Language of document : ECLI:EU:C:2023:909

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

JEAN RICHARD DE LA TOUR

apresentadas em 23 de novembro de 2023 (1)

Processo C420/22

NW

contra

Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság,

Miniszterelnöki Kabinetirodát vezető miniszter

e

Processo C528/22

PQ

contra

Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság,

Miniszterelnöki Kabinetirodát vezető miniszter

[pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szegedi, Hungria)]

«Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Controlos nas fronteiras, asilo e imigração — Diretiva 2003/109/CE — Estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração — Retirada desse estatuto — Artigo 20.o TFUE — Cidadania da União — Cidadão da União que nunca exerceu a sua liberdade de circulação — Residência de um membro da família — Perda ou recusa de um direito de residência — Ameaça para a segurança nacional — Parecer de uma autoridade especializada — Informações classificadas — Fundamentação — Acesso ao processo»






I.      Introdução

1.        Os presentes pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 20.o TFUE, bem como do artigo 9.o, n.o 3, e do artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109/CE do Conselho, de 25 de novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração (2).

2.        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem, por um lado, NW (processo C‑420/22) e, por outro, PQ (processo C‑528/22), nacionais de países terceiros, à Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság (Direção‑Geral Nacional da Polícia de Estrangeiros, Hungria) (a seguir «Direção‑Geral»).

3.        Estes litígios têm por objeto, no processo C‑420/22, a retirada do cartão de residência permanente de NW e a obrigação de abandonar o território da Hungria e, no processo C‑528/22, o indeferimento do pedido de PQ de obtenção de uma autorização de estabelecimento nacional.

4.        As questões submetidas pelo Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szegedi, Hungria) nestes dois processos convidam o Tribunal de Justiça a precisar os requisitos materiais e processuais que os Estados‑Membros devem respeitar para poderem derrogar o direito de residência derivado que decorre do artigo 20.o TFUE.

5.        Nas presentes conclusões, exporei, no seguimento da recente jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de proteção internacional, no seu Acórdão de 22 de setembro de 2022, Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o (3)., as razões pelas quais considero que o artigo 20.o TFUE, lido à luz dos artigos 41.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (4), deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional caracterizada pelos seguintes elementos, a saber, a intervenção decisiva de uma autoridade especializada em matéria de segurança nacional que é distinta da autoridade competente em matéria de residência, o caráter vinculativo para essa autoridade do parecer emitido pela outra autoridade, a falta de fundamentação tanto desse parecer como da decisão de perda ou de recusa de um direito de residência, a falta de comunicação ao interessado da essência dos motivos que fundamentam essa decisão e a não tomada em consideração de todas as circunstâncias individuais pertinentes.

II.    Direito húngaro

6.        O artigo 94.o da szabad mozgás és tartózkodás jogával rendelkező személyek beutazásáról és tartózkodásáról szóló 2007. évi I. törvény (Lei I de 2007, relativa à Entrada e à Permanência das Pessoas com Direito de Livre Circulação e de Residência) (5), de 5 de janeiro de 2007 (a seguir «Lei I»), tem a seguinte redação:

«1.      As disposições da [harmadik országbeli állampolgárok beutazásáról és tartózkodásáról szóló 2007. évi II. törvény (Lei II de 2007, relativa à Entrada e à Permanência de Nacionais de Países Terceiros) (6), de 5 de janeiro de 2007 (a seguir “Lei II”),] são aplicáveis aos processos relativos aos membros nacionais de países terceiros familiares de cidadãos húngaros apresentados e renovados após a entrada em vigor da [az egyes migrációs tárgyla és kapcsolódó törvények módosításáról szóló 2018. évi CXXXIII. törvény (Lei CXXXIII de 2018, que Altera Determinadas Leis que Têm por Objeto a Migração e Determinadas Leis Complementares) (7), de 12 de dezembro de 2018 (a seguir “Segunda Lei de Alteração”)].

2.      Qualquer nacional de um país terceiro que disponha de um cartão de residência ou de um cartão de residência permanente que lhe tenha sido emitido, na qualidade de membro da família de um cidadão húngaro, antes da entrada em vigor da Segunda Lei de Alteração e que estava válido no momento da entrada em vigor desta lei, obterá, mediante pedido apresentado antes de caducar o cartão de residência ou o cartão de residência permanente, uma autorização de estabelecimento nacional sem verificação do cumprimento dos requisitos previstos no artigo 33.o, n.o 1, alíneas a) e b), e no artigo 35.o, n.os 1 e 1a, da Lei [II], salvo se:

[…]

c)      uma causa de recusa como a prevista no artigo 33.o, n.o 1, alínea c), e n.o 2, da Lei [II] se opuser ao seu estabelecimento.

[…]

3.      No que respeita ao n.o 2, alínea c), as autoridades especializadas do Estado designadas devem ser consultadas, em conformidade com as regras da Lei [II] relativas à emissão das autorizações de estabelecimento, a fim de obterem o seu parecer.

4.      Quando um nacional de um país terceiro, membro da família de um cidadão húngaro, for titular de um cartão de residência ou de um cartão de residência permanente válido, este é retirado:

[…]

b)      se a permanência do nacional de país terceiro puser em perigo a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional da Hungria.

5.      Para qualquer questão especial como a referida no n.o 4, alínea b), as autoridades especializadas do Estado designadas devem ser consultadas em conformidade com as regras da Lei [II] relativas à emissão das autorizações de estabelecimento, a fim de obter o seu parecer sobre esta questão.

[…]»

7.        O artigo 33.o, n.o 2, alínea b), da Lei II prevê:

«Não pode receber uma autorização de estabelecimento temporário, uma autorização de estabelecimento nacional ou uma autorização de estabelecimento CE um nacional de um país terceiro que:

[…]

b)      cujo estabelecimento ponha em perigo a segurança pública ou a segurança nacional da Hungria.»

8.        Nos termos do artigo 87/B, n.o 4, desta lei:

«O parecer da autoridade especializada do Estado é, no que respeita à questão especial, vinculativo para a Autoridade de Polícia de Estrangeiros que conhece do processo.»

9.        O artigo 97.o, n.o 1, do harmadik országbeli állampolgárok beutazásáról és tartózkodásáról szóló 2007. évi II. törvény végrehajtásáról szóló 114/2007 rendelet (Decreto de Execução da [Lei II]) (8), de 5 de janeiro de 2007, enuncia:

«Para os procedimentos de emissão e retirada de autorizações de estabelecimento temporárias, autorizações de estabelecimento nacionais e autorizações de estabelecimento CE de nacionais de países terceiros, e para os procedimentos de retirada das autorizações de estabelecimento e de autorização de imigração de nacionais de países terceiros, o governo, quando se trata de determinar se o estabelecimento ou a imigração de um nacional de um país terceiro coloca em perigo a segurança nacional da Hungria, designa, como autoridades especializadas de primeiro grau, o Alkotmányvédelmi Hivatal [Serviço de Proteção da Constituição, Hungria] e o Terrorelhárítási Központ [Serviço Central de Prevenção do Terrorismo, Hungria] e, como autoridade especializada de segundo grau, o ministro responsável pela gestão dos serviços civis de segurança nacional.»

10.      O artigo 11.o da minősített adat védelméről szóló 2009. évi CLV. törvény [(Lei CLV de 2009, relativa à Proteção das Informações Classificadas) (9), de 29 de dezembro de 2009, prevê:

«1.      O interessado tem direito a tomar conhecimento dos seus dados pessoais que tenham a natureza de informações classificadas nacionais com base numa autorização de consulta emitida pela autoridade com competência para a classificação […]

2.      […] A autorização de consulta será recusada pela autoridade com competência para a classificação se o conhecimento das informações implicar uma ameaça ao interesse público que justificou a classificação. A recusa de concessão da autorização de consulta deve ser fundamentada pela autoridade com competência para a classificação.

3.      Em caso de recusa de concessão da autorização de consulta, o interessado pode impugnar a decisão através de recurso contencioso administrativo. Se o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se der provimento ao recurso, a autoridade com competência para a classificação é obrigada a conceder a autorização de consulta. […] Nem o recorrente nem qualquer pessoa que intervenha em apoio deste, ou os seus representantes, podem tomar conhecimento das informações classificadas no decurso do processo […]»

11.      O artigo 12.o desta lei tem a seguinte redação:

«1.      A autoridade responsável pelo tratamento das informações classificadas pode recusar que o interessado exerça o seu direito de acesso aos seus dados pessoais, se o exercício desse direito comprometer o interesse público que justificou a classificação.

2.      No caso da execução dos direitos do interessado em juízo, as disposições do artigo 11.o, n.o 3, aplicam‑se mutatis mutandis ao órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se e à tomada de conhecimento das informações classificadas.»

12.      Nos termos do artigo 13.o, n.os 1 e 5, da referida lei:

«1.      Só pode utilizar as informações classificadas uma pessoa em relação à qual isso se justifique no cumprimento de missões de Estado ou públicas e que, salvo exceção prevista na lei, disponha:

a)      de um certificado de segurança pessoal válido e correspondente ao nível de classificação das informações que pretenda utilizar,

b)      de uma declaração de confidencialidade, e

c)      de uma autorização de utilizador.

[…]

5.      Salvo quando a lei disponha de outro modo, o juiz pode exercer os direitos de disposição que sejam necessários para decidir os litígios que lhe tenham sido submetidos de acordo com o sistema de distribuição dos processos, sem ter sido submetido a um controlo de segurança nacional e sem ter de dispor de um certificado de segurança pessoal, de uma declaração de confidencialidade ou de uma autorização de utilizador.»

13.      O artigo 14.o, n.o 4, da mesma lei dispõe:

«O acesso a informações classificadas nacionais no âmbito de um procedimento administrativo, processo judicial — salvo em processo penal — ou contraordenacional, ou de outro procedimento oficial, pode ser autorizado pela autoridade com competência para a classificação. A concessão de uma autorização de utilização de informações classificadas nacionais não pode ser recusada no âmbito de processos de fiscalização da legalidade pelo Ministério Público e de processos judiciais cíveis suscetíveis de serem por este intentados no interesse público.»

III. Factos do litígio nos processos principais e questões prejudiciais

A.      Processo C420/22

14.      NW, nacional turco, casou em 2004 com uma cidadã húngara. Desta união nasceu uma criança de nacionalidade húngara em 2005.

