Language of document : ECLI:EU:C:2021:742

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

16 de setembro de 2021 (*)

«Reenvio prejudicial — Agentes comerciais independentes — Diretiva 86/653/CEE — Artigo 1.o, n.o 2 — Conceito de “agente comercial” — Fornecimento de um programa informático aos clientes por via eletrónica — Concessão de uma licença perpétua de utilização — Conceitos de “venda” e de “mercadorias”»

No processo C‑410/19,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido), por Decisão de 22 de maio de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 27 de maio de 2019, no processo

The Software Incubator Ltd

contra

Computer Associates (UK) Ltd,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: M. Vilaras, presidente de secção, N. Piçarra, D. Šváby, S. Rodin e K. Jürimäe (relatora), juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da The Software Incubator Ltd, por O. Segal, QC, e E. Meleagros, solicitor,

–        em representação da Computer Associates (UK) Ltd, por J. Dhillon, QC, D. Heaton, barrister, e por C. Hopkins e J. Mash, solicitors,

–        em representação do Governo alemão, por J. Möller, M. Hellmann e U. Bartl, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por L. Armati e L. Malferrari, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 17 de dezembro de 2020,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653/CEE do Conselho, de 18 de dezembro de 1986, relativa à coordenação do direito dos Estados‑Membros sobre os agentes comerciais (JO 1986, L 382, p. 17).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a The Software Incubator Ltd à Computer Associates (UK) Ltd (a seguir «Computer Associates») a propósito do pagamento de uma indemnização na sequência da cessação do contrato que vinculava estas duas sociedades.

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Acordo de Saída

3        Pela sua Decisão (UE) 2020/135, de 30 de janeiro de 2020, relativa à celebração do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 1; a seguir «Acordo de Saída»), o Conselho da União Europeia aprovou, em nome da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica, o Acordo de Saída, que foi junto a essa decisão.

4        O artigo 86.o do Acordo de Saída, sob a epígrafe «Processos pendentes no Tribunal de Justiça da União Europeia», prevê, nos seus n.os 2 e 3:

«2.      O Tribunal de Justiça da União Europeia continua a ser competente para decidir, a título prejudicial, sobre os pedidos dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido apresentados antes do termo do período de transição.

3.      Para efeitos do presente capítulo, considera‑se que um processo é instaurado no Tribunal de Justiça da União Europeia, e que um pedido de decisão prejudicial é apresentado, no momento em que o ato introdutório da instância foi registado pela secretaria do Tribunal de Justiça […]»

5        Em conformidade com o artigo 126.o do Acordo de Saída, o período de transição teve início na data de entrada em vigor deste acordo e terminou em 31 de dezembro de 2020.

 Diretiva 86/653

6        O segundo e terceiro considerandos da Diretiva 86/653 enunciam:

«Considerando que as diferenças entre as legislações nacionais em matéria de representação comercial afetam sensivelmente, no interior da [União Europeia], as condições de concorrência e o exercício da profissão e diminuem o nível de proteção dos agentes comerciais nas relações com os seus comitentes, assim como a segurança das operações comerciais; que, por outro lado, essas diferenças são suscetíveis de dificultar sensivelmente o estabelecimento e o funcionamento dos contratos de representação comercial entre um comitente e um agente comercial estabelecidos em Estados‑Membros diferentes;

Considerando que as trocas de mercadorias entre Estados‑Membros se devem efetuar em condições análogas às de um mercado único, o que impõe a aproximação dos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros na medida do necessário para o bom funcionamento deste mercado comum; que, a este respeito, as regras de conflitos de leis, mesmo unificadas, não eliminam, no domínio da representação comercial, os inconvenientes atrás apontados e não dispensam portanto a harmonização proposta.»

7        O artigo 1.o desta diretiva prevê:

«1.      As medidas de harmonização previstas na presente diretiva aplicam‑se às disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros que regem as relações entre os agentes comerciais e os seus comitentes.

2.      Para efeitos da presente diretiva, o agente comercial é a pessoa que, como intermediário independente, é encarregada a título permanente, quer de negociar a venda ou a compra de mercadorias para uma outra pessoa, adiante designada “comitente”, quer de negociar e concluir tais operações em nome e por conta do comitente.

3.      Um agente comercial para efeitos da presente diretiva não pode ser, nomeadamente:

–        uma pessoa que, na qualidade de órgão social, tenha poderes para vincular uma sociedade ou associação,

–        um sócio que esteja legalmente habilitado a vincular outros sócios,

–        um administrador judicial, um liquidatário ou um síndico de falências.»

