

104. No âmbito dos presentes recursos, é precisamente esta a questão que deve ser colocada e respondida. Pode a limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União prevista no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.° TFUE ser interpretada no sentido de que exclui as ações de indemnização por violação dos direitos fundamentais pela União Europeia, mesmo que (alegadamente) ocorram no domínio da PESC?

2.      Argumentos das partes e dos intervenientes

105. As recorrentes alegam (71) que o Tribunal Geral não considerou que a ação de indemnização se baseava numa alegada violação dos direitos fundamentais e não interpretou a limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC à luz dos direitos fundamentais e do Estado de direito. Os Governos Belga, luxemburguês, neerlandês, austríaco, romeno, finlandês e sueco, que intervieram em apoio da Comissão, sublinham que, à luz dos valores fundadores da União Europeia e dos princípios gerais do direito da União, os órgãos jurisdicionais da União devem dispor de competência relativamente a ações de indemnização por alegadas violações dos direitos fundamentais no domínio da PESC. Além disso, o Governo Checo sustenta que, embora apoie a posição do Conselho, os órgãos jurisdicionais da União são competentes para controlar os atos adotados no domínio da PESC se esses atos puderem resultar na violação dos direitos fundamentais.

106. Mais concretamente, a Comissão sustenta que o presente processo diz respeito a alegadas violações dos direitos humanos e que a PESC é apenas o contexto em que essas violações ocorreram. Assim, o Tribunal de Justiça é confrontado com o que é essencialmente «uma ação de indemnização em matéria de direitos humanos» ao abrigo do direito da União e relacionada com uma medida da PESC.

107. Este argumento parece assentar numa lógica semelhante àquela em que se baseou a competência dos órgãos jurisdicionais da União em processos como os que deram origem aos Acórdãos Maurícia, Elitaliana e H. Mesmo que os órgãos jurisdicionais da União sejam convidados a pronunciar‑se sobre a legalidade de um ato da PESC, a situação do presente processo não está abrangida pela limitação de competência prevista no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.° TFUE, visto que a legalidade desse ato depende da interpretação do direito contido na Carta.

108. A Comissão sustenta ainda que nenhuma disposição dos Tratados derroga a competência dos órgãos jurisdicionais da União no que respeita a alegadas violações dos direitos fundamentais em qualquer domínio do direito da União, incluindo a PESC. A interpretação do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE de uma forma que privasse os particulares de intentarem processos por alegadas violações dos seus direitos fundamentais no domínio da PESC poria em causa as características essenciais do sistema de tutela jurisdicional estabelecido nos Tratados, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça.

109. O Conselho e o SEAE alegam que a competência dos órgãos jurisdicionais da União no presente processo está excluída pelo artigo 24.°, n.° 1, TUE e pelo artigo 275.° TFUE, e que nenhuma das atuais linhas de jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à PESC é aplicável. Contudo, o Conselho não afasta totalmente a competência dos órgãos jurisdicionais da União relativamente a alegadas violações dos direitos fundamentais no domínio da PESC e salienta que devem ser encontrados critérios adequados para preservar o efeito útil das disposições do Tratado que limitam a competência dos órgãos jurisdicionais da União no âmbito da PESC. Segundo o Conselho, há que fazer uma distinção clara entre os atos que implicam opções políticas, que não estão sujeitos ao controlo jurisdicional, e os atos que visam a execução de ações concretas, que o estão. Essas ações concretas não implicam, em princípio, opções políticas, mas constituem a mera execução dessas opções no âmbito da PESC. 

110. Todavia, o Governo Francês, que interveio em apoio do Conselho, considera que não é viável a distinção entre decisões políticas e outras decisões da PESC. Segundo este Estado‑Membro, as disposições do Tratado que limitam a competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC devem ser interpretadas de acordo com a sua redação, a saber, que os órgãos jurisdicionais da União não têm competência relativamente a nenhuma medida da PESC, salvo as duas exceções previstas no artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE.

3.      Quanto ao objetivo da limitação de competência no domínio da PESC

111. Concordo com o Governo Francês e o Conselho que a limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC não pode ser ignorada e que deve ser‑lhe atribuído algum significado. Este facto traz à tona uma questão importante, que é, a meu ver, a chave para definir os limites da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC: qual é a finalidade da limitação de competência?

112. A distinção sugerida pelo Conselho e pelo SEAE entre decisões políticas ou estratégicas, por um lado, e medidas meramente administrativas da PESC, por outro, pode refletir a intenção dos autores dos Tratados de impedir os órgãos jurisdicionais da União de influenciarem as opções políticas no domínio das relações externas. É certo que, na maioria dos casos em que o Tribunal de Justiça é convidado a interpretar uma norma, pode tomar uma opção quanto ao seu significado. Mesmo que a opção do Tribunal de Justiça seja orientada por outras normas e preocupações, não deixa de ser uma opção (72).

113. Há questões em que a opção deve ser deixada exclusivamente na esfera do processo político. O advogado‑geral M. Wathelet considerou, nas suas Conclusões no processo Rosneft, que «a limitação da competência do Tribunal de Justiça em matéria de PESC operada pela cláusula de “carve‑out” é motivada pelo facto de os atos PESC apenas traduzirem, em princípio, decisões de natureza puramente política ligadas ao exercício da PESC, em relação às quais uma fiscalização jurisdicional é dificilmente compatível com a separação de poderes» (73). A limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União poderia assim ser entendida como uma espécie de «doutrina das questões políticas» codificada (74). Os autores dos Tratados poderão ter considerado necessário afirmá‑lo expressamente, uma vez que o Tribunal de Justiça não estava (ainda) (75) preparado para desenvolver essa doutrina.

114. Com efeito, à luz do princípio da separação de poderes (designado por princípio do equilíbrio institucional na União Europeia), que é um elemento importante do Estado de direito e do princípio da democracia (76), não constitui uma prerrogativa dos órgãos jurisdicionais substituir as opções políticas tomadas pelas instituições políticas competentes.

115. No entanto, isso é válido para qualquer domínio do direito da União e não apenas para a PESC. Os órgãos jurisdicionais da União não devem substituir as opções políticas tomadas pelas instituições da União às quais os Tratados conferiram poderes de decisão. Dito isto, nas democracias constitucionais, as opções políticas não são ilimitadas. Numa União assente no Estado de direito, não pode ter sido intenção dos autores dos Tratados permitir violações dos direitos fundamentais no âmbito da PESC. Uma vez que a violação de um direito fundamental não pode ser uma opção política, os órgãos jurisdicionais da União devem poder controlar se esse limite foi ultrapassado (77). Só assim podem cumprir a sua missão de fazer respeitar o direito na interpretação e aplicação dos Tratados.

116. Conclui‑se daí que a competência dos órgãos jurisdicionais da União para fiscalizar qualquer medida da PESC, incluindo uma medida política ou estratégica, para assegurar a sua conformidade com os direitos fundamentais, não pode ser excluída pelo artigo 24.°, n.° 1, TUE e pelo artigo 275.° TFUE.