15.      Após ter residido legalmente na Hungria durante mais de cinco anos, NW, tendo em conta o estatuto da sua mulher e do seu filho, apresentou um pedido de cartão de residência permanente às autoridades húngaras, que lhe emitiram o cartão, válido até 31 de outubro de 2022.

16.      NW dispõe na Hungria de rendimentos estáveis e regulares, bem como de um património imobiliário que lhe permite prover às suas necessidades e às da sua família sem recorrer ao sistema de assistência social húngaro.

17.      O órgão jurisdicional de reenvio indica que existe entre NW e o seu filho menor uma relação de dependência.

18.      Com efeito, NW e a sua mulher exercem conjuntamente a autoridade parental sobre o filho e asseguram a sua guarda efetiva. Sem os rendimentos de NW, os membros da família não poderiam subsistir. Acresce que este último tem uma ligação afetiva estreita com o seu filho.

19.      Por Parecer não fundamentado de 12 de janeiro de 2021, o Serviço de Proteção da Constituição considerou que a residência de NW na Hungria violava os interesses deste Estado‑Membro em matéria de segurança nacional. Este órgão especializado qualificou de «informações classificadas», em aplicação da Lei CLV de 2009, relativa à proteção das informações classificadas, os dados em que se baseou para emitir esse parecer, pelo que nem NW nem a Autoridade de Polícia de Estrangeiros podiam tomar conhecimento dos mesmos.

20.      Por Decisão de 22 de janeiro de 2021, a elsőfokla idegenrendészeti hatóság (Autoridade de Polícia de Estrangeiros de primeiro grau, Hungria), em aplicação do artigo 94.o, n.o 4, alínea b), da Lei I, retirou o cartão de residência permanente de NW e ordenou‑lhe que abandonasse o território da Hungria.

21.      Esta decisão foi confirmada, em 10 de maio de 2021, pela Direção‑Geral, com o fundamento de que o Belügyminiszter (ministro do Interior, Hungria) tinha declarado, no seu Parecer emitido em 13 de abril de 2021, na qualidade de autoridade especializada de segundo grau, que a residência de NW prejudicava os interesses da Hungria em matéria de segurança nacional. Na sua decisão, a Direção‑Geral sublinhou que, em aplicação do artigo 87/B, n.o 4, da Lei II, não se podia afastar do parecer emitido pelo ministro do Interior e que estava, portanto, obrigada a retirar o cartão de residência permanente de NW, sem ter em conta a sua situação pessoal. A Direção‑Geral indicou igualmente que a retirada do cartão de residência permanente não impedia NW de requerer um título de residência ao abrigo das disposições da Lei II, nas condições ali previstas (10).

22.      NW interpôs recurso da decisão da Direção‑Geral de 10 de maio de 2021 no Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szegedi), pedindo que essa decisão fosse anulada, assim como a decisão tomada pela Autoridade de Polícia de Estrangeiros de primeiro grau.

23.      Critica estas autoridades por não terem examinado a sua situação pessoal, em particular no que respeita aos seus vínculos à Hungria. As referidas autoridades não tomaram conhecimento da fundamentação detalhada das autoridades especializadas e decidiram, portanto, em violação, nomeadamente, do princípio da proporcionalidade. NW precisa que, se tivesse de abandonar o território da Hungria, a sua família, e, em particular, o seu filho que educa com a sua mulher, ficaria numa situação grave, tendo em conta a sua relação de dependência.

24.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que a decisão de retirada do cartão de residência permanente de NW assenta unicamente nos pareceres vinculativos e não fundamentados das autoridades especializadas, que se baseiam em informações classificadas a que nem NW nem as autoridades que decidem sobre a residência tiveram acesso. Por conseguinte, a decisão tomada por essas autoridades também não contém qualquer fundamentação.

25.      Este órgão jurisdicional salienta que resulta da jurisprudência da Kúria (Supremo Tribunal, Hungria) que, numa situação como a que está em causa no processo principal, os direitos processuais da pessoa em questão são garantidos pela faculdade conferida ao órgão jurisdicional competente de consultar as informações classificadas em que assenta o parecer das autoridades especializadas para apreciar a legalidade da decisão relativa à residência.

26.      Em aplicação da legislação húngara, nem a pessoa em causa nem o seu representante legal têm uma possibilidade concreta de se exprimir sobre o parecer não fundamentado dessas autoridades. Embora tenham, é certo, o direito de apresentar um pedido de acesso às informações classificadas relativas a essa pessoa mediante processo em separado (11), não podem, em todo o caso, utilizar no âmbito dos procedimentos administrativos ou judiciais as informações classificadas a que lhes seria concedido acesso. O órgão jurisdicional chamado a apreciar o recurso de uma decisão relativa à residência não dispõe de qualquer poder a este respeito. Além disso, esse órgão jurisdicional só pode proferir uma decisão não fundamentada sobre a questão de saber se o parecer das autoridades especializadas justifica ou não suficientemente a conclusão segundo a qual a pessoa em causa representa uma ameaça para a segurança nacional.

27.      Ora, NW está abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2003/109 (12) e deve, a esse título, beneficiar de garantias processuais semelhantes às que foram evidenciadas pelo Tribunal de Justiça, em particular no seu Acórdão de 4 de junho de 2013, ZZ (13), no âmbito da Diretiva 2004/38/CE (14).

28.      Nestas condições, o Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szegedi) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 10.o, n.o 1, da [Diretiva 2003/109], em conjugação com o artigo 47.o da [Carta] — bem como, no caso concreto, com os artigos 7.o e 24.o da Carta —, ser interpretado no sentido de que exige à autoridade de um Estado‑Membro que tenha adotado uma decisão através da qual, por razões de segurança nacional e/ou de ordem pública ou de segurança pública, ordena a retirada de uma autorização de residência de longa duração anteriormente emitida, bem como à autoridade especializada que determinou a natureza confidencial da decisão, que assegurem, em qualquer caso, ao interessado, nacional de um país terceiro, e ao seu representante legal o direito de conhecer pelo menos a essência da informação e dos dados confidenciais ou classificados em que se funda a decisão baseada nesse motivo e utilizem essa informação ou esses dados no procedimento relativo [a essa] decisão, caso a autoridade responsável considere que essa comunicação seria contrária a razões de segurança nacional?

2)      Em caso de resposta afirmativa, o que se deve entender exatamente por «a essência» dos motivos confidenciais em que tal decisão se baseia, à luz dos artigos 41.o e 47.o da Carta?

3)      Deve o artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109, ser interpretado, à luz do artigo 47.o da Carta, no sentido de que o Tribunal de um Estado‑Membro que se pronuncie sobre a legalidade do parecer da autoridade especializada baseado num motivo relativo à informação confidencial ou classificada e sobre a decisão de fundo sobre estrangeiros sustentada nesse parecer deve ter competência para analisar a legalidade da confidencialidade (a sua necessidade e a sua proporcionalidade), bem como para ordenar, no caso de considerar que a confidencialidade é contrária à lei, que o interessado e o seu representante legal possam ter acesso e utilizar a totalidade da informação em que se baseiam o parecer e a decisão das autoridades administrativas, ou, se considerar a confidencialidade conforme com a lei, ordenar que o interessado possa ter acesso e utilizar pelo menos a essência da informação confidencial no processo de estrangeiros que lhe diz respeito?

4)      Devem os artigos 9.o, n.o 3, e 10.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109, em conjugação com os artigos 7.o, 24.o, 51.o, n.o 1, e 52.o, n.o 1, da Carta, ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado‑Membro nos termos da qual uma decisão em matéria de direito de estrangeiros através da qual se ordena a retirada de uma autorização de residência de longa duração anteriormente emitida é uma decisão não fundamentada

[a)]      baseada exclusivamente na remissão automática para o parecer vinculativo e obrigatório da autoridade especializada, também não fundamentado, que determina que existe um perigo ou uma violação relacionad[a] com a segurança nacional, a segurança pública ou a ordem pública, e

[b)]      por conseguinte, foi adotada sem efetuar uma análise aprofundada sobre a existência das razões de segurança nacional, segurança pública ou ordem pública no caso concreto e sem ter em consideração as circunstâncias individuais e as exigências de necessidade e proporcionalidade?»

29.      Em 8 de agosto de 2022, o Tribunal de Justiça recebeu do órgão jurisdicional de reenvio um complemento ao seu pedido de decisão prejudicial.

30.      O órgão jurisdicional de reenvio esclareceu que, nesse pedido, se tinha baseado na premissa de que NW estava abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2003/109. Todavia, se o Tribunal de Justiça considerar que não é esse o caso, será necessário determinar se NW deve beneficiar de um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE, na medida em que existe entre NW e o seu filho menor uma relação de dependência.

31.      Desta perspetiva, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a Direção‑Geral violou o direito da União pelo simples facto de não ter examinado se o recorrente estava abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 20.o TFUE.

32.      Por conseguinte, o Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szegedi) acrescentou às questões já submetidas ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial, dividida em três partes:

«Deve o artigo 20.o [TFUE], em conjugação com os artigos 7.o e 24.o da [Carta], ser interpretado no sentido de que se opõe à prática de um Estado‑Membro que consiste em adotar uma decisão através da qual se ordena a retirada de uma autorização de residência anteriormente emitida a favor de um nacional de um país terceiro cujo filho menor e a mulher são nacionais de um Estado‑Membro da União e residem nesse Estado‑Membro, sem examinar previamente se o membro da família em causa, nacional de um país terceiro, beneficia de um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o?

Deve o artigo 20.o TFUE, em conjugação com os artigos 7.o, 24.o, 51.o, n.o 1, e 52.o, n.o 1, da Carta, ser interpretado no sentido de que, na medida em que seja aplicável um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE, o direito da União tem por efeito que as autoridades administrativas e judiciais nacionais devem aplicar igualmente o direito da União quando adotam uma decisão em matéria de direito de estrangeiros através da qual se ordena a retirada de um cartão de residência permanente e quando aplicam as exceções de segurança nacional, ordem pública ou segurança pública que fundamentam a referida decisão, bem como, no caso de se demonstrar que essas razões existem, quando procedem ao exame da necessidade e da proporcionalidade que justificam a limitação do direito de residência?

