Language of document : ECLI:EU:C:2022:865

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

10 de novembro de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2005/212/JAI — Aplicabilidade — Aplicação de uma sanção pecuniária a uma pessoa coletiva pelo não pagamento de dívidas fiscais — Conceito de “perda” — Artigos 48.o, 49.o e 52.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Sanções de caráter penal — Princípios da presunção de inocência, da legalidade e da proporcionalidade dos crimes e das penas — Direitos de defesa — Aplicação de uma sanção penal a uma pessoa coletiva por uma infração cometida pelo representante dessa pessoa coletiva — Processo penal paralelo não concluído contra esse representante — Proporcionalidade»

No processo C‑203/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Okrazhen sad — Burgas (Tribunal Regional de Burgas, Bulgária), por Decisão de 12 de março de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 31 de março de 2021, no processo penal contra

DELTA STROY 2003,

sendo intervenientes:

Okrazhna prokuratura — Burgas,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos (relator), presidente de secção, L. S. Rossi, J.‑C. Bonichot, S. Rodin, e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas em representação da Comissão Europeia por M. Wasmeier e I. Zaloguin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de junho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 4.o e 5.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda dos produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime (JO 2005, L 68, p. 49), e do artigo 49.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        O pedido foi apresentado no âmbito de um processo instaurado contra a DELTA STROY 2003 EOOD (a seguir «Delta Stroy») para efeitos da aplicação de uma sanção pecuniária a essa sociedade por uma infração penal relativa ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA) imputada à sua gerente e representante.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Decisão‑Quadro 2005/212

3        O artigo 1.o da Diretiva 2005/212, intitulado «Definições», prevê:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

—        “produto”, qualquer vantagem económica resultante de infrações penais. Pode consistir em qualquer bem, definido nos termos do travessão que se segue,

—        “bens”, ativos de qualquer espécie, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, bem como documentos jurídicos ou instrumentos comprovativos da propriedade desses ativos ou dos direitos com eles relacionados,

—        “instrumentos”, quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais,

—        “perda”, uma sanção ou medida, decretada por um tribunal em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem,

[…]»

4        O artigo 2.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Perda», dispõe:

«1.      Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos.

2.      Quando se trate de infração fiscal, os Estados‑Membros podem utilizar processos não penais para destituir o autor da infração dos produtos desta.»

5        O artigo 4.o da referida decisão‑quadro, sob a epígrafe «Vias de recurso», enuncia:

«Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias para assegurar que as partes interessadas afetadas pelas medidas previstas nos artigos 2.o e 3.o disponham de vias de recurso eficazes para defenderem os seus direitos.»

6        O artigo 5.o da mesma decisão‑quadro, sob a epígrafe «Salvaguardas», dispõe:

«A presente decisão‑quadro não tem por efeito a alteração da obrigação de respeitar os direitos e os princípios fundamentais consagrados no artigo 6.o do Tratado da União Europeia, nomeadamente o da presunção de inocência.»

 DecisãoQuadro 2005/214/JAI

7        O artigo 1.o da Decisão‑Quadro 2005/214/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sanções pecuniárias (JO 2005, L 76, p. 16), sob a epígrafe «Definições», dispõe:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

[…]

b)      “Sanção pecuniária”, a obrigação de pagar:

i)      uma quantia em dinheiro após condenação por infração, imposta por uma decisão,

[…]

A sanção pecuniária não inclui:

—        as decisões de perda dos instrumentos ou produtos do crime,

[…]»

 Diretiva 2014/42/UE

8        O artigo 2.o da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia (JO 2014, L 127, p. 39), dispõe:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

1)      “Produto”, qualquer vantagem económica resultante, direta ou indiretamente, de uma infração penal; pode consistir em qualquer tipo de bem e abrange a eventual transformação ou reinvestimento posterior do produto direto assim como quaisquer ganhos quantificáveis;

2)      “Bens”, os ativos de qualquer espécie, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, bem como documentos legais ou atos comprovativos da propriedade desses ativos ou dos direitos com eles relacionados;

[…]

4)      “Perda”, a privação definitiva de um bem, decretada por um tribunal relativamente a uma infração penal;

[…]»

9        O artigo 14.o, n.o 1, dessa diretiva prevê:

«São substituídos pela presente diretiva, para os Estados‑Membros que a ela estão vinculados, a Ação Comum [98/699/JAI, de 3 de dezembro de 1998, adotada pelo Conselho com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa ao branqueamento de capitais, identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda de instrumentos e produtos do crime (JO 1998, L 333, p. 1)], o artigo 1.o, alínea a), e os artigos 3.o e 4.o da Decisão‑Quadro 2001/500/JAI [do Conselho, de 26 de junho de 2001, relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, deteção, congelamento, apreensão e perda dos instrumentos e produtos do crime (JO 2001, L 182, p. 1)], assim como o artigo 1.o, primeiro ao quarto travessões, e o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI, sem prejuízo das obrigações desses Estados‑Membros quanto ao prazo de transposição destas decisões‑quadro para o direito nacional.»

