Language of document : ECLI:EU:C:2019:895

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

24 de outubro de 2019 (*)

«Reenvio prejudicial — Fiscalidade — Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares — Inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial»

Nos processos apensos C‑469/18 e C‑470/18,

que têm por objeto dois pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica), por Decisões de 28 de junho de 2018, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 19 de julho de 2018, nos processos

IN (C‑469/18),

JM (C‑470/18)

contra

Belgische Staat,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, I. Jarukaitis (relator), E. Juhász, M. Ilešič e C. Lycourgos, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de IN e JM, por J. Verbist, advocaat,

–        em representação do Governo belga, por J.‑C. Halleux, P. Cottin e C. Pochet, na qualidade de agentes, assistidos por W. van Eeckhoutte, advocaat,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e J. Hoogveld, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por H. Krämer e W. Roels, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 11 de julho de 2019,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem IN (processo C‑469/18) e JM (processo C‑470/18) ao Belgische Staat (Estado belga) a respeito de avisos de liquidação emitidos pela Administração Fiscal belga para os exercícios fiscais de 1997 e 1998, que retificam as suas declarações de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares.

 Direito internacional

3        O artigo 20.o do Tratado de Extradição e Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Reino da Bélgica, o Grão‑Ducado do Luxemburgo e o Reino dos Países Baixos, assinado em Bruxelas, em 27 de junho de 1962, prevê:

«1.      A pedido da parte requerente, a parte requerida apreende, na medida em que a sua legislação o permita, e remete à parte requerente os objetos:

a)      que possam servir como elementos de prova;

b)      que, provenientes da infração, tenham sido encontrados antes ou após a extradição da pessoa detida.

2.      A remessa fica dependente da autorização da câmara do conselho do tribunal do lugar em que as buscas e apreensões foram realizadas, que decide se devem ou não ser transmitidos à parte requerente, no todo ou em parte, os objetos apreendidos. A câmara pode ordenar a restituição dos objetos não relacionados diretamente com os atos imputados ao arguido e decide sobre eventuais reclamações de terceiros detentores ou de outros interessados.

[…]»

 Litígios nos processos principais e a questão prejudicial

4        Os factos correspondentes aos dois litígios principais são, mutatis mutandis, idênticos nos processos C‑469/18 e C‑470/18. Podem ser resumidos da seguinte forma.

5        Os recorrentes nos processos principais são administradores delegados de empresas de comercialização e de distribuição de computadores, bem como de componentes de computador. Estas empresas foram objeto de um inquérito penal em 1996, na sequência de uma denúncia da Administração Fiscal belga que, em 1995, iniciou investigações sobre fraudes ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA) do tipo carrossel.

6        No âmbito do inquérito penal, foi executada no Luxemburgo uma carta rogatória, em relação com a qual o diretor de um banco luxemburguês entregou, aquando da sua inquirição por um juiz de instrução luxemburguês, na presença do seu homólogo belga, documentos bancários respeitantes aos recorrentes nos processos principais. Todavia, esta entrega ocorreu sem ter sido solicitado o acordo da câmara do conselho do tribunal do local onde foram efetuadas as buscas e apreensões, ou seja, a chambre du conseil du tribunal d’arrondissement de Luxembourg (Câmara do Conselho do Tribunal de Primeira Instância do Luxemburgo), exigido pelo artigo 20.o do Tratado de Extradição e Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Reino da Bélgica, o Grão‑Ducado do Luxemburgo e o Reino dos Países Baixos.

7        Após ter obtido autorização para consultar o processo penal e fazer cópias, a Administração Fiscal belga emitiu avisos de liquidação retificativos das declarações do imposto sobre as pessoas singulares efetuadas pelos recorrentes nos processos principais e ordenou o pagamento de impostos sobre lucros de empresas industriais e comerciais, no montante de 536 738,94 euros para o exercício de 1997 e de 576 717,62 euros para o exercício de 1998, que tinham sido transferidos para uma conta luxemburguesa.

8        Na sequência do indeferimento das reclamações contra estes avisos de liquidação, deduzidas pelos recorrentes nos processos principais, estes últimos interpuseram recursos para obter um desagravamento dos impostos que lhes eram exigidos, alegando que os documentos bancários tinham sido obtidos de maneira irregular e não podiam, portanto, fundamentar uma decisão de tributação. Estes recursos foram julgados procedentes por sentença do órgão jurisdicional de primeira instância, que foi anulada em sede de recurso. Os recorrentes nos processos principais interpuseram por isso recursos de cassação.

9        No órgão jurisdicional de reenvio, o Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica), os recorrentes nos processos principais alegam, em especial, que resulta do artigo 8.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), e do artigo 7.o da Carta que a transmissão de dados bancários de pessoas singulares só é possível se forem respeitados os procedimentos legais previstos para o efeito. Ora, tal não teria acontecido neste caso, pelo que teria sido violado o seu direito fundamental ao respeito pela vida privada. A obtenção desses elementos de prova em violação de tal direito é contrária ao que se pode esperar de uma autoridade que atua em conformidade com os princípios da boa administração e a utilização desses elementos de prova deve, em quaisquer circunstâncias, ser considerada inadmissível.

