ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)
15 de Janeiro de 1998
(1)
«Imposto sobre o valor acrescentado Sexta Directiva Artigo 17.° Direito à
dedução Ajustamento das deduções»
No processo C-37/95,
que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do
artigo 177.° do Tratado CE, pelo Hof van Cassatie van België, destinado a obter,
no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre
Belgische Staat
e
Ghent Coal Terminal NV,
uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 17.° da Sexta
Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à
harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos
sobre o volume de negócios sistema comum do imposto sobre o valor
acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54),
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),
composto por: H. Ragnemalm, presidente da Sexta Secção exercendo funções de
presidente da Segunda Secção, G. F. Mancini (relator) e G. Hirsch, juízes,
advogado-geral: D. Ruiz-Jarabo Colomer,
secretário: H. A. Rühl, administrador principal,
vistas as observações escritas apresentadas:
em representação do Belgische Staat, por Jan Devadder, conselheiro geral
no Serviço Jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, do Comércio
Externo e da Cooperação para o Desenvolvimento, na qualidade de agente,
assistido por Ignace Claeys Bouùaert, advogado no Hof van Cassatie van
België, e por Bernard van de Walle de Ghelcke, advogado no foro de
Bruxelas,
em representação da Ghent Coal Terminal NV, por Pierre Van
Ommeslaghe, advogado no Hof van Cassatie van België,
em representação do Governo alemão, por Ernst Röder, Ministerialrat no
Ministério Federal da Economia, e Gereon Thiele, assessor no mesmo
ministério, na qualidade de agentes,
em representação do Governo helénico, por Michail Apessos, consultor
jurídico do Conselho Jurídico do Estado, Maria Basdeki, mandatária judicial
no mesmo Conselho Jurídico, e Anna Rokofyllou, consultora especial do
ministro adjunto dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agentes,
em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por Berend
Jan Drijber, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agente,
visto o relatório para audiência,
ouvidas as alegações do Belgische Staat, representado por Bernard van de Walle
de Ghelcke, da Ghent Coal Terminal NV, representada por Martin Lebbe,
advogado no foro de Bruxelas, do Governo helénico, representado por Michail
Apessos e Anna Rokofyllou, e da Comissão, representada por Berend Jan Drijber,
na audiência de 11 de Julho de 1996,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 11 de Julho
de 1996,
profere o presente
Acórdão
- 1.
- Por decisão de 10 de Fevereiro de 1995, que deu entrada no Tribunal de Justiça
em 16 de Fevereiro seguinte, o Hof van Cassatie van België colocou, nos termos
do artigo 177.° do Tratado CE, uma questão prejudicial sobre a interpretação do
artigo 17.° da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977,
relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos
impostos sobre o volume de negócios sistema comum do imposto sobre o valor
acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54, a seguir
«directiva»).
- 2.
- Esta questão foi suscitada no âmbito de um litígio entre o Belgische Staat e a
Ghent Coal Terminal NV (a seguir «Ghent Coal») a propósito do pagamento do
montante do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») deduzido pela
Ghent Coal em função de determinados trabalhos de investimento que efectuou.
- 3.
- O artigo 17.° da directiva estabelece:
«1. O direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se
torna exigível.
2. Desde que os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das próprias
operações tributáveis, o sujeito passivo está autorizado a deduzir do imposto
de que é devedor:
a) O imposto sobre o valor acrescentado devido ou pago em relação a
bens que lhe tenham sido fornecidos ou que lhe devam ser fornecidos
e a serviços que lhe tenham sido prestados ou que lhe devam ser
prestados por outro sujeito passivo;
b) O imposto sobre o valor acrescentado devido ou pago em relação a
bens importados;
...»
- 4.
- O ajustamento das deduções rege-se pelo artigo 20.°, nos termos do qual:
«1. A dedução inicialmente operada é ajustada segundo as modalidades fixadas
pelos Estados-membros, designadamente:
a) quando a dedução for superior ou inferior à dedução a que o sujeito
passivo tinha direito;
b) quando, posteriormente à declaração, se verificarem alterações dos
elementos tomados em consideração para a determinação do
montante das deduções, designadamente no caso de anulação de
compras ou de obtenção de redução nos preços; todavia, não se
efectuará ajustamento no caso de operações total ou parcialmente por
pagar, no caso de destruição, perda ou roubo devidamente
comprovados ou justificados...
2. No que diz respeito aos bens de investimento, o ajustamento deve
repartir-se por um período de cinco anos, incluindo o ano em que os bens
tenham sido adquiridos ou produzidos. Anualmente, esse ajustamento é
efectuado apenas sobre a quinta parte do imposto que incidiu sobre os bens
em questão. Tal ajustamento é realizado em função das alterações do
direito à dedução verificadas durante os anos seguintes, em relação ao
direito à dedução do ano em que os bens em questão foram adquiridos ou
produzidos.
...
