Language of document : ECLI:EU:T:2024:125

Processo T364/20

Reino da Dinamarca

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Quinta Secção Alargada) de 28 de fevereiro de 2024

«Auxílios de Estado – Financiamento público da ligação fixa rodoferroviária do Estreito de Fehmarn – Auxílio concedido pela Dinamarca à Femern – Decisão que declara o auxílio compatível com o mercado interno – Recurso de anulação – Caráter destacável – Admissibilidade – Conceito de “empresa” – Conceito de “atividade económica” – Atividades de construção e exploração de uma ligação fixa rodoferroviária – Afetação das trocas comerciais entre os Estados‑Membros e distorção da concorrência»

1.      Recurso de anulação – Objeto – Anulação parcial – Requisito – Caráter destacável das disposições impugnadas – Decisão da Comissão que qualifica uma medida de auxílio de Estado e que a declara compatível com o mercado interno – Caráter destacável da qualificação da medida como auxílio de Estado

(Artigo 263.° TFUE)

(cf. n.os 34‑37)

2.      Concorrência – Regras da União – Destinatários – Empresas – Conceito – Exercício de uma atividade económica – Conceito – Atividades ligadas ao exercício de prerrogativas de poderes públicos – Exclusão – Critérios de apreciação – Atividades ligadas às funções essenciais do Estado pela sua natureza, o seu objetivo e as regras aplicáveis – Repartição do ónus da prova

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 50‑57, 95‑103)

3.      Concorrência – Regras da União – Destinatários – Empresas – Conceito – Exercício de uma atividade económica – Conceito – Construção e exploração de uma ligação fixa rodoferroviária por uma empresa pública – Falta de exercício de prorrogativas de poder público – Inclusão – Empresa pública sob o controlo rigoroso dos poderes públicos e sujeita ao respeito de certas obrigações de direito público – Construção e exploração da ligação fixa que tem por objeto assegurar a execução de um acordo internacional – Não liberalização do setor de atividade em causa – Circunstâncias que não permitem concluir pelo exercício de prerrogativas de poder público pela empresa pública

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 75‑86)

4.      Concorrência – Regras da União – Destinatários – Empresas – Conceito – Exercício de uma atividade económica – Critérios de apreciação – Entidade que oferece bens ou serviços num mercado em concorrência com operadores que prosseguem fins lucrativos – Serviços fornecidos em troca de uma remuneração

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 126‑139, 145‑153)

5.      Concorrência – Regras da União – Destinatários – Empresas – Conceito – Exercício de uma atividade económica – Falta de objetivo de maximização dos lucros e obrigação de reinvestimento dos lucros – Atividade regulada pelas autoridades competentes – Não incidência

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 154‑160)

6.      Atos das instituições – Fundamentação – Dever – Alcance – Decisão da Comissão em matéria de auxílios de Estado – Decisão que declara o caráter indissociável das atividades de construção e de exploração de uma infraestrutura de transporte – Fundamentação suficiente

(Artigos 107.°, n.° 1, e 296.° TFUE)

(cf. n.os 169‑174)

7.      Concorrência – Regras da União – Destinatários – Empresas – Conceito – Exercício de uma atividade económica – Conceito – Construção de uma ligação fixa rodoferroviária por uma empresa pública – Construção da ligação fixa indissociavelmente ligada à sua exploração económica pela empresa pública num mercado aberto à concorrência – Inclusão – Inexistência de exploração económica pela empresa pública durante a fase de construção – Empresa pública que beneficia de direitos exclusivos de construção e exploração da ligação fixa – Não incidência

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 185‑202)

8.      Auxílios concedidos pelos Estados – Afetação das trocas comerciais entre EstadosMembros – Infração à concorrência – Critérios de apreciação – Auxílios suscetíveis de afetar as referidas trocas comerciais e de falsear a concorrência – Conceito – Financiamentos concedidos a uma empresa pública para a construção e a exploração de uma ligação fixa rodoferroviária entre a Dinamarca e a Alemanha – Inclusão