No caso de o recorrente ser abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 20.o TFUE, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que responda igualmente à luz do referido artigo à primeira a quarta questões submetidas na decisão [de reenvio prejudicial].»

33.      Os Governos Húngaro e Francês e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

B.      Processo C528/22

34.      PQ, nacional nigeriano, entrou legalmente na Hungria em junho de 2005 como jogador de futebol profissional e reside, desde então, legalmente neste Estado‑Membro. Vive desde 2011 com a sua companheira de nacionalidade húngara. Desta união nasceram duas crianças de nacionalidade húngara em 2012 e 2021.

35.      O pedido mais recente de cartão de residência permanente, apresentado por PQ, tendo em conta o estatuto do seu primeiro filho, remonta a 23 de janeiro de 2014. As autoridades húngaras emitiram esse cartão válido até 15 de setembro de 2020.

36.      PQ exerce, juntamente com a sua companheira, a autoridade parental sobre os seus filhos. Vive permanentemente com estes últimos e assegura a sua guarda efetiva a maior parte do tempo. Os seus filhos têm um vínculo afetivo estreito e uma relação de dependência com PQ, que se ocupa constantemente deles desde o seu nascimento.

37.      Em 2012, PQ foi vítima de uma agressão que lhe causou uma deficiência grave e permanente.

38.      Por Decisão de 27 de outubro de 2020, a Autoridade de Polícia de Estrangeiros de primeiro grau indeferiu um pedido de autorização de estabelecimento nacional apresentado por PQ em 6 de agosto de 2020.

39.      Por parecer não fundamentado de 9 de setembro de 2020, o Serviço de Proteção da Constituição considerou que a residência de PQ na Hungria violava os interesses deste Estado‑Membro em matéria de segurança nacional. Este órgão especializado qualificou de «informações classificadas», em aplicação da Lei CLV de 2009, relativa à proteção das informações classificadas, os dados em que se baseou para emitir esse parecer, pelo que nem PQ nem a Autoridade de Polícia de Estrangeiros podiam tomar conhecimento dos mesmos.

40.      A Decisão de 27 de outubro de 2020 da Autoridade de Polícia de Estrangeiros de primeiro grau foi confirmada, em 25 de março de 2021, pela Direção‑Geral, com o fundamento de que o ministro do Interior tinha declarado, no seu Parecer emitido em 12 de fevereiro de 2021, na qualidade de autoridade especializada de segundo grau, que a residência de PQ prejudicava os interesses da Hungria em matéria de segurança nacional. Na sua decisão, a Direção‑Geral sublinhou que, em aplicação do artigo 87/B, n.o 4, da Lei II, não se podia afastar do parecer emitido pelo ministro do Interior e que estava, portanto, obrigada a indeferir o pedido de autorização de estabelecimento nacional de PQ, sem ter em consideração a sua situação pessoal.

41.      PQ interpôs recurso da Decisão da Direção‑Geral de 25 de março de 2021 no Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szegedi), pedindo que essa decisão fosse anulada, assim como a decisão tomada pela Autoridade de Polícia de Estrangeiros de primeiro grau.

42.      Acusa estas autoridades de não terem examinado a sua situação pessoal e de terem decidido em violação, nomeadamente, do princípio da proporcionalidade. Com efeito, nem ele nem as referidas autoridades tomaram conhecimento da fundamentação detalhada das autoridades especializadas. PQ alega igualmente que existe entre ele e os seus filhos menores uma relação de dependência, pelo que deve poder beneficiar de um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE.

43.      O órgão jurisdicional de reenvio observa que a decisão de recusa da autorização de estabelecimento nacional assenta unicamente nos pareceres vinculativos e não fundamentados, que se baseiam em informações classificadas às quais nem PQ nem as autoridades que decidem sobre a residência tiveram acesso. Esta decisão também não contém nenhuma fundamentação. Além disso, essas autoridades não efetuaram um exame aprofundado da questão de saber se a situação de PQ podia ser abrangida pelo direito da União, por este beneficiar de um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE.

44.      Este órgão jurisdicional observa que resulta da jurisprudência da Kúria (Supremo Tribunal, Hungria) que, numa situação como a que está em causa no processo principal, os direitos processuais da pessoa em causa são garantidos pela faculdade conferida ao órgão jurisdicional competente de consultar as informações classificadas em que assenta o parecer das autoridades especializadas para apreciar a legalidade da decisão relativa à residência.

45.      Em aplicação da legislação húngara, nem a pessoa em causa nem o seu representante legal têm uma possibilidade concreta de se pronunciar sobre o parecer não fundamentado dessas autoridades. Embora tenham, é certo, o direito de apresentar um pedido de acesso às informações classificadas relativas a essa pessoa, não podem, em todo o caso, utilizar no âmbito dos procedimentos administrativos ou judiciais as informações classificadas a que lhes seria concedido acesso. O órgão jurisdicional chamado a apreciar o recurso de uma decisão relativa à residência não dispõe de nenhum poder a este respeito.

46.      No caso em apreço, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste‑Capital, Hungria) rejeitou, aliás, em 7 de março de 2022, os recursos interpostos por PQ contra a recusa das autoridades especializadas de lhe permitirem tomar conhecimento das informações classificadas que lhe diziam respeito e utilizar essas informações no âmbito de processos administrativos e judiciais.

47.      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, PQ está abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 20.o TFUE e deve, a este título, beneficiar de garantias processuais semelhantes às que foram evidenciadas pelo Tribunal de Justiça, em particular no seu Acórdão ZZ no âmbito da Diretiva 2004/38.

48.      Nestas condições, o Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szegedi) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      a)      Deve o artigo 20.o [TFUE], em conjugação com os artigos 7.o e 24.o da [Carta], ser interpretado no sentido de que se opõe à prática de um Estado‑Membro que consiste em adotar uma decisão através da qual se ordena a retirada de uma autorização de residência anteriormente emitida a favor de um nacional de um país terceiro – ou que indefere o seu pedido de prorrogação do direito de residência (no presente processo, um pedido de autorização de[estabelecimento] nacional […]) – cujo filho menor e cuja pessoa com quem vive em união de facto são nacionais de um Estado‑Membro da União e residem nesse Estado‑Membro, sem examinar previamente se o membro da família em causa, nacional de um país terceiro, beneficia de um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o?

b)      Deve o artigo 20.o TFUE, em conjugação com os artigos 7.o, 24.o, 51.o, n.o 1, e 52.o, n.o 1, da Carta, ser interpretado no sentido de que, na medida em que seja aplicável um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE, o direito da União tem por efeito que as autoridades administrativas e judiciais nacionais devem aplicar igualmente o direito da União quando adotam uma decisão em matéria de direito de estrangeiros relativa a um pedido de prorrogação do direito de residência (no presente processo, um pedido de autorização de [estabelecimento] nacional) e quando se aplicam as exceções de segurança nacional, ordem pública ou segurança pública que fundamentam a referida decisão, bem como, no caso de se demonstrar que essas razões existem, quando procedem ao exame da necessidade e da proporcionalidade que justificam a limitação do direito de residência?

2)      Deve o artigo 20.o TFUE, e em conjugação com o artigo 47.o da Carta — bem como, no caso concreto, com os artigos 7.o e 24.o da Carta —, ser interpretado no sentido de que exige à autoridade de um Estado‑Membro que tenha adotado uma decisão através da qual, por razões de segurança nacional e/ou de ordem pública ou de segurança pública, ordena a retirada de uma autorização de residência de longa duração anteriormente emitida ou decide acerca de um pedido de prorrogação do direito de residência, bem como à autoridade especializada que determinou a natureza confidencial da decisão, que assegurem, em qualquer caso, ao interessado, nacional de um país terceiro, e ao seu representante legal o direito de conhecer pelo menos a essência da informação e dos dados confidenciais ou classificados em que se funda a decisão baseada nesse motivo e utilizem essa informação ou esses dados no procedimento relativo à decisão, caso a autoridade responsável considere que essa comunicação seria contrária a razões de segurança nacional?

3)      Em caso de resposta afirmativa, o que se deve entender exatamente por «a essência» dos motivos confidenciais em que [esta] decisão se baseia, à luz dos artigos 41.o e 47.o da Carta?

4)      Deve o artigo 20.o TFUE, luz do artigo 47.o da Carta, ser interpretado no sentido de que o tribunal de um Estado‑Membro que se pronuncie sobre a legalidade do parecer da autoridade especializada baseado num motivo relativo à informação confidencial ou classificada e sobre a decisão de fundo sobre estrangeiros sustentada nesse parecer deve ter competência para analisar a legalidade da confidencialidade (a sua necessidade e a sua proporcionalidade), bem como para ordenar, no caso de considerar que a confidencialidade é contrária à lei, que o interessado e o seu representante legal possam ter acesso e utilizar a totalidade da informação em que se baseiam o parecer e a decisão das autoridades administrativas, ou, se considerar a confidencialidade conforme com a lei, ordenar que o interessado possa ter acesso e utilizar pelo menos a essência da informação confidencial no processo de estrangeiros que lhe diz respeito?

5)      Deve o artigo 20.o TFUE, em conjugação com os artigos 7.o, 24.o, 51.o, n.o 1, e 52.o, n.o 1, da Carta, ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação de um Estado‑Membro nos termos da qual uma decisão em matéria de direito de estrangeiros através da qual se ordena a retirada de uma autorização de residência de longa duração anteriormente emitida ou se decide sobre um pedido de prorrogação do direito de residência é uma decisão não fundamentada

[a)]      baseada exclusivamente na remissão automática para o parecer vinculativo e obrigatório da autoridade especializada, também não fundamentado, que determina que existe um perigo ou uma violação relacionad[a] com a segurança nacional, a segurança pública ou a ordem pública, e

[b)]      por conseguinte, foi adotada sem efetuar uma análise aprofundada sobre a existência das razões de segurança nacional, segurança pública ou ordem pública no caso concreto e sem ter em consideração as circunstâncias individuais e as exigências de necessidade e proporcionalidade?»

49.      PQ, os Governos Húngaro e Francês e a Comissão apresentaram observações escritas.

50.      Na audiência comum aos dois processos, realizada em 5 de julho de 2023, PQ, os Governos Húngaro e Francês e a Comissão apresentaram as suas observações orais e responderam às perguntas para resposta oral colocadas pelo Tribunal de Justiça.

