Language of document : ECLI:EU:C:1999:514

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

21 de Outubro de 1999 (1)

«Livre prestação de serviços - Recepção de apostas»

No processo C-67/98,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), pelo Consiglio di Stato (Itália), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Questore di Verona

e

Diego Zenatti,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação das disposições do Tratado CE relativas à livre prestação de serviços,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, J. C. Moitinho de Almeida, D. A. O. Edward e R. Schintgen, presidentes de secção, P. J. G. Kapteyn, J.-P. Puissochet (relator), G. Hirsch, P. Jann e H. Ragnemalm, juízes,

advogado-geral: N. Fennelly,


secretário: L. Hewlett, administradora,

vistas as observações escritas apresentadas:

-    em representação do Governo italiano, pelo professor U. Leanza, chefe do Serviço do Contencioso Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, assistido por D. Del Gaizo, avvocato dello Stato,

-    em representação de D. Zenatti, por R. Torrisi Rigano, advogado no foro da Catânia, e A. Pascerini, advogado no foro de Bolonha,

-    em representação do Governo alemão, por E. Röder, Ministerialrat no Ministério Federal da Economia, e C.-D. Quassowski, Regierungsdirektor no mesmo ministério, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo espanhol, por N. Díaz Abad, Abogado del Estado, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo português, por L. I. Fernandes, director do Serviço Jurídico da Direcção-Geral das Comunidades Europeias do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e por M. L. Duarte, consultora jurídica na mesma direcção, e A. P. Barros, coordenadora jurídica do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo finlandês, por H. Rotkirch, embaixador, chefe do Serviço dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e T. Pynnä, consultora jurídica no mesmo ministério, na qualidade de agentes,

-    em representação do Governo sueco, por E. Brattgård, departmentsråd no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo norueguês, por J. Bugge-Mahrt, director-geral adjunto no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

-    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por M. Patakia e L. Pignataro, membros do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações do Governo italiano, representado por D. Del Gaizo, de D. Zenatti, representado por R. Torrisi Rigano e A. Pascerini, do Governo belga, representado por P. Vlaemminck, advogado no foro de Gand, do Governo espanhol, representado por N. Díaz Abad, do Governo francês, representado por F. Million, encarregado de missão na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo português, representado por M. L. Duarte, do Governo finlandês, representado por H. Rotkirch e T. Pynnä, do Governo sueco, representado por A. Kruse, departmentsråd no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, e da Comissão, representada por M. Patakia e L. Pignataro, na audiência de 10 de Março de 1999,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 20 de Maio de 1999,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por despacho de 20 de Janeiro de 1998, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de Março seguinte, o Consiglio di Stato submeteu, nos termos do artigo 177.° do Tratado CE (actual artigo 234.° CE), uma questão prejudicial sobre a interpretação das disposições do Tratado CE relativas à livre prestação de serviços, com vista a apreciar a compatibilidade com tais disposições de uma legislação nacional que proíbe, salvo excepções, a recepção de apostas e reserva a determinados organismos o direito de organizar as que são autorizadas.

2.
    Esta questão foi suscitada no quadro de um litígio que opõe o Questore di Verona (governador civil da província de Verona) a D. Zenatti, a propósito da proibição, a este imposta, de prosseguir a sua actividade de intermediário, em Itália, de uma sociedade, sedeada no Reino Unido, especializada na recepção de apostas relativas a acontecimentos desportivos.

Quadro jurídico

3.
    Em Itália, nos termos do artigo 88.° do Decreto-Real n.° 773, de 18 de Junho de 1931, que aprova o texto unificado das leis de segurança pública (GURI n.° 146, de 26 de Junho de 1931, a seguir o «decreto-real»), «Não pode ser concedida licençapara o exercício da actividade de recepção de apostas, com excepção das apostas relativas a corridas, regatas, jogos com bola e outras competições do mesmo tipo quando a recepção das apostas constitua uma condição necessária para o desenvolvimento útil da competição».

