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Processos T12/15, T158/15 e T258/15

Banco Santander, S. A., e o.

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Oitava Secção) de 27 de setembro de 2023

«Auxílios de Estado — Regime de auxílios executado pela Espanha — Deduções do imposto sobre o rendimento das sociedades que permitem às empresas com domicílio fiscal em Espanha amortizar o goodwill resultante de aquisições indiretas de participações em empresas estrangeiras através da aquisição direta de participações em holdings não residentes — Decisão que declara o regime de auxílios ilegal e incompatível com o mercado interno e que ordena a recuperação dos auxílios pagos — Decisão 2011/5/CE — Decisão 2011/282/UE — Âmbito de aplicação — Revogação de um ato — Segurança jurídica — Confiança legítima»

1.      Auxílios concedidos pelos Estados — Decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um auxílio com o mercado interno e que ordena a sua recuperação — Regime de auxílios que consiste na amortização fiscal do goodwill financeiro em caso de aquisições de participações em empresas estrangeiras — Âmbito de aplicação da decisão da Comissão — Prática administrativa nacional que limita o regime de amortização fiscal aos casos de aquisições diretas de participações — Decisão da Comissão que abrange tanto as aquisições diretas de participações como as indiretas — Nova prática administrativa adotada pelas autoridades nacionais — Falta de pertinência

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 47‑73)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados — Decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um auxílio com o mercado interno e que ordena a sua recuperação — Regime de auxílios que consiste na amortização fiscal do goodwill financeiro em caso de aquisições de participações em empresas estrangeiras — Decisão da Comissão que abrange tanto as aquisições diretas de participações como as indiretas — Decisão que declara a existência de uma confiança legítima por parte dos beneficiários em relação a determinadas aquisições diretas e indiretas de participações — Adoção de uma nova decisão relativa apenas às aquisições indiretas de participações — Nova decisão que não confirma a existência de uma confiança legítima — Admissibilidade em caso de apresentação de informações inexatas e decisivas pelas autoridades nacionais — Requisito não preenchido

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE; Regulamento n.° 659/1999 do Conselho, artigos 9.° e 13.°, n.° 3)

(cf. n.os 75‑81)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados — Decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um auxílio com o mercado interno e que ordena a sua recuperação — Regime de auxílios que consiste na amortização fiscal do goodwill financeiro em caso de aquisições de participações em empresas estrangeira — Decisão da Comissão que abrange tanto as aquisições diretas de participações como as indiretas — Decisão que declara a existência de uma confiança legítima por parte dos beneficiários em relação a determinadas aquisições diretas e indiretas de participações — Adoção de uma nova decisão relativa apenas às aquisições indiretas de participações — Nova decisão que não confirma a existência de uma confiança legítima — Violação do princípio da segurança jurídica — Violação do princípio da proteção da confiança legítima

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 82‑88)

4.      Auxílios concedidos pelos Estados — Recuperação de um auxílio ilegal — Auxílio concedido em violação das regras processuais do artigo 108.° TFUE — Eventual confiança legítima dos beneficiários — Inexistência salvo circunstâncias excecionais — Confiança legítima decorrente de garantias precisas, incondicionais e concordantes oferecidas pela Comissão — Prática administrativa nacional de aplicação do regime de auxílios contrária às declarações da Comissão — Conhecimento dos beneficiários desta prática — Falta de incidência

(Artigos 107.°, n.° 1, e 108.°, n.° 3, TFUE)

(cf. n.os 94‑118)

Resumo

Com o objetivo de fomentar o investimento estrangeiro por parte das empresas espanholas, o artigo 12.°, n.° 5, da Lei espanhola relativa ao Imposto sobre o Rendimento das Sociedades (a seguir «TRLIS») (1), prevê, sob determinados requisitos, a amortização fiscal do goodwill financeiro em caso de aquisição de uma participação de, pelo menos, 5 % numa empresa estrangeira. Para efeitos desta disposição, goodwill financeiro é definido como a parte da diferença entre o preço de compra da participação e o seu valor contabilístico na data da aquisição que não tenha sido contabilizada nos bens e direitos da entidade não residente.