117. Reconheço que o respeito pelos direitos fundamentais pode ser assegurado de diferentes formas e pode deixar alguma margem para opções políticas. A maioria dos direitos garantidos pela Carta pode ser restrita se essa restrição servir outro objetivo legítimo e o alcançar de forma proporcionada (78). Assim, por exemplo, o direito à proteção de dados pessoais (ao abrigo do artigo 8.° da Carta) pode ser restringido para combater o terrorismo internacional, ou o direito de propriedade (ao abrigo do artigo 17.° da Carta) pode ser restringido para contribuir para a eficácia das sanções aplicadas contra um Estado terceiro. A apreciação das justificações, bem como a adequação e a necessidade das medidas que restringem certos direitos podem ser diferentes. A este respeito, existe uma razão para o acolhimento, pelos órgãos jurisdicionais da União, das opções políticas em questões complexas de política internacional. O Tribunal de Justiça parece ser sensível a esta preocupação, como demonstra a sua jurisprudência (79). Contudo, mesmo que se possa discutir o nível adequado de controlo, não se pode excluir os órgãos jurisdicionais da União do seu papel constitucional de assegurar a proteção dos direitos fundamentais quando solicitado pelos particulares.

118. Posso concordar que há certas opções estratégicas nas quais os órgãos jurisdicionais da União não podem, de facto, interferir. Por exemplo, na minha opinião, os órgãos jurisdicionais da União não podem apreciar se a União Europeia deve realizar uma missão numa determinada parte do mundo. Isto é assim mesmo que o estabelecimento de tal missão possa melhorar a situação dos direitos humanos das pessoas nessa zona. No entanto, uma vez adotada a decisão política de intervir num determinado país ou conflito, os órgãos jurisdicionais da União devem poder controlar se essa decisão é concebida e aplicada de forma a não interferir desproporcionadamente com os direitos humanos.

119. Algumas decisões a este respeito exigem um maior acolhimento das razões apresentadas pelo Conselho ou por outro organismo responsável. A disponibilidade de financiamento para uma determinada missão, por exemplo, pode de facto influenciar os direitos das pessoas cujos desaparecimentos de familiares não foram investigados com êxito. Todavia, os órgãos jurisdicionais da União devem ter em consideração os argumentos relativos à capacidade financeira e de pessoal global da União, que tem missões em todo o mundo, e não podem pôr em causa a decisão sobre a melhor forma de distribuir esses recursos. Contudo, este facto não exclui totalmente a competência dos órgãos jurisdicionais da União. Pelo contrário, a necessidade de acolhimento e o nível de controlo são questões que se colocam a partir do momento em que a competência é determinada.

120. Consequentemente, não posso concordar com a opinião do Conselho de que, no presente processo, os órgãos jurisdicionais da União só poderiam apreciar se a Eulex Kosovo respeitou os direitos fundamentais na realização das suas investigações, mas os órgãos jurisdicionais da União não teriam competência para se pronunciar sobre a legalidade das decisões do Conselho que põem gradualmente termo ao mandato executivo da Eulex Kosovo ou sobre a atribuição de recursos suficientes à Eulex Kosovo, uma vez que implicam decisões políticas e estratégicas não passíveis de fiscalização jurisdicional. Se essas opções políticas ou estratégicas forem suscetíveis de violar os direitos fundamentais, os órgãos jurisdicionais da União devem poder conhecer de uma queixa apresentada por um particular, embora seja provável que acolham as razões apresentadas pelo Conselho na sua apreciação sobre se essas opções violam os direitos fundamentais.

4.      O que está excluído da competência dos órgãos jurisdicionais da União em matéria de PESC?

121. A limitação de competência não pode ir ao ponto de excluir a fiscalização da conformidade das medidas da PESC com os direitos fundamentais. Qual é então o alcance desta limitação de competência?

122. A limitação de competência abrange, a meu ver, duas questões. Em primeiro lugar, os órgãos jurisdicionais da União não podem fiscalizar a conformidade dos atos da PESC com as disposições dos Tratados relativas à PESC (80). Em segundo lugar, os órgãos jurisdicionais da União não podem interpretar essas normas primárias relativas à PESC, nem os atos da PESC adotados com base nessas normas. É claro que, ao procederem à fiscalização da legalidade dos atos da PESC à luz dos direitos fundamentais, os órgãos jurisdicionais da União não podem evitar totalmente a interpretação das normas relativas à PESC, uma vez que esta é uma condição prévia para apreciar a sua conformidade com esses direitos (81). No entanto, a este respeito, os órgãos jurisdicionais da União devem acolher a explicação do significado de uma determinada opção política dada pelo seu autor e apreciar se a opção assim entendida ultrapassa o limite permitido pela Carta.

123. Contudo, desde que a opção política tomada por uma medida da PESC não ultrapasse os limites impostos pelo quadro constitucional da União, está excluída a intervenção dos órgãos jurisdicionais da União. Se uma norma relativa à PESC puder ser interpretada de três formas possíveis (A, B ou C) e nenhuma delas violar os direitos fundamentais, os órgãos jurisdicionais da União não podem escolher entre A, B e C. Isto significa, por sua vez, que o outro papel importante que o Tribunal de Justiça desempenha ao abrigo dos Tratados — assegurar a interpretação e aplicação uniformes do direito da União — não existe no domínio da PESC. Se queremos garantir a uniformidade, o Tribunal de Justiça deve poder escolher entre diferentes interpretações possíveis de uma norma. Excluída esta hipótese, deve partir‑se do princípio de que os autores dos Tratados aceitaram as divergências que podem ocorrer quando as medidas da PESC são implementadas em diferentes Estados‑Membros. O processo Neves 77 Solutions, no qual as minhas conclusões são também apresentadas hoje, é um exemplo de uma situação deste tipo.

124. Em resumo, as instituições e os organismos da União estão sempre vinculados pelos direitos fundamentais e a opção de violar esses direitos não é uma opção política ou estratégica disponível, incluindo no domínio da PESC. Se o objetivo da limitação de competência no âmbito da PESC é evitar que os órgãos jurisdicionais da União intervenham em decisões políticas e estratégicas no domínio da PESC, tal objetivo não exige a exclusão da competência para fiscalizar alegadas violações dos direitos fundamentais. Existe um limite imposto às decisões políticas e estratégicas, uma vez que não podem nunca violar os direitos fundamentais. Por conseguinte, o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não impedem que os órgãos jurisdicionais da União fiscalizem esses limites constitucionais, conhecendo de ações de indemnização intentadas por particulares devido a alegadas violações dos direitos fundamentais por medidas da PESC.