10      A este respeito, os recorrentes nos processos principais invocam o Acórdão de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C‑419/14, EU:C:2015:832), alegando que se, no âmbito da cobrança do imposto sobre os rendimentos, devesse ser admitida no direito belga a possibilidade de utilizar provas obtidas em violação de um direito fundamental, isso implicaria uma diferença de tratamento injustificável do ponto de vista do princípio da igualdade e da não discriminação, garantido pela Constituição belga, entre o contribuinte a quem é cobrado imposto sobre os rendimentos e o contribuinte a quem é cobrado IVA.

11      O órgão jurisdicional de reenvio refere, por um lado, que a legislação fiscal belga não contém uma disposição geral que proíba a utilização de elementos de prova obtidos de maneira irregular para provar a existência de uma dívida de imposto e, se for caso disso, aplicar uma tributação mais elevada ou uma coima. A utilização pela Administração de tais elementos de prova deve ser apreciada à luz dos princípios da boa administração e do direito a um processo equitativo. Salvo quando o legislador prevê sanções especiais a este respeito, a utilização em processos fiscais destes elementos de prova só pode ser excluída se tiverem sido obtidos de tal modo contra o que se pode esperar de uma autoridade que age em conformidade com o princípio da boa administração que essa utilização deve, em todas as circunstâncias, ser considerada inadmissível ou se essa utilização põe em perigo o direito do contribuinte a um processo equitativo. Nesta apreciação, o juiz poderia ter em conta, nomeadamente, um ou mais dos seguintes aspetos: o caráter meramente formal da irregularidade, as suas repercussões no direito ou na liberdade que a norma violada protege, o caráter intencional ou não da irregularidade cometida pela autoridade e a circunstância de a infração ser muito mais grave que a irregularidade cometida.

12      Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio cita o Acórdão de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C‑419/14, EU:C:2015:832), e observa que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que, em matéria de cobrança do IVA, as provas obtidas em violação de um direito fundamental devem ser excluídas. Em contrapartida, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a utilização de um elemento de prova recolhido em violação do artigo 8.o da CEDH não conduz necessariamente a uma violação do direito a um processo equitativo garantido pelo artigo 6.o, n.o 1, da CEDH e que o artigo 13.o da CEDH não exige, por si só, que esse elemento de prova seja afastado dos debates.

13      Tendo em conta esta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o órgão jurisdicional de reenvio considera necessário que o Tribunal de Justiça seja novamente interrogado sobre a questão de saber se, em matéria de IVA, o artigo 47.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que se opõe, em todas as circunstâncias, à utilização de elementos de prova obtidos em violação do direito ao respeito da vida privada, garantido pelo artigo 7.o da Carta, ou no sentido de que não se opõe a um regime nacional em aplicação do qual o órgão jurisdicional que deve apreciar se esse elemento de prova pode ser utilizado para fundamentar uma cobrança do IVA está obrigado a realizar um exame como o que foi exposto anteriormente.

14      O órgão jurisdicional de reenvio precisa que, embora os processos principais digam respeito aos impostos sobre os rendimentos e, portanto, não se trate de uma matéria abrangida pelo direito da União, é necessária uma resposta à questão colocada em cada um dos processos apensos para poder apreciar a desigualdade de tratamento, invocada pelos recorrentes nos processos principais, que possa existir entre um contribuinte a quem é cobrado o imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares e um contribuinte a quem é cobrado IVA.

15      Foi nestas condições que o Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação) decidiu, nos processos C‑469/18 e C‑470/18, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial, redigida de modo idêntico em ambos os processos:

«Deve o artigo 47.o da Carta […] ser interpretado no sentido de que, em matéria de [IVA], se opõe, em quaisquer circunstâncias, à utilização de elementos de prova obtidos em violação do direito ao respeito pela vida privada, consagrado no artigo 7.o da Carta, ou, pelo contrário, deixa margem para um regime nacional nos termos do qual o juiz que aprecia a possibilidade de utilização de um elemento de prova assim obtido como base para a cobrança do IVA deve efetuar uma ponderação, conforme descrito [na fundamentação do pedido de decisão prejudicial]?»

 Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

16      Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 6 de setembro de 2018, os processos C‑469/18 e C‑470/18 foram apensados para efeitos da fase escrita e do acórdão.

 Quanto à admissibilidade dos pedidos de decisão prejudicial

17      Como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, a situação em causa nos processos principais, cujo objeto é uma retificação das declarações do imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares, não está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União.