Em 2005 e 2006, este regime de amortização fiscal (a seguir «regime em causa») foi objeto de várias perguntas de deputados do Parlamento Europeu (2). Nas suas respostas de 19 de janeiro e 17 de fevereiro de 2006, a Comissão Europeia afirmou que o referido regime não era abrangido pelo âmbito de aplicação das regras em matéria de auxílios de Estado.

Não obstante, por carta de 26 de março de 2007, a Comissão convidou as autoridades espanholas a fornecer‑lhe informações que lhe permitissem determinar o alcance e os efeitos do regime em causa, nomeadamente quanto aos tipos de operações abrangidas. Em resposta, as autoridades espanholas indicaram que apenas o goodwill financeiro resultante de aquisições diretas de participações era dedutível ao abrigo do regime em causa.

Após ter dado início ao procedimento formal de investigação através de uma decisão publicada de forma resumida em dezembro de 2007, a Comissão adotou as Decisões 2011/5 (3) e 2011/282 (4) que declaram o regime em causa incompatível com o mercado interno (a seguir «decisões iniciais»). No entanto, tendo em conta a confiança legítima criada relativamente a certas empresas beneficiárias pelas respostas da Comissão de 19 de janeiro e 17 de fevereiro de 2006, esta instituição admitiu que este regime podia continuar a aplicar‑se durante todo o período de amortização por ele previsto, às aquisições de participações efetuadas antes da publicação da decisão de dar início ao procedimento formal de investigação, ou mesmo, em certas condições, antes da publicação da Decisão 2011/282.

Em abril de 2012, as autoridades espanholas informaram a Comissão da adoção de um novo parecer vinculativo da Direção‑Geral dos Impostos espanhola, segundo o qual o goodwill financeiro resultante não só de aquisições diretas de participações, mas também de aquisições indiretas em empresas não residentes, incluindo as já efetuadas, era abrangido pelo âmbito de aplicação do regime em causa (a seguir «nova interpretação administrativa»).

Após ter dado início a um segundo procedimento formal de investigação, a Comissão considerou, através da Decisão de 15 de outubro de 2014 (5), que a nova interpretação administrativa não estava abrangida pelas decisões iniciais e que constituía um novo auxílio incompatível com o mercado interno. Além disso, a Comissão recusou reconhecer a existência de uma confiança legítima por parte de certas empresas beneficiárias, nas condições estabelecidas a este respeito nas decisões iniciais. Por conseguinte, a Comissão exigiu que a Espanha pusesse termo ao regime de auxílios resultante da nova interpretação administrativa e recuperasse todos os auxílios concedidos ao abrigo do mesmo.

O Tribunal Geral, chamado a pronunciar‑se sobre vários recursos de anulação interpostos por empresas espanholas que tinham beneficiado da amortização fiscal do goodwill financeiro resultante de aquisições indiretas de participações em empresas não residentes, anulou a decisão impugnada por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima.

Apreciação do Tribunal Geral

Em apoio dos seus recursos, as recorrentes contestam, em primeiro lugar, a qualificação pela Comissão da nova interpretação administrativa como um novo auxílio. Neste contexto, alegam, em substância, que as aquisições indiretas de participações já estavam abrangidas pelas decisões iniciais, pelo que a Comissão já não tinha o direito de adotar a decisão impugnada no que respeita especificamente a este tipo de operação.

A este respeito, o Tribunal Geral observa, num primeiro momento, que resulta da redação das decisões iniciais que, apesar das garantias dadas pelas autoridades espanholas durante o procedimento administrativo, segundo as quais o regime em causa apenas dizia respeito às aquisições diretas de participações, a Comissão examinou este regime como abrangendo simultaneamente as aquisições diretas de participações e as aquisições indiretas de participações. Além disso, não se pode deduzir validamente dos elementos invocados pela Comissão na decisão impugnada que a nova interpretação administrativa tenha ampliado o âmbito de aplicação do artigo 12.°, n.° 5, do TRLIS.

