Language of document : ECLI:EU:C:2011:389

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

14 de Junho de 2011 (*)

«Concorrência – Procedimento administrativo – Documentos e informações fornecidos no quadro de um programa nacional de clemência – Eventuais efeitos prejudiciais do acesso de terceiros a esses documentos na eficácia do funcionamento da cooperação entre as autoridades que integram a rede europeia da concorrência»

No processo C‑360/09,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Amtsgericht Bonn (Alemanha), por decisão de 4 de Agosto de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 9 de Setembro de 2009, no processo

Pfleiderer AG

contra

Bundeskartellamt,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: A. Tizzano, presidente da Primeira Secção, exercendo funções de presidente, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot, presidentes de secção, E. Juhász (relator), G. Arestis, A. Borg Barthet, M. Ilešič, J. Malenovský, L. Bay Larsen e T. von Danwitz, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: B. Fülöp, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 14 de Setembro de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Pfleiderer AG, por T. Kapp, M. Schrödl e M. Kuhlenkamp, Rechtsanwälte,

–        em representação da Munksjö Paper GmbH, por H. Meyer‑Lindemann, Rechtsanwalt,

–        em representação da Arjo Wiggins Deutschland GmbH, por R. Polley, S. Heinz, Rechtsanwältinnen, e O. Ban, na qualidade de mandatária ad litem,

–        em representação da Felix Schoeller Holding GmbH & Co. KG e da Technocell Dekor GmbH & Co. KG, por T. Mäger e D. Zimmer, Rechtsanwälte,

–        em representação da Interprint GmbH & Co. KG, por T. Veltins, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma, J. Möller e C. Blaschke, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo belga, por J.‑C. Halleux, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek e T. Müller, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo espanhol, por J. Rodríguez Cárcamo, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por F. Arena, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo cipriota, por D. Kallí, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo neerlandês, por Y. de Vries, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por V. Di Bucci, P. Costa de Oliveira e A. Antoniadis, na qualidade de agentes,

–        em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por X. Lewis e M. Schneider, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de Dezembro de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 11.° e 12.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] (JO 2003, L 1, p. 1), bem como das disposições conjugadas do artigo 10.°, segundo parágrafo, CE e do artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Pfleiderer AG (a seguir «Pfleiderer») ao Bundeskartellamt (autoridade de concorrência), a respeito de um pedido de acesso completo aos autos do processo de contra‑ordenação em matéria de concorrência relativo a um cartel no sector do papel decorativo. A Pfleiderer, cliente das empresas punidas, apresentou este pedido de acesso, que diz também respeito aos documentos relativos aos pedidos de clemência, a fim de preparar uma acção cível de indemnização.

 Quadro jurídico

 Regulamentação da União

3        O primeiro período do primeiro considerando do Regulamento n.° 1/2003 enuncia:

«A fim de estabelecer um regime que assegure a não distorção da concorrência no mercado comum, há que proceder à aplicação eficaz e uniforme dos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] na Comunidade.»

4        O artigo 11.° do Regulamento n.° 1/2003, intitulado «Cooperação entre a Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência», tem a seguinte redacção:

«1.      A Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência aplicam as regras comunitárias de concorrência em estreita cooperação.

2.      A Comissão deve enviar às autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência cópia dos documentos mais importantes que tenha obtido para efeitos de aplicação dos artigos 7.°, 8.°, 9.° e 10.° e do n.° 1 do artigo 29.° A Comissão deve facultar, a toda autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência que lho solicitar, uma cópia de outros documentos existentes que sejam necessários para a apreciação do processo.

3.      Sempre que agirem em aplicação dos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE], as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência devem comunicá‑lo por escrito à Comissão antes ou imediatamente depois de terem dado início à primeira medida de investigação formal. Esta informação também pode ser disponibilizada às autoridades homólogas dos outros Estados‑Membros.

