Language of document : ECLI:EU:T:2024:127

Processos T647/21 e T99/22

Sber Vermögensverwaltungs AG, anteriormente Sberbank Europe AG

contra

Banco Central Europeu

 Acórdão do Tribunal Geral (Terceira Secção) de 28 de fevereiro de 2024

«Política económica e monetária — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Artigo 9.°, n.° 1, segundo parágrafo, do Regulamento (UE) n.° 1024/2013 — Imposição de juros de recuperação pelo BCE, nos termos do direito austríaco, em caso de violação do artigo 395.° do Regulamento (UE) n.° 575/2013 e na sequência de uma decisão que aplicou uma sanção administrativa pecuniária nos termos do artigo 18.° do Regulamento n.° 1024/2013 — Proporcionalidade»

1.      Direitos fundamentais — Princípio ne bis in idem — Âmbito de aplicação — Sanções administrativas pecuniárias — Inclusão

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 50.°; Regulamento n.° 1024/2013 do Conselho, artigo 18.°)

(cf. n.os 35, 36)

2.      Política económica e monetária — Política económica — Supervisão do setor financeiro da União — Mecanismo único de supervisão — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Sanções e outras medidas administrativas — Imposição de juros de recuperação pelo Banco Central Europeu (BCE) quando os limites aplicáveis aos grandes riscos forem excedidos na sequência da aplicação de uma sanção administrativa pecuniária — Violação do princípio ne bis in idem — Falta

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigo 50.°; Regulamento n.° 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 395.°, n.° 1; Regulamento n.° 1024/2013 do Conselho, artigo 18.°; Diretiva 2013/36 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 65.°, n.° 1)

(cf. n.os 38‑42)

3.      Direito nacional — Interpretação — Tomada em consideração da interpretação feita pelos órgãos jurisdicionais do EstadoMembro em causa — Limites


(cf. n.os 58‑60)

4.      Direito da União Europeia — Efeito direto — Primado — Conflito entre o direito da União e uma lei nacional — Obrigações e poderes do juiz nacional competente — Obrigações e poderes do juiz da União — Não aplicação da lei nacional


(cf. n.os 61‑63)

5.      Política económica e monetária — Política económica — Supervisão do setor financeiro da União — Mecanismo único de supervisão — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Poderes de supervisão e poderes sancionatórios das autoridades competentes — Determinação do tipo de medida administrativa tendo em conta todas as circunstâncias — Imposição automática de juros de recuperação se forem excedidos os limites aplicáveis aos grandes riscos — Inadmissibilidade — Violação do princípio da proporcionalidade

(Regulamento n.° 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 395.°, n.° 1; Regulamento n.° 2013/2013 do Conselho, considerando 37 e artigos 4.°, n.° 1, 65.°, n.° 1, e 70.°)

(cf. n.os 64‑80)

6.      Recurso de anulação — Interesse em agir — Recurso interposto de uma decisão do Banco Central Europeu (BCE) de impor juros de recuperação — Decisão revogada e substituída, no decurso da instância, por uma decisão com conteúdo semelhante — Reconhecimento pelo autor do ato revogado de que este deixou de existir na ordem jurídica da União — Recurso desprovido de objeto — Não conhecimento do mérito

(Artigo 263.° TFUE)

(cf. n.os 83‑87)

Resumo

O Tribunal Geral, ao dar provimento aos recursos de anulação das decisões adotadas pelo Banco Central Europeu (BCE) que impõem juros de recuperação com base no Regulamento n.° 1024/2013 (1) e em aplicação do direito nacional, através de dois acórdãos proferidos no mesmo dia, especifica as circunstâncias em que lhe é possível recorrer a uma interpretação conforme do direito nacional que transpõe uma diretiva, afastando‑se da interpretação dos órgãos jurisdicionais nacionais.

Além disso, no Acórdão Sber/BCE (processos apensos T‑647/21 e T‑99/22), pronuncia‑se sobre a questão inédita da aplicação do princípio ne bis in idem quando o BCE aplica sanções administrativas pecuniárias ao abrigo do Regulamento n.° 1024/2013, ao passo que, no Acórdão BAWAG PSK/BCE (T‑667/21), desenvolve a sua jurisprudência sobre o alcance da competência do BCE ao abrigo deste mesmo regulamento.

Os processos dizem respeito a duas instituições de crédito austríacas, sujeitas à supervisão prudencial direta do BCE.