4.
    Resulta da resposta do Governo italiano à pergunta formulada pelo Tribunal de Justiça sobre as modalidades de aplicação da excepção prevista por esta disposição que as apostas podem incidir quer sobre o resultado de acontecimentos desportivos sujeitos ao controlo do Comitato olimpico nazionale italiano (Comité olímpico nacional, a seguir o «CONI») quer sobre o resultado de corridas de cavalos organizadas por intermédio da Unione nazionale incremento razze equine (União nacional para o fomento das raças equestres, a seguir a «UNIRE»). A utilização dos fundos provenientes das apostas, atribuídos a estes dois organismos, está regulamentada e deve nomeadamente permitir o favorecimento do desenvolvimento das actividades desportivas através de investimentos nas infra-estruturas desportivas, em especial nas regiões mais pobres e na periferia das grandes cidades, bem como apoiar os desportos hípicos e a criação de cavalos. Por força de diferentes disposições legislativas adoptadas entre 1995 e 1997, a organização e a recepção das apostas, reservadas ao CONI e à UNIRE, podem ser concedidas, na sequência de concursos e contra o pagamento das taxas aplicáveis, a pessoas e organismos que ofereçam as adequadas garantias.

5.
    O artigo 718.° do Código Penal italiano pune a prática ou a organização de jogos de azar e o artigo 4.° da Lei n.° 401, de 13 de Dezembro de 1989 (GURI n.° 401, de 18 de Dezembro de 1989), reprime a participação abusiva na organização de jogos ou de apostas, reservada ao Estado ou a empresas concessionárias. Além disso, os jogos e apostas não autorizados caem sob a alçada do artigo 1933.° do Código Civil, segundo o qual uma dívida de jogo ou decorrente de uma aposta não pode ser objecto de uma acção destinada à sua cobrança. Em contrapartida, não é permitido, salvo o caso de fraude, exigir a repetição do que foi espontâneamente pago.

O litígio no processo principal

6.
    D. Zenatti exerce, desde 29 de Março de 1997, a actividade de intermediário, em Itália, da sociedade, sedeada em Londres, SSP Overseas Betting Ltd (a seguir a «Overseas»), correctora autorizada, especializada na recepção de apostas. O papel de D. Zenatti consiste em gerir um centro de transmissão de dados para os clientes italianos da Overseas, relativo às apostas incidentes sobre acontecimentos desportivos estrangeiros. Remete a Londres, por telecópia ou através da Internet, formulários preenchidos pelos clientes, acompanhados da fotocópia das transferências bancárias, e recebe outras telecópias da Overseas, que deve transmitir aos mesmos clientes.

7.
    Por decisão de 16 de Abril de 1997, o Questore di Verona ordenou que fosse posto fim à actividade de D. Zenatti, com o fundamento de que ela não é susceptível deser objecto de autorização por força do artigo 88.° do decreto-real, que só permite a concessão de uma licença para a recepção de apostas quando estas constituam uma condição necessária para o desenvolvimento útil da competição.

8.
    D. Zenatti interpôs recurso de anulação desta decisão para o Tribunale amministrativo regionale del Veneto, tendo pedido, a título conservatório, que a sua execução fosse suspensa. Por despacho de 9 de Julho de 1997, o Tribunale amministrativo regionale suspendeu provisoriamente os efeitos da decisão em litígio.

9.
    O Questore di Verona interpôs recurso deste despacho para o Consiglio di Stato.

10.
    Este considera que a solução do litígio necessita da interpretação das disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços. Segundo ele, os princípios referidos no acórdão do Tribunal de Justiça de 24 de Março de 1994, Schindler (C-275/92, Colect., p. I-1039, a seguir o «acórdão Schindler»), segundo o qual essas disposições não se opõem a uma legislação do tipo da legislação britânica sobre as lotarias, tendo em conta as preocupações de política social e de prevenção da fraude que a justificam, parece poderem ser aplicados por analogia à legislação italiana sobre apostas.

11.
    Na ausência, contudo, de qualquer acórdão proferido pelo órgão jurisdicional comunitário sobre uma regulamentação desta natureza, o Consiglio di Stato, cujas decisões não são susceptíveis de recurso, considera que o artigo 177.° do Tratado lhe impõe submeter o caso ao Tribunal de Justiça. Por essa razão, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«As disposições do Tratado relativas à prestação de serviços opõem-se a uma regulamentação como a regulamentação italiana sobre as apostas, tendo em conta as preocupações de política social e de prevenção das fraudes que a justificam?»

Quanto à questão prejudicial

12.
    O Governo italiano e todos os demais Governos que apresentaram observações, bem como a Comissão, consideram que o acórdão Schindler fornece os elementos essenciais que permitem responder pela negativa à questão submetida.

13.
    D. Zenatti sustenta, pelo contrário, que a recepção de apostas relativas a acontecimentos desportivos não é assimilável à actividade das lotarias, em causa no acórdão Schindler, nomeadamente por que as apostas não constituem jogos de puro azar mas sim jogos em que o apostador deve determinar, pela sua habilidade, o resultado. Considera, além disso, que a simples referência, feita pelo órgão jurisdicional de reenvio, às preocupações de política social e de prevenção dasfraudes não é suficiente para justificar a legislação que está em causa no processo principal.