8        O artigo 2.o, n.o 1, da referida diretiva dispõe:

«A presente diretiva não se aplica:

–        aos agentes comerciais cuja atividade não seja remunerada,

–        aos agentes comerciais que operem nas bolsas de comércio ou nos mercados de matérias‑primas,

–        ao organismo conhecido sob o nome de Crown Agents for Oversea Governments and Administrations, tal como foi instituído no Reino Unido por força da lei de 1979 relativa aos Crown Agents, ou às suas filiais.»

9        O artigo 3.o da mesma diretiva enuncia:

«1.      O agente comercial deve, no exercício das suas atividades, zelar pelos interesses do comitente e agir lealmente e de boa‑fé.

2.      O agente comercial deve, em especial:

a)      Aplicar‑se devidamente na negociação e, se for caso disso, na conclusão das operações de que esteja encarregado;

b)      Comunicar ao comitente todas as informações necessárias de que disponha;

c)      Respeitar as instruções razoáveis dadas pelo comitente.»

10      O artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 86/653 prevê:

«O comitente deve, em especial:

a)      Pôr à disposição do agente comercial a documentação necessária relacionada com as mercadorias em causa;

b)      Fornecer ao agente comercial as informações necessárias à execução do contrato de agência, nomeadamente, avisar o agente comercial num prazo razoável sempre que preveja que o volume das operações comerciais será significativamente inferior ao que o agente comercial poderia normalmente esperar.»

11      O artigo 6.o, n.o 1, desta diretiva dispõe:

«Na falta de acordo entre as partes e sem prejuízo da aplicação das disposições obrigatórias dos Estados‑Membros sobre o nível das remunerações, o agente comercial tem direito a uma remuneração segundo os usos em vigor na área em que exerce a sua atividade e para a representação das mercadorias que são objeto do contrato de agência. Na falta de tais usos, o agente comercial tem direito a uma remuneração razoável que tenha em conta todos os elementos relacionados com a operação.»

 Direito do Reino Unido

12      A Diretiva 86/653 foi transposta para o direito do Reino Unido pelas Commercial Agents (Council Directive) Regulations 1993 (Statutory Instruments 1993/3053) [Regulamento de 1993 relativo aos Agentes Comerciais (que transpõe a Diretiva do Conselho) (Regulamento 1993/3053)]. O artigo 2(1) deste regulamento dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

agente comercial a pessoa que, como intermediário independente, é encarregada a título permanente de negociar a venda ou a compra de mercadorias por conta de outra pessoa (a seguir “comitente”), ou de negociar e concluir a venda ou a compra de mercadorias em nome e por conta desse comitente […]»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      A Computer Associates é uma sociedade que comercializa um programa informático de automatização de aplicações de serviços, para a implementação e a gestão de aplicações através de um centro de dados (a seguir «programa informático em causa»). A finalidade deste programa informático consiste em coordenar e executar automaticamente a implementação e as atualizações de outras aplicações, através dos diferentes ambientes operativos de grandes organizações, tais como bancos e sociedades de seguros, de modo a que as aplicações subjacentes estejam plenamente integradas no ambiente operativo dos programas informáticos.

14      A Computer Associates concedia aos seus clientes, por via eletrónica, licenças de utilização do programa informático em causa num território especificado para um número autorizado de utilizadores finais.

15      A concessão da licença desse programa informático estava sujeita ao cumprimento de obrigações nos termos das quais o cliente não estava, nomeadamente, autorizado a aceder a uma parte não autorizada do referido programa informático, a proceder à descompilação ou à alteração deste, e ao seu aluguer, à sua cessão, à sua transferência ou à concessão de uma sublicença.

16      Resulta das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que a licença de utilização do programa informático em causa podia ser concedida quer a título perpétuo quer por um prazo limitado. Em caso de rescisão do contrato por incumprimento substancial imputável à outra parte ou por insolvência desta última, esse programa informático devia ser devolvido à Computer Associates ou ser apagado ou destruído pelo cliente. Na prática, a maioria das licenças eram, contudo, concedidas a título perpétuo. A Computer Associates conservava, a este respeito, todos os direitos, a saber, nomeadamente, os direitos de autor, os títulos, as patentes, o direito sobre as marcas e os outros interesses patrimoniais relativos ao referido programa informático.

17      Em 25 de março de 2013, a Computer Associates celebrou um contrato com a The Software Incubator. Nos termos da cláusula 2.1 deste contrato, esta última sociedade agia por conta da Computer Associates a fim de abordar potenciais clientes no Reino Unido e na Irlanda, para efeitos da «promoção, [da] comercialização e [da] venda do [programa informático em causa]». Nos termos do referido contrato, as obrigações da The Software Incubator limitavam‑se à promoção e à comercialização deste programa informático. A The Software Incubator não dispunha de nenhum poder de transferir a propriedade deste último.

