Language of document : ECLI:EU:C:2023:907

Edição provisória

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

TAMARA ĆAPETA

apresentadas em 23 de novembro de 2023(1)

Processo C351/22

Neves 77 Solutions SRL

contra

Agenţia Naţională de Administrare Fiscală — Direcţia Generală Antifraudă Fiscală

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunalul București (Tribunal Regional de Bucareste, Roménia)]

«Reenvio prejudicial — Política externa e de segurança comum (PESC) — Medidas restritivas tendo em conta as ações da Rússia que desestabilizam a situação na Ucrânia — Decisão 2014/512/PESC do Conselho — Competência do Tribunal de Justiça — Artigos 2.°, 6.°, 19.° e 24.° TUE — Artigos 267.° e 275.° TFUE — Proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares — Execução pelos Estados‑Membros — Coima — Perda dos montantes recebidos — Pretensa violação de princípios gerais do direito da União e de direitos fundamentais — Princípio da segurança jurídica — Princípio nulla poena sine lege — Artigo 17.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 1.° do Protocolo n.° 1 à Convenção Europeia dos Direitos Humanos — Direito de propriedade»






I.      Introdução

1.        Em 2014, como resposta à violação não provocada da soberania e da integridade territorial da Ucrânia pela Federação da Rússia, a União Europeia adotou uma série de medidas restritivas contra este país. O presente processo incide sobre as medidas restritivas que foram introduzidas pela Decisão 2014/512/PESC (2).

2.        A questão central suscitada no presente processo é a de saber se o Tribunal de Justiça pode interpretar as disposições dessa decisão, tendo em conta que a sua competência no domínio da política externa e de segurança comum (a seguir «PESC») é limitada pelo artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE.

3.        O presente processo está a ser apreciado pelo Tribunal de Justiça em paralelo com dois processos apensos, KS e KD/Conselho e o. e Comissão/KS e o. (processos C‑29/22 P e C‑44/22 P; a seguir «processos KS e KD»), no âmbito dos quais as minhas Conclusões serão apresentadas no mesmo dia. Estes últimos processos incidem igualmente sobre a questão do alcance da competência limitada do Tribunal de Justiça no domínio da PESC. Por conseguinte, irei remeter, se for caso disso, para as minhas Conclusões nesses processos.

4.        Os processos em questão enquadram‑se no contexto amplo das negociações em curso sobre a adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (a seguir «CEDH»). Todas as demais questões relacionadas com as negociações, que foram suscitadas na sequência do Parecer 2/13 (3), parecem estar resolvidas, com exceção de uma, que ainda está pendente: a do alcance da competência dos tribunais da União no domínio da PESC.

II.    Factos no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

5.        A Neves 77 Solutions SRL (a seguir «Neves») é uma sociedade que foi constituída em 2014 e cuja atividade principal é a intermediação na venda de produtos no setor da aviação.

6.        A Neves intermediou uma operação entre a sociedade de direito ucraniano SFTE Spetstechnoexport (a seguir «SFTE») e a sociedade de direito indiano Hindustan Aeronautics Limited (a seguir «Hindustan»).

7.        Em 2009, estas duas sociedades celebraram um contrato pelo qual a SFTE se comprometeu a fornecer e a reparar vários aviões a favor da Hindustan com recurso a componentes fabricados na Rússia. Contudo, na sequência da invasão da região da Crimeia na Ucrânia pela Rússia em 2014, a SFTE deixou de comprar diretamente à Rússia as peças e os equipamentos necessários para a execução deste contrato.

8.        Em 4 de janeiro de 2019, a SFTE celebrou um contrato com a Neves de fornecimento de 32 aparelhos de rádio R‑800L2E para serem entregues aos Emirados Árabes Unidos. Em 8 de janeiro de 2019, a Neves, por sua vez, celebrou com uma sociedade de direito português um contrato de compra e venda dos 32 aparelhos de rádio R‑800L2E, dos quais 20 tinham sido fabricados na Rússia e exportados para os Emirados Árabes Unidos. Posteriormente, a Neves enviou esses 20 aparelhos de rádio para a Hindustan, na Índia, a pedido da SFTE.

9.        Por Aviso de 26 de julho de 2019, o Departamento Romeno de Controlo das Exportações (a seguir «ANCEX») informou a Neves de que os aparelhos de rádio R‑800L2E estavam abrangidos pela categoria ML11 da lista dos produtos militares sujeitos ao regime de controlo das exportações, importações e outras operações constante do Decreto n.° 901/2019 do Ministro dos Negócios Estrangeiros (a seguir «Decreto n.° 901/2019») (4). Este aviso referia ainda que as operações de comércio externo que envolvessem estes produtos só podiam ser efetuadas, de acordo com o direito romeno, com base na confirmação do registo e das licenças emitidas pela ANCEX.

10.      Por Aviso de 29 de julho de 2019, a ANCEX informou ainda a Neves de que a operação de corretagem relativa aos aparelhos de rádio R‑800L2E estava abrangida pelo âmbito de aplicação das medidas restritivas contra a Rússia introduzidas pela Decisão 2014/512/PESC.

11.      A Neves respondeu aos dois avisos da ANCEX, alegando que os aparelhos de rádio em causa se destinavam a uso civil e que o Decreto n.° 901/2019, que transpôs para o direito romeno a lista dos produtos militares da União e na qual a ANCEX se tinha baseado, não se aplicava no momento da entrega destes produtos. No entender da Neves, o artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC também não era aplicável, uma vez que estes aparelhos de rádio não tinham sido vendidos à Rússia.

12.      Em 6 e 9 de agosto de 2019, a Neves recebeu da SFTE um total de 2 984 961,40 euros como pagamento dos aparelhos de rádio entregues ao abrigo do contrato celebrado em 4 de janeiro de 2019.

13.      Em 12 de maio de 2020, a Agência Nacional da Administração Tributária romena — Direção Geral Antifraude Tributária (a seguir «ANAF») (5) emitiu um auto de contraordenação contra a Neves. A ANAF considerou que a Neves tinha cometido uma contraordenação ao abrigo do artigo 26.°, n.° 1, alínea b), do Decreto‑Lei n.° 202/2008 por ter violado os artigos 3.°, n.° 1, 7.°, n.° 1, e 24.°, n.° 1, deste decreto e o artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC. Este decreto‑lei regula as modalidades de execução ao nível nacional das sanções internacionais, incluindo das sanções impostas pela União Europeia. As disposições deste decreto‑lei em que se baseou a ANAF estabelecem que os atos que impõem sanções internacionais (incluindo as decisões da União no domínio da PESC) vinculam as autoridades públicas e todas as pessoas singulares ou coletivas na Roménia. Preveem igualmente a obrigação das pessoas singulares ou coletivas, que tenham estabelecido uma relação ou estado numa relação de facto relacionada com operações abrangidas por sanções internacionais, de notificarem este facto às autoridades competentes.