4.      O mais tardar 30 dias antes da aprovação de uma decisão em que exijam que seja posto termo a uma infracção, aceitem compromissos ou retirem o benefício de um regulamento de isenção por categoria, as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência devem informar do facto a Comissão. Para tal, devem facultar à Comissão um resumo do processo, a decisão prevista ou, na sua ausência, qualquer outro documento que indique qual a linha de acção proposta. Esta informação também pode ser disponibilizada às autoridades homólogas dos outros Estados‑Membros. Se para tal for solicitada pela Comissão, a autoridade interveniente responsável em matéria de concorrência facultar‑lhe‑á outros documentos que sejam necessários para a apreciação do processo. As informações prestadas à Comissão podem ser facultadas às autoridades homólogas dos outros Estados‑Membros. As autoridades nacionais responsáveis em matéria de concorrência podem igualmente trocar entre si as informações necessárias para a apreciação de um processo que estejam a instruir ao abrigo dos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE].

5.      As autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência podem consultar a Comissão relativamente a qualquer outro caso de aplicação do direito comunitário.

[…]»

5        O artigo 12.° do Regulamento n.° 1/2003, que rege o intercâmbio de informações, prevê:

«1.      Para efeitos da aplicação dos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE], a Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência podem comunicar entre si e utilizar como meio de prova qualquer elemento de facto ou de direito, incluindo informações confidenciais.

2.      As informações trocadas só devem ser utilizadas como meios de prova para efeitos de aplicação dos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] em relação à questão para as quais foram recolhidas pela autoridade transmissora. Todavia, sempre que a legislação nacional em matéria de concorrência for aplicada no mesmo processo, em paralelo com o direito comunitário da concorrência e não conduzir a um resultado diferente, as informações comunicadas nos termos do presente artigo podem ser também utilizadas para aplicação da legislação nacional em matéria de concorrência.

3.      As informações trocadas nos termos do n.° 1 só podem ser utilizadas como meios de prova para impor sanções a pessoas singulares quando:

–        a legislação da autoridade transmissora estabelecer sanções semelhantes para a infracção aos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] ou, na sua ausência,

–        estas informações tiverem sido recolhidas de uma forma que respeite um nível de protecção dos direitos de defesa das pessoas singulares idêntico ao previsto nas regras nacionais da autoridade receptora. Todavia, neste caso, as informações trocadas não podem ser utilizadas pela autoridade receptora para impor penas privativas da liberdade.»

6        O artigo 35.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1/2003 dispõe:

«Os Estados‑Membros devem designar a autoridade ou autoridades em matéria de concorrência responsáveis pela aplicação dos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] de forma a que sejam efectivamente respeitadas as disposições do presente regulamento. As medidas necessárias a conferir às referidas autoridades competência para aplicarem estes artigos devem ser tomadas antes de 1 de Maio de 2004. As autoridades designadas podem incluir os tribunais.»

 Legislação nacional

7        O § 406e do Código de Processo Penal (Strafprozessordnung) tem a seguinte redacção:

«(1)      O lesado pode, através de advogado, consultar elementos dos autos presentes no tribunal ou que lhe devam ser apresentados em caso da abertura da acção pública e examinar os elementos de prova oficialmente conservados, desde que demonstre ter interesse legítimo no seu conhecimento. Nos casos previstos no § 395, não é necessário demonstrar o interesse legítimo.

(2)      A consulta de elementos dos autos será recusada se interesses dignos de protecção, seja do arguido ou de outras pessoas, a tal se opuserem. Pode ser recusada se puser em risco o próprio objectivo da instrução ou se puder atrasar consideravelmente a tramitação do processo.

(3)      O advogado pode ser autorizado, a seu pedido, a levar elementos dos autos, com excepção de elementos de prova, para consulta no seu escritório ou domicílio, na medida a que a tal não se oponham razões imperiosas. A decisão não pode ser impugnada.

(4)      A autorização de acesso a elementos dos autos é decidida na fase preliminar, bem como após o encerramento definitivo do procedimento, pelo Ministério Público e, nos outros casos, pelo presidente do tribunal onde corram os autos. É possível requerer ao tribunal competente nos termos do § 161a, (3), n.os 2 a 4, que profira uma decisão judicial contra a decisão do Ministério Público referida no primeiro período. […] Estas decisões não são fundamentadas, na medida em que a realização da finalidade da instrução pode ficar comprometida com a sua divulgação.