 Direito búlgaro

 Zann

10      O zakon za administrativnite narushenia i nakazania (Lei das Infrações e Sanções Administrativas) (DV n.o 92, de 28 de novembro de 1969), na sua versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «Zann»), inclui um capítulo 4, intitulado «Sanções administrativas de caráter penal contra pessoas coletivas e empresários individuais», que, por sua vez, inclui os artigos 83, 83a, 83b, e 83d a 83g dessa lei.

11      O artigo 83 dessa lei dispõe:

«(1)      Nos casos previstos por lei, decreto, decreto do Conselho de Ministros ou decreto municipal aplicáveis, pode ser aplicada uma sanção pecuniária às pessoas coletivas e aos empresários individuais por não terem cumprido as suas obrigações para com o Estado ou para com o município no exercício da sua atividade.

2)      A sanção referida no número anterior é aplicada de acordo com as modalidades previstas na presente lei, quando o ato normativo correspondente não disponha em contrário.»

12      O artigo 83a da mesma lei prevê:

«(1)      qualquer pessoa coletiva que tenha enriquecido ou possa enriquecer na sequência de uma infração nos termos dos artigos 255.o […] do Código Penal, bem como de qualquer infração cometida, por conta ou por iniciativa de um grupo criminoso organizado, por:

1.      uma pessoa com poderes para obrigar a pessoa coletiva;

2.      uma pessoa que representa a pessoa coletiva;

3.      uma pessoa eleita para um órgão de controlo ou de fiscalização da pessoa coletiva; ou

4.      Um trabalhador ou um empregado a quem a pessoa coletiva tenha atribuído uma tarefa especial, quando a infração tenha sido cometida no exercício ou por ocasião dessa tarefa,

será punida com sanção pecuniária pelo menos igual ao valor da vantagem, até ao máximo de 1 000 000 [levs búlgaros (BGN), cerca de 511 000 euros], quando se trate de uma vantagem patrimonial […].

(2)      a sanção pecuniária será igualmente aplicada a qualquer pessoa coletiva que não tenha a sua sede no território da República da Bulgária, quando a infração referida no n.o 1 tenha sido cometida no território da República da Bulgária.

(3)      A sanção pecuniária será aplicada à pessoa coletiva mesmo que as pessoas referidas no n.o 1, pontos 1, 2 e 3, tenham incitado às infrações indicadas ou tenham sido cúmplices, bem como quando a infração não tenha ido além a fase da tentativa.

(4)      A sanção pecuniária será aplicada, independentemente da responsabilidade penal efetiva das pessoas que participaram na infração referida no n.o 1.

(5)      A vantagem direta ou indireta que a pessoa coletiva tiver obtido da infração referida no n.o 1 será perdida a favor do Estado se não tiver de ser restituída ou reembolsada, ou será apreendida nos termos do Código Penal. Quando o bem ou o ativo objeto da infração desapareça ou tenha sido alienado, é atribuído um montante correspondente ao seu valor em levs (BGN).

[…]»

13      Nos termos do artigo 83b do ZANN:

«(1)      O processo previsto no artigo 83a é instaurado, mediante promoção fundamentada do procurador competente para analisar o processo ou os autos relativos à infração em causa, no Okrazhen sad (tribunal regional) do lugar da sede da pessoa coletiva, e, nos casos referidos no artigo 83a, n.o 2, no Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária):

1.      […] após a apresentação em juízo da acusação, do despacho que propõe a isenção de responsabilidade penal do autor da infração e de lhe ser aplicada uma sanção administrativa, ou do acordo de negociação da pena;

[…]

(2)      A proposta deve […]:

1)      conter uma descrição da infração, a indicação das circunstâncias em que foi cometida e a demonstração da existência de um nexo de causalidade entre a infração e a vantagem para a pessoa coletiva;

2)      indicar a natureza e o valor da vantagem;

3)      indicar o nome, o objeto da atividade, a sede e a morada da direção da pessoa coletiva;

4)      indicar os dados pessoais do representante da pessoa coletiva;

5)      indicar os dados pessoais das pessoas acusadas da infração ou por ela condenadas;

6)      conter uma lista dos documentos escritos que comprovem as circunstâncias referidas nos pontos 1 e 2, ou cópias autenticadas desses documentos;

7)      conter uma lista das pessoas a convocar;

8)      indicar a data e o lugar da sua redação, bem como o nome, a função e a assinatura do procurador.

[…]»

14      O artigo 83d dessa lei enuncia:

«[…]

(2)      O tribunal, em formação singular, analisa a proposta em audiência pública na qual participa o Ministério Público, sendo a pessoa coletiva notificada para comparecer.