IV.    Análise

A.      Observações preliminares sobre a norma do direito da União a interpretar

51.      Os dois processos em análise suscitam, em substância, as mesmas questões, uma no âmbito da Diretiva 2003/109 (processo C‑420/22) e a outra a propósito do artigo 20.o TFUE (processo C‑528/22).

52.      No processo C‑420/22, o Governo Húngaro alega que foi concedida a NW uma autorização de residência permanente com base na legislação húngara. Ora, trata‑se de um título de residência instituído independentemente do direito da União e com base em condições mais favoráveis do que as previstas nesse direito. Este título de residência não se confunde, portanto, com o estatuto de residente de longa duração previsto na Diretiva 2003/109. No direito húngaro, este estatuto corresponde a outro tipo de autorização de residência, a saber, a autorização de estabelecimento CE. Daqui resulta que não foi retirado a NW um título de residência abrangido por esta diretiva e que NW não solicitou a emissão desse título de residência. A interpretação da referida diretiva não é, portanto, necessária no caso em apreço.

53.      É certo que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apurar os factos no âmbito de um processo prejudicial e esse órgão jurisdicional concluiu, no seu pedido inicial de decisão prejudicial, que NW tinha o estatuto de residente de longa duração na aceção da Diretiva 2003/109. Contudo, importa igualmente salientar que o órgão jurisdicional de reenvio, no complemento ao pedido de decisão prejudicial, pareceu emitir certas dúvidas quanto à aplicabilidade desta diretiva no processo C‑420/22. Convidou, portanto, o Tribunal de Justiça a pronunciar‑se com base no artigo 20.o TFUE, no caso de este concluir que a referida diretiva não é relevante para a resolução do litígio no processo principal.

54.      Estas dúvidas parecem ser corroboradas pela argumentação do Governo Húngaro, segundo a qual existe no direito húngaro uma diferença entre a autorização de estabelecimento CE, que transpõe o estatuto de residente de longa duração resultante da Diretiva 2003/109, e o cartão de residência permanente de que NW dispõe, que resulta apenas do direito nacional e cuja concessão está sujeita a condições menos exigentes do que as impostas pelo direito da União.

55.      O Tribunal de Justiça enviou ao órgão jurisdicional de reenvio um pedido de esclarecimento para que este expusesse detalhadamente as razões pelas quais considera que a Diretiva 2003/109 é aplicável à situação em causa no processo principal. Em especial, foi pedido a esse órgão jurisdicional que precisasse qual o título de residência que transpõe, para o direito húngaro, o estatuto de residente de longa duração previsto nesta diretiva e se NW era titular desse título de residência ou tinha solicitado a sua emissão.

56.      Na sua resposta, o órgão jurisdicional de reenvio explica que NW obteve, a seu pedido, um cartão de residência permanente válido até 31 de outubro de 2022, em aplicação da Diretiva 2004/38 (15), bem como dos artigos 24.o e 25.o da Lei I, em vigor à data, que transpôs esta diretiva. Em seguida, o legislador húngaro decidiu que a referida diretiva deixou de ser aplicável, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2019, ao nacional de um país terceiro que se reúna na Hungria a um membro húngaro da sua família. Esse nacional ficava, portanto, desde essa data, abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2003/109.

57.      O órgão jurisdicional de reenvio indica, igualmente, que o legislador húngaro transpôs para o direito interno a Diretiva 2003/109 ao instituir a autorização de estabelecimento CE e a autorização de estabelecimento temporário (16). A este respeito, precisa que NW não solicitou a emissão de nenhuma destas autorizações. Não obstante, esta última afirmação foi contrariada na audiência porquanto a representante legal de NW indicou que este último tinha solicitado, posteriormente, a concessão de uma autorização de estabelecimento CE e que esse processo está em curso (17).

58.      Seja como for, resulta dos elementos de informação de que o Tribunal de Justiça dispõe que o litígio no processo principal na origem do processo C‑420/22 é relativo à retirada de um título de residência abrangido pelo direito nacional e não de um título de residência emitido em aplicação da Diretiva 2003/109. Daqui resulta, na minha opinião, que a resolução deste litígio não depende de uma interpretação das disposições desta diretiva. Saliento, a este respeito, que, contrariamente ao que o órgão jurisdicional de reenvio parece sugerir no seu pedido inicial de decisão prejudicial, não basta que a situação de NW corresponda à definição de «residente de longa duração» que figura no artigo 2.o, alínea b), da referida diretiva para considerar que as suas disposições lhe são aplicáveis.

59.      Com efeito, o Tribunal de Justiça já declarou que o regime estabelecido pela Diretiva 2003/109 indica claramente que a aquisição do estatuto de residente de longa duração atribuído ao abrigo desta diretiva está sujeita a um procedimento específico e, além disso, à obrigação de preencher os requisitos previstos no capítulo II da mesma diretiva (18). Tal exige, nomeadamente, a apresentação de um pedido específico acompanhado dos documentos comprovativos.

60.      A este respeito, importa recordar que, por força do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2003/109, os Estados‑Membros devem conceder o estatuto de residente de longa duração aos nacionais de países terceiros que tenham residido de forma legal e ininterrupta no seu território durante os últimos cinco anos. A aquisição desse estatuto não é, porém, automática. Com efeito, em conformidade com o artigo 7.o, n.o 1, desta diretiva, o nacional de país terceiro em causa deve, para o efeito, apresentar um pedido às autoridades competentes do Estado‑Membro em que reside, pedido esse que deve ser acompanhado dos documentos comprovativos de que preenche as condições enunciadas nos artigos 4.o e 5.o da referida diretiva. Em especial, deve, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 1, alínea a), da mesma diretiva, demonstrar que dispõe de recursos estáveis, regulares e suficientes para a sua própria subsistência e para a dos seus familiares, sem recorrer ao regime de assistência social deste Estado‑Membro (19).

61.      Decorre do exposto que não basta responder aos requisitos materiais impostos pela Diretiva 2003/109 para beneficiar do estatuto de residente de longa duração em aplicação desta diretiva e que um nacional de um país terceiro pode ser autorizado a uma residência de longa duração apenas com base no direito nacional, sem estar abrangido pela referida diretiva, porquanto esta não se destina a harmonizar de forma completa a residência de longa duração dos nacionais de países terceiros.

62.      Embora NW pareça ter iniciado as diligências necessárias para obter uma autorização de residência enquanto residente de longa duração, ao abrigo da Diretiva 2003/109, não deixa de ser verdade que o procedimento administrativo conduzido a este respeito está em curso e continua a ser alheio ao objeto do litígio no processo principal, que incide, como referi anteriormente, sobre a retirada de uma autorização de residência concedida em aplicação do direito nacional.

63.      Tendo em conta estes elementos, na minha opinião, no âmbito do processo C‑420/22, há que responder às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio no seu complemento ao pedido de decisão prejudicial, que convidam o Tribunal de Justiça, como no processo C‑528/22, a interpretar o artigo 20.o TFUE.

B.      Quanto à necessidade de a autoridade competente em matéria de residência apreciar a existência de uma relação de dependência entre o nacional de um país terceiro e a sua família

64.      Com a sua primeira questão, alínea a), no processo C‑528/22, e a questão correspondente no processo C‑420/22, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 20.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma autoridade de um Estado‑Membro retire ou recuse emitir, por um motivo de segurança nacional, uma autorização de residência a um nacional de um país terceiro, membro da família de cidadãos da União, nacionais desse Estado‑Membro que nunca exerceram a sua liberdade de circulação, sem ter, previamente, apreciado se existe entre essas pessoas uma relação de dependência que possa permitir a esse nacional beneficiar de um direito de residência derivado.

65.      O Governo Húngaro alega que nem NW nem PQ invocaram, durante o procedimento administrativo, o artigo 20.o TFUE, embora um requerente de um título de residência deva invocar, pelo menos em substância, o direito de residência derivado baseado neste artigo de que pretende beneficiar. Além disso, NW também não invocou o referido artigo perante o órgão jurisdicional de reenvio e este excedeu, portanto, os pedidos do interessado que lhe foram apresentados.

66.      Como o Tribunal de Justiça recordou recentemente, nos n.os 20 a 26 do seu Acórdão de 22 de junho de 2023, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Mãe tailandesa de um filho menor neerlandês) (20), o artigo 20.o TFUE opõe‑se a medidas nacionais, incluindo decisões de recusa de autorização de residência aos membros da família de um cidadão da União, que tenham por efeito privar os cidadãos do gozo efetivo do essencial dos direitos que o estatuto de cidadão da União lhes confere.

67.      Em contrapartida, as disposições do Tratado FUE relativas à cidadania da União não conferem nenhum direito autónomo aos nacionais de países terceiros. Com efeito, os eventuais direitos atribuídos a esses nacionais não são direitos próprios dos referidos nacionais, mas direitos derivados dos direitos de que goza o cidadão da União. A finalidade e a justificação desses direitos derivados têm por base a constatação de que não os reconhecer pode, nomeadamente, afetar a liberdade de circulação dos cidadãos da União no território da União.

68.      A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que existem situações muito específicas em que, apesar de o direito derivado da União relativo ao direito de residência dos nacionais de países terceiros não ser aplicável e de o cidadão da União em causa não ter feito uso da sua liberdade de circulação, um direito de residência deve, no entanto, ser concedido a um nacional de um país terceiro, membro da família deste cidadão, sob pena de o efeito útil da cidadania da União ser posto em causa, se, como consequência da recusa de tal direito, o referido cidadão se visse, na prática, obrigado a abandonar o território da União, considerado no seu todo, privando‑o, desse modo, do gozo efetivo do essencial dos direitos que o estatuto da União lhe confere.

69.      Segundo o Tribunal de Justiça, para que essa recusa seja suscetível de pôr em causa o efeito útil da cidadania da União, deve, portanto, existir entre esse nacional de um país terceiro e o cidadão da União, membro da sua família, uma relação de dependência tal que conduziria a que este último, se não fosse reconhecido ao referido nacional de um direito de residência no território da União, fosse obrigado a acompanhá‑lo e a abandonar esse território, considerado no seu todo.

70.      Tal como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, é à luz da intensidade da relação de dependência existente entre o nacional de um país terceiro em causa e o cidadão da União, membro da família do primeiro, que a concessão de um direito de residência baseado no artigo 20.o TFUE deve ser apreciada, sendo que tal apreciação deve ter em conta todas as circunstâncias do caso concreto (21).