(Artigo 107.°, n.° 1, TFUE)

(cf. n.os 213‑221)

Resumo

O Tribunal Geral nega provimento ao recurso de anulação parcial interposto pelo Reino da Dinamarca da Decisão da Comissão Europeia, de 20 de março de 2020 (1), pela qual esta constatou que as medidas de auxílio concedidas pela Dinamarca à empresa pública Femern A/S para o planeamento, a construção e a exploração de uma ligação fixa rodoferroviária do Estreito de Fehmarn entre a Dinamarca e a Alemanha constituem um auxílio estatal compatível com o mercado interno. Ao fazê‑lo, o Tribunal fornece clarificações relativas ao conceito de «atividade de natureza económica» sujeita ao direito da concorrência da União.

Em 2008, a Dinamarca e a Alemanha assinaram um Tratado sobre um projeto de ligação fixa do Estreito de Fehmarn que consiste, por um lado, num túnel ferroviário e rodoviário submerso no mar Báltico entre a Dinamarca e a Alemanha (a seguir «ligação fixa») e, por outro lado, em ligações rodoviárias e ferroviárias com o interior, na Dinamarca.

A empresa pública dinamarquesa Femern, foi encarregada do financiamento, construção e exploração da ligação fixa. Tendo beneficiado de injeções de capital, de empréstimos garantidos pelo Estado e de empréstimos concedidos pela Dinamarca, a Femern cobrará as taxas aos utilizadores a partir da entrada em funcionamento da ligação fixa para reembolsar a sua dívida.

No final de 2014, as autoridades dinamarquesas notificaram à Comissão o modelo de financiamento do projeto de ligação fixa do Estreito de Fehmarn. Sem dar início ao procedimento formal de investigação, a Comissão decidiu não levantar objeções relativamente às medidas notificadas (2).

Por Acórdãos de 13 de dezembro de 2018 (3), o Tribunal Geral anulou parcialmente esta decisão. No que respeita aos financiamentos públicos concedidos à Femern, o Tribunal declarou que a Comissão não tinha cumprido a obrigação que lhe incumbia por força do artigo 108.°, n.° 3, TFUE de dar início ao procedimento formal de investigação devido à existência de dificuldades sérias.

Tendo dado início ao procedimento formal de investigação na sequência destes acórdãos, a Comissão considerou, por sua Decisão de 20 de março de 2020, que as medidas que consistiam em injeções de capitais e numa combinação de empréstimos estatais e de garantias estatais concedidas à Femern para o planeamento, a construção e a exploração da ligação fixa constituam um auxílio estatal compatível com o mercado interno com base no artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE (4).

A Dinamarca interpôs no Tribunal Geral um recurso de anulação desta decisão visto esta qualificar os financiamentos públicos concedidos à Femern de auxílio estatal na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE.

Apreciação do Tribunal Geral

Em primeiro lugar, o Tribunal Geral rejeita a argumentação da Dinamarca de que a Comissão cometeu um erro de direito ao sujeitar as atividades da Femern às regras da concorrência da União ao passo que as suas atividades estão abrangidas pela autoridade pública.

Segundo a jurisprudência, as atividades abrangidas pela autoridade pública ou que estão ligadas ao exercício de prerrogativas de poder público não têm caráter económico que justifique a aplicação das regras de concorrência previstas no Tratado FUE.

A este respeito, o Tribunal Geral começa por constatar que a Comissão não cometeu um erro de direito ao considerar, na decisão recorrida, que uma entidade exerce prerrogativas de poder público quando a sua atividade está ligada às funções essenciais do Estado pela sua natureza, pelo seu objetivo e pelas regras a que está sujeita.

Feita esta precisão, o Tribunal Geral salienta que as informações submetidas à Comissão pelas autoridades dinamarquesas durante o procedimento formal de investigação não constituíam elementos que, considerados isoladamente ou no seu conjunto, eram suscetíveis de levar à conclusão que a construção e a exploração da ligação fixa pela Femern, estão ligadas ao exercício de prerrogativas de poder público.