(3)      A falta de comparência do representante da pessoa coletiva, quando a notificação tenha sido devidamente feita, não obsta a que o tribunal conheça do processo.

(4)      O tribunal deve recolher a prova oficiosamente ou a pedido das partes.

(5)      O tribunal examina o processo e, com base na prova recolhida, aprecia:

1.      se a pessoa coletiva em causa obteve uma vantagem ilícita;

2.      se existe uma relação entre o autor da infração e a pessoa coletiva;

3.      se há um nexo entre a infração e a vantagem obtida pela pessoa coletiva;

4.      quais a natureza e o valor da vantagem, se esta for patrimonial.

(6)      O tribunal pronuncia‑se por decisão pela qual:

1.      aplica uma sanção pecuniária; [ou]

2.      não aplica uma sanção pecuniária.

(7)      A decisão referida no n.o 6, ponto 1, deve conter:

1.      dados relativos à pessoa coletiva;

2.      os dados relativos à origem, à natureza e ao valor da vantagem;

3.      o montante da sanção pecuniária aplicada;

4.      a descrição do bem que eventualmente é perdido a favor do Estado;

5.      a fixação das despesas.

[…]»

15      Segundo o artigo 83e da referida lei:

«[…]

(1)      Da Decisão do Okrazhen sad [(Tribunal Regional)] nos termos do artigo 83d, n.o 6, cabe recurso [da pessoa punida] ou reclamação («protest») [do Ministério Público] para o Apelativen sad [(Tribunal de Recurso)], no prazo de 14 dias a contar da sua notificação às partes.

(2)      O processo é apreciado em audiência pública na qual o Ministério Público participa. A pessoa coletiva também é notificada para a audiência.

(3)      Só é admitida no processo […] prova escrita.

(4)      O Apelativen sad [(Tribunal de Recurso)] profere decisão em que pode:

1.      anular a decisão do Okrazhen sad [(Tribunal Regional)] e devolver o processo para nova apreciação, quando tenham sido cometidas violações substanciais das normas processuais no processo em primeira instância;

2.      anular a decisão do Okrazhen sad [(Tribunal Regional)] e aplicar uma sanção pecuniária;

3.      anular a decisão do Okrazhen sad [(Tribunal Regional)] e recusar aplicar uma sanção pecuniária;

4.      alterar a decisão do Okrazhen sad [(Tribunal Regional)];

5.      confirmar a decisão do Okrazhen sad [(Tribunal Regional)].

5)      A decisão do Apelativen sad [(Tribunal de Recurso)] é definitiva.»

16      O artigo 83f do Zann tem a seguinte redação:

«[…]

(1) o processo em que o Okrazhen sad [(Tribunal Regional)] ou o Apelativen sad [(Tribunal de Recurso)] proferiram decisão definitiva pode ser reaberto quando:

1.      se demonstrar por sentença transitada em julgado que determinadas provas escritas com base nas quais a decisão foi proferida são falsos ou contêm falsas informações;

2.      se demonstrar por sentença transitada em julgado que o juiz, o Ministério Público, uma parte ou um interveniente no processo cometeu uma infração relacionada com a sua participação no processo;

3.      após a entrada em vigor da decisão de aplicar uma sanção pecuniária à pessoa coletiva, a pessoa referida no artigo 83a, n.o 1, pontos 1 a 4, tenha sido absolvida por decisão judicial transitada em julgado, ou o Ministério Público tiver posto termo ao procedimento preliminar suspenso nos casos previstos no artigo 24.o, n.o 1, ponto 1, do Código de Processo Penal;

4.      sejam reveladas após a entrada em vigor da decisão circunstâncias ou provas que não eram conhecidas da parte e do tribunal e que revistam uma importância significativa para efeitos do processo;

5.      uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tenha declarado a existência de uma violação da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que tenha importância significativa para efeitos do processo;

6.      tenha sido cometida no processo uma violação substancial das normas processuais.

(2)      O pedido de reabertura pode ser apresentado no prazo de seis meses a contar do conhecimento do facto gerador e, nos casos referidos no n.o 1, ponto 6, a contar da entrada em vigor da decisão do Okrazhen sad (Tribunal de Primeira Instância) ou do Apelativen sad (Tribunal de Recurso).

(3)      O pedido de reabertura não suspende a execução da decisão entrada em vigor, salvo decisão do tribunal em contrário.

(4)      O pedido de reabertura do processo pode ser apresentado:

1.      pelo procurador regional do Ministério Público;

2.      pela pessoa coletiva à qual foi aplicada uma sanção pecuniária.

(5)      O pedido de reabertura é apreciado pelo Apelativen sad [(Tribunal de Recurso)] da circunscrição judicial em que se encontra a autoridade que proferiu a decisão que entrou em vigor.