(5)      Nas condições previstas em (1), podem ser fornecidas à vítima informações e cópias de elementos dos autos;

[…]»

8        O § 46 da Lei das contra‑ordenações (Gesetz über Ordnungswidrigkeiten), na sua versão de 19 de Fevereiro de 1987 (BGBl. 1987 I, p. 602), na redacção que lhe foi dada, em último lugar, pelo § 2 da Lei de 29 de Julho de 2009 (BGBl. 2009 I, p. 2353, a seguir «OWiG»), dispõe:

«(1)      Salvo disposição em contrário da presente lei, o disposto pelas leis gerais em matéria de procedimento penal, a saber, o Código de Processo Penal, a Lei orgânica dos tribunais (Gerichtsverfassungsgesetz) e a Lei sobre os tribunais de menores (Jugendgerichtsgesetz), aplica‑se aos procedimentos para aplicação de coimas.

[…]»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

9        Em 21 de Janeiro de 2008, o Bundeskartellamt, por força do artigo 81.° CE, aplicou coimas no valor total de 62 milhões de euros a três fabricantes europeus de papel decorativo e a cinco pessoas singulares responsáveis, com fundamento na existência de acordos de fixação de preços e de limitação da produção. As empresas em questão não interpuseram recurso e as decisões que aplicaram estas coimas tornaram‑se definitivas.

10      Na sequência desse processo, A Pfleiderer requereu, em 26 de Fevereiro de 2008, ao Bundeskartellamt que lhe fosse autorizada a consulta, sem limitações, dos autos do processo de contra‑ordenação em matéria de concorrência relativo ao papel decorativo, tendo em vista a preparação de uma acção cível de indemnização. Esta empresa é adquirente de papel decorativo e mais precisamente de papéis especiais para o tratamento de superfícies de madeira transformada. A Pfleiderer é uma das três principais produtoras, a nível mundial, de madeira transformada, de produtos revestidos e de revestimentos de soalho laminados. Indicou ter comprado nos três anos anteriores mercadoria de valor superior a 60 milhões de euros aos fabricantes de papel decorativo que foram punidos.

11      Por carta de 8 de Maio de 2008, o Bundeskartellamt respondeu ao pedido de acesso aos autos com a comunicação das três decisões de aplicação de coimas numa forma anónima e de uma lista dos meios de prova obtidos durante a investigação.

12      A Pfleiderer solicitou então expressamente ao Bundeskartellamt, através de um segundo requerimento, o acesso a todas as peças dos autos, inclusive aos documentos relativos aos pedidos de clemência voluntariamente fornecidos pelas partes que cooperaram, e aos meios de prova confidenciais. Em 14 de Outubro de 2008, o Bundeskartellamt recusou parcialmente este pedido e limitou o acesso aos autos a uma versão expurgada dos segredos de negócios, dos documentos internos e dos documentos abrangidos pelo ponto 22 da comunicação do Bundeskartellamt sobre o regime de clemência, tendo igualmente recusado o acesso aos meios de prova confidenciais.

13      A Pfleiderer interpôs então recurso desta decisão de indeferimento parcial para o Amtsgericht Bonn, em aplicação do § 62, n.° 1, da OWiG.

14      O Amtsgericht Bonn proferiu, em 3 de Fevereiro de 2009, uma decisão com a qual condenava o Bundeskartellamt a conceder à Pfleiderer o acesso aos autos, através do seu advogado, em conformidade com as disposições conjugadas do § 406e, n.° 1, do Código de Processo Penal e do § 46, n.° 1, da OWiG. Segundo o Amtsgericht Bonn, a Pfleiderer é «um lesado» na acepção das referidas disposições, uma vez que se deve pressupor que, em virtude dos acordos celebrados entre as empresas participantes, pagou preços artificialmente elevados pelas mercadorias que adquiriu às empresas participantes no cartel. Além disso, a Pfleiderer tinha «interesse legítimo» em obter o acesso aos documentos, pois estes deviam servir‑lhe para preparar acções cíveis de indemnização.

15      Assim, o Amtsgericht Bonn ordenou o acesso aos elementos dos autos que os requerentes de clemência voluntariamente forneceram à autoridade de concorrência alemã ao abrigo do ponto 22 da comunicação do Bundeskartellamt sobre o regime de clemência, bem como às peças que sustentaram a acusação e aos outros elementos de prova que foram colhidos. No tocante aos segredos de negócios e aos documentos internos, ou seja, os apontamentos internos do Bundeskartellamt e a correspondência redigida no âmbito da Rede Europeia da Concorrência (a seguir «REC»), o acesso a estes foi restringido. Segundo o Amtsgericht Bonn, os diversos interesses devem ser ponderados para se fixar o alcance deste direito, que deve ser limitado aos elementos dos autos necessários para alicerçar o direito à indemnização.