Assim, nos processos apensos T‑647/21 e T‑99/22, o BCE aplicou ao recorrente, Sber Vermögensverwaltungs AG, uma sanção administrativa pecuniária nos termos do Regulamento n.° 1024/2013 dado terem sido excedidos os limites aos grandes riscos estabelecidos pelo Regulamento n.° 575/2013 (2), tanto numa base individual como numa base consolidada. Em seguida, com base no Regulamento n.° 1024/2013 (3) e em aplicação do § 97.°, n.° 1, ponto 2, do BWG (4), o BCE decidiu impor‑lhe juros de recuperação sobre os montantes em causa.

Na sequência de um parecer emitido pela Comissão de Reexame do BCE no qual constatava a existência de vícios na decisão inicial do BCE, em 21 de dezembro de 2021, o BCE substituiu essa decisão por uma nova decisão (5), ainda que mantendo o montante dos juros de recuperação. Precisou que, em caso de violação das obrigações de uma instituição, nos termos do Regulamento n.° 575/2013, a imposição de juros de recuperação, ao abrigo do BWG, pela autoridade competente está abrangida pelo exercício de um poder vinculado que não lhe permite nenhuma margem de apreciação.

Através de dois recursos separados, o recorrente pediu ao Tribunal Geral que anulasse tanto a decisão inicial como a Decisão de 21 de dezembro de 2021, adotadas pelo BCE.

No processo T‑667/21, o recorrente, BAWAG PSK Bank für Arbeit und Wirtschaft und Österreichische Postsparkasse AG, adquiriu indiretamente uma carteira de empréstimos imobiliários residenciais em França. Esta carteira foi transferida para um fundo comum sem personalidade jurídica, tendo adquirido a totalidade das participações, tornando‑se assim o beneficiário efetivo.

Na sequência de uma inspeção nas instalações do recorrente, o BCE constatou que o recorrente não possuía dados que permitissem a identificação de cada um dos devedores dos empréstimos subjacentes e que, no que respeita à carteira, tinha violado o limite da posição em risco face aos grandes riscos previsto no Regulamento n.° 575/2013. Assim, por Decisão de 2 de agosto de 2021 (6), baseando‑se nas mesmas disposições legislativas que as mencionadas na apresentação dos processos apensos supramencionados, o BCE impôs‑lhe juros de recuperação. O recorrente impugnou esta decisão no Tribunal Geral.

Com os seus Acórdãos Sber/BCE (processos apensos T‑647/21 e T‑99/22) e BAWAG PSK/BCE (T‑667/21), o Tribunal Geral anula, respetivamente, a Decisão de 21 de dezembro de 2021 do BCE, que substituiu a sua decisão inicial, e a Decisão de 2 de agosto de 2021, com o fundamento de que, ao impor juros de recuperação, o BCE não tinha examinado as circunstâncias do caso vertente.

Apreciação do Tribunal Geral

–        Quanto à aplicação do princípio ne bis in idem

O Tribunal Geral considera que a imposição de juros de recuperação pelo BCE, nos termos do § 97, n.° 1, ponto 2, do BWG, por um comportamento que já foi objeto de uma sanção administrativa pecuniária ao abrigo do Regulamento n.° 1024/2013, não é contrária ao princípio ne bis in idem.

A este respeito, recorda que a aplicação do artigo 50.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), que proíbe o cúmulo tanto de procedimentos como de sanções de natureza penal pelos mesmos factos e contra uma mesma pessoa, não se limita apenas aos procedimentos e sanções qualificados de «penais» pelo direito nacional. Com efeito, estende‑se aos procedimentos e às sanções que devem ser considerados de natureza penal com base na própria natureza da infração e no nível de gravidade da sanção suscetível de ser aplicada ao interessado.

Assim, o Tribunal Geral sublinha que as sanções administrativas pecuniárias aplicadas ao abrigo do artigo 18.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1024/2013 estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 50.° da Carta. Observa que estas sanções estão, claramente, circunscritas a coimas que a Comissão Europeia pode aplicar em matéria de direito da concorrência (7) e dispõem de uma natureza e de um nível de gravidade equivalentes. Ora, segundo jurisprudência constante, o princípio ne bis in idem deve ser respeitado nos processos que visam a aplicação de coimas no domínio do direito da concorrência. Esta qualificação deve, por conseguinte, ser aplicada por analogia às referidas sanções.

Em contrapartida, o Tribunal Geral constata que resulta da jurisprudência dos tribunais austríacos que os juros de recuperação são qualificados de medidas prudenciais sem caráter punitivo. Uma vez que nem a natureza da infração nem o nível de gravidade da sanção os colocam no domínio do direito penal a sua aplicação ao abrigo da BWG não está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 50.° da Carta. Esta conclusão é, aliás, corroborada pelo Acórdão VTB Bank (Áustria) (8), no qual, no que respeita aos juros de recuperação, o Tribunal de Justiça privilegiou a qualificação de «medida administrativa» à de «sanção administrativa».