(6)      O Apelativen sad [(Tribunal de Recurso)] examina o pedido numa formação composta por três juízes. Quando respeite a uma decisão do Apelativen sad [(Tribunal de Recurso)], o pedido de reabertura é apreciado por uma secção diferente desse Apelativen sad [(Tribunal de Recurso)].

(7)      O processo é examinado em audiência pública com a participação do Ministério Público. A pessoa coletiva também é notificada para a audiência.

(8)      Quando considerar que o pedido é procedente, o Apelativen sad (Tribunal de Recurso) anula a decisão e devolve o processo para que seja novamente examinado, indicando o ato processual a partir do qual o exame deve ser retomado.»

17      O artigo 83g dessa lei dispõe:

«Para as questões não reguladas pelos artigos 83b a 83f, são aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.»

 Código Penal

18      O artigo 255.o, n.o 1, do Nakazatelen kodeks (Código Penal) dispõe:

«Quem obstar à liquidação ou ao pagamento de dívidas fiscais de montantes elevados, na medida em que:

[…]

2.      preste informações enganosas ou oculte a verdade na declaração que apresentou,

3.      não emita uma fatura ou outro documento contabilístico,

[…]

é punido com pena de prisão de um a seis anos e multa até 2 000 [BGN].»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

19      ZK é a gerente e representante da Delta Stroy, com sede em Burgas (Bulgária). Nessa qualidade, em 5 de agosto de 2019, ZK foi acusada de, em condições de infração continuada, ter evitado o pagamento de dívidas fiscais no montante total de 11 388,98 BGN (cerca de 5 800 euros), correspondente ao IVA devido relativamente aos períodos fiscais de março, abril e julho de 2009, infração prevista e punida pelo artigo 255.o, n.o 1, pontos 2 e 3, do Código Penal. Esse processo penal estava pendente no Okrazhen sad — Burgas (Tribunal Regional de Burgas, Bulgária), à data da apresentação do presente pedido de decisão prejudicial.

20      Em 9 de dezembro de 2020, o procurador do okrazhna prokuratura — Burgas (Ministério Público Regional de Burgas, Bulgária) promoveu junto desse tribunal, em processo separado, que fosse aplicada uma sanção pecuniária à Delta Stroy, com base nos artigos 83a e seguintes do Zann, por ter essa sociedade obtido uma vantagem patrimonial com a infração cometida por ZK. A esta proposta estava anexa a acusação deduzida contra ZK.

21      O Okrazhen sad — Burgas (Tribunal Regional de Burgas) tem dúvidas quanto à conformidade dos artigos 83a e seguintes do Zann com a Decisão‑Quadro 2005/212, bem como com o princípio da legalidade dos crimes e das penas, consagrado no artigo 49.o da Carta, na medida em que permitem ao juiz penal aplicar a uma pessoa coletiva uma sanção pecuniária por uma infração objeto de um processo penal paralelo que ainda não foi definitivamente concluído.

22      Esse tribunal lembra, antes de mais, que uma versão anterior das disposições pertinentes do Zann previa que só podia ser aplicada uma sanção pecuniária a uma pessoa coletiva por uma infração cometida por uma pessoa singular relacionada com a atividade dessa pessoa coletiva após trânsito em julgado da decisão judicial que condenasse essa pessoa singular. Ora, na sequência da alteração dessas disposições, essa exigência foi abandonada.

23      O referido tribunal explica que, no presente processo, foram instaurados dois processos paralelos, um contra ZK, com base no artigo 255.o, n.o 1, do Código Penal, por uma infração fiscal que esta teria cometido, e o outro contra a Delta Stroy, com base nos artigos 83a e seguintes do Zann, para que fosse aplicada a esta sociedade uma sanção pecuniária de montante equivalente à vantagem patrimonial decorrente dessa infração. Esse mesmo tribunal refere que o Zann não prevê a possibilidade de suspender o processo instaurado ao abrigo dos seus artigos 83a e seguintes até que o processo penal instaurado contra ZK esteja concluído.

24      Em seguida, o órgão jurisdicional de reenvio considera que aplicar a uma pessoa coletiva, devido à prática de uma infração por uma pessoa singular, uma sanção pecuniária correspondente à vantagem que essa pessoa coletiva retirou ou pode retirar dessa infração, constitui uma perda total ou parcial dos produtos da infração, na aceção do artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212.

25      Por último, o órgão jurisdicional de reenvio lembra que o artigo 49.o da Carta consagra o princípio da legalidade dos crimes e das penas, que proíbe aplicar uma sanção antes de se provar a existência da infração. Ora, no que respeita ao Zann, a questão de saber se uma infração foi efetivamente cometida pela pessoa singular não figura entre os elementos que o juiz penal deve apreciar, por força do artigo 83d, n.o 5, dessa lei, para efeitos da aplicação de uma eventual sanção penal pecuniária à pessoa coletiva.