18      Como salientou a advogada‑geral no n.o 66 das suas conclusões, o facto de os elementos de prova nos processos principais terem sido obtidos no âmbito de um processo penal instaurado na sequência de uma denúncia da Administração Fiscal belga que tinha investigado fraudes ao IVA não implica, por si só, que a sua utilização para retificar as declarações do imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares constitua uma aplicação do direito da União, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta. Com efeito, essa utilização não apresenta um nexo com o direito da União que ultrapasse a proximidade que possa existir, num Estado‑Membro, entre as regras relativas à cobrança do IVA e as relativas à cobrança do imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares ou as incidências indiretas de uma dessas matérias na outra (v., neste sentido, Acórdão de 10 de julho de 2014, Julián Hernández e o., C‑198/13, EU:C:2014:2055, n.o 34 e jurisprudência referida).

19      Por conseguinte, no caso em apreço, o Tribunal de Justiça não pode apreciar, à luz da Carta, a legislação ou a jurisprudência nacional aplicável à utilização, no processo de cobrança do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares respeitante aos recorrentes nos processos principais, de elementos de prova que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, foram obtidos de maneira irregular.

20      Embora os processos principais digam respeito ao imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares, o órgão jurisdicional de reenvio, cuja questão prejudicial em ambos os processos refere expressamente a interpretação do artigo 47.o da Carta, pretende saber, na realidade, em que medida o direito da União permite ou não utilizar elementos de prova obtidos de maneira irregular para efeitos de cobrança do IVA. Com efeito, em seu entender, poderia existir, quanto a este ponto, uma divergência entre a solução encontrada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (C‑419/14, EU:C:2015:832), e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Precisa da resposta à questão submetida para poder apreciar a desigualdade de tratamento que, segundo os recorrentes nos processos principais, existe entre um contribuinte a quem, como no caso vertente, é cobrado imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e um contribuinte a quem é cobrado IVA.

21      A este respeito, importa recordar que o Tribunal de Justiça reconheceu como admissíveis pedidos prejudiciais que tinham por objeto disposições do direito da União em situações em que os factos no processo principal não eram abrangidos pelo âmbito de aplicação deste direito, mas nas quais as referidas disposições se tornaram aplicáveis por força do direito nacional, em virtude de uma remissão operada por este último para o conteúdo daquelas (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de outubro de 2012, Nolan, C‑583/10, EU:C:2012:638, n.o 45, e de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 53 e jurisprudência referida).

22      Com efeito, quando a legislação nacional segue, para regular situações puramente internas, as soluções escolhidas pelo direito da União a fim, por exemplo, de evitar o aparecimento de discriminações contra cidadãos nacionais ou de eventuais distorções de concorrência, ou ainda assegurar um procedimento único em situações comparáveis, existe manifestamente um interesse da União em que, para evitar futuras divergências de interpretação, as disposições ou os conceitos que se foram buscar ao direito da União sejam interpretados de maneira uniforme, quaisquer que sejam as condições em que se devam aplicar (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de outubro de 1990, Dzodzi, C‑297/88 e C‑197/89, EU:C:1990:360, n.o 37; de 17 de julho de 1997, Leur‑Bloem, C‑28/95, EU:C:1997:369, n.o 32; e de 18 de outubro de 2012, Nolan, C‑583/10, EU:C:2012:638, n.o 46).

23      Assim, justifica‑se uma interpretação, pelo Tribunal de Justiça, de disposições do direito da União em situações que não estejam abrangidas pelo âmbito de aplicação dessas disposições, quando estas se tornaram direta e incondicionalmente aplicáveis a tais situações por força do direito nacional, a fim de assegurar um tratamento idêntico a essas situações e às abrangidas pelo âmbito de aplicação das referidas disposições (Acórdãos de 18 de outubro de 2012, Nolan, C‑583/10, EU:C:2012:638, n.o 47, e de 7 de novembro de 2018, C e A, C‑257/17, EU:C:2018:876, n.o 33).

24      No contexto de uma situação como a que está em causa nos processos principais, que não está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio indicar ao Tribunal de Justiça, em conformidade com o exigido pelo artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, em que medida o litígio nele pendente revela um elemento de conexão com as disposições do direito da União que torna a interpretação prejudicial solicitada necessária para a solução desse litígio (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C‑268/15, EU:C:2016:874, n.o 55, e de 20 de setembro de 2018, Fremoluc, C‑343/17, EU:C:2018:754, n.o 22).

25      Ora, na medida em que o direito da União não prevê regras relativas às modalidades de produção de prova em matéria de fraude ao IVA e que cabe aos Estados‑Membros estabelecer essas normas respeitando o princípio da efetividade do direito da União e dos direitos garantidos por esse direito (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses, C‑419/14, EU:C:2015:832, n.os 65 a 68, e de 17 de janeiro de 2019, Dzivev e o., C‑310/16, EU:C:2019:30, n.o 24), a existência de uma remissão do direito nacional para disposições do direito da União parece difícil de conceber neste domínio. De qualquer modo, não resulta da decisão de reenvio que o direito belga faça essa remissão.

26      Decorre de tudo o que precede que os presentes pedidos de decisão prejudicial são inadmissíveis.

 Quanto às despesas

27      Revestindo os processos, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

Os pedidos de decisão prejudicial submetidos pelo Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica), por Decisões de 28 de junho de 2018, são inadmissíveis.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.