3. No caso de entrega durante o período de ajustamento, os bens de
investimento são considerados afectos a uma actividade económica do
sujeito passivo até ao termo do período de ajustamento. Presume-se que
esta actividade económica é inteiramente tributada nos casos em que a
entrega dos referidos bens é tributada; presume-se que está totalmente
isenta nos casos em que a entrega se encontra isenta. O ajustamento
efectua-se uma única vez relativamente a todo o restante período de
ajustamento.
...»
- 5.
- Na Bélgica, a entrega de terrenos está isenta de IVA.
- 6.
- Em 1980, a Ghent Coal comprou terrenos na zona portuária de Gand. Em seguida,
procedeu a trabalhos de investimento nesses terrenos e deduziu imediatamente o
IVA pago sobre os bens e serviços relacionados com esses trabalhos relativamente
ao período compreendido entre 1 de Janeiro de 1981 e 31 de Dezembro de 1983.
- 7.
- Em 1 de Março de 1983, por iniciativa da cidade de Gand, a Ghent Coal permutou
os terrenos em causa por outros terrenos situados em diferente local da zona
portuária de Gand. Em consequência, nunca utilizou os terrenos em que efectuou
os trabalhos de investimento que deram origem à dedução.
- 8.
- Não é objecto de contestação o facto de que os bens investidos se destinavam
normalmente a realizar operações tributadas, que a permuta não tinha sido
previamente prevista, nem planeada, pela Ghent Coal, que esta não a podia evitar
de um ponto de vista económico e que a permuta constituía mesmo,
economicamente, um caso de força maior.
- 9.
- Na sequência de um controlo efectuado em 1984, a administração fiscal concluiu
que a Ghent Coal não utilizara os terrenos em causa para efectuar operações
tributadas, pelo que exigiu o reembolso do IVA deduzido em conexão com os
trabalhos de investimento efectuados nos terrenos em causa, bem como o
pagamento de uma multa e de juros de mora.
- 10.
- Num primeiro momento, a Ghent Coal aceitou a tese da administração fiscal.
Contudo, em 27 de Março de 1986, intentou uma acção contra o Belgische Staat
no Rechtbank van eerste aanleg te Gent, o qual, por decisão de 4 de Abril de 1990,
rejeitou o seu pedido. Por acórdão de 26 de Outubro de 1992, o Hof van beroep
te Gent deu, pelo contrário, provimento ao recurso interposto pela Ghent Coal. O
Belgische Staat interpôs então recurso desse acórdão.
- 11.
- O Belgische Staat entende que, no caso de os bens entregues e os serviços
fornecidos que deram origem à dedução jamais terem sido utilizados para efectuar
operações tributadas, o direito à dedução deve ser retroactivamente rejeitado e o
IVA deduzido integralmente reembolsado.
- 12.
- A Ghent Coal argumenta, pelo contrário, que o direito à dedução do IVA devido
ou pago relativamente a bens e serviços inicialmente destinados a serem utilizados
para realizar operações tributadas tem natureza definitiva, não podendo, pois, ser
posto em causa, mesmo que o interessado jamais tenha feito uso efectivo de tais
bens e serviços.
- 13.
- Por considerar necessária a interpretação do artigo 17.° da directiva para a
resolução do litígio que lhe fora submetido, o Hof van Cassatie van België decidiu
suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão
prejudicial:
«O artigo 17.° da Sexta Directiva do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à
harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre
o volume de negócios, deve ser interpretado no sentido de que se mantém o direito
à dedução relativamente ao imposto sobre o valor acrescentado sobre
investimentos, que inicialmente se destinavam a ser utilizados pela empresa, mas
que por motivos alheios à sua vontade nunca foram por ela efectivamente
utilizados?»
- 14.
- Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o
artigo 17.° da directiva deve ser interpretado no sentido de permitir que um sujeito
passivo, agindo como tal, deduza o IVA de que é devedor relativamente a bens que
lhe foram entregues ou serviços que lhe foram prestados para efeitos de trabalhos
de investimento destinados a serem utilizados no âmbito de operações tributadas
e, sendo caso disso, se o direito à dedução se mantém no caso de, por
circunstâncias alheias à sua vontade, o sujeito passivo jamais ter feito uso de tais
investimentos para efectuar operações tributadas.
- 15.
- No que se refere, em primeiro lugar, à primeira parte desta questão, o Tribunal de
Justiça tem repetidamente declarado que o regime das deduções visa libertar
inteiramente o empresário do ónus do IVA, devido ou pago, no âmbito de todas
as suas actividades económicas. O sistema comum do imposto sobre o valor
acrescentado garante, por conseguinte, a perfeita neutralidade quanto à carga fiscal
de todas as actividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados
dessas actividades, na condição de as referidas actividades estarem, elas próprias,
sujeitas ao IVA (v., designadamente, acórdãos de 14 de Fevereiro de 1985,
Rompelman, 268/83, Recueil, p. 655, n.° 19, e de 21 de Setembro de 1988,
Comissão/França, 50/87, Colect., p. 4797, n.° 15).
- 16.