26      Assim, o procedimento previsto nos artigos 83a e seguintes do Zann permite, na prática, aplicar a uma pessoa coletiva uma sanção, baseada unicamente nos elementos da acusação contra o representante e gerente dessa pessoa coletiva a propósito de uma infração específica cuja realidade ainda não foi demonstrada por decisão judicial transitada em julgado.

27      Neste contexto, o Okrazhen sad — Burgas (Tribunal Regional de Burgas) suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem os artigos 4.o e 5.o da Decisão Quadro [2005/212] e o artigo 49.o da [Carta] ser interpretados no sentido de que permitem uma legislação de um Estado‑Membro nos termos da qual é possível, num processo como o processo principal, aplicar uma pena a uma pessoa coletiva por uma infração específica cuja prática ainda não foi apurada por ser objeto de um processo penal paralelo ainda não definitivamente concluído?

2)      Devem os artigos 4.o e 5.o da Decisão Quadro [2005/212] e o artigo 49.o da [Carta] ser interpretados no sentido de que permitem uma legislação de um Estado‑Membro nos termos da qual é possível, num processo como o processo principal, aplicar uma pena a uma pessoa coletiva mediante a fixação do montante dessa pena com base na vantagem que teria sido obtida em resultado da prática de uma infração específica, mas cuja prática ainda não foi apurada por ser objeto de um processo penal paralelo ainda não definitivamente concluído?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

 Observações preliminares

28      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação judicial entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituída pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas. Com efeito, o Tribunal de Justiça tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitem para decidir dos litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são apresentadas [v., neste sentido, Acórdão de 7 de julho de 2022, Pensionsversicherungsanstalt (Períodos de educação de crianças no estrangeiro), C‑576/20, EU:C:2022:525, n.o 35 e jurisprudência referida].

29      A este respeito, refira‑se em primeiro lugar que, embora, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio se interrogue sobre a interpretação dos artigos 4.o e 5.o da Decisão‑Quadro 2005/212, que é relativa à perda dos produtos, dos instrumentos e dos bens relacionados com o crime, o processo principal não diz respeito a esse processo de perda.

30      Com efeito, no que respeita, antes de mais, ao conceito de «perda», não se deve tomar como referência a definição que figura no artigo 1.o, quarto travessão, da Decisão‑Quadro 2005/212, mas sim a que figura no artigo 2.o, ponto 4, da Diretiva 2014/42, uma vez que esta diretiva, por força do seu artigo 14.o, n.o 1, substituiu, nomeadamente, os quatro primeiros travessões do artigo 1.o dessa decisão‑quadro. Ora, segundo esta última definição, constitui perda a «privação definitiva de um bem, decretada por um tribunal relativamente a uma infração penal».

31      Seguidamente, o artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212 exige que cada Estado‑Membro tome as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos.

32      Por último, resulta do artigo 2.o, ponto 1, da Diretiva 2014/42 que um «produto» corresponde a qualquer vantagem económica decorrente de infrações penais e pode consistir em qualquer tipo de bem.

33      Neste quadro, embora uma quantia em dinheiro constitua um «bem», suscetível de perda (v., neste sentido, Acórdão de 21 de outubro de 2021, Okrazhna prokuratura — Varna, C‑845/19 e C‑863/19, EU:C:2021:864, n.o 58), esse bem só pode ser sujeito a uma medida de perda, nos termos do artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212, se corresponder à vantagem proveniente de uma infração penal, a saber, o produto dessa infração, ou ao instrumento dessa infração, a saber, o objeto empregue ou destinado a ser empregue para a prática da referida infração.

34      Em contrapartida, o conceito de «sanção pecuniária», conforme definido no artigo 1.o, alínea b), i), da Decisão‑Quadro 2005/214, designa qualquer obrigação de pagar uma quantia em dinheiro após condenação por uma infração, aplicada no âmbito de uma decisão em matéria penal. Esta disposição precisa que esse conceito não abrange, nomeadamente, as decisões de perda dos instrumentos ou dos produtos do crime.

35      Refira‑se, a esse respeito, que o montante da sanção pecuniária não corresponderá necessariamente ao valor da vantagem económica obtida com a infração punida por essa sanção. Com efeito, essa sanção pode ser fixada em montante inferior, igual ou superior ao valor dessa vantagem e pode mesmo ser aplicada na ausência dessa vantagem ou simultaneamente com a perda dos produtos provenientes da infração penal. Por outro lado, essa sanção pecuniária também não é equiparável à perda do instrumento com o qual a infração em causa foi cometida.

36      Assim, verifica‑se que o legislador da União, ao adotar as Decisões‑Quadro 2005/212 e 2005/214, quis distinguir as medidas de perda de bens, que constituem o produto ou o instrumento de infrações penais, das medidas de sanção pecuniária ligada a tais infrações.

