Language of document : ECLI:EU:C:2008:437

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

17 de Julho de 2008 (*)

«Cooperação policial e judiciária em matéria penal – Decisão‑quadro 2002/584/JAI – Mandado de detenção europeu e processos de entrega entre os Estados‑Membros – Artigo 4.°, n.° 6 – Motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu – Interpretação das expressões ‘residente’ e ‘se encontrar’ no Estado‑Membro de execução»

No processo C‑66/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 35.° UE, apresentado pelo Oberlandesgericht Stuttgart (Alemanha), por decisão de 14 de Fevereiro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 18 de Fevereiro de 2008, no processo relativo à execução de um mandado de detenção europeu emitido contra

Szymon Kozłowski,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, A. Rosas, K. Lenaerts, G. Arestis e L. Bay Larsen (relator), presidentes de secção, J. Makarczyk, P. Kūris, E. Juhász, A. Ó Caoimh, P. Lindh e J.‑C. Bonichot, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: B. Fülöp, administrador,

visto o despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2008, que submete o reenvio prejudicial a tramitação acelerada nos termos do artigo 104.°‑A, primeiro parágrafo, do Regulamento de Processo,

vistos os autos e após a audiência de 22 de Abril de 2008,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de S. Kozłowski, por M. Stirnweiß, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma e J. Kemper, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo dinamarquês, por J. Bering Liisberg, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo francês, por J.‑C. Niollet, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo italiano, por F. Arena, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels e M. Noort, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer e T. Fülöp, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo polaco, por M. Dowgielewicz e L. Rędziniak, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo eslovaco, por J. Čorba, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo finlandês, por J. Heliskoski, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por S. Grünheid e R. Troosters, na qualidade de agentes,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 4.°, n.° 6, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO L 190, p. 1, a seguir «decisão‑quadro»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo relativo à execução, pela Generalstaatsanwaltschaft Stuttgart (a seguir «autoridade judiciária alemã de execução»), de um mandado de detenção europeu emitido em 18 de Abril de 2007 pelo Sąd Okręgowy w Bydgoszczy (Tribunal Regional de Bydgoszcz, a seguir «autoridade judiciária polaca de emissão») contra S. Kozłowski, nacional polaco.

 Quadro jurídico

 Direito da União Europeia

3        Nos termos do quinto considerando da decisão‑quadro:

«O objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados‑Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré‑sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.»

4        O sétimo considerando da decisão‑quadro dispõe:

«Como o objectivo de substituir o sistema de extradição multilateral baseado na Convenção europeia de extradição de 13 de Dezembro de 1957 não pode ser suficientemente realizado pelos Estados‑Membros agindo unilateralmente e pode, pois, devido à sua dimensão e aos seus efeitos, ser melhor alcançado ao nível da União, o Conselho pode adoptar medidas em conformidade com o princípio da subsidiariedade referido no artigo 2.° do Tratado da União Europeia e no artigo 5.° do Tratado que institui a Comunidade Europeia. [...]»

5        O oitavo considerando da decisão‑quadro refere:

«As decisões sobre a execução do mandado de detenção europeu devem ser objecto de um controlo adequado, o que implica que deva ser a autoridade judiciária do Estado‑Membro onde a pessoa procurada foi detida a tomar a decisão sobre a sua entrega.»

6        O artigo 1.°, n.os 1 e 2, da decisão‑quadro define o mandado de detenção europeu e a obrigação de o executar nos seguintes termos:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.»

7        O artigo 2.°, n.° 1, da decisão‑quadro prevê:

«O mandado de detenção europeu pode ser emitido por factos [...] ou, quando tiver sido decretada uma pena ou aplicada uma medida de segurança, por sanções de duração não inferior a quatro meses.»

8        O artigo 3.° da decisão‑quadro enumera três «[m]otivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu».

9        O artigo 4.° da decisão‑quadro, sob a epígrafe «Motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu», enuncia, em sete números, esses motivos. O n.° 6 dispõe:

«A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

[…]

6)      Se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional».