71.      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio considera que existe uma relação de dependência entre cada um dos nacionais de país terceiro em causa e as suas famílias, em particular com os respetivos filhos. Ainda que o Governo Húngaro tenha sustentado o contrário nas suas observações escritas no que respeita a PQ, baseando‑se numa descrição dos factos oposta à adotada pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que sublinhar que é com base nos elementos factuais fornecidos por este último que o Tribunal de Justiça deve decidir no âmbito de um processo prejudicial (22).

72.      Por outro lado, o Governo Húngaro sustenta que a aplicação do artigo 20.o TFUE não é relevante para o caso em apreço, na medida em que os nacionais de países terceiros em causa não são objeto de medidas de afastamento e não são, por conseguinte, obrigados a abandonar o território da União. Todavia, esta argumentação não é convincente. Com efeito, além de parecer resultar dos elementos de que o Tribunal de Justiça dispõe que esses nacionais de países terceiros estão sujeitos a uma obrigação de abandonar o território húngaro, decorre claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 20.o TFUE pode ser invocado contra uma decisão que recusa a residência (23).

73.      Uma das dificuldades que os presentes processos colocam é o facto de NW e PQ não terem solicitado às autoridades húngaras a concessão de uma autorização de residência com base no artigo 20.o TFUE. Por conseguinte, há que determinar se essas autoridades estavam, apesar de tudo, obrigadas a apreciar se este artigo devia ser aplicado, porquanto estavam informadas da existência de uma relação familiar entre os nacionais de países terceiros em causa e os membros das respetivas famílias de nacionalidade húngara.

74.      A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que as modalidades processuais segundo as quais um nacional de um país terceiro pode alegar a existência de um direito derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE não podem comprometer o efeito útil deste artigo (24).

75.      Assim, embora as autoridades nacionais não tenham a obrigação de examinar sistematicamente e por sua própria iniciativa a existência de uma relação de dependência, na aceção do artigo 20.o TFUE, devendo a pessoa em causa apresentar os elementos que permitem apreciar se os requisitos de aplicação do artigo 20.o TFUE estão preenchidos, o efeito útil deste artigo ficaria, no entanto, comprometido se o nacional de um país terceiro ou o cidadão da União, membro da sua família, fossem impedidos de invocar os elementos que permitem apreciar se existe uma relação de dependência entre eles, na aceção do artigo 20.o TFUE (25).

76.      Por conseguinte, o Tribunal de Justiça declarou que, quando o nacional de um país terceiro apresenta à autoridade nacional competente um pedido de concessão de um direito de residência para efeitos de reagrupamento familiar com um cidadão da União, nacional do Estado‑Membro em causa, essa autoridade não pode indeferir automaticamente esse pedido pelo simples facto de esse cidadão da União não dispor de recursos suficientes. Pelo contrário, incumbe‑lhe apreciar — com base nos elementos que o nacional de um país terceiro e o cidadão da União em causa devem poder livremente apresentar e procedendo, se necessário for, às investigações necessárias — se existe, entre essas duas pessoas, uma relação de dependência, pelo que deve, em princípio, ser concedido a esse nacional um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE (26).

77.      Deduzo desta jurisprudência que, embora o artigo 20.o TFUE não imponha às autoridades nacionais uma obrigação de examinar sistematicamente e por sua própria iniciativa a existência de uma relação de dependência, na aceção deste artigo, estas são, no entanto, obrigadas a proceder a essa apreciação a partir do momento em que os elementos que lhes são apresentados sejam suscetíveis de demonstrar a existência dessa relação.

78.      Esta análise parece‑me confirmada pelo Acórdão de 27 de abril de 2023, M.D. (Interdição de entrada na Hungria) (27), no qual o Tribunal de Justiça declarou que um Estado‑Membro não pode proibir a entrada no território da União a um nacional de um país terceiro, do qual um membro da família é cidadão da União, nacional desse Estado‑Membro que nunca exerceu a sua liberdade de circulação, sem que a existência de uma relação de dependência entre esse nacional de um país terceiro e esse membro da família tenha sido verificada (28).

79.      Tendo em conta estes elementos, o artigo 20.o TFUE deve, na minha opinião, ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma autoridade de um Estado‑Membro retire ou recuse emitir, por um motivo de segurança nacional, uma autorização de residência a um nacional de um país terceiro, membro da família de cidadãos da União, nacionais deste Estado‑Membro que nunca exerceram a sua liberdade de circulação, sem ter apreciado, previamente — com base nos elementos que o nacional de um país terceiro e o cidadão da União em causa lhe devem poder livremente apresentar e procedendo, se necessário for, às investigações necessárias —, se existe entre essas pessoas uma relação de dependência que obrigaria, de facto, esse cidadão da União a abandonar o território da União, considerado no seu todo, para acompanhar este membro da sua família.

80.      No entanto, importa precisar que, devido ao caráter subsidiário do direito de residência derivado que decorre do artigo 20.o TFUE, esse direito só deve ser, eventualmente, concedido se não existir um direito de residência obtido com outro fundamento (29).

C.      Quanto às condições em que os EstadosMembros podem derrogar o direito de residência derivado decorrente do artigo 20.o TFUE

81.      A legislação húngara caracteriza‑se pelos seguintes elementos, a saber, a intervenção decisiva de uma autoridade especializada em matéria de segurança nacional que é distinta da autoridade competente em matéria de residência, o caráter vinculativo para esta autoridade do parecer emitido pela autoridade especializada, a falta de fundamentação tanto desse parecer como da decisão de perda ou de recusa do direito de residência e a não tomada em consideração de todas as circunstâncias individuais relevantes.

82.      É à luz destas características da legislação húngara que as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio convidam o Tribunal de Justiça a precisar os requisitos materiais e processuais que os Estados‑Membros devem respeitar para poderem derrogar o direito de residência derivado que decorre do artigo 20.o TFUE.

1.      Quanto à necessidade de uma análise, por parte da autoridade competente em matéria de residência, das circunstâncias individuais e do princípio da proporcionalidade

83.      Com a sua primeira questão, alínea b), e a sua quinta questão no processo C‑528/22, bem como com as questões correspondentes no processo C‑420/22, o órgão jurisdicional de reenvio pede, em substância, ao Tribunal de Justiça que declare se o artigo 20.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional por força da qual uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência deve ser adotada com base num parecer vinculativo não fundamentado emitido por uma autoridade encarregada de funções especializadas relacionadas com a segurança nacional, sem uma apreciação rigorosa de todas as circunstâncias individuais e da proporcionalidade dessa decisão de perda ou de recusa.

84.      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados‑Membros podem derrogar, sob certas condições, o direito de residência derivado, decorrente do artigo 20.o TFUE, para o membro da família de um cidadão da União que não fez uso da sua liberdade de circulação, a fim de garantir a manutenção da ordem pública ou a salvaguarda da segurança pública. Pode ser esse o caso se esse nacional de país terceiro representar uma ameaça real, atual e suficientemente grave para a ordem pública ou a segurança pública ou nacional (30).

85.      Todavia, segundo o Tribunal de Justiça, a aplicação de tal derrogação não pode assentar unicamente nos antecedentes penais do nacional em questão de um país terceiro. Só pode decorrer, sendo caso disso, de uma apreciação concreta de todas as circunstâncias pertinentes do caso em apreço, à luz do princípio da proporcionalidade, dos direitos fundamentais cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça e, entre outros, do interesse superior do filho menor, cidadão da União. Assim, podem, designadamente, ser tomados em consideração pela autoridade nacional competente a gravidade das infrações cometidas e o grau de severidade dessas condenações, bem como o prazo decorrido entre a data em que foram pronunciadas e a data em que essa autoridade se pronuncia. Quando a relação de dependência entre esse nacional de um país terceiro e um cidadão menor da União decorre do facto de que o primeiro é o progenitor do segundo, há que ter igualmente em conta a idade, o estado de saúde bem como a situação familiar e económica desse cidadão da União menor (31).

86.      Aliás, o Tribunal de Justiça já declarou que, quando uma relação de dependência é estabelecida entre o nacional em questão de um país terceiro e o membro da sua família, cidadão da União, o Estado‑Membro em causa apenas pode proibir a entrada e a residência desse nacional no território da União por razões de ordem pública ou de segurança nacional depois de ter tido em conta todas as circunstâncias pertinentes, nomeadamente, se for caso disso, o interesse superior do seu filho menor, cidadão da União (32).

87.      Essa tomada em consideração de todas as circunstâncias pertinentes impunha‑se, portanto, às autoridades húngaras competentes em matéria de residência. Ora, na medida em que essas autoridades estão vinculadas, por força da legislação húngara, pelo parecer não fundamentado emitido pela autoridade encarregada de funções especializadas relativas à segurança nacional, é‑lhes impossível ponderar o motivo de segurança nacional invocado, relativamente ao qual nenhum dos elementos factuais que lhe estão subjacentes é comunicado às referidas autoridades, com a situação pessoal e familiar da pessoa que solicita um direito de residência.

88.      Por conseguinte, a legislação húngara tem por efeito privar as autoridades húngaras competentes em matéria de residência do seu poder de apreciar se os motivos pelos quais uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência é adotada autorizam a derrogar o direito de residência derivado de que beneficia um nacional de um país terceiro, membro da família de um cidadão da União que não fez uso da sua liberdade de circulação, o que é fundamentalmente contrário à jurisprudência do Tribunal de Justiça (33).

89.      Por outro lado, considerando o alcance habitual do dever de fundamentação, relacionado, nomeadamente, com o direito a um recurso efetivo, a fundamentação de uma decisão de retirada ou de recusa de residência que se limita a remeter para um parecer, que não está fundamentado, emitido por uma autoridade encarregada de funções especializadas em matéria de segurança nacional, não satisfaz as exigências salientadas pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência (34).

90.      Refiro‑me, em particular, à conclusão a que chegou o Tribunal de Justiça, em matéria de proteção internacional, no Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o., a saber, que a autoridade responsável pela decisão não pode validamente cingir‑se a executar uma decisão adotada por outra autoridade, que se lhe impõe por força da legislação nacional, e proferir, exclusivamente nessa base, a decisão de excluir a concessão da proteção subsidiária ou de retirar uma proteção internacional previamente concedida (35). O Tribunal de Justiça declarou, deste modo, que esta autoridade deve, pelo contrário, dispor de todas as informações pertinentes e proceder, à luz dessas informações, à sua própria apreciação dos factos e das circunstâncias, com vista a determinar o sentido da sua decisão e a dar a esta uma fundamentação completa (36).