Mais especificamente, o facto de a Femern estar sob o controlo rigoroso dos poderes públicos e sujeita ao respeito de certas obrigações de direito público aplicáveis às administrações públicas não basta para concluir que as suas atividades estão ligadas ao exercício de prerrogativas de poder público. Além disso, embora as atividades da Femern tenham por objeto assegurar a implementação de um acordo internacional, não deixa de ser verdade que o Tratado sobre o Estreito de Fehmarn não contém nenhuma disposição que permita concluir que enquanto tais, as atividades de construção e de exploração da ligação fixa estão ligadas ao exercício dessas prerrogativas. Por outro lado, a não liberalização de um setor de atividade não constitui um indício que permita concluir que, por princípio, uma atividade está ligada ao exercício de prerrogativas de poder público.

Não pode, além disso, ser censurado à Comissão não ter examinado de maneira detalhada se as funções delegadas à Femern enquanto autoridade rodoviária e gestor de infraestrutura ferroviária, bem como no que respeita à preparação dos planos de segurança da ligação fixa, estavam ligadas ao exercício de prerrogativas de poder público, uma vez que a Dinamarca não tinha invocado expressamente este argumento durante o procedimento formal de investigação.

O Tribunal Geral rejeita, em segundo lugar, as diferentes acusações relativas ao facto de a Comissão ter alegadamente cometido um erro de apreciação ao considerar que a exploração da ligação fixa constitui uma atividade económica sujeita ao direito da concorrência da União.

Em conformidade com jurisprudência constante, constitui uma empresa, para efeitos da aplicação das disposições do direito da União em matéria de concorrência, qualquer entidade que exerce uma atividade económica e constitui uma atividade económica qualquer atividade que consiste em oferecer bens ou serviços num determinado mercado. Para determinar se uma entidade exerce uma atividade económica, a Comissão deve, por conseguinte, demonstrar que a entidade oferece bens ou serviços num mercado em concorrência com operadores que prosseguem fins lucrativos.

À luz desta jurisprudência, o Tribunal Geral afasta, antes de mais, as críticas formuladas pela Dinamarca contra a constatação que é feita na decisão recorrida e segundo a qual os serviços que serão oferecidos pela Femern após a entrada em funcionamento da ligação fixa estarão em concorrência direta com os oferecidos pelo operador de ferry que já opera, que prossegue fins lucrativos, no Estreito de Fehmarn. Com efeito, embora a Femern e este operador de ferries privado ofereçam serviços cujas características são diferentes em certos aspetos, operam no mesmo mercado, ou seja, o de serviços de transporte para a travessia do Estreito de Fehmarn, no qual os consumidores terão a escolha entre os serviços oferecidos por este operador de ferries e os oferecidos pela Femern no âmbito da exploração da ligação fixa. Por outro lado, a Comissão também tinha identificado um mercado de serviços de transporte sobre outras ligações que constituem uma alternativa para a travessia do Estreito de Fehmarn.

Em seguida, o Tribunal Geral salienta que a Comissão não cometeu um erro de apreciação ao considerar que o caráter oneroso da utilização da ligação fixa constitui um elemento pertinente para qualificar a exploração desta ligação como atividade económica. Com efeito, quando um Estado‑Membro decide, como no caso em apreço, condicionar o acesso a uma infraestrutura ao pagamento de uma taxa a fim de gerar receitas afetadas, nomeadamente ao reembolso da dívida contraída para financiar o planeamento e a construção desta infraestrutura, há que considerar que a mesma é objeto de uma exploração económica.

Por último, o Tribunal Geral confirma a conclusão da Comissão de que a atividade de construção da ligação fixa é de natureza económica uma vez que esta é indissociavelmente ligada à exploração económica desta infraestrutura.