14.      Consequentemente, a Neves foi sujeita a uma coima de 30 000 leus romenos (cerca de 6 000 euros) e foi‑lhe confiscado o montante de 14 113 003 leus romenos (2 984 961,40 euros), a título dos montantes que havia recebido da SFTE em 6 e 9 de agosto de 2019.

15.      Nesse auto de contraordenação, a ANAF referiu que, embora a ANCEX tivesse informado a Neves de que os aparelhos de rádio R‑800L2E constavam da lista dos produtos militares sujeitos ao regime de controlo das exportações, importações e outras transações e que a operação de corretagem relativa a este produto estava abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão 2014/512/PESC, a Neves prosseguiu as suas atividades de venda deste produto, depositando os montantes recebidos numa conta bancária romena.

16.      A Neves impugnou o auto de contraordenação no Judecătoria Sectorului 1 București (Tribunal de Primeira Instância do Setor 1, Bucareste, Roménia). Por Sentença de 2 de novembro de 2020, este tribunal julgou improcedente o pedido da Neves por falta de fundamento.

17.      A Neves interpôs recurso dessa sentença para o Tribunalul București (Tribunal Regional de Bucareste, Roménia), o órgão jurisdicional de reenvio no presente processo.

18.      O órgão jurisdicional de reenvio explica que foram aplicadas à Neves, com base nas medidas nacionais de execução das medidas restritivas da União, uma sanção administrativa, que consistia numa coima, assim como uma sanção complementar de perda dos montantes que havia recebido da SFTE a título da operação de corretagem. O órgão jurisdicional de reenvio salienta ainda que o direito nacional prevê uma obrigação distinta de notificar as autoridades competentes de eventuais operações abrangidas pela proibição dos serviços de corretagem prevista no artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC, sob pena de perda automática dos montantes resultantes da violação desta obrigação.

19.      O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, atendendo às alegações das Neves sobre a falta de proporcionalidade da sanção de perda total à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH») relativa ao direito de propriedade garantido pelo artigo 1.° do Protocolo n.° 1 à CEDH (6), se as medidas nacionais de execução são contrárias a certos princípios gerais do direito da União e aos direitos consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

20.      O órgão jurisdicional de reenvio pergunta ainda se a proibição dos serviços de corretagem estabelecida no artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC se aplica aos factos no processo principal, relacionados com produtos provenientes da Rússia e que não foram materialmente importados para o território de um Estado‑Membro.

21.      O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre as disposições da Decisão 2014/512/PESC, cuja interpretação é pedida, e que as circunstâncias do presente processo são diferentes das que deram origem ao Acórdão Rosneft (7).

22.      Nestas circunstâncias, o Tribunalul București (Tribunal Regional de Bucareste) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.      Pode a Decisão 2014/512/PESC, em especial os artigos 5.° e 7.°, à luz dos princípios da segurança jurídica e nulla poena sine lege, ser interpretada no sentido de que permite (a título de sanção civil) uma medida nacional que autoriza a perda total dos montantes resultantes de uma operação, como a referida no artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC, quando se verifique a prática de um facto qualificado de contraordenação pela lei nacional?

2.      Deve o artigo 5.° da Decisão 2014/512/PESC ser interpretado no sentido de que permite que os Estados‑Membros adotem medidas nacionais que prevejam a perda automática de todos os montantes que resultem da violação da obrigação de notificar uma operação abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC?

3.      A proibição prevista no artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC é aplicável quando os bens que constituem equipamento militar, que foram objeto das operações de corretagem, não tenham sido materialmente importados para o território do Estado‑Membro?»

23.      A Comissão Europeia apresentou observações escritas ao Tribunal de Justiça. Além disso, no contexto das medidas de organização do processo previstas no artigo 62.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, o Governo Romeno e a Comissão foram convidados a responder por escrito a questões adicionais, entre as quais uma questão relativa à competência do Tribunal de Justiça no presente processo.

24.      Foi realizada uma audiência em 27 de junho de 2023, na qual apresentaram alegações orais a Neves, os Governos Neerlandês e Austríaco, o Conselho e a Comissão.

III. Análise

A.      Medidas restritivas da União em geral e medidas relevantes para o presente processo em particular

1.      Adoção e execução de medidas restritivas

25.      No domínio da PESC, o Conselho pode decidir impor medidas restritivas contra países terceiros, entidades ou pessoas, de acordo com os objetivos da PESC estabelecidos no artigo 21.° TUE.

26.      De um modo geral, as medidas restritivas têm como objetivo provocar uma mudança na política ou nas atividades do país, parte do país, governo, entidades ou pessoas que delas são alvo (8). De acordo com o mapa de sanções da União (9), estão atualmente em vigor mais de 40 medidas restritivas da União (que visam sobretudo países).

27.      As medidas restritivas são adotadas pelo Conselho com base no artigo 29.° TUE e são executadas ao nível da União ou nacional.

28.      As medidas relativas a matérias que são abrangidas pela competência dos Estados‑Membros, ou por competências partilhadas que ainda não foram exercidas ao nível da União, são executadas apenas ao nível nacional. Os Estados‑Membros são obrigados a adotar medidas adequadas, uma vez que estão juridicamente vinculados a agir em conformidade com as decisões do Conselho no domínio da PESC (10). Até à data, os Estados‑Membros têm executado diretamente medidas como embargos de armas e proibições de viagem (11).

29.      As medidas restritivas abrangidas pela competência da União são, em princípio, executadas ao nível da União. Como tal, as medidas que determinam a interrupção ou a redução, total ou parcial, das relações económicas com um país terceiro, incluindo as medidas de congelamento de fundos e de recursos económicos, são adotadas pelo Conselho, sob proposta conjunta do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e da Comissão, sob a forma de regulamentos adotados ao abrigo do artigo 215.° TFUE [a seguir «regulamento(s) ao abrigo do artigo 215.° TFUE»] (12). Estes regulamentos são vinculativos e aplicam‑se diretamente em toda a União, garantindo assim a aplicação uniforme das medidas restritivas em todos os Estados‑Membros (13). Além disso, ao contrário das decisões da PESC, os regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE podem estabelecer diretamente obrigações para os particulares nos Estados‑Membros. Contudo, ainda que a execução prática de medidas restritivas da União seja concretizada através da adoção de regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE, a mesma pode exigir medidas adicionais ao nível nacional.