5.      Quanto ao artigo 275, segundo parágrafo, TFUE

125. O artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE, primeiro parágrafo, são frequentemente descritos como cláusulas de «carve‑out», porque derrogam parte da competência geral dos órgãos jurisdicionais da União decorrente do artigo 19.° TUE. O artigo 275.° TFUE, segundo parágrafo, é, por seu turno, descrito como uma cláusula de «claw‑back», uma vez que volta a colocar a norma excluída no âmbito da competência dos órgãos jurisdicionais da União (82).

126. Se entendermos a relação entre o primeiro e o segundo parágrafos do artigo 275.° TFUE desta forma, a lógica requer que a cláusula de «claw‑back» só seja aplicável se as cláusulas de «carve‑out» excluírem a competência dos órgãos jurisdicionais da União numa determinada situação. Concluí que o controlo jurisdicional de eventuais violações dos direitos fundamentais não pode ser excluído («carved‑out») da competência geral dos órgãos jurisdicionais da União, mesmo que o ato a ser fiscalizado seja uma medida da PESC. Por conseguinte, a cláusula de «claw‑back» do artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE seria irrelevante para determinar a competência em ações de indemnização baseadas em alegadas violações dos direitos fundamentais.

127. No entanto, na minha opinião, o artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE não deve ser interpretado como uma cláusula de «claw‑back», que restabelece o estado «normal» da competência dos órgãos jurisdicionais da União em determinadas situações. Pelo contrário, entendo que o artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE deve ser interpretado como uma disposição que serve de base à interpretação do alcance da limitação de competência prevista no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.°, primeiro parágrafo, TFUE.

128. Como observado (83), a redação do artigo 24.°, n.° 1, TUE não é idêntica à do artigo 275.° TFUE, primeiro parágrafo. O artigo 24.°, n.° 1, TUE exclui a competência dos órgãos jurisdicionais da União no que diz respeito a «estas disposições», que se referem às disposições indicadas nos períodos anteriores do artigo 24.°, n.° 1, TUE. Estas disposições estabelecem que, ao adotar as medidas da PESC, o Conselho delibera, em princípio, por unanimidade, que os atos legislativos ficam excluídos da PESC, que a PESC é executada pela União Europeia e pelos Estados‑Membros e que o Parlamento e a Comissão têm papéis específicos no âmbito da PESC. No entanto, o artigo 24.°, n.° 1, TUE prevê que os órgãos jurisdicionais da União devem poder verificar a observância do artigo 40.° TUE e podem fiscalizar a legalidade de determinadas decisões da PESC. A este respeito, o artigo 24.°, n.° 1, TUE remete para o artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE.

129. Por seu turno, o artigo 275.°, primeiro parágrafo, TFUE repete a limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União já expressa no artigo 24.°, n.° 1, TUE, mas acrescenta que esta limitação se aplica não só a «estas disposições», ou seja, às do capítulo 2 do título V TUE, mas também aos atos adotados com base nessas disposições. Esta limitação é, como reconhece a jurisprudência, restrita. A este respeito, o artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE explica o que não pode ser excluído («carved‑out»). Ao contrário do seu primeiro parágrafo, o segundo parágrafo do artigo 275.° TFUE deve ser interpretado de forma ampla, uma vez que serve de base à interpretação (restrita) do âmbito da cláusula de «carve‑out».

130. A referência ao artigo 40.° TUE que figura no artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE sugere que o Tribunal de Justiça deve manter a sua competência relativamente ao equilíbrio institucional previsto pelos Tratados. Os litígios que se enquadram nesta categoria são os que se prendem com a base jurídica adequada para a adoção de uma determinada medida e são normalmente gerados pela diferença de poderes atribuídos às instituições da União por essas diferentes bases jurídicas. Os processos Maurícia e Tanzânia acima referidos são exemplos de litígios deste tipo (84).

131. A referência a recursos de anulação relativos a medidas restritivas contra pessoas singulares e coletivas parece relativamente restritiva. Pode, contudo, ser entendida num sentido mais amplo de que exige que a competência dos órgãos jurisdicionais da União não pode ser limitada no que respeita à fiscalização da legalidade das medidas da PESC que restringem os direitos dos particulares.

132. Uma explicação simplista, mas, a meu ver, plausível, para incluir literalmente apenas os recursos de anulação de medidas restritivas interpostos por particulares é que, quando da adoção do Tratado de Lisboa, devido à jurisprudência Kadi, a eventual violação dos direitos dos particulares por medidas restritivas era um exemplo óbvio (85). Todavia, se for lido à luz do artigo 24.°, n.° 1, TUE, que se refere de forma mais geral à fiscalização jurisdicional de determinadas medidas, o artigo 275.°, segundo parágrafo, TFUE pode ser interpretado no sentido de que garante a inexistência de qualquer limitação à fiscalização jurisdicional de todas as medidas da PESC que restrinjam os direitos dos particulares.

133. Se a relação entre os dois parágrafos do artigo 275.° TFUE for entendida no sentido de que o segundo parágrafo serve de base à interpretação do primeiro, a «linha vermelha» para a limitação de competência é o papel constitucional atribuído pelos Tratados aos órgãos jurisdicionais da União. Trata‑se, em primeiro lugar, de salvaguardar a estrutura institucional estabelecida nos Tratados e, em segundo lugar, de proteger os direitos dos particulares.

6.      Quanto ao eventual papel dos órgãos jurisdicionais nacionais

134. É evidente que as medidas da PESC não devem infringir os direitos fundamentais dos particulares. É igualmente evidente que a fiscalização jurisdicional das alegadas violações dos direitos fundamentais deve ser possível. Pode, contudo, argumentar‑se que esses processos não têm necessariamente de ser decididos pelos órgãos jurisdicionais da União, mas podem ser submetidos à competência dos órgãos jurisdicionais nacionais (86).

135. Em conformidade com o artigo 274.° TFUE, os litígios em que a União Europeia seja parte não ficam, por este motivo, subtraídos à competência dos órgãos jurisdicionais nacionais. Se o artigo 24.°, n.° 1, TUE e artigo 275.° TFUE forem interpretados no sentido de que excluem a competência dos órgãos jurisdicionais da União em relação a ações de indemnização baseadas em violações dos direitos fundamentais alegadamente causadas por medidas da PESC, tais processos podem, ainda assim, ser decididos pelos órgãos jurisdicionais nacionais, mesmo que visem as instituições e organismos da União.

136. Tal solução satisfaz as exigências da tutela jurisdicional efetiva? Na sua Tomada de Posição no Parecer 2/13 (87), a advogada‑geral J. Kokott considerou que sim. No entanto, a sua análise partiu da posição segundo a qual a limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União prevista no artigo 24.°, n.° 1, TUE e no artigo 275.°, primeiro parágrafo, TFUE é a regra e não a exceção (88), posição que foi suplantada pela jurisprudência posterior do Tribunal de Justiça.