Tendo em conta estas considerações, o Tribunal Geral observa que, ao contrário do que a Comissão concluiu na decisão impugnada, as decisões iniciais já abrangiam as aquisições indiretas de participações para efeitos de aplicação do regime em causa.

Nestas circunstâncias, o Tribunal Geral examina, num segundo momento, se a Comissão tinha o direito de adotar a decisão impugnada, tendo em conta o âmbito de aplicação das decisões iniciais.

A este respeito, o Tribunal Geral sublinha que a decisão impugnada exige que o Reino de Espanha recupere a totalidade dos auxílios concedidos em execução do regime em causa, como aplicado às aquisições indiretas de participações, apesar de alguns desses auxílios não estarem abrangidos pela obrigação de recuperação ao abrigo das decisões iniciais devido à confiança legítima que a Comissão tinha reconhecido nas mesmas. Esse resultado equivale a uma revogação das decisões iniciais, na medida em que estas diziam respeito às aquisições indiretas de participações.

Em conformidade com o artigo 9.° do Regulamento n.° 659/1999 (6), em conjugação com o artigo 13.°, n.° 3, do mesmo regulamento, a revogação de uma decisão é possível se para tomar essa decisão tiver utilizado, como fator determinante para a mesma, informações incorretas prestadas durante o procedimento. Todavia, nenhum elemento dos autos demonstra, nem, aliás, a Comissão o invoca, que se tenha baseado em informações incorretas prestadas durante o procedimento administrativo que conduziu à decisão impugnada.

Do mesmo modo, embora as disposições do Regulamento n.° 659/1999 acima referidas sejam apenas uma manifestação específica do princípio geral de direito segundo o qual é admissível a retirada retroativa de um ato administrativo ilegal que tenha criado direitos subjetivos, a Comissão nunca sustentou que as decisões iniciais eram ilegais na medida em que diziam respeito às aquisições indiretas de participações. Com efeito, não está de modo algum em causa, no caso em apreço, a revogação de um ato ilegal, mas a revogação de duas decisões legais, a saber, as decisões iniciais, na medida em que estas visavam as aquisições indiretas de participações.

Ora, segundo jurisprudência constante, a revogação retroativa de um ato administrativo legal que confere direitos subjetivos ou benefícios similares é contrária aos princípios gerais de direito.

A este respeito, o Tribunal Geral declara, por um lado, que as decisões iniciais conferiram ao Reino de Espanha um direito subjetivo de poder executar o regime em causa relativamente a certas aquisições de participações e, acessoriamente, às empresas beneficiárias a não terem de reembolsar certos auxílios ilegais e, por outro, que a decisão impugnada retirou posteriormente esse direito no que respeita às aquisições indiretas de participações. Assim, além de violar o princípio da segurança jurídica, a decisão impugnada pôs em causa a confiança legítima que as autoridades espanholas e as empresas em causa puderam retirar das decisões iniciais no que respeita à aplicação destas últimas às aquisições indiretas de participações.

Tendo em conta este erro de direito cometido pela Comissão, o Tribunal Geral anula a decisão impugnada na sua totalidade.

A título subsidiário, o Tribunal Geral julga procedentes, em segundo lugar, as alegações das recorrentes relativas à violação do princípio da proteção da confiança legítima no que respeita às respostas dadas pela Comissão às perguntas dos deputados do Parlamento Europeu em 2006.