14.
    A este respeito, deve recordar-se que, no n.° 60 do acórdão Schindler, o Tribunal de Justiça sublinhou as considerações de ordem moral, religiosa ou cultural que envolvem as lotarias e os outros jogos a dinheiro em todos os Estados-Membros. De um modo geral, as legislações nacionais tendem a limitar, e até a proibir, a prática de jogos a dinheiro, e a evitar que sejam uma fonte de lucro individual. O Tribunal de Justiça realçou ainda que, atendendo à importância das somas que permitem colectar e aos ganhos que podem proporcionar aos jogadores, sobretudo quando são organizadas em grande escala, as lotarias comportam riscos elevados de delito e de fraude. Constituem, além disso, uma incitação à despesa, que pode ter consequências individuais e sociais nefastas. Finalmente, sem que este motivo possa, em si, ser considerado uma justificação objectiva, não é indiferente, segundo o Tribunal de Justiça, salientar que as lotarias podem participar, significativamente, no financiamento de actividades sem fins lucrativos ou de interesse geral, tais como as obras sociais e de beneficiência, o desporto ou a cultura.

15.
    Como resulta do n.° 61 do mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça considerou que estas particularidades justificam que as autoridades nacionais disponham de um poder de apreciação suficiente para determinar as exigências que a protecção dos jogadores e, mais geralmente, atendendo às particularidades socioculturais de cada Estado-Membro, a protecção da ordem social implicam, tanto no que se refere às modalidades de organização das lotarias e ao volume das suas apostas como à afectação dos lucros que originam. Nestas condições, compete às autoridades nacionais apreciar não apenas se basta restringir as actividades das lotarias mas também se é necessário proibí-las, desde que essas restrições não sejam discriminatórias.

16.
    Embora o acórdão Schindler incida sobre a organização das lotarias, estas considerações valem também, como aliás resulta dos próprios termos do n.° 60 desse acórdão, para os demais jogos a dinheiro que apresentem características comparáveis.

17.
    É certo que, no acórdão de 26 de Junho de 1997, Familiapress (C-368/95, Colect., p. I-3689), o Tribunal de Justiça recusou equiparar determinados jogos às lotarias que apresentam as características examinadas no acórdão Schindler. Mas tratava-se aí de jogos-concursos propostos em revistas, sob a forma de palavras cruzadas ou de enigmas, que permitiam, após um sorteio, que alguns dos leitores que tivessem dado as respostas esperadas ganhassem prémios. Tal como o Tribunal de Justiça realçou, nomeadamente no n.° 23 desse acórdão, tais jogos, organizados apenas em pequena escala e cujos prémios são pouco importantes, não constituem uma actividade económica independente, mas apenas um elemento, entre outros, do conteúdo redactorial de uma revista.

18.
    No presente processo, pelo contrário, as apostas incidentes sobre as competições desportivas, embora não podendo ser consideradas jogos de puro azar, oferecem, como estes, em contrapartida do preço das apostas, a esperança de um ganho monetário. Tendo em conta a importância das quantias que permitem colectar e dos ganhos que podem proporcionar aos jogadores, tais apostas comportam idênticos riscos de delito e de fraude e podem ter as mesmas consequências individuais e sociais nefastas.

19.
    Nestas condições, as apostas em causa no processo principal devem ser consideradas jogos de azar, comparáveis às lotarias referidas no acórdão Schindler.

20.
    O presente acórdão distingue-se, no entanto, do acórdão Schindler, pelo menos em dois aspectos.

21.
    Por um lado, se bem que ambas as legislações em causa nos dois processos imponham uma proibição, salvo excepção, das operações em causa, o seu alcance não é o mesmo. Como o advogado-geral realçou no n.° 24 das suas conclusões, enquanto a legislação nacional examinada no acórdão Schindler implicava uma proibição total dos jogos em causa, que consistiam em grandes lotarias, a legislação em causa no processo principal não proíbe totalmente a recepção de apostas, embora reserve a determinados organismos o direito de as organizar em determinadas condições.

22.
    Por outro lado, como foi realçado em algumas das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, as disposições do Tratado relativas ao direito de estabelecimento podem ser aplicáveis numa situação como a que está em causa no processo principal, tendo em conta a natureza das relações existentes entre D. Zenatti e a Overseas, para a qual actua.