137. Na minha opinião, e o presente processo demonstra‑o claramente, é questionável que os órgãos jurisdicionais nacionais sejam capazes de proporcionar uma tutela jurisdicional efetiva aos particulares em todas as situações em que as instituições e os organismos da União poderão violar os seus direitos através de medidas da PESC. Como indicado pelos Governos Checo e Luxemburguês, existem muitos obstáculos práticos ao acesso aos órgãos jurisdicionais nacionais no que diz respeito a tais processos. Pode perguntar‑se, por exemplo, que órgão jurisdicional e de que Estado‑Membro deve conhecer de um processo contra medidas adotadas por uma missão da União estabelecida num país terceiro? KS e KD tentaram intentar uma ação nos órgãos jurisdicionais do Reino Unido (antes do Brexit). Como expliquei acima, o órgão jurisdicional nacional considerou que o processo não era da sua competência. Esta declaração de incompetência por parte de um órgão jurisdicional nacional pode, contudo, ser ultrapassada se o Tribunal de Justiça adotar a posição firme de que não tem competência.

138. Porém, tal não resolve a questão de saber qual o órgão jurisdicional nacional que deve conhecer do processo. O Governo Francês sugeriu que poderia ser um órgão jurisdicional do Estado‑Membro que detém a presidência do Conselho. No entanto, não existe nenhuma justificação específica para que um órgão jurisdicional desse Estado‑Membro seja o que se encontra em melhor posição para conhecer de um processo relativo a uma alegada violação dos direitos fundamentais por uma missão da União. Outra possibilidade é que a ação poderia ser intentada nos órgãos jurisdicionais de qualquer Estado‑Membro. Esta solução poderia dar origem à busca do foro mais favorável («forum shopping»), uma vez que os demandantes procurariam o Estado‑Membro com as regras processuais mais favoráveis aplicáveis às ações de indemnização.

139. Dado que os órgãos jurisdicionais nacionais não teriam a possibilidade de submeter reenvios prejudiciais ao Tribunal de Justiça, a interpretação dos direitos decorrentes da Carta, quando aplicados às medidas da PESC, poderia ser suscetível de divergir. Estas divergências acabariam por ser resolvidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH»), ao qual os particulares podem decidir recorrer se considerarem que os seus direitos humanos não foram devidamente protegidos.

140. Confrontado com estes problemas práticos de escolha do órgão jurisdicional nacional competente, o Governo Francês sugeriu a instituição de um novo órgão jurisdicional comum para conhecer dos processos relativos a violações dos direitos fundamentais por medidas da PESC. Embora os Estados‑Membros o possam fazer, questiono‑me por que razão estariam dispostos a atribuir competência a outro órgão jurisdicional supranacional se não estão dispostos a reconhecer essa competência aos órgãos jurisdicionais da União.

141. Por último, recorde‑se, o presente processo tem por objeto a questão de saber se os órgãos jurisdicionais da União podem conhecer de ações baseadas na responsabilidade extracontratual da União por danos alegadamente causados por medidas da PESC.

142. O Tribunal de Justiça já declarou que os órgãos jurisdicionais da União têm competência exclusiva para conhecer das ações de indemnização baseadas na responsabilidade extracontratual da União (89). Tais ações distinguem a União Europeia das organizações internacionais, que normalmente gozam de uma ampla imunidade em relação às ações de indemnização em tribunal (90). Com efeito, como observado na doutrina (91), foi acordado pelos autores dos Tratados que a União Europeia não deveria beneficiar de imunidade no que respeita à sua responsabilidade extracontratual, mas que as decisões na matéria não deveriam ser tomadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais.

143. Consequentemente, os Tratados preveem que a ação de indemnização é da competência exclusiva dos órgãos jurisdicionais da União. Os órgãos jurisdicionais nacionais não podem tomar decisões sobre responsabilidade extracontratual por danos alegadamente causados por instituições e organismos da União em qualquer domínio abrangido pelo âmbito do direito da União.

144. Além disso, as ações de indemnização, se fossem deixadas na esfera de competência dos órgãos jurisdicionais nacionais, basear‑se‑iam no seu próprio direito nacional em matéria de responsabilidade extracontratual, com resultados diferentes consoante as normas nacionais aplicáveis. Os órgãos jurisdicionais nacionais não podem, por conseguinte, colmatar a lacuna e proporcionar o mesmo tipo de via de recurso que os órgãos jurisdicionais da União.

D.      Potenciais implicações para a adesão da União Europeia à CEDH

145. Como já explicado, o presente processo deve ser enquadrado no contexto mais amplo das negociações sobre a adesão da União Europeia à CEDH. Vale a pena recordar que, em conformidade com o artigo 6.°, n.° 2, TUE, tal adesão é uma obrigação e não uma opção da União Europeia.

146. Todavia, o processo de adesão à CEDH só é possível, como demonstrado pelo Parecer 2/13, se respeitar as características específicas da ordem jurídica da União e não afetar as competências da União conferidas pelos Tratados.

147. Se o Tribunal de Justiça admitir a interpretação proposta, segundo a qual o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não excluem a competência dos órgãos jurisdicionais da União para conhecer de ações de indemnização por danos causados pelas medidas da PESC no que diz respeito a eventuais violações dos direitos fundamentais, que implicações teria isso para a futura adesão da União Europeia à CEDH?

148. Em primeiro lugar, contribuiria para determinar mais claramente a limitação da competência dos órgãos jurisdicionais da União no domínio da PESC, que constitui uma questão que o Tribunal de Justiça deixou em aberto no seu Parecer 2/13.

149. Em segundo lugar, clarificaria que, sempre que uma medida da PESC é impugnada por uma das razões que também podem ser apreciadas pelo TEDH, a saber, a alegada violação dos direitos fundamentais, a competência dos órgãos jurisdicionais da União não é limitada pelas cláusulas de «carve‑out» dos Tratados.

150. Do ponto de vista da ordem jurídica da União, a interpretação proposta satisfaria a exigência constitucional de salvaguardar a sua autonomia. Evitaria uma situação em que possíveis discrepâncias entre órgãos jurisdicionais nacionais quanto à questão de saber se medidas da PESC violam os direitos fundamentais são decididas por um órgão jurisdicional externo à ordem jurídica da União. Antes de um processo em que é alegada uma violação dos direitos humanos poder ser conhecido pelo TEDH, teria primeiro de ser decidido pelos órgãos jurisdicionais da União. A maioria dos Estados‑Membros que intervieram no presente processo concordou com a descrição ilustrada apresentada pelo Governo Checo, segundo a qual «todos os comboios que podem terminar a sua viagem em Estrasburgo têm primeiro de parar no Luxemburgo». A interpretação proposta prevê essa paragem no Luxemburgo.

151. Do ponto de vista do sistema estabelecido pela CEDH, a interpretação proposta significaria que, antes de uma ação intentada perante o TEDH ser admissível, devem ser esgotadas as vias de recurso disponíveis perante os órgãos jurisdicionais da União.

152. Será que isso aumentaria significativamente o volume de processos nos órgãos jurisdicionais da União?

153. Considero que essa preocupação não é justificada. Se um particular considerar que houve uma violação dos seus direitos fundamentais, deve efetivamente poder aceder aos órgãos jurisdicionais da União. É do interesse da ordem jurídica da União que tais situações sejam identificadas e corrigidas.