37      No caso, o órgão jurisdicional de reenvio considera que aplicar a uma pessoa coletiva, em razão da prática de uma infração por uma pessoa singular, uma sanção pecuniária correspondente à vantagem que a pessoa coletiva retirou ou pode retirar dessa infração constitui uma perda total ou parcial dos produtos da infração, na aceção da Decisão‑Quadro 2005/212. Precisa, no entanto, que o direito búlgaro autoriza a aplicação dessa sanção pecuniária mesmo que não tenha sido efetivamente obtida nenhuma vantagem ou ainda quando a vantagem não seja de natureza patrimonial, e acrescenta que o procedimento previsto nos artigos 83a e seguintes do Zann não se concentra exclusivamente nos bens adquiridos ilicitamente. Além disso, resulta desse artigo 83a, n.o 1, que o montante da sanção pecuniária que pode ser aplicada pode exceder o valor da vantagem obtida.

38      Em face do exposto, uma sanção pecuniária, como a prevista no artigo 83a, n.o 1, do Zann, não constitui uma medida de perda na aceção da Decisão‑Quadro 2005/212 e da Diretiva 2014/42, mesmo quando o montante dessa sanção corresponda ao valor da vantagem patrimonial obtida com a infração.

39      Daí resulta que esta decisão‑quadro não é aplicável ao litígio no processo principal e que, por conseguinte, não há que interpretar os seus artigos 4.o e 5.o no âmbito do presente reenvio prejudicial.

40      Em segundo lugar, quanto às dúvidas que o órgão jurisdicional de reenvio tem sobre a conformidade dos artigos 83a e seguintes do Zann com o artigo 49.o da Carta, há que observar, primeiro, que o processo principal tem por objeto a aplicação de uma sanção pecuniária a uma sociedade com fundamento numa vantagem patrimonial ilícita por ela obtida devido a uma infração penal cometida pela sua representante e gerente em matéria de declaração de IVA.

41      O Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de que, uma vez que se destinam a assegurar a cobrança exata do IVA e combater a fraude, as sanções administrativas aplicadas pelas autoridades fiscais nacionais e os processos penais instaurados por infrações em matéria de IVA constituem uma aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta (v., neste sentido, Acórdãos de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C‑617/10, EU:C:2013:105, n.os 26 e 27, e de 5 de maio de 2022, BV, C‑570/20, EU:C:2022:348, n.o 26). O mesmo se diga das sanções aplicadas por um tribunal no contexto de tais processos penais. Daí resulta que a Carta é aplicável ao processo principal.

42      Segundo, é pacífico que o regime de sanções em causa no processo principal tem natureza penal. O órgão jurisdicional de reenvio indica, em especial, que o procedimento dos artigos 83a e seguintes do Zann apresenta todas as características de um processo penal.

43      Terceiro, o artigo 49.o da Carta consagra, nomeadamente, o princípio da legalidade dos crimes e das penas e corresponde, como resulta das explicações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), ao artigo 7.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

44      Nos termos do artigo 52.o, n.o 3, da Carta, na medida em que esta contém direitos correspondentes aos direitos garantidos pela CEDH, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa convenção. O Tribunal de Justiça deve, portanto, assegurar‑se de que a interpretação que dá ao artigo 49.o da Carta garante um nível de proteção que não desrespeite o garantido pelo artigo 7.o da CEDH, como interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [v., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio), C‑564/19, EU:C:2021:949, n.o 101 e jurisprudência referida].

45      Ora, como salientou o próprio órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já declarou que o artigo 7.o da CEDH se opõe a que uma sanção de natureza penal possa ser aplicada a um indivíduo sem que seja demonstrada e declarada previamente a sua responsabilidade penal pessoal, sob pena de se desrespeitar igualmente a presunção de inocência garantida no artigo 6.o, n.o 2, da CEDH (TEDH, 28 de junho de 2018, G.I.E.M s.r.l e o. c. Itália, CE:ECHR:2018:0628JUD000182806, § 251).

46      Na medida em que o artigo 49.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que contém as mesmas prescrições que decorrem do artigo 7.o da CEDH e que são mencionadas no número anterior, esse artigo 49.o é pertinente para a resposta a dar à primeira questão prejudicial.

47      Dito isto, como confirma a jurisprudência recordada no n.o 45 do presente acórdão, tais disposições equivalem igualmente às que decorrem do princípio da presunção de inocência previsto no artigo 6.o, n.o 2, da CEDH, que está expressamente consagrado no artigo 48.o, n.o 1, da Carta.