- Na ausência de uma disposição que permita aos Estados-Membros limitarem o
direito à dedução conferido aos sujeitos passivos, este direito deve ser exercido
imediatamente em relação à totalidade do imposto que onerou as operações
efectuadas a montante. Sendo que tais limitações devem ser aplicadas de modo
similar em todos os Estados-Membros, só são autorizadas excepções nos casos
expressamente previstos pela directiva (v., designadamente, acórdãos
Comissão/França, já referido, n.os 16 e 17; de 11 de Julho de 1991, Lennartz,
C-97/90, Colect., p. I-3795, n.° 27, e de 6 de Julho de 1995, BP Soupergaz, C-62/93,
Colect., p. I-1883, n.° 18).
- 17.
- Decorre do que precede que um sujeito passivo, agindo como tal, tem o direito dededuzir o IVA devido ou pago relativamente a bens que lhe foram entregues ou
serviços que lhe foram prestados para efeitos de trabalhos de investimento
destinados a serem utilizados no âmbito de operações tributadas.
- 18.
- No que se refere, em seguida, à segunda parte da questão, resulta do referido
acórdão Lennartz, n.° 15, que a utilização dada às mercadorias e serviços apenas
determina o montante da dedução inicial a que o sujeito passivo tem direito, nos
termos do artigo 17.°, e o âmbito dos eventuais ajustamentos durante os períodos
seguintes.
- 19.
- Por outro lado, no acórdão de 29 de Fevereiro de 1996, INZO (C-110/94, Colect.,
p. I-857), relativo à situação de uma empresa que jamais realizara qualquer
operação tributável, o Tribunal de Justiça julgou, nos n.os 20 e 21, que o direito à
dedução, uma vez criado, subsiste mesmo que a actividade económica projectada
não dê origem a operações tributadas.
- 20.
- De igual forma, o direito à dedução subsiste mesmo que, por razões alheias à sua
vontade, o sujeito passivo não tenha podido utilizar os bens ou serviços que deram
origem à dedução no âmbito de operações tributáveis.
- 21.
- Decorre também do acórdão INZO (n.° 24) que, em situações fraudulentas ou
abusivas, em que o interessado simulou desenvolver uma actividade económica
especial, mas procurou, na realidade, fazer entrar no seu património privado bens
que podem ser objecto de dedução, a administração fiscal pode pedir, com efeitos
retroactivos, a restituição das quantias deduzidas, uma vez que essas deduções
foram concedidas com base em falsas declarações.
- 22.
- Pelo contrário, não existe qualquer risco de fraude ou abuso que possa justificar
uma ulterior restituição no caso de terem sido razões alheias à vontade do sujeito
passivo que o impediram de utilizar os bens ou serviços que deram lugar à dedução
para efeitos das suas operações tributáveis.
- 23.
- Saliente-se, por último, que, sendo caso disso, a entrega de bens de investimento
durante o período de ajustamento, como sucede no processo principal, pode dar
lugar ao ajustamento da dedução nas condições previstas no n.° 3 do artigo 20.° da
directiva.
- 24.
- Cabe, pois, responder à questão prejudicial dizendo que o artigo 17.° da directiva
deve ser interpretado no sentido de permitir que um sujeito passivo, agindo como
tal, deduza o IVA de que é devedor relativamente a bens que lhe foram entregues
ou serviços que lhe foram prestados para efeitos de trabalhos de investimento
destinados a serem utilizados no âmbito de operações tributadas. O direito à
dedução subsiste mesmo que, por factos razões alheias à sua vontade, o sujeito
passivo jamais tenha feito uso de tais bens e serviços para realizar operações
tributadas. Sendo caso disso, a entrega de bens de investimento durante o período
de ajustamento pode dar lugar ao ajustamento da dedução nas condições previstas
no n.° 3 do artigo 20.° da directiva.
Quanto às despesas
- 25.
- As despesas efectuadas pelos Governos alemão e helénico e pela Comissão das
Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são
reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a
natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a
este decidir quanto às despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),
pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Hof van Cassatie van België, por
decisão de 10 de Fevereiro de 1995, declara:
O artigo 17.° da Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977,
relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos
impostos sobre o volume de negócios sistema comum do imposto sobre o valor
acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de
permitir que um sujeito passivo, agindo como tal, deduza o IVA de que é devedor
relativamente a bens que lhe foram entregues ou serviços que lhe foram prestados
para efeitos de trabalhos de investimento destinados a serem utilizados no âmbito
de operações tributadas. O direito à dedução subsiste mesmo que, por razões
alheias à sua vontade, o sujeito passivo jamais tenha feito uso de tais bens e
serviços para realizar operações tributadas. Sendo caso disso, a entrega de bens de
investimento durante o período de ajustamento pode dar lugar ao ajustamento da
dedução nas condições previstas no n.° 3 do artigo 20.° da Directiva 77/388.
Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 15 de Janeiro de 1998.
O secretário
O presidente da Segunda Secção
R. Grass
R. Schintgen