IV.    Resumo e consequências

154. Em suma, considero que o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não limitam a competência dos órgãos jurisdicionais da União para conhecerem de uma ação de indemnização intentada por particulares com base numa alegada violação dos direitos fundamentais por qualquer tipo de medida da PESC.

155. Esta interpretação decorre dos princípios constitucionais da ordem jurídica da União, principalmente, o Estado de direito, que inclui o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, e o princípio que impõe o respeito dos direitos fundamentais em todas as políticas da União. O papel constitucional dos órgãos jurisdicionais da União que decorre destes princípios só pode ser limitado a título excecional. É por este motivo que o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.°, primeiro parágrafo, TFUE devem ser interpretados de forma restritiva. Tal interpretação, ainda que restritiva, não pode contrariar o objetivo da limitação de competência inscrita nos Tratados. Se esse objetivo é proteger as opções políticas no âmbito da PESC da interferência dos órgãos jurisdicionais da União, o mesmo não pode justificar uma interpretação que inclua as ações de indemnização por danos causados por alegadas violações dos direitos fundamentais nessa limitação de competência. Com efeito, a violação dos direitos fundamentais não pode constituir uma opção política na União Europeia e os órgãos jurisdicionais da União devem ter competência para garantir que as decisões da PESC não ultrapassem as «linhas vermelhas» impostas pelos direitos fundamentais.

156. Em resultado do exposto, proponho que o Tribunal de Justiça dê provimento aos recursos interpostos por KS e KD e pela Comissão, no sentido de que o Tribunal Geral interpretou incorretamente o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE. Por conseguinte, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao se declarar incompetente para conhecer da ação de indemnização intentada por KS e KD.

157. Consequentemente, o despacho recorrido deve ser anulado.

158. Não considero que o estado do processo permita que o Tribunal de Justiça se pronuncie quanto à admissibilidade e ao mérito da ação. Estas questões não foram analisadas pelo Tribunal Geral nem foram objeto de debate no Tribunal de Justiça. Por conseguinte, o processo deve ser remetido ao Tribunal Geral, reservando‑se para final a decisão quanto às despesas.

V.      Conclusão

159. Tendo em conta o exposto, proponho que o Tribunal de Justiça:

–        anule o Despacho do Tribunal Geral de 10 de novembro de 2021, KS e KD/Conselho e o. (T‑771/20, não publicado, EU:T:2021:798);

–        remeta o processo ao Tribunal Geral para que decida quanto à admissibilidade e ao mérito da ação;

–        reserve para final a decisão quanto às despesas.


1      Língua original: inglês.


2      Ação Comum 2008/124/PESC do Conselho, de 4 de fevereiro de 2008, sobre a Missão da União Europeia para o Estado de Direito no Kosovo, EULEX Kosovo (JO 2008, L 42, p. 92).


3      V. Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH), de 18 de dezembro de 2014 (EU:C:2014:2454, n.ºs 153 a 258; a seguir «Parecer 2/13»), no qual o Tribunal de Justiça explicou as razões pelas quais o projeto de Tratado de Adesão da União Europeia à CEDH, como proposto nessa altura, não estava em conformidade com os Tratados.


4      Despacho de 10 de novembro de 2021, KS e KD/Conselho e o. (T‑771/20, não publicado, EU:T:2021:798).


5      V., por exemplo, United Nations Peacekeeping, UNMIK Fact Sheet, disponível em: https://peacekeeping.un.org/en/mission/unmik. Para uma discussão pormenorizada, v., também, por exemplo, Spernbauer, M., EU peacebuilding in Kosovo and Afghanistan: Legality and accountability, Martinus Nijhoff Publishers, Leiden/Boston, 2014, em especial, pp. 48 a 83.


6      Após o Tratado de Lisboa, as ações comuns enquanto instrumentos da PESC foram transformadas em decisões (v. artigo 25.º e artigo 28.º, n.º 1, TUE).


7      V. artigo 42.º, n.º 1, e artigo 43.º, n.º 1, TUE. V., ainda, por exemplo, Koutrakos, P., The EU common security and defence policy, Oxford University Press, Oxford, 2013, em especial, pp. 101 a 182; Naert, F., «European Union Common Security and Defence Policy Operations», in Nollkaemper, A., Plakokefalos, I. e Schechinger, J. (eds), The practice of shared responsibility in international law, Cambridge University Press, Cambridge, 2017, p. 669; Blockmans, S. e Koutrakos, P., Research handbook on the EU’s common and foreign security policy, Edward Elgar, Cheltenham/Northampton, 2018, em especial, parte B.


8      Desde 2003, a União Europeia lançou e dirigiu mais de quarenta missões e operações civis e militares. Atualmente, estão em curso vinte e duas missões da PCSD — treze missões civis e nove missões e operações militares — que empregam cerca de 4 000 pessoas na Europa, em África e no Médio Oriente. V., ainda, EEAS, Missions and Operations, Working for a stable world and a safer Europe, 31 de janeiro de 2023, disponível em: https://www.eeas.europa.eu/eeas/missions‑and‑operations_en.


9      V. artigo 20.º, segundo parágrafo, da Ação Comum 2008/124.


10      V. Decisão (PESC) 2023/1095 do Conselho, de 5 de junho de 2023, que altera a [Ação Comum 2008/124] (JO 2023, L 146, p. 22).


11      Tal foi previsto com base nas alterações à Ação Comum 2008/124 introduzidas pela Decisão (PESC) 2018/856 do Conselho, de 8 de junho de 2018 (JO 2018, L 146, p. 5); v., em especial, artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, desta decisão.


12      Artigo 3.º, alínea d), da Ação Comum 2008/124.


13      The Eulex Kosovo Accountability Concept on the establishment of the Human Rights Review Panel (Conceito de responsabilização da Eulex Kosovo em relação à instituição do Painel de Análise dos Direitos Humanos), Secretariado‑Geral do Conselho, Bruxelas, 29 de outubro de 2009.


14      Sobre o trabalho do PADH, v., por exemplo, Parecer da Comissão de Veneza n.º 545/2009 relativo aos mecanismos existentes para apreciar a compatibilidade dos atos da MINUK e da Eulex no Kosovo com as normas em matéria de direitos humanos, de 21 de dezembro de 2010; Nota de Jurisprudência do PADH relativa à responsabilização em matéria de princípios dos direitos humanos de uma missão para o Estado de direito, disponível em: https://hrrp.eu/Case‑Law_Notes.php; Ryan, J.J., «Holding to account», Law Society Gazette, junho de 2018, disponível em: https://hrrp.eu/docs/www.lawsociety.ie‑globalassets‑documents‑gazette‑gazette‑2018‑june‑2018‑gazette.pdf.