10      O artigo 5.° da decisão‑quadro, intitulado «Garantias a fornecer pelo Estado‑Membro de emissão em casos especiais», tem a seguinte redacção:

«A execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária de execução pode estar sujeita pelo direito do Estado‑Membro de execução a uma das seguintes condições:

[…]

3)      Quando a pessoa sobre a qual recai um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente do Estado‑Membro de execução, a entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado‑Membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado‑Membro de emissão.»

11      O artigo 6.° da decisão‑quadro, sob a epígrafe «Determinação das autoridades judiciárias competentes», dispõe:

«1.      A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2.      A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o manda[d]o de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

3.      Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respectivo direito nacional.»

12      Resulta da Informação relativa à data de entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 1 de Maio de 1999 (JO L 114, p. 56), que a República Federal da Alemanha apresentou uma declaração nos termos do artigo 35.°, n.° 2, UE, mediante a qual aceitou a competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial de acordo com as modalidades previstas no artigo 35.°, n.° 3, alínea b), UE.

 Direito nacional

13      A decisão‑quadro foi transposta para o ordenamento jurídico alemão pelos §§ 78 a 83 K da Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal (Gesetz über die internationale Rechtshilfe in Strafsachen), de 23 de Dezembro de 1982, na redacção dada pela Lei do mandado de detenção europeu (Europäisches Haftbefehlsgesetz), de 20 de Julho de 2006 (BGBl. 2006 I, p. 1721, a seguir «IRG»), mantendo a terminologia habitual no direito alemão que designa uma «entrega», na acepção da decisão‑quadro, pelo termo «extradição».

14      A IRG distingue entre a decisão de admissibilidade do pedido de extradição e a de conceder ou não a extradição.

15      Segundo os §§ 29 a 32 da IRG, cabe aos Oberlandesgerichte (tribunais superiores regionais) analisar em qualquer caso a admissibilidade do pedido de extradição, a pedido da autoridade judiciária de execução.

16      Em contrapartida, a decisão de conceder ou não a extradição cabe, no que respeita aos pedidos de extradição apresentados por uma autoridade judiciária de emissão pertencente a um Estado‑Membro, à autoridade judiciária de execução.

17      O artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro foi transposto, no que respeita a pessoas que não têm nacionalidade alemã, tanto nacionais de outro Estado‑Membro como de um Estado terceiro, pelo § 83 b, n.° 2, alínea b), da IRG. Nos termos dessa disposição, sob a epígrafe «Motivos de não execução»:

«A extradição de um estrangeiro que tenha residência habitual no território nacional pode também ser recusada quando

[…]

b)      em caso de extradição para execução de pena, este não der o seu consentimento, com menção na acta da audição, depois de ter sido devidamente informado, e o seu interesse legítimo prevalecer sobre a execução da pena no território nacional […]»

18      No plano processual, o § 79, n.° 2, da IRG precisa as regras de decisão do pedido de extradição nos seguintes termos:

«Até decisão do Oberlandesgericht sobre a admissibilidade do pedido [de extradição], os serviços competentes para a decisão do pedido [‘Generalstaatsanwaltschaften’] devem indicar se tencionam invocar motivos de não execução nos termos do § 83 b. A decisão de não invocar nenhum motivo de não execução deve ser fundamentada. A fiscalização dessa decisão cabe ao Oberlandesgericht […]»

 Processo principal e questões prejudiciais

19      Por sentença de 28 de Maio de 2002 do Sąd Rejonowy w Tucholi (Tribunal da Comarca de Tuchola) (Polónia), S. Kozłowski foi condenado na pena de prisão de cinco meses pelo crime de dano. A sentença condenatória transitou em julgado, mas a pena ainda não foi executada.

20      S. Kozłowski está preso desde 10 de Maio de 2006 no Centro Penitenciário de Stuttgart (Alemanha), onde cumpre uma pena privativa da liberdade de três anos e seis meses, na qual foi condenado por duas sentenças do Amtsgericht Stuttgart, de 27 de Julho de 2006 e 25 de Janeiro de 2007, por 61 crimes de burla cometidos na Alemanha.