16      Por um lado, resulta do pedido de decisão prejudicial que a execução desta decisão foi suspensa por esse mesmo órgão jurisdicional.

17      Por outro lado, resulta igualmente do pedido de decisão prejudicial que o Amtsgericht Bonn pretende tomar uma decisão idêntica à de 3 de Fevereiro de 2009. Contudo, esse órgão jurisdicional salienta que a decisão que será levado a tomar pode conflituar com o direito da União, nomeadamente com o artigo 10.°, segundo parágrafo, CE e o artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE, bem como com os artigos 11.° e 12.° do Regulamento n.° 1/2003, os quais prevêem uma estreita cooperação e um intercâmbio de informações entre a Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência nos procedimentos para efeitos de aplicação dos artigos 81.° CE e 82.° CE. Para assegurar a eficácia e a funcionalidade destas disposições, que assumem importância capital para a REC e para a aplicação descentralizada do direito da concorrência, pode revelar‑se necessário, no quadro dos processos de contra‑ordenação em matéria de cartéis, vedar a terceiros o acesso aos pedidos de clemência e aos documentos fornecidos voluntariamente pelas partes que cooperaram.

18      Considerando que a resolução do litígio nele pendente requer a interpretação do direito da União, o Amtsgericht Bonn decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«As regras comunitárias em matéria de [cartéis] – em especial os artigos 11.° e 12.° do Regulamento n.° 1/2003 e o artigo 10.°, segundo parágrafo, CE, em conjugação com o artigo 3.°, n.° 1, alínea g), CE – devem ser interpretadas no sentido de que, para formular um pedido cível de indemnização, um lesado por um cartel não pode ter acesso aos pedidos de clemência e a outros documentos e informações voluntariamente apresentados pelos requerentes de clemência a uma autoridade de um Estado‑Membro responsável em matéria de concorrência, ao abrigo de um programa nacional de clemência, no âmbito de um processo de contra‑ordenação destinado (designadamente) à aplicação do artigo 81.° CE?»

 Quanto à questão prejudicial

19      Importa começar por recordar que as autoridades de concorrência dos Estados‑Membros e os seus órgãos jurisdicionais estão obrigados a aplicar os artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE, quando os factos estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do direito da União, e a assegurar a sua aplicação no interesse geral (v., neste sentido, acórdão de 7 de Dezembro de 2010, VEBIC, C‑439/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 56).

20      Cumpre igualmente referir que nem as disposições do Tratado CE em matéria de concorrência nem o Regulamento n.° 1/2003 prevêem regras comuns de clemência ou regras comuns a respeito do direito de acesso aos documentos relativos a um procedimento de clemência voluntariamente comunicados a uma autoridade nacional de concorrência em aplicação de um programa nacional de clemência.

21      No tocante às comunicações da Comissão, uma relativa à cooperação no âmbito da rede de autoridades de concorrência (JO 2004, C 101, p. 43) e outra relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis (JO 2006, C 298, p. 17), há que realçar que não são vinculativas para os Estados‑Membros. Acresce que esta última comunicação visa unicamente os programas de clemência aplicados pela própria Comissão.

22      No quadro da REC, um regime‑modelo em matéria de clemência, que visa a harmonização de alguns elementos dos programas nacionais nesta matéria, foi também elaborado e adoptado no decurso do ano de 2006. Todavia, este regime‑modelo também não produz efeitos vinculativos para os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros.

23      Assim, mesmo podendo as orientações formuladas pela Comissão produzir efeitos na prática das autoridades nacionais de concorrência, na falta de uma regulamentação vinculativa do direito da União nesta matéria, incumbe aos Estados‑Membros estabelecer e aplicar as regras nacionais quanto ao direito de acesso das pessoas lesadas por um cartel aos documentos relativos aos procedimentos de clemência.

24      Porém, embora o estabelecimento e a aplicação destas regras se insiram na competência dos Estados‑Membros, estes devem exercer esta competência no respeito do direito da União (v., neste sentido, acórdão de 12 de Novembro de 2009, Comissão/Espanha, C‑154/08, n.° 121 e jurisprudência referida). Em especial, não podem tornar impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União (v., neste sentido, acórdão de 16 de Julho de 1998, Oelmühle e Schmidt Söhne, C‑298/96, Colect., p. I‑4767, n.os 23, 24 e jurisprudência referida) e, especificamente, no domínio do direito da concorrência, devem zelar por que as regras que estabeleçam ou apliquem não prejudiquem a aplicação efectiva dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE (v., neste sentido, acórdão VEBIC, já referido, n.° 57).