15      V., a este respeito, Relatório Anual do PADH de 2022, disponível em: https://hrrp.eu/annual‑report.php, n.º 1.4; Nota de Jurisprudência do PADH relativa à proteção dos direitos humanos substantivos pelo Painel de Análise dos Direitos Humanos, disponível em: https://hrrp.eu/Case‑Law_Notes.php.


16      V., a este respeito, Parecer da Comissão de Veneza, referido na nota de rodapé 14 das presentes conclusões, n.º 66; Nota de Jurisprudência do PADH relativa às vias de recurso para violações dos direitos humanos, disponível em: https://hrrp.eu/Case‑Law_Notes.php.


17      Este órgão consultivo foi instituído pelo Regulamento n.º 2006/12 da MINUK, de 23 de março de 2006 (UNMIK/REG/2006/12). V., ainda, por exemplo, The Human Rights Advisory Panel — History and legacy — Kosovo, 20072016 — Final report, 30 de junho de 2016, disponível em: https://unmik.unmissions.org/sites/default/files/hrap_final_report_final_version_30_june_2016.pdf.


18      V. Decisão do PADH de 11 de novembro de 2015, Processo n.º 2014‑32, disponível em: https://hrrp.eu/jurisprudence.php.


19      V. Decisão do PADH de 19 de outubro de 2016, Processos n.ºs 2014‑11 a 2014‑17, disponível em: https://hrrp.eu/jurisprudence.php.


20      Através das Decisões de 19 de outubro de 2016 e de 7 de março de 2017 em relação a KS, e da Decisão de 7 de março de 2017 em relação a KD.


21      Mais concretamente, KS solicitou ao Tribunal Geral que dirigisse uma série de injunções ao Conselho, à Comissão e ao SEAE, nomeadamente, dotar a Eulex Kosovo de um orçamento de 29 100 000 euros para lhe permitir cumprir o seu mandato executivo e garantir que o chefe de missão tome medidas que permitam a realização de uma investigação efetiva do caso do seu marido e de todos os outros casos de pessoas assassinadas ou desaparecidas após 12 de junho de 1999.


22      KS/Conselho e o. (T‑840/16, EU:T:2017:938). Este despacho não foi objeto de recurso.


23      [2019] EWHC 263 (QB).


24      V. Parecer 2/13, n.º 251.


25      V. sítio Internet do Conselho da Europa sobre a adesão da União à CEDH, disponível em: https://www.coe.int/en/web/human‑rights‑intergovernmental‑cooperation/accession‑of‑the‑european‑union‑to‑the‑european‑convention‑on‑human‑rights.


26      V. relatório da 18.ª reunião do grupo de negociação ad hoc do CDDH («46 + 1») sobre a adesão da União Europeia à [CEDH], 17 de março de 2023, n.º 7, disponível no sítio Web referido na nota de rodapé 25 das presentes conclusões. Sobre o novo processo de negociações, v., por exemplo, Rangel de Mesquita, M.J., «Judicial review of common foreign and security policy by the ECtHR and the (re)negotiation on the accession of the EU to the ECHR», Maastricht Journal of European and Comparative Law, vol. 28(3), 2021, p. 356; Krommendijk, J., «EU accession to the ECHR: completing the complete system of EU remedies?», 2023, disponível em: https://ssrn.com/abstract= 4418811.


27      V. Comité Diretor para os Direitos Humanos, Relatório intercalar para o Comité de Ministros, para informação, sobre as negociações de adesão da União Europeia à [CEDH], incluindo o projeto revisto de instrumentos de adesão em anexo, CDDH(2023)R_Extra Addendum, 4 de abril de 2023.


28      Acórdão de 12 de novembro de 2015, Elitaliana/Eulex Kosovo (C‑439/13 P, EU:C:2015:753; a seguir «Acórdão Elitaliana»).


29      Acórdão de 19 de julho de 2016, H/Conselho e o. (C‑455/14 P, EU:C:2016:569; a seguir «Acórdão H»).


30      Acórdão de 6 de outubro de 2020, Bank Refah Kargaran/Conselho (C‑134/19 P, EU:C:2020:793; a seguir «Acórdão Bank Refah»).


31      Acórdão de 25 de março de 2021, Carvalho e o./Parlamento e Conselho (C‑565/19 P, não publicado, EU:C:2021:252; a seguir «Acórdão Carvalho»).


32      Para uma discussão sobre a eficácia da via de ação de indemnização, mesmo que a questão da competência seja ultrapassada, v. Fink, M., «The action for damages as a fundamental rights remedy: Holding Frontex liable», German Law Journal, vol. 21(3), 2020, p. 532.


33      V., por exemplo, Butler, G., Constitutional law of the EU's common foreign and security policy: Competence and institutions in external relations, Hart Publishing, Oxford, 2019, pp. 185 a 188; Carrasco, C.M., «Human rights in the EU’s common security and defence policy», in Wouters, J., Nowak, M., Chané, A.‑L. and Hachez, N. (eds), The European Union and human rights — Law and policy, Oxford University Press, Oxford, 2020, p. 408, em especial, p. 429; Johansen, S. O., The human rights accountability mechanism of international organisations, Cambridge University Press, Cambridge, 2020, pp. 143 e 144; Poli, S., «The right to effective judicial protection with respect to acts imposing measures and its transformative force for the common foreign and security policy», Common Market Law Review, vol. 59(4), 2022, p. 1045, em especial, p. 1057.


34      V., por exemplo, Hillion, C., «A powerless court? The European Court of Justice and the EU common foreign and security policy», em Cremona, M. e Thies, A. (eds), The European Court of Justice and external relations law: Constitutional challenges, Hart Publishing, Oxford, 2014, p. 47, em especial, pp. 66 a 69; Eckes, C, «Common foreign and security policy: The consequences of the Court’s extended jurisdiction», European Law Journal, vol. 22(4), 2016, p. 492, em especial, pp. 510 e 511.


35      Esta jurisprudência inverteu, portanto, a posição defendida pela advogada‑geral J. Kokott na sua Tomada de Posição no Parecer 2/13, segundo a qual a exclusão de competência no domínio da PESC é uma regra com um número muito limitado de exceções. V. Tomada de Posição da advogada‑geral J. Kokott no Parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), EU:C:2014:2475, em particular, n.ºs 84 e 89.


36      Acórdão de 24 de junho de 2014, Parlamento/Conselho (C‑658/11, EU:C:2014:2025, n.º 70; a seguir «Acórdão Maurícia»).


37      V. Acórdãos Elitaliana, n.º 42, e H, n.º 40. Na versão em língua inglesa, em vez do termo «narrowly» [traduzido por «restritivamente» na versão em língua portuguesa], o Tribunal de Justiça utiliza por vezes o termo «restrictively» [também traduzido por «restritivamente» na versão em língua portuguesa] [v., por exemplo, Acórdão de 25 de junho de 2020, SatCen/KF (C‑14/19 P, EU:C:2020:492, n.º 66), e Bank Refah, n.º 32] ou «strictly» [traduzido por «de modo restritivo» na versão em língua portuguesa] (v., por exemplo, Acórdão de 28 de março de 2017, Rosneft, C‑72/15, EU:C:2017:236, n.º 74; a seguir «Acórdão Rosneft»).