21      Por mandado de detenção europeu emitido em 18 de Abril de 2007, a autoridade judiciária polaca de emissão pediu à autoridade judiciária alemã de execução a entrega de S. Kozłowski para efeitos de execução da pena de prisão de cinco meses em que foi condenado pelo Sąd Rejonowy w Tucholi.

22      Em 5 de Junho de 2007, S. Kozłowski foi ouvido pelo Amtsgericht Stuttgart quanto a essa questão. Nessa audição, informou que não consentia na sua entrega à autoridade judiciária polaca de emissão.

23      Em 18 de Junho de 2007, a autoridade judiciária alemã de execução informou S. Kozłowski de que tinha a intenção de não invocar nenhum motivo de não execução. Com efeito, segundo essa autoridade, não existe nenhum motivo de não execução, na acepção do § 83 b da IRG, e, em particular, S. Kozłowski não tinha residência habitual na Alemanha. As suas sucessivas permanências no território alemão tinham‑se caracterizado pela prática de várias infracções, sem qualquer actividade legal.

24      Por conseguinte, considerando que não era necessário investigar onde, com quem e para que fins S. Kozłowski se encontrava na Alemanha, a autoridade judiciária alemã de execução pediu ao Oberlandesgericht Stuttgart que autorizasse a execução do referido mandado de detenção europeu.

25      No que respeita à situação pessoal de S. Kozłowski, resulta da decisão de reenvio que, de acordo com as sentenças em que foi condenado na Alemanha, é solteiro e não tem filhos. Pouco ou nada conhece da língua alemã. Cresceu e trabalhou na Polónia até finais de 2003. Seguidamente, recebeu subsídio de desemprego nesse Estado‑Membro durante cerca de um ano.

26      O tribunal de reenvio parte da hipótese de, entre Fevereiro de 2005 e 10 de Maio de 2006, data em que foi detido na Alemanha, S. Kozłowski ter permanecido preponderantemente no território alemão. Essa permanência teve interrupções nas férias de Natal de 2005, ou mesmo em Junho de 2005, bem como em Fevereiro e Março de 2006. Trabalhou ocasionalmente na construção civil, mas assegurou o essencial da sua subsistência com a prática de infracções.

27      Por último, o tribunal de reenvio refere que, no âmbito da fiscalização efectiva a que deve proceder por força do § 79, n.° 2, da IRG, tem de determinar se, na acepção do § 83 b, n.° 2, dessa mesma lei e à data em que foi pedida a entrega, S. Kozłowski tinha «residência habitual» no território alemão e se ainda a tem. Em caso de resposta negativa a essa questão, o referido tribunal deve autorizar a execução do mandado de detenção europeu nos termos do direito alemão, uma vez que estão reunidos todos os outros pressupostos nele previstos.

28      Nestas condições, o Oberlandesgericht Stuttgart decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      É possível considerar que uma pessoa ‘resid[e]’ ou ‘se encontr[a]’ num Estado‑Membro [de execução], na acepção do artigo 4.°, n.° 6, da [d]ecisão‑quadro [...], quando

a)      a sua permanência no Estado‑Membro [de execução] não seja ininterrupta;

b)      a sua permanência nesse Estado não seja conforme com a legislação que regula o direito de residência;

c)      aí faça da prática de crimes o seu modo de vida e/ou

d)      aí cumpra uma pena privativa de liberdade?

2)      Uma transposição do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro no sentido de que a entrega por um Estado‑Membro [de execução] dos seus próprios nacionais contra a vontade destes com vista à execução de uma pena é sempre inadmissível, ao passo que a entrega de nacionais de outros Estados‑Membros contra a sua vontade pode ser autorizada pelas autoridades competentes ao abrigo de um poder discricionário, é compatível com o direito da União Europeia, em especial com os princípios da não discriminação e da cidadania da União, consagrados no artigo 6.°, n.° 1, [UE], em conjugação com os artigos 12.° [CE] e 17.° e seguintes [CE], e, em caso afirmativo, devem, pelo menos, ser observados os referidos princípios no exercício desse poder discricionário?»