30.      As decisões da PESC com base no artigo 29.° TUE e os regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE não têm necessariamente o mesmo conteúdo. As decisões da PESC podem incluir medidas abrangidas, ou não, pelas competências previstas no Tratado FUE, o que significa que, nesses casos, os regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE não retomam o conteúdo integral das decisões (14). Se as decisões da PESC forem executadas por regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE, podem ser densificadas nesses regulamentos.

2.      Medidas restritivas contra a Rússia relevantes para o presente processo

31.      Como resposta à invasão da região da Crimeia na Ucrânia pela Rússia, em março de 2014, a União Europeia adotou a Decisão 2014/145/PESC (15). Esta decisão previa restrições em matéria de proibições de viagem e o congelamento dos fundos e dos recursos económicos de certas pessoas. Foi executada pelo Regulamento n.° 269/2014 (16).

32.      Posteriormente, uma vez que a Rússia não respeitou as exigências da União Europeia, o Conselho introduziu um pacote de medidas restritivas da União adicionais através da Decisão 2014/512/PESC. Foram introduzidas restrições relativas a serviços financeiros, a bens de dupla utilização, a tecnologias sensíveis e a bens militares (17). Estas medidas foram objeto de várias alterações, tendo em conta a agressão militar contínua da Rússia contra a Ucrânia (18). No entanto, o presente processo diz respeito apenas às medidas introduzidas pela Decisão 2014/512/PESC.

33.      O artigo 2.° dessa decisão estabelece várias proibições relativas a armas e a produtos militares conexos (19). O seu n.° 2, alínea a), que fixa uma proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares, prevê as seguintes proibições:

«[p]restar assistência técnica, serviços de corretagem ou outros serviços relacionados com os bens e tecnologias referidos no n.o 1 e com o fornecimento, fabrico, manutenção ou utilização desses bens e tecnologias, direta ou indiretamente, a qualquer pessoa, entidade ou organismo da Rússia ou para utilização nesse país» (20).

34.      No mesmo dia em que adotou a Decisão 2014/512/PESC, o Conselho adotou, ao abrigo do artigo 215.° TFUE, o Regulamento n.° 833/2014 (21) para dar execução a esta decisão. Inicialmente, este regulamento não continha uma proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares (22). O seu artigo 4.°, n.° 1, alínea a), previa as seguintes proibições:

«Prestar, direta ou indiretamente, assistência técnica relativamente aos bens e tecnologias enumerados na Lista Militar Comum, ou ao fornecimento, fabrico, manutenção e utilização dos bens enumerados nessa lista, a qualquer pessoa singular ou coletiva, entidade ou organismo da Rússia ou que se destinem a ser utilizados na Rússia».

35.      Só recentemente, em 23 de junho de 2023, o Conselho alterou o artigo 4.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 833/2014 (23), e incluiu a expressão «e serviços de corretagem» a seguir à expressão «assistência técnica» (24). No entanto, esta alteração não é aplicável ratione temporis aos factos no processo principal.

36.      Por conseguinte, à data dos factos, a proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares prevista no artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC não tinha sido executada pelo Regulamento n.° 833/2014.

37.      O Conselho apresenta a seguinte explicação para justificar o facto de esta proibição não ter sido executada por um regulamento ao abrigo do artigo 215.° TFUE. As exportações de armas são uma matéria da Posição Comum 2008/944/PESC (25), que regula todas essas exportações, e não apenas as exportações para países em relação aos quais a União impôs um embargo de armas. Prevê que os Estados‑Membros devem emitir uma autorização para todas as exportações de equipamento militar. Por conseguinte, ninguém pode exportar armas da União Europeia sem uma licença do organismo estabelecido para o efeito em cada Estado‑Membro. Esta posição comum obriga igualmente os Estados‑Membros a recusarem emitir uma licença de exportação de armas, nomeadamente se a exportação for incompatível com um embargo de armas que é vinculativo para os Estados‑Membros (26). Foi adotada uma Lista Militar Comum da UE (27) com o intuito de facilitar a aplicação desta posição comum. Todos os produtos incluídos nesta lista estão sujeitos a controlos sobre as exportações por força da Posição Comum 2008/944/PESC (28).

38.      Este regime geral que regula a exportação de armas é, como explica o Conselho, a razão pela qual as proibições de exportação direta de armas para países sujeitos a sanções (embargos de armas) não estão previstas em regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE. A adoção destes regulamentos é necessária sempre que a execução de medidas restritivas exija a imposição de obrigações aos particulares nos Estados‑Membros, as quais não podem ser impostas diretamente por decisões da PESC. No entanto, uma vez que todos os Estados‑Membros tiveram de criar regimes de autorização e obrigar todos os exportadores de armas no seu território a obter essa licença, não é necessário adotar um regulamento ao abrigo do artigo 215.° TFUE.

39.      O Conselho considera, no entanto, que a Posição Comum 2008/944/PESC não exige expressamente que os Estados‑Membros imponham uma obrigação de obter licenças de serviços de corretagem relacionados com produtos militares, embora o seu artigo 1.°, n.° 2, preveja que os pedidos de licenças de exportações abrangem igualmente pedidos de licenças de corretagem (29). Em consequência, existem práticas divergentes, dado que por vezes é considerado necessário, e outras não, executar a proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares através de regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE (30).

40.      Embora a explicação do Conselho não me pareça convincente, isso não altera o facto de a proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares não constar da versão do Regulamento n.° 833/2014 aplicável ao presente processo.

B.      Reformulação das questões e competência do Tribunal de Justiça

41.      O Tribunalul București (Tribunal Regional de Bucareste) formulou as suas questões prejudiciais com vista à interpretação de certas disposições da Decisão 2014/512/PESC. No entanto, como resulta claramente da fundamentação do pedido de decisão prejudicial, este órgão jurisdicional solicita, em substância, ao Tribunal de Justiça que lhe forneça orientações sobre a compatibilidade das medidas nacionais de execução com os direitos fundamentais e os princípios da União.