38      V. Rosneft, n.ºs 60 a 81.


39      V. Rosneft, n.º 70.


40      V. Rosneft, nomeadamente n.ºs 66 a 69, 76 e 78.


41      V. Rosneft, nomeadamente n.ºs 78 e 79 [que remetem, nomeadamente, para o Acórdão de 22 de outubro de 1987, Foto‑Frost (314/85, EU:C:1987:452)].


42      V. Acórdão Bank Refah, n.ºs 26 a 49, nomeadamente, n.º 33.


43      V. Acórdão Bank Refah, n.ºs 31 e 32.


44      V. Acórdão Elitaliana, n.ºs 41 a 50.


45      V. Acórdão H, n.ºs 39 a 60. V. também Acórdão de 25 de junho de 2020, SatCen/KF (C‑14/19 P, EU:C:2020:492, n.º 66).


46      V. Acórdão Maurícia, n.ºs 69 a 74.


47      Decisão 2011/640/PESC do Conselho, de 12 de julho de 2011, relativa à assinatura e celebração do Acordo entre a União Europeia e a República da Maurícia sobre as condições de transferência, da força naval liderada pela União Europeia para a República da Maurícia, de pessoas suspeitas de atos de pirataria e dos bens conexos apreendidos, e sobre a situação dessas pessoas após a transferência (JO 2011, L 254, p. 1).


48      Num processo semelhante em que estava em causa um acordo com a Tanzânia, o Tribunal de Justiça adotou uma abordagem diferente e determinou a sua competência com base no artigo 275.º, segundo parágrafo, TFUE. V. Acórdão de 14 de junho de 2016, Parlamento/Conselho (C‑263/14, EU:C:2016:435, n.º 42; a seguir «Acórdão Tanzânia»).


49      Estes argumentos foram invocados em apoio da primeira parte do fundamento único de recurso de KS e KD e do primeiro fundamento de recurso da Comissão.


50      V. Acórdãos H, n.ºs 41 e 58; Rosneft, n.ºs 72 a 75 e 81, e Bank Refah, n.ºs 34 a 36. V. ainda, por exemplo, Hillion, C., «The EU external action as mandate to uphold the rule of law outside and inside the Union», Columbia Journal of European Law, vol. 29(2), edição especial de 2023, p. 228.


51      V. Acórdão Bank Refah, n.ºs 45 a 47.


52      A PESC continua a ser, em certos aspetos, uma política específica. O equilíbrio institucional estabelecido entre as instituições da União é diferente, com um papel mais fraco para o Parlamento e a Comissão; o Conselho decide maioritariamente por unanimidade; e os atos legislativos estão excluídos. V., por exemplo, Cremona, M., «“Effective judicial review is of the essence of the rule of law”: Challenging common foreign and security policy measures before the Court of Justice», European Papers, vol. 2(2), 2017, p. 671.


53      V. Acórdãos de 16 de fevereiro de 2022, Hungria/Parlamento e Conselho (C‑156/21, EU:C:2022:97, n.º 127), e de 16 de fevereiro de 2022, Polónia/Parlamento e Conselho (C‑157/21, EU:C:2022:98, n.º 145).


54      Acórdão de 16 de fevereiro de 2022, Hungria/Parlamento e Conselho (C‑156/21, EU:C:2022:97, n.º 232). V., também, Acórdão de 5 de junho de 2023, Comissão/Polónia (Independência e vida privada dos juízes) (C‑204/21, EU:C:2023:442, n.º 67).


55      V. Acórdãos H, n.º 41; Rosneft, n.º 72; e Bank Refah, n.º 35.


56      V. Acórdão de 23 de abril de 1986, Les Verts/Parlamento (294/83, EU:C:1986:166, n.º 23; a seguir «Acórdão Les Verts»); v., também, mais recentemente, por exemplo, Acórdãos de 3 de setembro de 2008, Kadi e Al Barakaat International Foundation/Conselho e Comissão (C‑402/05 P e C‑415/05 P, EU:C:2008:461, n.º 281; a seguir «Acórdão Kadi I»), e de 5 de novembro de 2019, BCE e o./Trasta Komercbanka e o. (C‑663/17 P, C‑665/17 P e C‑669/17 P, EU:C:2019:923, n.º 54).


57      V. Acórdão de 27 de fevereiro de 2018 (C‑64/16, EU:C:2018:117, n.º 32); v., também, mais recentemente, por exemplo, Acórdão de 5 de junho de 2023, Comissão/Polónia (Independência e vida privada dos juízes) (C‑204/21, EU:C:2023:442, n.º 69).


58      V. Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses (C‑64/16, EU:C:2018:117, n.º 32).


59      V. Acórdão Kadi I, n.ºs 281 a 284; v., também, por exemplo, Parecer 2/13, n.º 169.


60      Conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no processo Kadi/Conselho e Comissão (C‑402/05 P, EU:C:2008:11, n.º 34).


61      Conclusões do advogado‑geral M. Poiares Maduro no processo Kadi/Conselho e Comissão (C‑402/05 P, EU:C:2008:11, n.º 44).


62      V. Acórdão de 20 de setembro de 2016, Ledra Advertising e o./Comissão e BCE (C‑8/15 P a C‑10/15 P, EU:C:2016:701, nomeadamente n.ºs 55 a 60 e 67; a seguir «Acórdão Ledra Advertising»).


63      Assim, nos n.ºs 35 a 39 do despacho recorrido, o Tribunal Geral considerou que o presente processo não tem que ver com a gestão de pessoal, pelo que o Acórdão H não se aplica; não tem que ver com contratação pública, pelo que o Acórdão Elitaliana não se aplica; e não tem que ver com medidas restritivas, pelo que o Acórdão Bank Refah não se aplica.


64      Estes argumentos foram invocados em apoio da primeira e da segunda partes do fundamento único de recurso de KS e KD e do primeiro e terceiro fundamentos de recurso da Comissão.


65      Assim, o Tribunal de Justiça concluiu que podia ser interposto um recurso de anulação contra o Parlamento, mesmo que o Tratado, na sua redação à época, não previsse essa possibilidade.


66      Conclusões do advogado‑geral G. F. Mancini no processo «Les Verts»/Parlamento (294/83, não publicadas, EU:C:1985:483, n.º 7; [1986] Colet. 1339, em especial, p. 1350).


67      V. Acórdão Carvalho, n.ºs 67 a 79, em especial, n.º 78 [que refere as Conclusões do Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 25 de julho de 2002, Unión de Pequeños Agricultores/Conselho (C‑50/00 P, EU:C:2002:462, n.º 44), e de 1 de abril de 2004, Comissão/Jégo‑Quéré (C‑263/02 P, EU:C:2004:210, n.º 36)].