23.
    Sobre este último ponto, no entanto, não há que levantar a questão da aplicabilidade eventual de outras disposições do Tratado, uma vez que a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio se limitou às disposições relativas à livre prestação de serviços.

24.
    No que se refere às disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços, elas aplicam-se, como o Tribunal de Justiça definiu no acórdão Schindler a propósito da organização das lotarias, a uma actividade que consiste em permitir aos utilizadores participar, contra remuneração, num jogo a dinheiro. Assim, uma tal actividade engloba-se no âmbito de aplicação do artigo 59.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 49.° CE), desde que pelo menos um dos prestadores esteja estabelecido num Estado-Membro diferente daquele em que o serviço é oferecido.

25.
    Ora, no processo principal as prestações em causa são as que o organizador das apostas e os seus agentes fornecem ao fazer participar os apostadores num jogo adinheiro que lhes oferece uma esperança de ganho. Estas prestações são normalmente fornecidas contra uma remuneração, constituída pelo pagamento da quantia apostada, e têm uma natureza transfronteiriça.

26.
    Nem as partes no processo principal nem os diferentes Governos que apresentaram observações nem a Comissão contestam que a legislação italiana, na parte em que proíbe a recepção de apostas a qualquer pessoa ou organismo diferente dos que podem ser autorizados a fazê-lo, é indistintamente aplicável aos operadores que possam estar interessados em tal actividade, quer estejam estabelecidos em Itália quer noutro Estado-Membro.

27.
    No entanto, essa legislação, na medida em que impede os operadores dos outros Estados-Membros, directa ou indirectamente, de procederem eles próprios à recepção de apostas no território italiano, constitui um entrave à livre prestação de serviços.

28.
    Deve, pois, averiguar-se se esta violação da livre prestação de serviços pode ser considerada admissível ao abrigo das medidas derrogatórias expressamente previstas no Tratado, ou justificada, nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral.

29.
    A este respeito, os artigos 55.° do Tratado CE (actual artigo 45.° CE) e 56.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 46.° CE), aplicáveis na matéria por força do artigo 66.° do Tratado CE (actual artigo 55.° CE), admitem as restrições que se justifiquem pela participação, mesmo a título ocasional, no exercício da autoridade pública ou por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública. Além disso, resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça (v., neste sentido, o acórdão de 25 de Julho de 1991, Collectieve Antennevoorziening Gouda, C-288/89, Colect., p. I-4007, n.os 13 a 15) que os entraves à livre prestação de serviços que decorrem de medidas nacionais indistintamente aplicáveis só podem ser aceites se essas medidas se justificarem por razões imperiosas de interesse geral, forem adequadas para garantir a realização do objectivo que prosseguem e não forem além do necessário para o atingir.

30.
    Segundo as indicações contidas no despacho de reenvio e nas observações do Governo italiano, a legislação em causa no processo principal prossegue objectivos análogos aos prosseguidos pela legislação britânica sobre as lotarias, tal como definidos pelo Tribunal de Justiça no acórdão Schindler. A legislação italiana, visa, com efeito, impedir que esses jogos sejam uma fonte de lucro individual, evitar os riscos de delito e de fraude e as consequências individuais e sociais nefastas resultantes do incitamento à despesa que constituem, só os permitindo na medida em que podem ter um carácter de utilidade social para o desenvolvimento útil de uma competição desportiva.

31.
    Como o Tribunal de Justiça admitiu no n.° 58 do acórdão Schindler, estes motivos devem ser considerados no seu conjunto. Prendem-se com a protecção dosdestinatários do serviço e, mais geralmente, dos consumidores, e ainda com a protecção da ordem social, objectivos que, como já foi decidido, estão no número dos que podem ser considerados como razões imperiosas de interesse geral (v. os acórdãos de 18 de Janeiro de 1979, Van Wesemael e o., 110/78 e 111/78, Colect., p. 27, n.° 28; de 4 de Dezembro de 1986, Comissão/França, 220/83, Colect., p. 3663, n.° 20, e de 24 de Outubro de 1978, Société général alsacienne de banque, 15/78, Colect., p. 665, n.° 5). É ainda necessário, como foi dito no n.° 29 do presente acórdão, que as medidas baseadas em tais motivos sejam adequadas para garantir a realização dos objectivos visados e não vão além do necessário para os atingir.