18      Por carta de 9 de outubro de 2013, a Computer Associates rescindiu o contrato celebrado com a The Software Incubator.

19      A The Software Incubator intentou uma ação de indemnização, com fundamento nas disposições da regulamentação nacional que transpôs a Diretiva 86/653, contra a Computer Associates na High Court of Justice (England & Wales), Queen’s Bench Division [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Divisão do Queen’s Bench, Reino Unido]. A Computer Associates contestou a qualificação da sua relação com a The Software Incubator de contrato de agência comercial alegando que o fornecimento de um programa informático a um cliente por via eletrónica, acompanhado da concessão de uma licença a título perpétuo para a utilização do referido programa não constituía uma «venda de mercadorias», na aceção do artigo 1.o, n.o 2, desta diretiva.

20      Por Decisão de 1 de julho de 2016, a High Court of Justice (England Wales), Queen’s Bench Division [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Divisão do Queen’s Bench], julgou procedente o pedido da The Software Incubator e ordenou a atribuição a esta sociedade de uma quantia de 475 000 libras esterlinas (GBP) (cerca de 531 000 euros) a título de indemnização. Este órgão jurisdicional considerou, neste contexto, que a «venda de mercadorias», na aceção do Regulamento n.o 1993/3053, remetia para uma definição autónoma que devia incluir o fornecimento de um programa informático.

21      A Computer Associates interpôs recurso desta decisão na Court of Appeal (England & Wales) (Civil Division) [Tribunal de Recurso (Inglaterra e País de Gales) (Divisão Cível), Reino Unido]. Por Decisão de 19 de março de 2018, este órgão jurisdicional declarou que um programa informático fornecido a um cliente por via eletrónica não constitui uma «mercadoria», na aceção do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça. Concluiu que a Software Incubator não tinha a qualidade de «agente comercial», na aceção desta disposição, e julgou improcedente o seu pedido de indemnização.

22      A The Software Incubator contestou esta decisão no Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido).

23      Este órgão jurisdicional solicita ao Tribunal de Justiça uma interpretação do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653, que lhe é necessária para determinar se o conceito de «agente comercial» encarregado de negociar a «venda de mercadorias» se aplica no caso de um fornecimento de um programa informático por via eletrónica ao cliente, cuja utilização é regulada por uma licença concedida a título perpétuo.

24      Nestas circunstâncias, o Supreme Court of the United Kingdom (Supremo Tribunal do Reino Unido) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Um exemplar de um programa informático que é fornecido aos clientes de um comitente por via eletrónica, e não num suporte tangível, constitui uma “mercadoria”, na aceção deste termo conforme consta da definição de agente comercial no artigo 1.o, n.o 2, da [Diretiva 86/653]?

2)      O fornecimento de um programa informático aos clientes de um comitente através da concessão ao cliente de uma licença perpétua de utilização de um exemplar do programa informático constitui uma “venda de mercadorias” na aceção deste termo conforme consta da definição de agente comercial no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva [86/653]?»

 Quanto às questões prejudiciais

25      A título preliminar, há que observar que resulta do artigo 86.o, n.o 2, do Acordo de Saída, que entrou em vigor em 1 de fevereiro de 2020, que o Tribunal de Justiça continua a ser competente para decidir, a título prejudicial, sobre os pedidos dos órgãos jurisdicionais do Reino Unido apresentados antes do termo do período de transição fixado em 31 de dezembro de 2020, o que é o caso do presente pedido de decisão prejudicial.

26      Com as suas questões, que há que examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o conceito de «venda de mercadorias», previsto no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653, deve ser interpretado no sentido de que pode abranger o fornecimento, mediante o pagamento de um preço, de um programa informático a um cliente por via eletrónica, quando esse fornecimento é acompanhado da concessão de uma licença a título perpétuo para a utilização desse programa informático.

27      O artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653 define, para efeitos da mesma, o agente comercial como «a pessoa que, como intermediário independente, é encarregada a título permanente, quer de negociar a venda ou a compra de mercadorias para uma outra pessoa, adiante designada “comitente”, quer de negociar e concluir tais operações em nome e por conta do comitente.»