42.      O direito romeno optou por sancionar as pessoas que prestam serviços de corretagem em violação das medidas restritivas da União com uma coima e a perda total dos montantes resultantes da operação proibida como sanção de direito civil. Estas sanções constituem a opção do legislador nacional ao executar as medidas restritivas da União, incluindo as medidas impostas à Rússia. Estas medidas não são impostas pela Decisão 2014/512/PESC, o que não é contestado por nenhuma parte neste processo.

43.      Consequentemente, as duas primeiras questões, embora formuladas com vista à interpretação de certas disposições da Decisão 2014/512/PESC, não exigem, na verdade, a interpretação desta decisão. Pelo contrário, implicam que o Tribunal de Justiça interprete certos princípios do direito da União a que se refere o órgão jurisdicional de reenvio, a saber, o da segurança jurídica, nulla poena sine lege e o direito de propriedade.

44.      Por conseguinte, proponho a reformulação das duas primeiras questões prejudiciais.

45.      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os princípios da segurança jurídica e nulla poena sine lege e o direito fundamental de propriedade devem ser interpretados no sentido de que se opõem a medidas nacionais que preveem a perda total dos montantes resultantes da operação proibida pelo artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC.

46.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o referido direito e princípios da União devem ser interpretados no sentido de que se opõem a medidas nacionais que preveem que essa perda é automática e que resulta de uma violação da obrigação de notificar uma operação abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC.

47.      A terceira questão implica a interpretação da Decisão 2014/512/PESC, uma vez que diz respeito ao conceito de serviços de corretagem proibidos pela mesma.

48.      Não vejo nenhum obstáculo que impeça o Tribunal de Justiça de responder às duas primeiras questões conforme foram reformuladas. O Tribunal de Justiça é competente para interpretar princípios gerais do direito da União e os direitos fundamentais consagrados na Carta. O mesmo se aplica quando a interpretação do Tribunal de Justiça é pertinente para a apreciação, por um órgão jurisdicional nacional, da legalidade de medidas nacionais de execução da PESC.

49.      Como sugeri nas minhas Conclusões nos processos KS e KD (31), o Tribunal de Justiça é competente para interpretar princípios gerais do direito da União e os direitos fundamentais consagrados na Carta quando essa interpretação for pertinente para apreciar a legalidade das decisões da PESC. Trata‑se, por conseguinte, de uma situação diferente da do presente processo. No entanto, se a própria Decisão 2014/512/PESC tivesse determinado a perda como medida a ser executada pelos Estados‑Membros, os pedidos de decisão prejudicial elaborados pelos órgãos jurisdicionais nacionais incidiriam sobre a validade da medida da PESC. O artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE não excluem a competência do Tribunal de Justiça para apreciar este tipo de pedidos de decisão prejudicial.

50.      A razão pela qual proponho esta interpretação do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE é que estes artigos constituem uma exceção à competência geral do Tribunal de Justiça ao abrigo dos Tratados e devem ser objeto de uma interpretação estrita (32). De acordo com esta interpretação, as referidas disposições dos Tratados não excluem a competência do Tribunal de Justiça para fiscalizar a conformidade de todas as medidas da PESC, incluindo das medidas de alcance geral, com os direitos fundamentais tutelados pela ordem jurídica da União. Interpretar o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE, no sentido de que excluem a competência do Tribunal de Justiça nesses casos seria incompatível com os fundamentos constitucionais da União. Isto impediria o Tribunal de Justiça de exercer o seu papel constitucional de garantir que as instituições e os órgãos da União não violam os direitos fundamentais salvaguardados pela ordem jurídica da União. Consequentemente, os particulares ficariam privados de uma proteção jurisdicional efetiva dos seus direitos fundamentais consagrados no direito da União. Não pode ter sido esta a intenção dos autores dos Tratados quando limitaram a competência do Tribunal de Justiça no domínio da PESC.

51.      Em contrapartida, poderá ter sido intenção dos autores dos Tratados excluir a competência do Tribunal de Justiça para interpretar medidas da PESC apenas com o intuito de clarificar o respetivo alcance para efeitos da sua execução nos Estados‑Membros. Por conseguinte, o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que excluem essa competência. Explicarei esta posição de forma mais detalhada na minha resposta à terceira questão.

C.      Quanto à primeira e segunda questões

52.      As duas primeiras questões referem‑se à eventual ilegalidade das medidas de perda impostas pelo direito romeno. O órgão jurisdicional de reenvio apresentou três fundamentos possíveis para sustentar essa ilegalidade: a violação do princípio da segurança jurídica, do princípio nulla poena sine lege e do direito de propriedade.

53.      No meu entender, e como referiu a Comissão, estes dois primeiros princípios não são relevantes no presente caso.

54.      O princípio da segurança jurídica, conforme invocado pela Neves, opõe‑se a que uma norma jurídica nova seja aplicada retroativamente a uma situação ocorrida antes da sua entrada em vigor (33). No caso em apreço, a Neves alega que o Decreto n.° 901/2019, através do qual a Roménia institui a lista de produtos militares, transpondo assim a lista da União, ainda não estava em vigor quando efetuou a operação relativa aos aparelhos de rádio em causa. No entanto, o Decreto n.° 901/2019 contém uma lista de produtos militares idêntica à que constava do Decreto n.° 156/2018, que estava em vigor à data dos factos. Por conseguinte, não se coloca nenhum problema de aplicação retroativa da lei no caso em apreço.

55.      O princípio nulla poena sine lege diz respeito à legalidade e à previsibilidade dos crimes e das penas (34). Uma vez que a perda imposta pelas medidas nacionais não constitui uma sanção penal, mas antes uma sanção de direito civil, não concebo como é que este princípio poderá estar em causa neste caso.

56.      No entanto, a perda constitui efetivamente uma ingerência no direito de propriedade, conforme garantido pelo artigo 17.°, n.° 1, da Carta. Este direito não é absoluto e pode, como resulta do artigo 52.°, n.° 1, da Carta, ser restringido de forma proporcionada para responder a objetivos públicos legítimos.

57.      É necessário interpretar a Carta para ajudar o órgão jurisdicional de reenvio a esclarecer se o direito de propriedade pode ser restringido para alcançar os objetivos públicos da Decisão 2014/512/PESC.