 Quanto às questões prejudiciais

29      A título preliminar, refira‑se que, como resulta do n.° 11 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça tem, no caso presente, competência para decidir sobre a interpretação da decisão‑quadro nos termos do artigo 35.° UE.

 Quanto à primeira questão

30      Com a primeira questão, o tribunal de reenvio pergunta, no essencial, qual o alcance das expressões «residente» e «se encontrar» que constam do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro e, mais particularmente, se, em circunstâncias como as do processo principal, uma pessoa procurada no âmbito de um processo de execução de um mandado de detenção europeu pode ser considerada abrangida por essa disposição.

31      Para responder a esta questão, há que lembrar que a decisão‑quadro, como resulta, em especial, do seu artigo 1.°, n.os 1 e 2, bem como do seu quinto e sétimo considerandos, tem por objectivo a substituição do sistema multilateral de extradição entre Estados‑Membros por um sistema de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas entre autoridades judiciárias, para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal, baseando‑se este último sistema no princípio do reconhecimento mútuo (v. acórdão de 3 de Maio de 2007, Advocaten voor de Wereld, C‑303/05, Colect., p. I‑3633, n.° 28).

32      Segundo o artigo 1.°, n.° 2, da decisão‑quadro, os Estados‑Membros devem executar todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto nessa decisão‑quadro.

33      A esse respeito, o artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro refere um motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu com base no qual a autoridade judiciária de execução pode recusar a execução do mandado emitido para efeitos de execução de uma pena quando a pessoa procurada «se encontrar no Estado‑Membro de execução, for sua nacional ou sua residente» e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional.

34      Assim, segundo o artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro, o âmbito de aplicação desse motivo de não execução facultativa está circunscrito às pessoas que, não sendo nacionais do Estado‑Membro de execução, aí «se encontrar[em]» ou sejam «residente[s]». Contudo, a decisão‑quadro não define o significado e o alcance destas expressões.

35      A Comissão das Comunidades Europeias, admitindo que, em certas versões linguísticas da decisão‑quadro, a redacção do seu artigo 4.°, n.° 6, pode indicar que a expressão «se encontrar» se situa ao mesmo nível dos critérios da residência ou da nacionalidade, alega que, em qualquer caso, essa disposição deve ser interpretada no sentido de que o facto de a pessoa procurada se encontrar no Estado‑Membro de execução é uma condição necessária, mas não suficiente, para se invocar o motivo de não execução facultativa previsto no referido artigo 4.°, n.° 6.

36      A esse respeito, é certo que a expressão «se encontrar» não pode ser interpretada de uma forma extensiva que implique que a autoridade judiciária de execução possa recusar a execução de um mandado de detenção europeu pelo simples facto de a pessoa procurada se encontrar temporariamente no território do Estado‑Membro de execução.

37      Contudo, o artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro também não pode ser interpretado no sentido de que uma pessoa procurada, que, sem ser nacional nem residente do Estado‑Membro de execução, aí se encontre há algum tempo, em caso nenhum pode ter criado com esse Estado laços susceptíveis de justificar a possibilidade de se invocar esse motivo de não execução facultativa.

38      Daí resulta que, não obstante as diferenças de redacção entre as versões linguísticas do referido artigo 4.°, n.° 6, a categoria de pessoas procuradas que «se encontra[m]» no Estado‑Membro de execução, na acepção dessa disposição, não é, como alegou nomeadamente o Governo neerlandês na audiência no presente processo, totalmente irrelevante para a determinação do âmbito de aplicação da mesma disposição.

39      Por conseguinte, não basta tomar em consideração a expressão «residente», na acepção do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro, devendo‑se também determinar de que forma a expressão «se encontrar» pode completar o alcance da primeira destas expressões.