91.      As mesmas regras devem, na minha opinião, aplicar‑se à autoridade competente em matéria de residência.

92.      É certo que o alcance destas exigências pode ser limitado quando estejam em causa informações classificadas, com base numa ponderação entre, por um lado, o direito a uma boa administração e o direito a um recurso efetivo e, por outro, a salvaguarda da segurança nacional.

93.      Dito isto, ainda seja possível que uma parte das informações relativas à segurança nacional, utilizadas pela autoridade competente em matéria de residência para efetuar a sua apreciação, possa ser fornecida por autoridades especializadas, por sua própria iniciativa ou a pedido desta autoridade, e que as mesmas sejam sujeitas a um regime de confidencialidade (37), não é menos verdade que a referida autoridade deve poder apreciar livremente o alcance destas informações e a sua relevância para a decisão a ser tomada (38). A autoridade competente em matéria de residência não pode ser obrigada a basear‑se num parecer não fundamentado emitido por essas autoridades encarregadas de funções especializadas relativas à segurança nacional, com base numa apreciação cuja matéria de facto não lhe foi comunicada (39).

94.      Por conseguinte, o artigo 20.o TFUE deve, na minha opinião, ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional por força da qual uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência deve ser adotada com base num parecer vinculativo não fundamentado emitido por uma autoridade encarregada de funções especializadas relacionadas com a segurança nacional, segundo a qual a pessoa em causa constitui uma ameaça para essa segurança, sem uma apreciação rigorosa de todas as circunstâncias individuais e da proporcionalidade dessa decisão de perda ou de recusa.

95.      Acrescento que, se uma decisão de perda ou de recusa de um direito de permanência devesse igualmente constituir, ao mesmo tempo, uma decisão de regresso, na aceção da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (40), o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, deveria ser respeitado o artigo 5.o desta diretiva, que impõe, nomeadamente, que os Estados‑Membros tenham devidamente em conta o interesse superior da criança, a vida familiar e o estado de saúde do nacional de país terceiro em causa (41).

2.      Quanto ao acesso pela pessoa em causa às informações que fundamentaram a adoção de uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência e à sua utilização no âmbito do processo relativo à residência

96.      Com a sua segunda questão no processo C‑528/22 e a questão correspondente no processo C‑420/22, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 20.o TFUE, lido à luz dos artigos 41.o e 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que, quando uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência se baseie em informações classificadas cuja divulgação possa comprometer a segurança nacional do Estado‑Membro em questão, a pessoa em causa ou o seu representante legal só podem aceder a essas informações após ter obtido uma autorização para esse efeito, não lhes é comunicada a essência dos motivos em que se baseia esta decisão e não podem, em qualquer circunstância, utilizar, no âmbito do procedimento administrativo ou processo judicial relativo à residência, as informações a que poderiam ter tido acesso.

97.      Por conseguinte, em cada um dos presentes processos, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça sobre as obrigações que incumbem — em caso de adoção de uma decisão que retira ou recusa, por um motivo de segurança nacional, um direito de residência que pode ser abrangido pelo artigo 20.o TFUE — à autoridade competente em matéria de residência e às autoridades encarregadas de funções especializadas relativas à segurança nacional, no que respeita ao acesso da pessoa em causa e/ou do seu representante legal às informações classificadas com base nas quais essa decisão foi adotada, e à utilização dessas informações no âmbito do procedimento administrativo ou processo judicial relativo à residência.

98.      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, na falta de disposições aplicáveis do direito da União relativas à forma como os Estados‑Membros devem assegurar o respeito dos direitos de defesa da pessoa em causa quando o seu direito de acesso ao processo é restringido em aplicação de uma legislação nacional, as modalidades concretas dos procedimentos estabelecidos para o efeito integram a ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro, por força do princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros, desde que, todavia, não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes de direito interno (princípio da equivalência) e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (42).

99.      Importa igualmente recordar que quando os Estados‑Membros aplicam o direito da União, têm a obrigação de assegurar o respeito, tanto das exigências que decorrem do direito a uma boa administração, que constitui um principio geral de direito da União refletido no artigo 41.o da Carta (43), como do direito a um recurso efetivo consagrado no artigo 47.o, primeiro parágrafo, da Carta, os quais impõem, respetivamente, no decurso do procedimento administrativo e de um eventual processo judicial, o respeito pelos direitos de defesa da pessoa em questão (44).

100. A este respeito, no que se refere, em primeiro lugar, ao procedimento administrativo, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o respeito dos direitos de defesa implica que o destinatário de uma decisão que afete de modo significativo os seus interesses deve ter a possibilidade, conferida pelas Administrações dos Estados‑Membros quando tomam medidas abrangidas no âmbito de aplicação do direito da União, de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos em que a Administração tenciona fundamentar a sua decisão (45).

101. À semelhança do que o Tribunal de Justiça declarou em matéria de proteção internacional, este requisito tem designadamente por objeto permitir à autoridade competente em matéria de direito de residência proceder com pleno conhecimento de causa à apreciação individual de todos os factos e circunstâncias pertinentes, o que exige que o destinatário da decisão possa corrigir um erro ou alegar determinados elementos relativos à sua situação pessoal que militam no sentido de que a decisão seja tomada, não seja tomada ou tenha determinado conteúdo (46).

102. Uma vez que a referida exigência pressupõe necessariamente que seja dada ao destinatário, ou eventualmente por intermédio do seu representante legal, a possibilidade concreta de ter conhecimento dos elementos em que a Administração tenciona basear a sua decisão, o respeito dos direitos de defesa tem por corolário o direito de acesso a todos os elementos do processo no decurso do procedimento administrativo (47).

103. No que diz respeito, em segundo lugar, ao processo judicial, decorre de jurisprudência constante que a efetividade da fiscalização jurisdicional garantida pelo artigo 47.o da Carta requer que o interessado possa conhecer os motivos que fundamentaram a decisão tomada a seu respeito quer seja pela leitura da própria decisão, quer seja pela comunicação destes motivos feita a seu pedido, sem prejuízo do poder do juiz competente de requerer da autoridade em questão que os comunique, de modo que lhe permita defender os seus direitos nas melhores condições possíveis e decidir com pleno conhecimento de causa se é útil recorrer ao juiz competente, bem como, para dar a este último condições para exercer plenamente a fiscalização da legalidade da decisão nacional em causa (48). O respeito pelos direitos de defesa, que se impõe nomeadamente no âmbito dos processos relativos aos recursos interpostos em matéria de residência, pressupõe que o requerente possa aceder não apenas aos motivos da decisão tomada a seu respeito, mas igualmente a todos os elementos do processo nos quais a Administração se baseou a fim de poder efetivamente tomar posição sobre esses elementos (49).

104. Além disso, o princípio do contraditório, que faz parte dos direitos de defesa, visados no artigo 47.o da Carta, implica que as partes num processo devem ter o direito de tomar conhecimento de todos os documentos ou observações apresentados ao juiz a fim de influenciar a sua decisão e de os discutir, o que pressupõe que a pessoa visada por uma decisão de retirada de uma autorização de residência deve poder tomar conhecimento dos elementos do seu processo que são colocados à disposição do tribunal chamado a pronunciar‑se sobre o recurso interposto dessa decisão (50).

105. Importa, contudo, recordar que os direitos de defesa não constituem prerrogativas absolutas e que o direito de acesso ao processo, que é o seu corolário, pode ser limitado, com base numa ponderação entre, por um lado, o direito a uma boa administração, bem como o direito a um recurso efetivo da pessoa em questão e, por outro, os interesses evocados para justificar a não divulgação de um elemento do processo a essa pessoa, em particular quando esses interesses digam respeito à segurança nacional (51). Com efeito, pode revelar‑se necessário, quer num procedimento administrativo quer num processo judicial, não comunicar determinadas informações ao interessado, designadamente, tendo em atenção considerações relacionadas com a segurança nacional (52).

106. Os limites desta ponderação foram precisados pelo Tribunal de Justiça.

107. Assim, a referida ponderação não pode levar, tendo em conta o necessário respeito do artigo 47.o da Carta, a privar de efetividade os direitos de defesa da pessoa em causa e a esvaziar do seu conteúdo o direito de recurso de que deve dispor uma pessoa que pode beneficiar de um direito de residência derivado ao abrigo do artigo 20.o TFUE, nomeadamente ao não lhe comunicar, ou, sendo caso disso, ao seu representante legal, pelo menos, a essência dos motivos em que se baseia a decisão tomada a seu respeito (53).

108. A mesma ponderação pode, em contrapartida, levar a que determinados elementos do processo não sejam comunicados à pessoa em questão quando a divulgação desses elementos for suscetível de pôr em risco, direta e especialmente, a segurança nacional do Estado‑Membro em causa, porquanto pode, designadamente, pôr em perigo a vida, a saúde ou a liberdade de pessoas ou revelar os métodos de investigação especificamente utilizados pelas autoridades encarregadas de funções especificas relativas à segurança nacional e, assim, dificultar gravemente, ou até impedir, o cumprimento futuro das tarefas dessas autoridades (54).

109. Decorre do que precede que, embora o direito da União autorize os Estados‑Membros, nomeadamente quando a segurança nacional o exige, a não conceder à pessoa em causa um acesso direto a todo o seu processo, este direito não pode, sem violar o princípio da efetividade, o direito a uma boa administração e o direito a um recurso efetivo, ser interpretado no sentido de que permite às autoridades competentes colocar essa pessoa numa situação em que nem ela nem o seu representante legal estejam em condições de tomar utilmente conhecimento, se necessário no âmbito de um procedimento específico destinado a preservar a segurança nacional, da essência dos elementos determinantes constantes desse processo (55).

110. É com base nestes princípios que o Tribunal de Justiça declarou, em matéria de proteção internacional, que, por um lado, quando a divulgação de informações constantes do processo foi restringida por um motivo de segurança nacional, o respeito dos direitos de defesa da pessoa em questão não é suficientemente assegurado pela possibilidade de essa pessoa obter, em determinadas condições, uma autorização para aceder a essas informações acompanhada de uma proibição completa de utilizar as informações assim obtidas para efeitos do procedimento administrativo ou do eventual processo judicial (56).