58.      O Tribunal de Justiça já analisou uma questão semelhante no Acórdão Rosneft (35). Nesse processo, o Tribunal de Justiça rejeitou uma impugnação da validade de certas disposições da Decisão 2014/512/PESC que impõe medidas restritivas individuais e das disposições correspondentes do Regulamento n.° 833/2014, que tinha sido suscitada pelo facto dessas disposições implicarem uma perda dos bens e uma ingerência nos direitos de propriedade. O Tribunal de Justiça recordou o seu acórdão proferido no processo Bosphorus (36), no qual considerou que as medidas restritivas comportam, por definição, efeitos que afetam os direitos de propriedade e o livre exercício das atividades profissionais, que naquele caso permitiam justificá‑las mesmo causando prejuízos às partes que não têm nenhuma responsabilidade na situação que levou à adoção das sanções. O Tribunal de Justiça concluiu no Acórdão Rosneft que tais restrições podem ser justificadas a fortiori no que respeita às consequências das medidas restritivas contra as entidades visadas por essas medidas (37).

59.      No Acórdão Rosneft, o Tribunal de Justiça salientou ainda que os objetivos prosseguidos pelas medidas restritivas contra a Rússia constituem a proteção da integridade territorial, da soberania e da independência da Ucrânia, bem como a promoção de uma resolução pacífica da crise neste país. A sua realização inscreve‑se no objetivo mais amplo de manutenção da paz e da segurança internacional, em linha com o artigo 21.° TUE (38). Considerou‑se que estes objetivos justificavam uma ingerência no direito de propriedade da recorrente.

60.      Por conseguinte, é possível concluir que os objetivos das medidas restritivas contra a Rússia podem justificar a restrição do direito de propriedade. Em seguida, há que responder à questão de saber se a perda constitui uma medida proporcionada para alcançar esses objetivos legítimos, e se a perda automática para a falta de notificação de uma operação proibida por essas medidas restritivas não constitui uma medida demasiado intrusiva.

61.      As medidas nacionais de execução das medidas restritivas da União devem ser suscetíveis de permitir cumprir os objetivos das medidas restritivas. Neste sentido, devem ter um efeito dissuasivo. Os Estados‑Membros dispõem de uma margem de apreciação quando escolhem as medidas adequadas neste contexto. Isto é necessário porque a situação pode variar consoante os Estados‑Membros. As medidas que são suficientes para dissuadir as empresas e os particulares de realizarem operações proibidas podem exigir uma resposta específica para cada país. A meu ver, como sugeriu a Comissão, a perda pode, efetivamente, ser necessária em complemento de uma coima, uma vez que a aplicação da coima, por si só, pode não produzir o efeito desejado, dado que o seu montante é irrisório em comparação com os montantes recebidos como pagamento da operação proibida.

62.      Embora possam tomar em consideração as especificidades nacionais, os tribunais nacionais também devem ter em conta as exigências do direito da União relativas à apreciação da proporcionalidade. De acordo com o artigo 52.°, n.° 3, da Carta, para efeitos da interpretação do artigo 17.° da Carta, há que ter em conta a jurisprudência do TEDH relativa ao artigo 1.° do Protocolo n.° 1 à CEDH, que consagra a proteção do direito de propriedade, enquanto limiar de proteção mínima (39).

63.      Nos processos em que o TEDH declarou que as medidas de perda eram desproporcionadas foi porque estas impunham um encargo excessivo aos particulares, uma vez que não eram tidos em conta fatores como a origem lícita dos montantes confiscados e a inexistência de uma intenção de ludibriar as autoridades. Outro fator, que foi considerado em alguns casos, foi o de saber se a medida de perda constituía uma sanção complementar (40).

64.      No caso em apreço, a perda é imposta como uma medida automática que decorre da falta de notificação da operação proibida. Concordo que, em princípio, uma perda automática que não permita aos tribunais apreciarem as circunstâncias do processo pode revelar‑se problemática do ponto de vista da sua proporcionalidade. No entanto, parece que o direito romeno associa o caráter automático da perda ao facto de a operação proibida e, por isso, ilícita não ter sido notificada. Deste modo, se um juiz concluir que a operação é lícita, não se verifica uma perda automática.

65.      Por este motivo, que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, considero que a perda automática constitui uma restrição do direito de propriedade que é proporcionada ao objetivo de dissuadir as pessoas de violarem medidas restritivas contra a Rússia, que foram, elas próprias, adotadas para alcançar objetivos públicos legítimos (41).

66.      Por conseguinte, considero que se deve responder à primeira e segunda questões no sentido de que as medidas nacionais que preveem a perda total dos montantes resultantes de uma operação realizada em violação da Decisão 2014/512/PESC constituem uma restrição proporcionada do direito de propriedade. Isto é válido mesmo que a perda seja uma consequência automática da falta de notificação da operação às autoridades nacionais competentes.

D.      Quanto à terceira questão prejudicial

67.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a proibição prevista no artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC é aplicável quando os produtos militares, que foram objeto de operações de corretagem, não tenham sido materialmente importados para o território de um Estado‑Membro.

68.      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que interprete uma disposição geral de uma decisão da PESC que impõe medidas restritivas contra um país terceiro.

69.      O Tribunal de Justiça ainda não teve oportunidade de clarificar se o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE excluem essa competência.

70.      No meu entender, o artigo 24.°, n.° 1, TUE e o artigo 275.° TFUE excluem efetivamente a competência do Tribunal de Justiça para interpretar disposições de medidas da PESC no sentido de clarificar o seu alcance.

71.      Esta interpretação está em linha com a finalidade de limitação da competência prevista nestas duas disposições dos Tratados. Através destas disposições, os autores dos Tratados procuraram essencialmente impedir o Tribunal de Justiça de definir as políticas no domínio da PESC. Na medida em que o Tribunal de Justiça pode escolher entre as várias interpretações possíveis de uma disposição, influencia inevitavelmente a escolha política feita pelo(s) autore(s) da mesma. Isto é válido ainda que a interpretação judicial seja limitada, designadamente, pela necessidade de interpretar as disposições em conformidade com a intenção do(s) seu(s) autor(es). Esta intenção nem sempre é evidente, o que significa que ela própria é objeto de interpretação judicial (42).