40      Por um lado, esta leitura do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro não é afectada pelo facto de, segundo a redacção do artigo 5.°, n.° 3, desta mesma decisão‑quadro, que diz respeito à pessoa sobre quem recai um mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento penal, o direito do Estado‑Membro de execução só poder sujeitar a entrega à condição prevista nessa disposição se a pessoa em causa for nacional ou residente desse Estado‑Membro, não sendo feita qualquer referência ao facto de «se encontrar».

41      Por outro lado, quanto à interpretação das expressões «se encontrar» e «residente», há que precisar que, contrariamente ao que defendem os Governos checo e neerlandês, a definição dessas expressões não pode ser deixada à apreciação de cada Estado‑Membro.

42      Com efeito, decorre tanto das exigências de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição deste direito que não contenha uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para a determinação do seu sentido e do seu alcance devem normalmente ter, em toda a União, uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (v., por analogia, acórdão de 18 de Outubro de 2007, Österreichischer Rundfunk, C‑195/06, Colect., p. I‑8817, n.° 24 e jurisprudência aí referida).

43      Uma vez que a decisão‑quadro tem em vista, como resulta do n.° 31 do presente acórdão, instituir um sistema de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas entre autoridades judiciárias, para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal baseado no princípio do reconhecimento mútuo, entrega essa a que a autoridade judiciária só poderá opor‑se com base num dos motivos de recusa previstos pela decisão‑quadro, as expressões «se encontrar» e «residente», que determinam o âmbito de aplicação do seu artigo 4.°, n.° 6, devem ser objecto de uma definição uniforme na medida em que se referem a conceitos autónomos do direito da União. Assim, no seu direito nacional de transposição desse artigo 4.°, n.° 6, os Estados‑Membros não podem dar a essas expressões um alcance mais amplo do que o decorrente dessa interpretação uniforme.

44      Para saber se, numa situação concreta, a autoridade judiciária de execução pode recusar cumprir um mandado de detenção europeu, esta última deve, em primeiro lugar, determinar unicamente se a pessoa procurada é nacional, «residente» ou se «encontr[a]», na acepção do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro, entrando assim no seu âmbito de aplicação. Num segundo momento, e unicamente quando a autoridade judiciária de execução concluir que essa pessoa está abrangida por uma dessas expressões, deve verificar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena aplicada no Estado‑Membro de emissão seja executada no território do Estado‑Membro de execução.

45      A este respeito, há que salientar, como fazem todos os Estados‑Membros que apresentaram observações ao Tribunal e a Comissão, que o motivo de não execução facultativa que consta do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro tem, nomeadamente, por objectivo permitir que a autoridade judiciária de execução dê especial importância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada após o cumprimento da pena em que foi condenada.

46      Assim, as expressões «residente» e «se encontrar» têm, respectivamente, em vista as situações em que a pessoa sobre a qual recai um mandado de detenção europeu ou fixou a sua residência real no Estado‑Membro de execução ou criou, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado, determinados laços com este último de grau semelhante aos resultantes de uma residência.

47      À luz das informações contidas na decisão de reenvio, S. Kozłowski não é «residente» na Alemanha, na acepção do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro. Consequentemente, a interpretação seguinte apenas respeita à expressão «se encontrar», que consta dessa mesma disposição.

48      Para determinar se, numa situação concreta, existem entre a pessoa procurada e o Estado‑Membro de execução determinados laços que permitam considerar que esta última é abrangida pela expressão «se encontrar», na acepção do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro, há que efectuar uma apreciação global de vários dos elementos objectivos que caracterizam a sua situação, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como os laços familiares e económicos que mantém com o Estado‑Membro de execução.

49      Uma vez que cabe à autoridade judiciária de execução proceder a uma apreciação global para determinar, num primeiro momento, se a pessoa em causa está abrangida pelo artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro, uma circunstância individual que caracterize essa pessoa não pode, em princípio, ser determinante só por si.