48      Assim, tendo em conta o objeto do presente pedido de decisão prejudicial, que diz respeito, em substância, à atribuição, por presunção, de responsabilidade penal a uma pessoa coletiva devido aos comportamentos do seu representante e gerente, basta, no âmbito da resposta a dar a esta questão, tomar como base não o artigo 49.o mas sim o artigo 48.o, n.o 1, da Carta, o qual, à semelhança da jurisprudência referida no n.o 44 do presente acórdão, deve ser interpretado assegurando um nível de proteção que não desrespeite o garantido pelo artigo 6.o da Carta.

49      Quanto ao artigo 48.o, n.o 2, da Carta, que consagra o princípio do respeito dos direitos de defesa, revela‑se igualmente pertinente para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio.

50      Por conseguinte, há que reformular a primeira questão no sentido de que visa, em substância, determinar se o artigo 48.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual o juiz nacional pode aplicar a uma pessoa coletiva uma sanção penal por uma infração pela qual é responsável uma pessoa singular que tem o poder de obrigar ou representar essa pessoa coletiva, no caso de essa responsabilidade ainda não ter sido definitivamente demonstrada.

 Quanto ao mérito

51      Nos termos do artigo 48.o, n.o 1, da Carta, todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa. Este princípio é aplicável quando se trate de determinar os elementos objetivos constitutivos de uma infração suscetível de conduzir à aplicação de sanções administrativas com caráter penal (Acórdão de 9 de setembro de 2021, Adler Real Estate e o., C‑546/18, EU:C:2021:711, n.o 46 e jurisprudência referida), como acontece no caso presente, conforme observado no n.o 42 do presente acórdão.

52      Por outro lado, o artigo 48.o, n.o 2, da Carta enuncia que é garantido a todo o arguido o respeito dos direitos de defesa. O Tribunal de Justiça já declarou que o respeito dos direitos de defesa constitui, em qualquer processo suscetível de conduzir à aplicação de sanções, um princípio fundamental do direito da União [Acórdãos de 14 de setembro de 2010, Akzo Nobel Chemicals e Akcros Chemicals/Comissão e o., C‑550/07 P, EU:C:2010:512, n.o 92, e de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar dos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 204].

53      Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, resulta das disposições conjugadas do artigo 83a, n.o 1, e dos artigos 83b e 83f do Zann que pode ser aplicada uma sanção penal a uma pessoa coletiva no caso de esta ter enriquecido ou poder enriquecer na sequência de uma infração imputada a uma pessoa singular que tenha o poder de a obrigar ou que a represente, mesmo antes de essa pessoa singular ter sido definitivamente condenada por essa infração.

54      Por outro lado, resulta da decisão de reenvio que o tribunal chamado a pronunciar‑se sobre uma promoção do procurador competente no sentido de se aplicar uma sanção pecuniária a uma pessoa coletiva, em aplicação do artigo 83a, n.o 1, do Zann, deve, de acordo com o artigo 83d, n.o 5, dessa lei, examinar o processo apenas com base nos elementos referidos nesta última disposição, a saber, a obtenção de uma vantagem ilícita pela pessoa coletiva em causa, a existência de um vínculo entre o autor da infração e a pessoa coletiva, a existência de um nexo entre a infração e a vantagem obtida e a natureza e valor da vantagem, se for de natureza patrimonial. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que todos estes elementos se baseiam na premissa de que foi cometida uma infração penal e acrescenta que o tribunal ao qual foi submetida a promoção do procurador competente não pode contestar o mérito desta premissa, uma vez que só no âmbito do processo penal instaurado contra a pessoa singular pode ser tratada a questão de saber se foi cometida uma infração penal.

55      Por último, de modo nenhum resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que a pessoa coletiva disponha de um recurso de plena jurisdição que lhe permita impugnar, numa fase posterior do processo instaurado contra si, a realidade da existência de uma infração.

56      Com efeito, embora essa pessoa coletiva possa interpor recurso da sua condenação, nos termos do artigo 83e do Zann, o tribunal que decide em sede de recurso também não está em condições de apreciar a realidade dessa premissa.

57      Do mesmo modo, só em determinadas circunstâncias muito particulares pode o processo que conduziu à condenação penal da pessoa coletiva ser reaberto, de acordo com o artigo 83f dessa lei. Por conseguinte, sem ser sequer necessário conhecer da questão de saber se essas causas de reabertura conferem ao tribunal da causa competências mais amplas do que dispunha quando decidiu, em primeira instância ou em sede de recurso, basta observar que se trata de um meio processual excecional que não pode ser exercido de pleno direito pela pessoa coletiva condenada penalmente nos termos dos artigos 83a e seguintes da referida lei.

58      Daqui resulta que, como salientou, em substância, o advogado‑geral nos n.os 50 e 52 das suas conclusões, a pessoa coletiva pode ser punida penalmente, de maneira definitiva, em consequência de uma infração imputada à pessoa singular que tem o poder de a obrigar ou de a representar, sem que o tribunal competente possa apreciar a realidade dessa infração e sem que a pessoa coletiva possa apresentar utilmente as suas observações a este respeito.