28      Esta disposição estabelece três requisitos necessários e suficientes para que uma pessoa possa ser qualificada de «agente comercial». Em primeiro lugar, essa pessoa deve ter a qualidade de intermediário independente. Em segundo lugar, deve estar contratualmente vinculada de forma permanente ao comitente. Em terceiro lugar, deve exercer uma atividade que consiste em negociar a venda ou a compra de mercadorias para o comitente, ou em negociar e concluir estas operações em nome e por conta deste (Acórdão de 21 de novembro de 2018, Zako, C‑452/17, EU:C:2018:935, n.o 23).

29      No caso em apreço, só está em causa o terceiro desses requisitos, na parte em que visa a negociação da «venda de mercadorias» para o comitente. A este respeito, há que constatar que a Diretiva 86/653 não define o conceito de «venda de mercadorias» nem procede a nenhuma remissão para o direito nacional no que diz respeito ao significado a atribuir a este conceito.

30      Nestas circunstâncias, o conceito de «venda de mercadorias» deve ser objeto de uma interpretação autónoma e uniforme em toda a União Europeia, tendo em conta as exigências da aplicação uniforme do direito da União associadas ao princípio da igualdade. Este conceito constitui, assim, um conceito autónomo do direito da União, cujo alcance não pode ser determinado por referência aos conceitos conhecidos do direito dos Estados‑Membros ou das classificações operadas no plano nacional [v., por analogia, Acórdão de 9 de julho de 2020, RL (Diretiva luta contra os atrasos de pagamento), C‑199/19, EU:C:2020:548, n.o 27 e jurisprudência aí referida].

31      A este respeito, há que recordar que a determinação do significado e do alcance dos termos para os quais o direito da União não forneça nenhuma definição deve fazer‑se de acordo com o seu sentido habitual na linguagem corrente, tendo em conta o contexto em que são utilizados e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte (Acórdão de 4 de junho de 2020, Trendsetteuse, C‑828/18, EU:C:2020:438, n.o 26 e jurisprudência aí referida).

32      É à luz destes elementos que há que determinar se o conceito de «venda de mercadorias», que figura no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653, pode abranger o fornecimento, mediante o pagamento de um preço, de um programa informático a um cliente por via eletrónica, quando esse fornecimento é acompanhado da concessão de uma licença a título perpétuo para a utilização desse programa informático.

33      No que respeita à redação desta disposição, há que salientar que esta remete, de maneira geral, para o conceito de «venda de mercadorias», sem definir os termos «venda» ou «mercadorias», não estando estes últimos, aliás, definidos em nenhuma outra disposição desta diretiva.

34      Em primeiro lugar, no que respeita ao termo «mercadorias», segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, por este termo deve entender‑se os produtos avaliáveis em dinheiro e suscetíveis, como tal, de ser objeto de transações comerciais (v., neste sentido, Acórdão de 26 de outubro de 2006, Comissão/Grécia, C‑65/05, EU:C:2006:673, n.o 23 e jurisprudência aí referida).

35      Daqui decorre que o referido termo, devido à sua definição geral, pode abranger um programa informático, como o programa em causa, desde que tenha um valor comercial e seja suscetível de ser objeto de uma transação comercial.

36      Além disso, há que precisar que um programa informático pode ser qualificado de «mercadoria», independentemente do facto de ser fornecido num suporte físico ou, como no caso em apreço, por via eletrónica através de um descarregamento.

37      Com efeito, por um lado, como realçou o advogado‑geral no n.o 55 das suas conclusões, a utilização do termo «mercadorias» nas diversas versões linguísticas da Diretiva 86/653 não revela nenhuma distinção em função do caráter tangível ou intangível do bem em causa.

38      Por outro lado, o Tribunal de Justiça já declarou que, de um ponto de vista económico, a comercialização de um programa de computador em CD‑ROM ou em DVD e a comercialização de um programa de computador através do seu descarregamento a partir da Internet são semelhantes, constituindo o meio de transmissão em linha o equivalente funcional da entrega de um suporte material (Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft, C‑128/11, EU:C:2012:407, n.o 61).

39      Por conseguinte, o termo «mercadorias», na aceção do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653, pode abranger um programa informático, independentemente do suporte em que esse programa é fornecido.

40      Em segundo lugar, segundo uma definição comummente aceite, a «venda» é uma convenção por meio da qual uma pessoa cede, mediante o pagamento de um preço, a outra pessoa os seus direitos de propriedade sobre um bem corpóreo ou incorpóreo que lhe pertence (Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft, C‑128/11, EU:C:2012:407, n.o 42).