Com efeito, segundo o Tribunal Geral, a Comissão tinha oferecido, através destas declarações ao Parlamento, garantias precisas, incondicionais e concordantes, que fizeram surgir nos beneficiários do regime em causa, quer a título das suas aquisições diretas de participações quer das suas aquisições indiretas, expectativas fundadas no facto de o regime de auxílios em causa ser legal, no sentido de que não estava abrangido pelo âmbito de aplicação das regras em matéria de auxílios de Estado, e que, por conseguinte, nenhuma das vantagens decorrentes do referido regime podia ser posteriormente objeto de um processo de recuperação.

Além disso, o facto de as recorrentes terem tido conhecimento da interpretação administrativa inicial, que excluía as aquisições indiretas de participações do âmbito de aplicação do artigo 12.°, n.° 5, do TRLIS, não priva de legitimidade a confiança que retiraram das declarações da Comissão. Com efeito, segundo jurisprudência constante, só as declarações e comportamentos que provêm da Comissão devem ser tidos em conta para apreciar a confiança legítima dos beneficiários do regime em causa.

Por conseguinte, admitindo que tinha o direito de adotar a decisão impugnada, a Comissão não podia, sem cometer um erro de direito, recusar reconhecer, nessa decisão, uma confiança legítima aos beneficiários do regime em causa a título das suas aquisições indiretas de participações efetuadas antes da publicação da decisão de dar início ao primeiro procedimento formal de investigação, ou mesmo, em certas condições, antes da publicação da Decisão 2011/282, nos mesmos termos que nas decisões iniciais.


1       Ley 43/1995 del Impuesto sobre Sociedades (Lei n.° 43/1995, relativa ao Imposto sobre o Rendimento das Sociedades), de 27 de dezembro de 1995 (BOE n.° 310, de 28 de dezembro de 1995, p. 37072).


2      Este regime também já deu origem, nomeadamente, aos Acórdãos de 21 de dezembro de 2016, Comissão/World Duty Free Group e o. (C‑20/15 P e C‑21/15 P, EU:C:2016:981), de 6 de outubro de 2021, Sigma Alimentos Exterior/Comissão (C‑50/19 P, EU:C:2021:792), de 6 de outubro de 2021, World Duty Free Group e Espanha/Comissão (C‑51/19 P e C‑64/19 P, EU:C:2021:793), de 6 de outubro de 2021, Banco Santander/Comissão (C‑52/19 P, EU:C:2021:794), de 6 de outubro de 2021, Banco Santander e o./Comissão (C‑53/19 P e C‑65/19 P, EU:C:2021:795), de 6 de outubro de 2021, Axa Mediterranean/Comissão (C‑54/19 P, EU:C:2021:796), de 6 de outubro de 2021, Prosegur Compañía de Seguridad/Comissão (C‑55/19 P, EU:C:2021:797), e de 15 de novembro de 2018, Deutsche Telekom/Comissão (T‑207/10, EU:T:2018:786).


3      Decisão 2011/5/CE da Comissão, de 28 de outubro de 2009, relativa à amortização para efeitos fiscais da diferença relativamente ao valor do património (financial goodwill), em caso de aquisição de participações em empresas estrangeiras Processo C 45/07 (ex NN 51/07, ex CP 9/07) aplicada pela Espanha (JO 2011, L 7, p. 48).


4      Decisão 2011/282/UE da Comissão, de 12 de janeiro de 2011, relativa à amortização para efeitos fiscais do goodwill financeiro, em caso de aquisição de participações em empresas estrangeiras C 45/07 (ex NN 51/07, ex CP 9/07) aplicada pela Espanha (JO 2011, L 135, p. 1).


5      Decisão (UE) 2015/314 da Comissão, de 15 de outubro de 2014, relativa ao auxílio estatal SA.35550 (ex 13/C) (ex 13/NN) (ex 12/CP) concedido pela Espanha — Regime de amortização fiscal do goodwill financeiro em caso de aquisição de participações em empresas estrangeiras (JO 2015, L 56, p. 38; a seguir «decisão impugnada»).


6      Regulamento (CE) n.° 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo [108.° TFUE] (JO 1999, L 83, p. 1).