A este respeito, o Tribunal Geral recorda que a exploração comercial e a construção de infraestruturas de transporte com vista a essa exploração comercial são suscetíveis de constituírem atividades económicas. Neste contexto, foi nomeadamente declarado (5) que a Comissão podia validamente concluir pelo caráter indissociável da atividade de exploração de um aeroporto comercial e da atividade de construção de uma nova pista deste aeroporto, uma vez que as taxas aeroportuárias constituíam a principal fonte de receitas para o financiamento dessa nova pista e que a exploração dessa pista faria parte da atividade económica do aeroporto. Ora, os princípios estabelecidos nestes acórdãos não podem ser apenas limitados à hipótese da ampliação de uma infraestrutura de transporte preexistente que é objeto de uma exploração económica, mas podem também dizer respeito à construção de uma nova infraestrutura destinada a ser objeto de uma exploração económica futura, como a que está em causa no caso em apreço.

Quanto ao argumento da Dinamarca de que, em substância, a Femern não está presente em nenhum mercado durante a fase de construção, o Tribunal Geral sublinha que as receitas de exploração da infraestrutura serão utilizadas, nomeadamente, pela Femern para reembolsar os empréstimos que esta contraiu para o planeamento e a construção da ligação fixa. Ora, se a atividade de construção fosse considerada dissociável da exploração e, portanto, não económica, os financiamentos preferenciais obtidos para a construção da ligação fixa não poderiam ser qualificados como auxílios estatais. Daqui resulta que, na fase da exploração da ligação fixa, a Femern beneficiaria da possibilidade de explorar uma infraestrutura objeto de auxílio, o que lhe proporcionaria uma vantagem económica que não teria obtido em condições normais de mercado. Assim, o Tribunal Geral conclui que o efeito útil das regras relativas aos auxílios estatais também se opõe a que as atividades de construção e de exploração da ligação fixa sejam dissociadas pelo facto de a entrada em funcionamento desta ligação só ocorrer quando a sua construção estiver concluída.

Por outro lado, o facto de a lei dinamarquesa atribuir exclusivamente à Femern a construção e a exploração da ligação fixa também não obsta a que estas atividades possam ser qualificadas como atividades económicas, uma vez que a exploração da ligação fixa consistirá em oferecer serviços de transporte num mercado liberalizado e aberto à concorrência. Com efeito, no caso contrário, bastaria que um Estado‑Membro concedesse direitos exclusivos a uma entidade chamada a oferecer serviços num mercado liberalizado para contornar a aplicação das regras relativas à concorrência.

Tendo em conta todas estas considerações, o Tribunal Geral nega provimento ao recurso de anulação parcial da decisão recorrida.


1      Decisão C(2020) 1683 final da Comissão, de 20 de março de 2020, relativa ao auxílio estatal SA.39078 ‑ 2019/C (ex‑ 2014/N) concedido pela Dinamarca à Femern A/S (JO 2020, L 339, p. 1)


2      Decisão C(2015) 5023 final, relativa ao auxílio estatal SA.39078 (2014/N) (Dinamarca), sobre o financiamento do projeto de ligação fixa do Estreito de Fehmarn (JO 2015, C 325, p. 5).


3      Acórdãos de 13 de dezembro de 2018, Scandlines Danmark e Scandlines DeutschLand/Comissão (T‑630/15, não publicado, EU:T:2018:942), e de 13 de dezembro de 2018, Stena Line Scandinavia/Comissão (T‑631/15, não publicado, EU:T:2018:944).


4      Ao abrigo desta disposição, um auxílio destinado a promover a execução de um projeto importante de interesse europeu comum pode ser considerado compatível com o mercado interno.


5      Acórdãos de 19 de dezembro de 2012, Mitteldeutsche Flughafen e Flughafen Leipzig‑Halle/Comissão (C‑288/11 P, EU:C:2012:821), e de 24 de março de 2011, Freistaat Sachsen e Land Sachsen‑Anhalt/Comissão (T‑443/08 e T‑455/08, EU:T:2011:117).