111. Com efeito, resulta dos requisitos que decorrem do princípio do respeito dos direitos de defesa, que já recordei anteriormente, que o direito de acesso às informações constantes do processo tem por objetivo permitir à pessoa em questão, se necessário por intermédio de um representante legal, invocar, perante as autoridades ou os órgãos jurisdicionais competentes, o seu ponto de vista sobre essas informações e sobre a sua pertinência para a decisão a proferir ou já adotada (57).

112. Por conseguinte, um procedimento que permita à pessoa em questão ou ao seu representante legal aceder às referidas informações, ao mesmo tempo que os proíbe de utilizar as mesmas informações para efeitos do procedimento administrativo ou do eventual processo judicial, não é suficiente para preservar os direitos de defesa dessa pessoa e, por isso, não se pode considerar que permite a um Estado‑Membro cumprir às obrigações decorrentes dos artigos 41.o e 47.o da Carta (58).

113. Por outro lado, na medida em que resulta da decisão de reenvio e das observações do Governo Húngaro que a legislação em causa no processo principal se baseia na consideração de que os direitos de defesa da pessoa em questão são suficientemente garantidos pela faculdade de o órgão jurisdicional competente aceder ao processo, importa sublinhar que essa capacidade não pode substituir o acesso às informações constantes nesse processo pela pessoa em questão ou pelo seu representante legal (59). Assim, o respeito dos direitos de defesa não implica que o órgão jurisdicional competente disponha de todos os elementos pertinentes para proferir a sua decisão, mas que a pessoa em questão, se necessário através de um representante legal, possa invocar os seus interesses manifestando o seu ponto de vista sobre esses elementos (60). Com efeito, o acesso às informações constantes do processo pelos órgãos jurisdicionais competentes e a implementação de procedimentos que garantam que os direitos de defesa da pessoa em questão são respeitados constituem dois requisitos distintos e cumulativos (61).

114. Decorre dos elementos que precedem que o artigo 20.o TFUE, lido à luz dos artigos 41.o e 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê que, quando uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência se baseie em informações cuja divulgação possa comprometer a segurança nacional do Estado‑Membro em questão, a pessoa em causa ou o seu representante legal só podem aceder a essas informações após ter obtido uma autorização para esse efeito, não lhes é comunicada a essência dos motivos em que se baseia esta decisão e não podem, em qualquer circunstância, utilizar, no âmbito do procedimento administrativo ou judicial relativo à residência, as informações a que poderiam ter tido acesso.

3.      Quanto ao conceito de «essência» dos motivos confidenciais

115. Com a sua terceira questão no processo C‑528/22 e a questão correspondente no processo C‑420/22, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que esclareça o sentido que deve ser dado ao conceito de «essência» dos motivos confidenciais em que se baseia uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência, tendo em conta os artigos 41.o e 47.o da Carta.

116. Considero que este conceito visa os elementos essenciais dos autos que são suscetíveis de permitir à pessoa em causa conhecer os factos e os comportamentos principais que lhe são imputados, de modo que possa exprimir o seu ponto de vista no âmbito do procedimento administrativo e mais tarde, se for caso disso, do processo judicial relativo à residência.

117. O conceito de «essência» dos motivos confidenciais deve, portanto, ser interpretado de forma funcional, de modo que garanta o exercício efetivo dos direitos de defesa preservando ao mesmo tempo os interesses relativos à segurança nacional.

118. Assim, este conceito deve ser definido tendo em consideração a confidencialidade necessária dos elementos de prova (62). Com efeito, em certos casos, a divulgação desses elementos de prova é suscetível de comprometer direta e especialmente a segurança do Estado, na medida em que pode, designadamente, pôr em perigo a vida, a saúde ou a liberdade de pessoas ou revelar os métodos de investigação especificamente utilizados pelas autoridades nacionais de segurança e, assim, entravar seriamente, ou até impedir, o cumprimento futuro das tarefas dessas autoridades (63).

4.      Quanto aos poderes do órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade de uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência

119. Com a sua quarta questão no processo C‑528/22 e a questão correspondente no processo C‑420/22, o órgão jurisdicional de reenvio pede, em substância, ao Tribunal de Justiça que declare se o artigo 20.o TFUE, lido à luz do artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que exige que o órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade de uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência com base em informações classificadas dispõe do poder de desclassificar essas informações e de as comunicar, ele próprio, no todo ou em parte, ao nacional de um país terceiro em causa.

120. Esta questão diz respeito aos poderes do juiz que é chamado a fiscalizar a legalidade de uma decisão relativa à residência. Tem por objeto a questão de saber como articular, no âmbito de um processo judicial, o direito a um recurso jurisdicional efetivo com o imperativo de preservação da confidencialidade de informações cuja divulgação poderia prejudicar os interesses ligados à segurança nacional.

121. Parece decorrer da decisão de reenvio e da formulação da questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio que este considera que resulta do direito da União que deveria não só ter acesso às informações classificadas, mas também poder decidir, e, se for caso disso, declarar a ilicitude da classificação dessas informações e comunicá‑las, ele próprio, no todo ou em parte, à pessoa em causa.

122. Na audiência, os Governos Húngaro e Francês, bem como a Comissão, exprimiram posições convergentes sobre a resposta que, em seu entender, deve ser dada a esta questão, a saber, que o direito da União não exige que o órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade de uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência fundamentado em informações classificadas disponha do poder de desclassificar essas informações e de as comunicar à pessoa em causa.

123. Partilho desta posição, apoiando‑me nos ensinamentos que, na minha opinião, devem ser retirados do Acórdão ZZ.

124. Com efeito, o Tribunal de Justiça já tomou posição, nesse acórdão, sobre os poderes de que deve dispor o juiz competente em matéria de residência, no âmbito da Diretiva 2004/38, para garantir o respeito dos direitos de defesa quando uma pessoa seja objeto de uma decisão negativa baseada em informações confidenciais.

125. Assim, decorre do referido acórdão que, quando razões de segurança do Estado são invocadas para recusar comunicar ao interessado os motivos em que se baseia a adoção de uma decisão de recusa de acesso ao território de um Estado‑Membro, o juiz competente desse Estado‑Membro deve ter à sua disposição e utilizar técnicas e regras de direito processual que permitam conciliar, por um lado, as considerações legítimas da segurança do Estado, quanto à natureza e às fontes das informações que foram tomadas em consideração para a adoção dessa decisão, e, por outro, a necessidade de garantir de forma suficiente ao interessado o respeito dos seus direitos processuais, como o direito a ser ouvido e o princípio do contraditório (64).

126. Para este efeito, o Tribunal de Justiça declarou que os Estados‑Membros devem prever, por um lado, uma fiscalização jurisdicional eficaz quer da existência e do mérito das razões invocadas pela autoridade nacional à luz da segurança do Estado como da legalidade da decisão em causa, bem como, por outro, técnicas e regras relativas a essa fiscalização (65).

127. Esclareceu igualmente que é necessário que o juiz encarregado da fiscalização da legalidade de tal decisão possa tomar conhecimento quer da totalidade dos motivos quer dos elementos de prova respetivos com base nos quais essa mesma decisão foi adotada (66), a fim, designadamente, de verificar se a segurança do Estado se opõe efetivamente a que esses motivos e esses elementos de prova sejam comunicados ao interessado (67).

128. O Tribunal de Justiça prestou esclarecimentos quanto às consequências que devem ser extraídas do exame efetuado a este respeito pelo juiz nacional.

129. Assim, se esse juiz concluir que a segurança do Estado não se opõe a que as informações em causa sejam comunicadas à pessoa interessada, deve dar à autoridade nacional competente a possibilidade de comunicar essas informações a essa pessoa. Se essa autoridade não autorizar tal comunicação, o juiz nacional procede ao exame da legalidade da decisão relativa à residência apenas com base nos motivos e elementos de prova que foram comunicados (68).

130. Decorre, por analogia, do que precede que o artigo 20.o TFUE, lido à luz do artigo 47.o da Carta, não exige que o órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade de uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência baseado em informações classificadas tenha o poder de desclassificar essas informações e de as comunicar, ele próprio, à pessoa em causa. Com efeito, incumbe à autoridade nacional competente decidir, se for caso disso, fornecer essas informações a esta pessoa para que sejam submetidas ao contraditório. Se essa autoridade pretende preservar o caráter confidencial das referidas informações, não as tendo comunicado, esse órgão jurisdicional deve daí retirar as consequências no âmbito da fiscalização da legalidade de uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência, exercendo essa fiscalização unicamente com base nos motivos e elementos de prova que foram comunicados. Como o Governo Francês indicou com razão na audiência, é então o perímetro do debate contraditório que é reduzido e, portanto, o dos argumentos ou dos documentos com base nos quais o referido órgão jurisdicional pode basear a sua decisão. Tal posição parece‑me conforme com o previsto no artigo 346.o, n.o 1, alínea a), TFUE, a saber, que «nenhum Estado‑Membro é obrigado a fornecer informações cuja divulgação considere contrária aos interesses essenciais da sua própria segurança».

131. Dito isto, conforme já referi anteriormente, esta ponderação entre, por um lado, o direito à boa administração e o direito a um recurso efetivo da pessoa em questão e, por outro, a não divulgação de informações confidenciais que fundamentaram a adoção de uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência não pode, tendo em conta a necessária observância do artigo 47.o da Carta, privar essa pessoa da garantia mínima de lhe ser comunicada, ou ao seu representante legal, pelo menos a essência dos motivos em que se baseia a decisão tomada a seu respeito (69). Tal é o caso quando a comunicação das informações confidenciais é validamente recusada pela autoridade nacional competente por razões de segurança nacional (70). A fiscalização pelo órgão jurisdicional competente da legalidade da decisão de perda ou de recusa de um direito de residência deverá ser então efetuada unicamente com base na essência dos motivos comunicados à pessoa em causa. Esse órgão jurisdicional deverá, se for caso disso, retirar, por força do direito nacional, as consequências de um eventual incumprimento desta obrigação de comunicação (71), o que o pode levar a anular essa decisão.