72.      Será que esta afirmação contraria o meu entendimento de que o Tribunal de Justiça pode apreciar a conformidade de todas as medidas da PESC com os direitos fundamentais, incluindo das medidas de aplicação geral (ver n.os 49 e 50 das presentes conclusões)? Afinal, o exercício intelectual necessário no âmbito de uma fiscalização judicial exige a compreensão da disposição que está a ser interpretada e do regime no contexto do qual é interpretada. Por conseguinte, ao apreciar a conformidade de uma medida da PESC com a Carta, o Tribunal de Justiça deve não só interpretar a Carta mas também a disposição da PESC cuja legalidade está a ser examinada. No entanto, esta contradição não se verifica caso se admita que, ao fiscalizar a legalidade de um ato, o Tribunal de Justiça está vinculado pela interpretação que é dada pelo autor desse ato e que este invoca, quer como parte numa ação ou num recurso no Tribunal de Justiça, quer como parte num reenvio prejudicial. Aquilo que o Tribunal de Justiça pode apreciar, não obstante a limitação de competência ao abrigo do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE, é se a disposição da PESC, conforme interpretada pelo seu autor, é admissível à luz dos direitos fundamentais e dos princípios da União.

73.      Em contrapartida, quando, como no presente caso, o Tribunal de Justiça é chamado, no âmbito de um reenvio prejudicial, a interpretar uma disposição da PESC que não é clara para o órgão jurisdicional de reenvio, é confrontado com uma disposição que pode inevitavelmente ter interpretações diferentes. Nesse contexto, a interpretação defendida pelo(s) autor(es) da disposição é apenas uma das interpretações possíveis, podendo as outras partes ter entendimentos diferentes. Os reenvios prejudiciais exigem, como tal, que o Tribunal de Justiça decida qual é a interpretação «correta».

74.      É legítimo questionar por que razão deve o Tribunal de Justiça, quando aprecia a legalidade de uma disposição, seguir a interpretação proposta pelo autor da mesma, ao passo que, quando interpreta essa disposição no âmbito de um reenvio prejudicial, pode dar‑lhe uma interpretação diferente da proposta pelo seu autor.

75.      A resposta está nos objetivos diferentes dos dois tipos de competências exercidas pelo Tribunal de Justiça. A apreciação da legalidade de uma medida da PESC (por exemplo, no âmbito de recursos de anulação, de reenvios prejudiciais de validade ou de ações de indemnização) tem como objetivo determinar se a interpretação de uma disposição, conforme defendida pelo Conselho, é contrária à ordem jurídica da União. Por outras palavras, o Tribunal de Justiça não pode adivinhar o que Conselho procurou exprimir, mas pode averiguar se aquilo que o Conselho procurou exprimir é conforme com os direitos fundamentais e os princípios da União.

76.      Em contrapartida, no âmbito de um reenvio prejudicial de interpretação, o que está em causa é a interpretação da disposição conforme é entendida por vários intervenientes, como o(s) seu(s) autor(es), as partes no processo principal e o próprio órgão jurisdicional de reenvio. Quando a disposição deixa o processo decisório, adquire, por assim dizer, «vida própria». Se, ao ser aplicada, a disposição se prestar a várias interpretações(o que só é possível se essas interpretações não forem contrárias aos direitos fundamentais e aos princípios da União), não há motivo para que uma interpretação prevaleça sobre outra. Por razões de uniformidade, a ordem constitucional da União conferiu ao Tribunal de Justiça competência para escolher uma das interpretações possíveis. Esta competência foi excluída no domínio da PESC.

77.      Esta limitação de competência tem como corolário uma perda de uniformidade no domínio da PESC. Tendo em conta que o conceito de serviços de corretagem pode ter várias interpretações, pode adquirir um certo significado nos tribunais de um Estado‑Membro e um significado diferente nos tribunais de outro Estado‑Membro. No entanto, há que partir do princípio de que os autores dos Tratados aceitaram a possibilidade de se verificarem tais divergências ao limitarem a competência do Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 24.°, n.° 1, TUE e do artigo 275.° TFUE. É possível que os autores dos Tratados tenham preferido que essas divergências fossem resolvidas através de mecanismos políticos, e não judiciais. Para conferir ao Tribunal de Justiça o papel de garantir a uniformidade, como lhe compete no âmbito do TFUE, a limitação de competência baseada nestas duas disposições deverá ser suprimida através de uma alteração dos Tratados.

78.      Se, em contrapartida, as decisões da PESC não forem executadas pelos Estados‑Membros, como no caso em apreço, mas pela União Europeia através de regulamentos ao abrigo do 215.° TFUE, o Tribunal de Justiça goza de competência plena para interpretar esses regulamentos e pode exercê‑la no âmbito de um reenvio prejudicial (43). Os regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE são atos baseados no TFUE, através dos quais a União escolhe o alcance a atribuir a uma disposição de uma decisão da PESC. Uma vez que o alcance escolhido pela União pode não ser claro, o Tribunal de Justiça está incumbido, por força dos Tratados, de o clarificar, para assegurar a aplicação uniforme desse regulamento.

79.      Mais especificamente, isto significa que se o Regulamento n.° 833/2014 tivesse retomado o conteúdo integral do artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Decisão 2014/512/PESC ao incluir a proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares, caberia ao Tribunal de Justiça interpretar o conceito de serviços de corretagem no sentido de determinar se este abrange as operações relativas aos produtos que nunca foram materialmente importados para o território de um Estado‑Membro. Contudo, a interpretação do Tribunal de Justiça incidiria apenas sobre esse regulamento, e não sobre a decisão da PESC.

80.      Neste sentido, o argumento da Comissão de que o Tribunal de Justiça é competente para interpretar a Decisão 2014/512/PESC dado que a proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares deveria ter sido executada através do Regulamento n.° 833/2014, não pode ser acolhido. Mesmo admitindo que o Conselho não incluiu, erradamente, os serviços de corretagem num regulamento ao abrigo do artigo 215.° TFUE, a interpretação do conceito de serviços de corretagem contida nesse regulamento não afetaria o sentido deste conceito no contexto da decisão da PESC. Como tal, não é necessário examinar se a obrigação de executar a proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares decorre dos Tratados.

81.      Tendo em conta o que precede, considero que o Tribunal de Justiça não é competente para responder à terceira questão.

IV.    Conclusão

82.      Proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Tribunalul București (Tribunal Regional de Bucareste, Roménia) do seguinte modo:

O princípio da segurança jurídica, o princípio nulla poena sine lege e o direito fundamental de propriedade não se opõem a medidas nacionais que preveem a perda total dos montantes resultantes de uma operação realizada em violação da Decisão 2014/512/PESC. Isto é válido mesmo que a perda seja uma consequência automática da falta de notificação da operação às autoridades nacionais competentes.

O Tribunal de Justiça não é competente para se pronunciar sobre a terceira questão.