59      Essa situação é suscetível de violar de modo manifestamente desproporcionado o princípio da presunção de inocência e os direitos de defesa, que são garantidos a essa pessoa coletiva nos termos do artigo 48.o da Carta.

60      Com efeito, embora seja verdade que o artigo 48.o da Carta não se opõe a que um Estado‑Membro institua presunções de facto ou de direito, cabe a esse Estado‑Membro confinar as presunções que figuram nas suas leis repressivas dentro de limites razoáveis, tendo em conta a gravidade dos interesses em jogo e preservando os direitos de defesa, sob pena de violar de modo desproporcionado o princípio da presunção de inocência consagrado no n.o 1 desse artigo (v., neste sentido, Acórdão de 9 de setembro de 2021, Adler Real Estate e o., C‑546/18, EU:C:2021:711, n.o 47).

61      Do mesmo modo, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já declarou que os Estados contratantes podem, nomeadamente, em certas condições, tornar punível um facto material ou objetivo considerado em si mesmo. Contudo, em matéria penal, a CEDH obriga‑os a respeitar um certo limiar. Esse limiar é excedido quando uma presunção tem por efeito privar uma pessoa de qualquer possibilidade de se ilibar de factos que lhe são imputados, privando‑a assim de beneficiar do artigo 6.o, n.o 2, da CEDH (v., neste sentido, TEDH, 28 de junho de 2018, G.I.E.M s.r.l e o. c. Itália, CE:ECHR:2018:0628JUD000182806, § 243 e jurisprudência referida).

62      Ora, como sublinhado no n.o 54 do presente acórdão, o tribunal chamado a punir a pessoa coletiva só está habilitado a pronunciar‑se sobre certos elementos precisos, sem poder apreciar a realidade da infração suscetível de fundamentar essa sanção. Daí resulta que essa pessoa coletiva não está em condições de exercer utilmente os seus direitos de defesa, uma vez que não pode impugnar a realidade dessa infração e, em definitivo, tem de sofrer as consequências da existência de um processo distinto instaurado contra a pessoa singular que tem o poder de a obrigar ou de a representar.

63      A este respeito, importa recordar que os direitos de defesa têm caráter subjetivo, pelo que são as próprias partes em causa que devem estar em condições de os exercer efetivamente (Acórdão de 9 de setembro de 2021, Adler Real Estate e o., C‑546/18, EU:C:2021:711, n.o 59 e jurisprudência referida). Além disso, não se pode de modo nenhum excluir uma divergência de interesses entre a pessoa coletiva e a pessoa singular que tem o poder de a obrigar ou de a representar.

64      Esta conclusão não pode ser posta em causa pela possibilidade de a pessoa coletiva, ao abrigo do artigo 83f do Zann, pedir a reabertura do processo com vista a obter a absolvição da sanção pecuniária que lhe foi aplicada, nomeadamente no caso de a pessoa singular que tem o poder de a obrigar ou representar ser ilibada das acusações que recaíam sobre ela. Com efeito, como se refere no n.o 55 do presente acórdão, esse meio processual não pode ser equiparado a um processo de plena jurisdição que possa ser exercido de pleno direito por essa pessoa coletiva.

65      Por outro lado, embora seja verdade que o procedimento instituído pelos artigos 83a e seguintes do Zann permite proteger os interesses financeiros da União, assegurando uma correta cobrança do IVA, não é menos verdade que tal objetivo não pode justificar uma lesão desproporcionada das garantias contidas no artigo 48.o da Carta (v., por analogia, TEDH, 23 de novembro de 2006, Jussila c. Finlândia, CE:ECHR:2006:1123JUD007305301, § 36). De resto, não está demonstrado que um procedimento como o que está em causa no processo principal seja necessário para evitar um risco sistémico de impunidade.

66      Daí resulta que um procedimento como o previsto nos artigos 83a e seguintes do Zann viola manifestamente os direitos consagrados no artigo 48.o da Carta.

67      Resulta destas considerações que o artigo 48.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual o juiz nacional pode aplicar a uma pessoa coletiva uma sanção penal por uma infração pela qual é responsável uma pessoa singular que tem o poder de obrigar ou representar essa pessoa coletiva, no caso de não ter sido dada a esta última a possibilidade de impugnar a realidade dessa infração.

 Quanto à segunda questão

68      Tendo em conta a resposta à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

 Quanto às despesas

69      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual o juiz nacional pode aplicar a uma pessoa coletiva uma sanção penal por uma infração pela qual é responsável uma pessoa singular que tem o poder de obrigar ou representar essa pessoa coletiva, no caso de não ter sido dada a esta última a possibilidade de impugnar a realidade dessa infração.

Assinaturas


*      Língua do processo: búlgaro.