68      Estes argumentos foram invocados em apoio da terceira parte do fundamento único de recurso de KS e KD e do quarto fundamento de recurso da Comissão.


69      Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo SatCen/KF (C‑14/19 P, EU:C:2020:220, n.º 69).


70      V. despacho recorrido, n.º 41.


71      Estes argumentos foram invocados em apoio da quarta parte do fundamento único de recurso de KS e KD e do segundo fundamento de recurso da Comissão.


72      A este respeito, mesmo que, ao interpretar a legislação, o Tribunal de Justiça se esforce por entender a intenção legislativa e interpretar uma norma em conformidade com a mesma, visto que, muitas vezes, essa intenção não é expressa de forma clara nem no ato jurídico nem nos seus trabalhos preparatórios, a própria intenção legislativa torna‑se também uma questão que faz parte da opção do Tribunal de Justiça.


73      Conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Rosneft (C‑72/15, EU:C:2016:381, n.º 52).


74      V., por exemplo, Van Elsuwege, P., «Judicial review and the common foreign and security policy: Limits to the gap‑filling role of the Court of Justice», Common Market Law Review, vol. 58(6), 2021, p. 1731, em especial, p. 1739. v., também, Lonardo, L., «The political question doctrine as applied to common foreign and security policy», European Foreign Affairs Review, Vol. 22(4), 2017, p. 571.


75      Até à data, o Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre a existência de uma espécie de «doutrina das questões políticas» no direito da União. Contudo, o Tribunal de Justiça utilizou o conceito de efeito direto para fins semelhantes. Em certas questões de política externa, especialmente na apreciação da compatibilidade dos atos da União com o direito da OMC, absteve‑se de exercer a sua competência de fiscalização jurisdicional para ter em conta a margem de manobra política deixada às partes dessa organização. V., por exemplo, Acórdão de 12 de dezembro de 1972, International Fruit Company e o. (21/72 a 24/72, EU:C:1972:115, n.ºs 18 e 27); v., também, as minhas Conclusões no processo EUIPO/The KaiKai Company Jaeger Wichmann (C‑382/21 P, EU:C:2023:576, nomeadamente, n.ºs 59 a 64).


76      Sobre a relação entre o equilíbrio institucional e o princípio da democracia, v. Acórdão de 6 de setembro de 2017, Eslováquia e Hungria/Conselho (C‑643/15 e C‑647/15, EU:C:2017:631, n.º 160).


77      Vale a pena remeter novamente para o Acórdão Ledra Advertising, no qual o Tribunal de Justiça considerou que pode conhecer de uma ação de indemnização mesmo em relação à participação da Comissão na adoção de um ato fora do quadro jurídico da União (v. n.ºs 87 a 89 das presentes conclusões). Só assim o Tribunal pode controlar se a Comissão ultrapassou a «linha vermelha» traçada pelos direitos fundamentais.


78      V., a este respeito, artigo 52.º, n.º 1, da Carta.


79      V., por exemplo, Acórdão de 28 de novembro de 2013, Conselho/Manufacturing Support & Procurement Kala Naft (C‑348/12 P, EU:C:2013:776, n.ºs 120 a 126), e Acórdão Rosneft, n.ºs 146 a 150.


80      V., a este respeito, Conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Rosneft (C‑72/15, EU:C:2016:381, n.º 46), nas quais considerou que a referência a «estas disposições» no artigo 24.º, n.º 1, TUE apenas exclui a competência do Tribunal de Justiça para fiscalizar os atos da PESC no que diz respeito às disposições do capítulo 2 do título V TUE, e não no que diz respeito a quaisquer outras disposições do Tratado UE, nem no que diz respeito às disposições do Tratado FUE.


81      A este respeito, discordo da posição expressa pelo advogado‑geral M. Wathelet nas suas Conclusões no processo Rosneft (C‑72/15, EU:C:2016:381, n.º 75), segundo a qual a interpretação é uma tarefa mais restrita do que a fiscalização da legalidade. É, evidentemente, inevitável que o Tribunal de Justiça entenda (e, por conseguinte, interprete) as normas cuja legalidade aprecia. No entanto, pode ser necessária uma interpretação fora do âmbito da fiscalização da legalidade para garantir a aplicação uniforme dessas normas. A interpretação é, na minha opinião, uma competência mais ampla, pois permite ao Tribunal de Justiça escolher entre diferentes significados possíveis da mesma norma.


82      V. Conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Rosneft (C‑72/15, EU:C:2016:381, nomeadamente n.ºs 39 a 76).


83      V. Conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Rosneft (C‑72/15, EU:C:2016:381, n.º 42).


84      V. n.ºs 67 e 68 e nota de rodapé 48 das presentes conclusões.


85      V., a este respeito, Cremona, referido na nota de rodapé 52 das presentes conclusões, p. 687, que considerou que a referência que figura no artigo 275.º, segundo parágrafo, TFUE aos recursos de anulação «reflete a jurisprudência Kadi sobre a necessidade de uma tutela jurisdicional efetiva quando são adotadas medidas restritivas contra os particulares».


86      Foi esta a posição da advogada‑geral J. Kokott na sua Tomada de Posição no Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH), EU:C:2014:2475, n.ºs 95 e 96. Nos presentes recursos, o Governo Francês adota uma posição semelhante.


87      V. Tomada de Posição da advogada‑geral J. Kokott no Parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), EU:C:2014:2475, n.ºs 82 a 103.


88      V. Tomada de Posição da advogada‑geral J. Kokott no Parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), EU:C:2014:2475, nomeadamente. n.ºs 84 e 89. Observo também que, nas suas Conclusões no processo H (EU:C:2016:212, n.os 89 a 104), o advogado‑geral N. Wahl considerou que a competência cabia aos órgãos jurisdicionais nacionais, mas a sua análise baseou‑se no facto de, salvo exceções específicas expressamente previstas nos Tratados, a regra geral ser que os órgãos jurisdicionais da União não são competentes em matéria de PESC (v., em especial, n.os 53, 66 e 71); entendeu também que as considerações baseadas no Estado de direito eram irrelevantes no âmbito desse processo (v. n.º 49).


89      V., por exemplo, Acórdãos de 18 de abril de 2013, Comissão/Systran e Systran Luxembourg (C‑103/11 P, EU:C:2013:245, n.º 60), e de 15 de julho de 2021, OH (Imunidade de jurisdição) (C‑758/19, EU:C:2021:603, n.º 22).


90      V., por exemplo, Gutman, K., «Action for damages: Court of Justice of the European Union (CJEU)», in Ruiz Fabri, H. (ed.), Max Planck Encyclopedia of International Procedural Law, Oxford University Press, Oxford, 2019, n.º 4.


91      V., a este respeito, Schermers, H. G. e Waelbroeck, D.F., Judicial protection in the European Union, 6.ª edição, Kluwer Law International, Haia/Londres/Nova Iorque, 2001, § 1047.