V.      Conclusão

132. Atendendo a todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szegedi) nos processos C‑420/22 e C‑528/22 da seguinte forma:

1)      O artigo 20.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que:

–        se opõe a que uma autoridade de um Estado‑Membro retire ou recuse emitir, por um motivo de segurança nacional, uma autorização de residência a um nacional de um país terceiro, membro da família de cidadãos da União, nacionais deste Estado‑Membro que nunca exerceram a sua liberdade de circulação, sem ter apreciado, previamente — com base nos elementos que o nacional de um país terceiro e o cidadão da União em causa lhe devem poder livremente apresentar e procedendo, se necessário for, às investigações necessárias —, se existe entre essas pessoas uma relação de dependência que obrigaria, de facto, esse cidadão da União a abandonar o território da União, considerado no seu todo, para acompanhar este membro da sua família;

–        se opõe a uma legislação nacional por força da qual uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência deve ser adotada com base num parecer vinculativo não fundamentado emitido por uma autoridade encarregada de funções especializadas relacionadas com a segurança nacional, segundo a qual a pessoa em causa constitui uma ameaça para esta segurança, sem uma apreciação rigorosa de todas as circunstâncias individuais e da proporcionalidade dessa decisão de perda ou de recusa.

2)      O artigo 20.o TFUE, lido à luz dos artigos 41.o e 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma legislação nacional que prevê que, quando uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência se baseie em informações cuja divulgação possa comprometer a segurança nacional do Estado‑Membro em questão, a pessoa em causa ou o seu representante legal só podem aceder a essas informações após ter obtido uma autorização para esse efeito, não lhes é comunicada a essência dos motivos em que se baseia esta decisão e não podem, em qualquer circunstância, utilizar, no âmbito do procedimento administrativo ou judicial relativo à residência, as informações a que poderiam ter tido acesso.

3)      O conceito de «essência» dos motivos confidenciais em que se baseia uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência visa os elementos essenciais dos autos que são suscetíveis de permitir à pessoa em causa conhecer os factos e os comportamentos principais que lhe são imputados, de modo que possa exprimir o seu ponto de vista no âmbito do procedimento administrativo e mais tarde, se for caso disso, do processo judicial, tendo em conta a necessária confidencialidade dos elementos de prova.

4)      O artigo 20.o TFUE, lido à luz do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais, deve ser interpretado no sentido de que:

não exige que o órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade de uma decisão de perda ou de recusa de um direito de residência fundamentado em informações classificadas disponha do poder de desclassificar essas informações e de as comunicar, ele próprio, no todo ou em parte, ao nacional de um país terceiro em causa.


1      Língua original: francês.


2      JO 2004, L 16, p. 44.


3      C‑159/21, a seguir «Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o.», EU:C:2022:708.


4      A seguir «Carta».


5      Magyar Közlöny 2007. évi 1. száma.


6      Magyar Közlöny 2007. évi 1. száma.


7      Magyar Közlöny 2018. évi 208. száma.


8      Magyar Közlöny 2007. évi 65. száma.


9      Magyar Közlöny 2009. évi 194. száma.


10      No decurso da audiência, a representante legal de NW indicou que este último pediu, em 22 de junho de 2023, à autoridade competente em matéria de residência um título de residência abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2003/109 e que o processo está em curso.


11      O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que, tendo em conta o motivo invocado relativo à proteção da segurança nacional, a concessão de uma autorização de consulta de informações classificadas está, na prática, excluída. No decurso da audiência, a representante legal de NW indicou que este último tinha iniciado um processo separado para obter e utilizar as informações classificadas que lhe diziam respeito e que a decisão de indeferimento adotada pela Autoridade de Proteção da Constituição é objeto de um processo contencioso.


12      Para chegar a esta conclusão, no seu pedido de decisão prejudicial inicial, o órgão jurisdicional de reenvio refere‑se, por um lado, à definição de «residente de longa duração», que figura no artigo 2.o, alínea b), desta diretiva, e, por outro, à constatação de que NW dispõe de um cartão de residência permanente, independentemente do facto de não ser titular de uma autorização de estabelecimento temporária ou comunitária. Este órgão jurisdicional baseia‑se, a este respeito, no n.o 24 do Acórdão de 20 de janeiro de 2022, Landeshauptmann von Wien (Perda do estatuto de residente de longa duração) (C‑432/20, EU:C:2022:39).


13      C‑300/11, a seguir «Acórdão ZZ», EU:C:2013:363.


14      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77; retificações no JO 2004, L 229, p. 35 e no JO 2005, L 197, p. 34).


15      Como o Governo Húngaro esclareceu na audiência, o legislador húngaro optou, assim, por aplicar disposições mais favoráveis ao direito de residência dos nacionais de países terceiros, membros da família de nacionais húngaros.


16      V. artigos 34.o e 38.o da Lei II.


17      V. nota de rodapé 10 das presentes conclusões.


18      V., nomeadamente, Acórdão de 17 de julho de 2014, Tahir (C‑469/13, EU:C:2014:2094, n.o 27 e jurisprudência referida).


19      V., nomeadamente, Acórdão de 20 de janeiro de 2022, Landeshauptmann von Wien (Perda do estatuto de residente de longa duração) (C‑432/20, EU:C:2022:39, n.o 24 e jurisprudência referida).


20      C‑459/20, EU:C:2023:499.


21      V., nomeadamente, Acórdão de 7 de setembro de 2022, Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Natureza do direito de residência ao abrigo do artigo 20.o TFUE) (C‑624/20, EU:C:2022:639, n.o 38 e jurisprudência referida).


22      Segundo jurisprudência constante, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio definiu o quadro factual e regulamentar no qual se inserem as questões que submete, não compete ao Tribunal de Justiça verificar a sua exatidão: v., nomeadamente, Acórdão de 8 de junho de 2023, Prestige and Limousine (C‑50/21, EU:C:2023:448, n.o 43 e jurisprudência referida).


23      V., nomeadamente, Acórdãos de 8 de março de 2011, Ruiz Zambrano (C‑34/09, EU:C:2011:124, n.o 44); de 13 de setembro de 2016, Rendón Marín (C‑165/14, EU:C:2016:675, n.o 78); e de 10 de maio de 2017, Chavez‑Vilchez e o. (C‑133/15, EU:C:2017:354, n.o 65).


24      V., nomeadamente, Acórdão de 27 de fevereiro de 2020, Subdelegación del Gobierno en Ciudad Real (Cônjuge de um cidadão da União) (C‑836/18, EU:C:2020:119, n.o 51 e jurisprudência referida).


25      V., nomeadamente, Acórdão de 27 de fevereiro de 2020, Subdelegación del Gobierno en Ciudad Real (Cônjuge de um cidadão da União) (C‑836/18, EU:C:2020:119, n.o 52 e jurisprudência referida).


26      V., nomeadamente, Acórdão de 27 de fevereiro de 2020, Subdelegación del Gobierno en Ciudad Real (Cônjuge de um cidadão da União) (C‑836/18, EU:C:2020:119, n.o 53 e jurisprudência referida).


27      C‑528/21, EU:C:2023:341.


28      N.o 65 desse acórdão e jurisprudência referida.


29      V., nomeadamente, Acórdão de 5 de maio de 2022, Subdelegación del Gobierno en Toledo (Residência de um membro da família — Recursos insuficientes) (C‑451/19 e C‑532/19, EU:C:2022:354, n.os 47 e 73).


30      V., nomeadamente, Acórdão de 27 de abril de 2023, M.D. (Interdição de entrada na Hungria) (C‑528/21, EU:C:2023:341, n.o 67 e jurisprudência referida).


31      V., nomeadamente, Acórdão de 27 de abril de 2023, M.D. (Interdição de entrada na Hungria) (C‑528/21, EU:C:2023:341, n.o 68 e jurisprudência referida).


32      V., nomeadamente, Acórdão de 27 de abril de 2023, M.D. (Interdição de entrada na Hungria) (C‑528/21, EU:C:2023:341, n.o 69).


33      V., por analogia, Acórdão de 27 de abril de 2023, M.D. (Interdição de entrada na Hungria) (C‑528/21, EU:C:2023:341, n.o 70).


34      V., em matéria de proteção internacional, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.os 75 a 79).


35      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 79).


36      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 80).


37      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 82).


38      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 83).


39      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 83).


40      JO 2008, L 348, p. 98.


41      V., nomeadamente, Acórdão de 27 de abril de 2023, M.D. (Interdição de entrada na Hungria) (C‑528/21, EU:C:2023:341, n.o 89 e jurisprudência referida).


42      V., por analogia, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 43 e jurisprudência referida).


43      V., nomeadamente, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 35 e jurisprudência referida).


44      V., nomeadamente, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 44 e jurisprudência referida).


45      V., nomeadamente, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 45 e jurisprudência referida).


46      V., por analogia, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 46 e jurisprudência referida).


47      V., nomeadamente, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 47 e jurisprudência referida).


48      V., nomeadamente, Acórdão de 24 de novembro de 2020, Minister van Buitenlandse Zaken (C‑225/19 e C‑226/19, EU:C:2020:951, n.o 43 e jurisprudência referida).


49      V., por analogia, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 48 e jurisprudência referida).


50      V., por analogia, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 49 e jurisprudência referida).


51      V., nomeadamente, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 50 e jurisprudência referida).


52      V., nomeadamente, neste sentido, Acórdão ZZ (n.o 54).


53      V., por analogia, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 51 e jurisprudência referida).


54      V., nomeadamente, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 52 e jurisprudência referida).


55      V., por analogia, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 53).


56      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 54).


57      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 55).


58      V., por analogia, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 56).


59      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 57).


60      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 58).


61      V. Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 59).


62      V. Acórdão ZZ (n.o 68).


63      V. Acórdão ZZ (n.o 66).


64      V. Acórdão ZZ (n.o 57).


65      V. Acórdão ZZ (n.o 58).


66      V. Acórdão ZZ (n.o 59).


67      V. Acórdão ZZ (n.os 60 a 62).


68      V. Acórdão ZZ (n.o 63).


69      V., nomeadamente, Acórdão Országos Idegenrendészeti Főigazgatóság e o. (n.o 51 e jurisprudência referida).


70      V. Acórdão ZZ (n.os 64 a 67).


71      V. Acórdão ZZ (n.o 68).