41      No caso específico da venda de uma cópia de um programa informático, o Tribunal de Justiça declarou que o descarregamento de uma cópia de um programa de computador e a celebração de um contrato de licença de utilização respeitante à referida cópia formam um todo indivisível. Com efeito, descarregar uma cópia de um programa de computador não tem nenhuma utilidade se a referida cópia não puder ser utilizada pelo seu detentor. Estas duas operações devem assim ser examinadas no seu conjunto para efeitos da sua qualificação jurídica (v., neste sentido, Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft, C‑128/11, EU:C:2012:407, n.o 44).

42      Assim, o Tribunal de Justiça considerou que a disponibilização de uma cópia de um programa informático, através de um descarregamento, e a celebração de um contrato de licença de utilização respeitante a esse programa, com vista a tornar a referida cópia utilizável pelos clientes, de forma permanente, mediante o pagamento de um preço destinado a permitir que o titular do direito de autor obtenha uma remuneração que corresponde ao valor económico da cópia da obra de que é proprietário, implicam a transferência do direito de propriedade dessa cópia (v., neste sentido, Acórdão de 3 de julho de 2012, UsedSoft, C‑128/11, EU:C:2012:407, n.os 45 e 46).

43      Por conseguinte, tendo em conta a redação do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653, há que considerar que o fornecimento, mediante o pagamento de um preço, de um programa informático a um cliente por via eletrónica, quando esse fornecimento é acompanhado da concessão de uma licença a título perpétuo para a utilização desse programa informático pode estar abrangido pelo conceito de «venda de mercadorias», na aceção desta disposição.

44      Esta interpretação é corroborada pelo contexto em que se inscreve este artigo.

45      Com efeito, o artigo 1.o, n.o 3, e o artigo 2.o da Diretiva 86/653 preveem determinadas exclusões bem definidas, respetivamente, do conceito de «agente comercial» e do âmbito de aplicação dessa diretiva (Acórdão de 21 de novembro de 2018, Zako, C‑452/17, EU:C:2018:935, n.o 40).

46      Ora, nenhuma dessas exclusões diz respeito à natureza da «venda de mercadorias» que é objeto da atividade de «agente comercial», prevista no artigo 1.o, n.o 2, da referida diretiva.

47      Além disso, como salientou o advogado‑geral, em substância, nos n.os 66 e 67 das suas conclusões, uma «venda de mercadorias» do tipo da descrita no n.o 43 do presente acórdão não obsta nem a que os direitos e obrigações que incumbem, respetivamente, ao agente comercial e ao comitente sejam cumpridos em conformidade com o disposto nos artigos 3.o a 5.o da Diretiva 86/653, nem a que o agente comercial receba uma remuneração que esteja em conformidade com o disposto no artigo 6.o desta diretiva.

48      Por último, a referida interpretação é corroborada pelos objetivos da Diretiva 86/653, que visa, em conformidade com o segundo e terceiro considerandos, proteger os agentes comerciais nas relações com os seus comitentes, promover a segurança das operações comerciais e facilitar as trocas de mercadorias entre os Estados‑Membros, mediante a aproximação dos sistemas jurídicos destes últimos em matéria de representação comercial (v., neste sentido, Acórdão de 21 de novembro de 2018, Zako, C‑452/17, EU:C:2018:935, n.o 26 e jurisprudência aí referida).

49      A este respeito, o efeito útil da proteção conferida pela Diretiva 86/653 ficaria comprometido se o fornecimento de um programa informático, nas condições referidas no n.o 43 do presente acórdão, devesse ser excluído do conceito de «venda de mercadorias», na aceção do artigo 1.o, n.o 2, desta diretiva.

50      Com efeito, esta interpretação da referida disposição excluiria do benefício dessa proteção pessoas que exercem, através de meios tecnológicos modernos, tarefas comparáveis às exercidas por agentes comerciais, cuja tarefa consiste na venda de mercadorias tangíveis, nomeadamente através da prospeção e angariação da clientela.

51      Resulta de todas as considerações precedentes que há que responder às questões submetidas que o conceito de «venda de mercadorias», previsto no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653, deve ser interpretado no sentido de que pode abranger o fornecimento, mediante o pagamento de um preço, de um programa informático a um cliente por via eletrónica, quando esse fornecimento é acompanhado da concessão de uma licença a título perpétuo para a utilização desse programa informático.

 Quanto às despesas

52      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

O conceito de «venda de mercadorias», previsto no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 86/653/CEE do Conselho, de 18 de dezembro de 1986, relativa à coordenação do direito dos EstadosMembros sobre os agentes comerciais, deve ser interpretado no sentido de que pode abranger o fornecimento, mediante o pagamento de um preço, de um programa informático a um cliente por via eletrónica, quando esse fornecimento é acompanhado da concessão de uma licença a título perpétuo para a utilização desse programa informático.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.