25      Ora, como sustentaram a Comissão e os Estados‑Membros que apresentaram observações, os programas de clemência constituem ferramentas úteis na luta eficaz para detectar e pôr cobro às violações das regras de concorrência e servem, assim, o objectivo da aplicação efectiva dos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE.

26      A eficácia destes programas poderia, todavia, ser afectada pela comunicação dos documentos relativos a um procedimento de clemência às pessoas que pretendam intentar uma acção de indemnização, ainda que as autoridades nacionais de concorrência concedam ao requerente de clemência uma isenção total ou parcial da coima que teriam podido aplicar.

27      Com efeito, é razoável considerar que uma pessoa implicada numa violação do direito da concorrência, em face da eventualidade de tal comunicação, seria dissuadida de utilizar a possibilidade oferecida por tais programas de clemência, nomeadamente, visto que as informações voluntariamente fornecidas por esta pessoa podem ser objecto de intercâmbios entre a Comissão e as autoridades nacionais de concorrência por força dos artigos 11.° e 12.° do Regulamento n.° 1/2003.

28      É, no entanto, jurisprudência assente que qualquer pessoa tem o direito de reclamar reparação do prejuízo que lhe tenha sido causado por um comportamento susceptível de restringir ou falsear o jogo da concorrência (v. acórdãos de 20 de Setembro de 2001, Courage e Crehan, C‑453/99, Colect., p. I‑6297, n.os 24 e 26, e de 13 de Julho de 2006, Manfredi e o., C‑295/04 a C‑298/04, Colect., p. I‑6619, n.os 59 e 61).

29      Com efeito, um direito deste tipo reforça o carácter operacional das regras comunitárias de concorrência e é susceptível de desencorajar acordos ou práticas, frequentemente disfarçados, capazes de restringir ou falsear o jogo da concorrência. Nesta perspectiva, as acções de indemnização por perdas e danos junto dos órgãos jurisdicionais nacionais são susceptíveis de contribuir substancialmente para a manutenção de uma concorrência efectiva na União Europeia (v. acórdão Courage e Crehan, já referido, n.° 27).

30      Assim, no exame de um pedido de acesso aos documentos relativos a um programa de clemência apresentado por uma pessoa que procura obter uma indemnização por perdas e danos de outra pessoa que beneficiou de um programa de clemência, é necessário zelar por que as regras nacionais aplicáveis não sejam menos favoráveis do que as referentes às reclamações análogas de natureza interna e não sejam sistematizadas de modo a tornar impossível na prática ou excessivamente difícil a obtenção de tal reparação (v., neste sentido, acórdão Courage e Crehan, já referido, n.° 29) e ponderar os interesses que justificam a comunicação das informações relativamente à protecção daquelas que foram voluntariamente fornecidas pelo requerente de clemência.

31      Tal ponderação só pode ser realizada pelos órgãos jurisdicionais nacionais numa base casuística, no quadro do direito nacional e tomando em conta todos os elementos pertinentes do caso em apreço.

32      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que as disposições do direito da União em matéria de cartéis, em especial o Regulamento n.° 1/2003, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a que uma pessoa lesada por uma infracção ao direito da concorrência da União e que procura obter uma indemnização tenha acesso aos documentos relativos a um procedimento de clemência respeitante ao autor da referida infracção. Incumbe, porém, aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, com base no seu direito nacional, determinar as condições nas quais tal acesso deve ser autorizado ou recusado, através da ponderação dos interesses protegidos pelo direito da União.

 Quanto às despesas

33      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

As disposições do direito da União em matéria de cartéis, em especial o Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a que uma pessoa lesada por uma infracção ao direito da concorrência da União e que procura obter uma indemnização tenha acesso aos documentos relativos a um procedimento de clemência respeitante ao autor da referida infracção. Incumbe, porém, aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, com base no seu direito nacional, determinar as condições nas quais tal acesso deve ser autorizado ou recusado, através da ponderação dos interesses protegidos pelo direito da União.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.