32.
    Como foi realçado no n.° 21 do presente acórdão,a legislação italiana sobre as apostas distingue-se da legislação em causa no acórdão Schindler nomeadamente por não proibir totalmente as operações em causa, antes as reservando a determinados organismos em certas condições.

33.
    A determinação do alcance da protecção que um Estado-Membro entende garantir no seu território em matéria de lotarias e outros jogos a dinheiro faz no entanto parte do poder de apreciação reconhecido pelo Tribunal de Justiça às autoridades nacionais no n.° 61 do acórdão Schindler. A estas compete, com efeito, apreciar se, no contexto da finalidade prosseguida, é necessário proibir total ou parcialmente as actividades desta natureza ou se basta restringí-las e prever, para este efeito, modalidades de controlo mais ou menos estritas.

34.
    Nestas condições, a simples circunstância de um Estado-Membro ter escolhido um sistema de protecção diferente do adoptado por outro Estado-Membro não pode ter incidência sobre a apreciação da necessidade e da proporcionalidade das disposições adoptadas na matéria. Estas devem ser apreciadas apenas face aos objectivos prosseguidos pelas autoridades nacionais do Estado-Membro interessado e face ao nível de protecção que pretendem garantir.

35.
    Como o Tribunal de Justiça afirmou no n.° 37 do acórdão de 21 de Setembro de 1999, Läärä e o. (C-124/97, ainda não publicado na Colectânea) no que respeita à exploração de máquinas de jogos, o facto de as apostas em causa não serem totalmente proibidas não basta para demonstrar que a legislação nacional não visa realmente alcançar os objectivos de interesse geral que pretende prosseguir e que devem ser considerados no seu conjunto. Com efeito, uma autorização limitada dos jogos a dinheiro no quadro de direitos especiais ou exclusivos conferidos ou concedidos a determinados organismos, que tem a vantagem de canalizar a vontade de jogar e a exploração dos jogos para um circuito controlado, de evitar os riscos de tal exploração com fins fraudulentos e criminais e de utilizar os benefícios daí resultantes para fins de utilidade pública, também se insere na prossecução de tais objectivos.

36.
    Como, no entanto, realçou o advogado-geral no n.° 32 das suas conclusões, uma tal limitação só é admissível se, antes do mais, corresponder efectivamente à vontadede reduzir verdadeiramente as ocasiões de jogo e se o financiamento de actividades sociais através de uma imposição sobre as receitas provenientes dos jogos autorizados constituir apenas uma consequência benéfica acessória, e não a justificação real, da política restritiva adoptada. Com efeito, como o Tribunal de Justiça realçou no n.° 60 do acórdão Schindler, embora não seja indiferente que as lotarias e outros jogos a dinheiro possam participar significativamente no financiamento de actividades sem fins lucrativos ou de interesse geral, tal motivo não pode, em si mesmo, ser considerado uma justificação objectiva das restrições à livre prestação de serviços.

37.
    Compete ao órgão jurisdicional de reenvio apurar se a legislação nacional, face às suas modalidades concretas de aplicação, corresponde verdadeiramente aos objectivos susceptíveis de a justificar e se as restrições que impõe se não mostram desproporcionadas face a tais objectivos.

38.
    Face a todas as considerações precedentes, há que responder à questão prejudicial que as disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços não se opõem a uma legislação nacional que reserva a determinados organismos o direito de aceitar apostas relativas a acontecimentos desportivos, como a legislação italiana, se tal legislação se justificar efectivamente por objectivos de política social destinados a limitar os efeitos nocivos de tais actividades e se as restrições que impõe não forem desproporcionadas face a tais objectivos.

Quanto às despesas

39.
    As despesas efectuadas pelos Governos italiano, belga, alemão, espanhol, francês, português, finlandês, sueco e norueguês, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre a questão submetida pelo Consiglio di Stato, por despacho de 20 de Janeiro de 1998, declara:

As disposições do Tratado CE relativas à livre prestação de serviços não se opõem a uma legislação nacional que reserva a determinados organismos o direito de aceitar apostas relativas a acontecimentos desportivos, como a legislação italiana, se tal legislação se justificar efectivamente por objectivos de política social destinados a limitar os efeitos nocivos de tais actividades e se as restrições que impõe não forem desproporcionadas face a tais objectivos.

Rodríguez Iglesias
Moitinho de Almeida
Edward

Schintgen

Kapteyn
Puissochet

Hirsch

Jann
Ragnemalm

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 21 de Outubro de 1999.

O secretário

O presidente

R. Grass

G. C. Rodríguez Iglesias


1: Língua do processo: italiano.