1      Língua original: inglês.


2      Decisão 2014/512/PESC do Conselho, de 31 de julho de 2014, que impõe medidas restritivas tendo em conta as ações da Rússia que desestabilizam a situação na Ucrânia (JO 2014, L 229, p. 13).


3      V. Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH) de 18 de dezembro de 2014 (EU:C:2014:2454, n.os 153 a 258), no qual o Tribunal de Justiça explicou as razões pelas quais o Projeto de Acordo relativo à Adesão da União Europeia à CEDH, conforme proposto, não era compatível com os Tratados.


4      Conforme resulta do despacho de reenvio, o Decreto n.° 901/2019, que vigorou entre 5 de julho de 2019 e 6 de outubro de 2021, substituiu o anterior Decreto n.° 156/2018 do Ministro dos Negócios Estrangeiros e ratificou a lista de produtos militares sujeitos ao regime de controlo das exportações, importações e outras transações, que vigorou entre 5 de março de 2018 e 4 de julho de 2019. Os anexos a estes decretos previam, especificamente, a categoria ML11, intitulada «Material eletrónico, “veículos espaciais” e componentes não especificados na presente lista».


5      Conforme resulta do despacho de reenvio, o Departamento Nacional para a Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais da Roménia apresentou uma denúncia contra a Neves relativa a um pretenso crime de branqueamento de capitais, que foi, contudo, arquivada em 11 de maio de 2020 porque se considerou que não tinha sido cometido nenhum crime.


6      O órgão jurisdicional de reenvio remete para os Acórdãos do TEDH de 6 de abril de 2009, Ismayilov c. Rússia  (CE:ECHR:2008:1106JUD003035203), e de 9 de outubro de 2009, Moon c. França (CE:ECHR:2009:0709JUD003997303).


7      Acórdão de 28 de março de 2017 (C‑72/15, EU:C:2017:236; a seguir «Acórdão Rosneft»).


8      V., por exemplo, Guidelines on implementation and evaluation of restrictive measures (sanctions) in the framework of the EU common foreign and security policy [Diretrizes para a aplicação e avaliação de medidas restritivas (sanções) no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum da UE], Secretariado‑Geral do Conselho, Bruxelas, Doc. 5664/18, 4 de maio de 2018 (a seguir «Diretrizes para as sanções»), n.° 4.


9      Disponível em: https://www.sanctionsmap.eu/#/main.


10      V. artigo 29.° TUE, segundo período.


11      V., por exemplo, o n.° 7 das Diretrizes para as sanções, citadas na nota de pé de página 8 das presentes conclusões. V. ainda, por exemplo, Portela, C., European Union sanctions and foreign policy: When and why do they work?, Routledge, Londres/Nova Iorque, 2010, especialmente pp. 19 a 28; Eckes, C., «EU restrictive measures against natural and legal persons: From counterrorist to third country sanctions», Common Market Law Review, vol. 51(3), 2014, p. 869.


12      O artigo 215.°, n.° 1, TFUE corresponde essencialmente ao anterior artigo 60.° CE, relativo às medidas restritivas em matéria de movimentos de capitais e de pagamentos, e ao anterior artigo 301.° CE, relativo à interrupção ou redução, parcial ou total, de relações económicas com um ou vários países terceiros. Além disso, nos termos do artigo 215.°, n.° 2, TFUE, o Conselho pode adotar medidas restritivas contra pessoas singulares ou coletivas, grupos ou entidades não estatais, adoção que exigia o artigo 308.° CE (atual artigo 352.° TFUE) antes do Tratado de Lisboa. V., a este respeito, Acórdão de 19 de julho de 2012, Parlamento/Conselho (C‑130/10, EU:C:2012:472, n.os 51 a 53).


13      V. Acórdão Rosneft, n.° 89, e Acórdão de 6 de outubro de 2020, Bank Refah Kargaran/Conselho  (C‑134/19 P, EU:C:2020:793, n.° 38).


14      Por exemplo, as restrições à admissão no território dos Estados‑Membros constam, em princípio, de decisões da PESC, mas não de regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE. V., a este respeito, Acórdão de 6 de outubro de 2020, Bank Refah Kargaran v Council  (C‑134/19 P, EU:C:2020:793, n.° 41).


15      Decisão 2014/512/PESC do Conselho, de 31 de julho de 2014, que impõe medidas restritivas tendo em conta as ações da Rússia que desestabilizam a situação na Ucrânia (JO 2014, L 78, p. 16), com a última alteração introduzida pela Decisão (PESC) do Conselho 2023/1767, de 13 de setembro de 2023 (JO 2023, L 226, p. 104).


16      Regulamento (UE) n.° 269/2014 do Conselho, de 17 de março de 2014, que impõe medidas restritivas no que diz respeito a ações que comprometam ou ameacem a integridade territorial, a soberania e a independência da Ucrânia (JO 2014, L 78, p. 6), com a última alteração introduzida pelo Regulamento (UE) 2023/1215 do Conselho, de 23 de junho de 2023 (JO 2023, L 159 I, p. 330).


17      V. Decisão 2014/512/PESC, considerandos 7 a 12.


18      Esta decisão foi alterada, pela última vez, pela Decisão (PESC) do Conselho 2023/1517, de 20 de julho de 2023 (JO 2023, L 184, p. 40).


19      V., igualmente, a este respeito, o considerando 10 da Decisão 2014/512/PESC, que prevê que: «[…] os Estados‑Membros deverão proibir a venda, fornecimento, transferência ou exportação para a Rússia de armamento e material conexo de qualquer tipo. Deverá também ser proibida a aquisição junto da Rússia de armamento e material conexo de qualquer tipo».


20      O sublinhado é meu.


21      Regulamento (UE) n.° 833/2014 do Conselho, de 31 de julho de 2014, que impõe medidas restritivas tendo em conta as ações da Rússia que desestabilizam a situação na Ucrânia (JO 2014, L 229, p. 1). Este regulamento foi objeto de várias alterações, a última das quais pelo Regulamento (UE) do Conselho 2023/1214, de 23 de junho de 2023 (JO 2023, L 159 I, p. 1).