50      Em circunstâncias como as descritas nas alíneas a) a d) da primeira questão do tribunal de reenvio, importa observar que o facto, exposto na alínea a), de a pessoa procurada não ter permanecido ininterruptamente no Estado‑Membro de execução e o facto, descrito na alínea b), de essa pessoa não se encontrar neste último Estado em conformidade com a legislação nacional relativa à entrada e permanência de estrangeiros, embora não permitam só por si concluir que, na acepção do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro, essa pessoa não «se encontr[a]» nesse Estado‑Membro, podem contudo ter relevância para a autoridade judiciária de execução no momento de verificar se a pessoa em causa está abrangida pelo âmbito de aplicação da referida disposição.

51      No que respeita ao facto, exposto na alínea c) da primeira questão, de essa pessoa cometer habitualmente infracções no Estado‑Membro de execução e ao facto, descrito na alínea d) da mesma questão, de aí estar presa a cumprir uma pena privativa da liberdade, há que observar que esses elementos são irrelevantes para a autoridade judiciária de execução quando esta, num primeiro momento, deve determinar se a pessoa em causa «se encontr[a]», na acepção do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro. Em contrapartida, esses elementos podem, admitindo que o interessado «se encontr[a]» no Estado‑Membro de execução, ter uma certa pertinência no âmbito do exame que eventualmente a referida autoridade deve efectuar a seguir a fim de saber se se justifica a não execução de um mandado de detenção europeu.

52      Daí resulta que, sem serem determinantes, duas das quatro circunstâncias descritas pelo tribunal de reenvio nas alíneas a) e b) da primeira questão podem ter relevância para a autoridade judiciária de execução quando determina se a situação do interessado está abrangida pelo artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro.

53      A este respeito, importa considerar que, à luz de vários dos elementos que o tribunal de reenvio considera caracterizarem a situação de uma pessoa como a que está em causa no processo principal, nomeadamente a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como a inexistência de laços familiares e a existência de laços económicos muito ténues com o Estado‑Membro de execução, essa pessoa não pode ser considerada abrangida pela expressão «se encontrar», na acepção do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro.

54      Em face do exposto, há que responder à primeira questão que o artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro deve ser interpretado no sentido de que:

–      uma pessoa procurada é «residente» no Estado‑Membro de execução quando tiver fixado a sua residência real neste último e «[encontra‑se]» aí quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado‑Membro, criou laços com esse Estado num grau semelhante aos que resultam da residência;

–        para determinar se entre a pessoa procurada e o Estado‑Membro de execução existem laços que permitam considerar que essa pessoa está abrangida pela expressão «se encontrar», na acepção do referido artigo 4.°, n.° 6, cabe à autoridade judiciária de execução fazer uma apreciação global de vários dos elementos objectivos que caracterizam a situação dessa pessoa, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como os seus laços familiares e económicos com o Estado‑Membro de execução.

 Quanto à segunda questão

55      O tribunal de reenvio entende que deve autorizar a execução do mandado de detenção europeu que recai sobre S. Kozłowski se verificar que esta pessoa não tem na Alemanha a sua «residência habitual», na acepção do § 83 b, n.° 2, alínea b), da IRG.

56      Tendo em conta os n.os 47 e 53 do presente acórdão e a resposta dada pelo Tribunal de Justiça à primeira questão, deixa de ser necessário responder à segunda questão submetida, uma vez que a pessoa procurada no processo principal não é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 4.°, n.° 6, da decisão‑quadro.

 Quanto às despesas

57      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

O artigo 4.°, n.° 6, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, deve ser interpretado no sentido de que:

–        uma pessoa procurada é «residente» no Estado‑Membro de execução quando tiver fixado a sua residência real nesse Estado‑Membro e «[encontra‑se]» aí quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado‑Membro, criou laços com esse Estado num grau semelhante aos que resultam da residência;

–        para determinar se entre a pessoa procurada e o Estado‑Membro de execução existem laços que permitam considerar que essa pessoa está abrangida pela expressão «se encontrar», na acepção do referido artigo 4.°, n.° 6, cabe à autoridade judiciária de execução fazer uma apreciação global de vários dos elementos objectivos que caracterizam a situação dessa pessoa, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como os seus laços familiares e económicos com o Estado‑Membro de execução.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.