22      Inicialmente, a proibição dos serviços de corretagem relacionados com bens e tecnologias de dupla utilização [artigo 4.°, n.° 1, alínea c), atual artigo 2.°, n.° 2, alínea a), do Regulamento 833/2014]. Com as subsequentes alterações a este regulamento, a proibição dos serviços de corretagem foi alargada, nomeadamente, aos bens e tecnologias que possam contribuir para o reforço das capacidades militares, tecnológicas ou industriais da Rússia (artigos 2.°‑A a 3.°‑K), às armas de fogo (artigo 2.°‑AA), aos bens dos setores do petróleo e do gás (artigos 3.°, 3.°‑B, 3.°‑M e 3.°‑N), aos bens dos setores da aviação e espacial (artigo 3.°‑C), aos bens do setor marítimo (artigo 3.°‑F), ao ferro e ao aço (artigo 3.°‑G), aos artigos de luxo (artigo 3.°‑H) e ao ouro (artigo 3.°).


23      V. artigo 1.°, n.° 19, do Regulamento 2023/1214, referido na nota de pé de página 21 das presentes conclusões.


24      Este artigo tem atualmente a seguinte redação: «[p]restar, direta ou indiretamente, assistência técnica e serviços de corretagem relativamente aos bens e tecnologias enumerados na Lista Militar Comum, ou ao fornecimento, fabrico, manutenção e utilização dos bens enumerados nessa lista, a qualquer pessoa singular ou coletiva, entidade ou organismo da Rússia ou que se destinem a ser utilizados na Rússia» (o sublinhado é meu).


25      Posição Comum 2008/944/PESC do Conselho, de 8 de dezembro de 2008, que define regras comuns aplicáveis ao controlo das exportações de tecnologia e equipamento militares (JO 2008, L 335, p. 99). Em geral, nos termos do artigo 1.° desta posição comum, os Estados‑Membros devem efetuar uma análise casuística dos pedidos de licença de exportação (que abrangem, designadamente, os pedidos de licença de corretagem) em relação aos produtos que figuram na Lista Militar Comum da UE, com base nos vários (oito) critérios elencados no artigo 2.° desta posição.


26      V. artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Posição Comum 2008/944/PESC.


27      V. artigo 12.° da Posição Comum 2008/944/PESC. A Lista Militar Comum da UE foi adotada inicialmente em 2000 (JO 2000, C 191, p. 1), e foi posteriormente objeto de várias atualizações, a última das quais em 20 de fevereiro de 2023 (JO 2023, C 72, p. 2).


28      Contudo, esta lista militar comum também é usada para outras finalidades, incluindo fora do domínio da PESC. V., por exemplo, Diretiva 2009/43/CE, de 6 de maio de 2009, relativa à simplificação das condições das transferências de produtos relacionados com a defesa na Comunidade (JO 2009, L 146, p. 1), com a última alteração introduzida pela Diretiva Delegada (UE) 2023/277 da Comissão, de 5 de outubro de 2022 (JO 2023, L 42, p. 1).


29      O Conselho explicou ainda que, no seu entender, a situação dos serviços de corretagem não está mais clara na Posição Comum 2003/468/PESC do Conselho, de 23 de junho de 2003, relativa ao controlo da intermediação de armamento (JO 2003, L 156, p. 79).


30      Com efeito, parecem estar atualmente em vigor várias medidas restritivas da União [que visam a República Centro‑Africana, a República Democrática do Congo, o Irão, a Coreia do Norte, o Sudão do Sul, o Sudão, o terrorismo [medidas restritivas contra o EIIL (Daesh) e a Al‑Qaeda] e a Venezuela], que contêm disposições que proíbem os serviços de corretagem relacionados com produtos militares e que figuram tanto em decisões da PESC como em regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE. Em contrapartida, no caso de outras medidas restritivas da União [que visam a Bielorrússia, o Líbano, Mianmar (Birmânia) e o Zimbabué], esta proibição dos serviços de corretagem relacionados com produtos militares está prevista apenas em decisões da PESC, e não em regulamentos ao abrigo do artigo 215.° TFUE.


31      V. n.os 53 a 155 das minhas Conclusões nos processos KS e KD.


32      Este facto foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 24 de junho de 2014, Parlamento/Conselho (C‑658/11, EU:C:2014:2025, n.° 70; a seguir «Acórdão Mauritius»); de 12 de novembro de 2015, Elitaliana/Eulex Kosovo (C‑439/13 P, EU:C:2015:753, n.° 42); e de 19 de julho de 2016, H/Conselho e o. (C‑455/14 P, EU:C:2016:569, n.° 40).


33      V., por exemplo, Acórdão de 25 de janeiro de 2022, VYSOČINA WIND (C‑181/20, EU:C:2022:51, n.° 47).


34      V., por exemplo, Acórdão de 3 de maio de 2007, Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, EU:C:2007:261, n.os 49 e 50).


35      V. Acórdão Rosneft, especialmente os n.os 148 a 151.


36      V. Acórdão de 30 de julho de 1996, Bosphorus (C‑84/95, EU:C:1996:312, n.° 22). Este acórdão foi proferido no contexto da execução de medidas de embargo contra a República Federativa da Jugoslávia (Sérvia e Montenegro).


37      Acórdão Rosneft, n.° 149.


38      Acórdão Rosneft, n.° 150.


39      V., por exemplo, Acórdãos de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432, n.° 72), e de 5 de maio de 2022, BPC Lux 2 e o. (C‑83/20, EU:C:2022:346, n.° 37).


40      V., por exemplo, Acórdão do TEDH de 15 de janeiro de 2021, Karapetyan c. Geórgia  (CE:ECHR:2020:1015JUD006123312, § 37). V. também, a este respeito, por exemplo, Acórdãos do TEDH de 6 de abril de 2009, Ismayilov c. Rússia  (CE:ECHR:2008:1106JUD003035203, § 35), e de 24 de setembro de 2021, Imeri v. Croácia (CE:ECHR:2021:0624JUD007766814, § 86). O TEDH confirmou, em particular, a aplicação de uma coima e de uma medida de perda numa situação em que a empresa requerente exercia as suas atividades sem as autorizações exigidas pelo direito nacional: v. Acórdão do TEDH de 24 de abril de 2017, S. C. Fiercolet.,Impex S.R.L. c. Roménia  (CE:ECHR:2016:1213JUD002642907, especialmente §§ 62 a 73).


41      Além disso, a Comissão referiu que, no presente caso, a perda automática foi aplicada à Neves pelo facto de esta ter não ter cumprido, intencionalmente, após ter sido advertida, a obrigação prevista no direito nacional de não realizar operações sem notificar previamente as autoridades competentes.


42      V. n.° 112 das minhas Conclusões nos processos KS e KD.


43      V., a este respeito, Acórdão Rosneft, n.° 106.