–        Quanto à competência do BCE para impor juros de recuperação

O Tribunal Geral especifica que o BCE era competente para impor juros de recuperação em aplicação do § 97.° do BWG com base no Regulamento n.° 1024/2013.

Antes de mais, sublinha que, para o exercício das suas atribuições prudenciais, o BCE dispõe de três categorias de poderes de supervisão e de investigação, a saber, os previstos no Regulamento n.° 1024/2013, os poderes das autoridades competentes ao abrigo da legislação aplicável da União e o poder de dar instruções às autoridades nacionais para fazer uso dos seus poderes, em conformidade com as disposições de direito nacional em vigor.

Ao analisar a questão de saber se, no caso vertente, o BCE dispunha dos poderes que pertencem à segunda categoria, a saber, os das autoridades competentes por força das disposições relevantes do direito da União, o Tribunal Geral salienta que a expressão «que a legislação aplicável da União confere» foi interpretada no sentido de que inclui todos os poderes decorrentes do quadro jurídico estabelecido por uma diretiva, quer resultem de uma obrigação ou de uma faculdade de o Estado‑Membro legislar, por oposição ao reconhecimento, por essa mesma diretiva, do poder dos Estados‑Membros de preverem, nos termos do direito nacional, disposições mais favoráveis fora do quadro do regime estabelecido por essa diretiva (9).

Ora, no Acórdão VTB Bank (Áustria) (10), considerou‑se, relativamente a uma versão anterior do § 97.° do BWG, que a imposição de juros de recuperação se assemelha a uma medida administrativa abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 65.°, n.° 1, da Diretiva 2013/36 (11), que, no caso vertente, faz parte do quadro jurídico pertinente. É irrelevante a circunstância de estes não serem elencados na lista de sanções e outras medidas administrativas referidas nessa diretiva, uma vez que essa lista não é exaustiva e que essa mesma diretiva prevê que os Estados‑Membros tomem todas as medidas que considerem necessárias para garantir a aplicação da referida diretiva e do Regulamento n.° 575/2013. O Tribunal Geral especifica que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça salientou que os requisitos prudenciais mínimos, adotados pelo direito da União, devem assegurar uma harmonização máxima e que, caso sejam excedidos os limites previstos no Regulamento n.° 575/2013, os Estados‑Membros estão obrigados a impor às instituições de crédito não uma medida prevista no seu direito nacional, mas uma sanção administrativa ou outra medida administrativa na aceção do artigo 65.°, n.° 1, da Diretiva 2013/36.

Assim, a circunstância de a imposição de juros de recuperação não estar elencada na lista que figura na Diretiva 2013/36 não obsta a que esteja abrangida pelo regime jurídico estabelecido por esta mesma diretiva. Consequentemente, o Tribunal Geral conclui que se assemelha a um poder de que a autoridade nacional competente dispõe ao abrigo da «legislação aplicável da União» na aceção do artigo 9.°, n.° 1, segundo parágrafo, segundo período, do Regulamento n.° 1024/2013, e de que, por conseguinte, o BCE dispõe.

–        Quanto à interpretação do direito nacional

O Tribunal Geral constata que, ao apoiar‑se na interpretação dos órgãos jurisdicionais austríacos quanto ao caráter automático da imposição de juros de recuperação se forem excedidos os limites aplicáveis aos grandes riscos, e ao não analisar as circunstâncias do caso vertente, o BCE se baseou numa premissa juridicamente errada, a qual viciou a sua análise do caráter proporcionado da aplicação do § 97, n.° 1, ponto 2, do BWG.

Neste contexto, o Tribunal Geral recorda que, quando é chamado a fiscalizar o mérito da aplicação pelo BCE do direito nacional que transpõe uma diretiva, a interpretação dos órgãos jurisdicionais nacionais é suficiente para determinar o alcance do referido direito nacional quando daí resulte uma declaração de compatibilidade com a diretiva cuja transposição assegura. Em contrapartida, quando a interpretação dos órgãos jurisdicionais nacionais não permite assegurar a compatibilidade do direito nacional com uma diretiva, o respeito do princípio do primado do direito da União implica que, à semelhança de um órgão jurisdicional nacional, o Tribunal Geral interprete, se necessário, o direito nacional, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da diretiva transposta para atingir o resultado por ela prosseguido. Assim, a exigência de uma interpretação conforme inclui a obrigação de alterar, sendo caso disso, uma jurisprudência assente, caso esta se baseie numa interpretação do direito nacional incompatível com os objetivos de uma diretiva.

Acresce que, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional em conformidade com as exigências do direito da União, o Tribunal Geral, à semelhança do juiz nacional encarregado de aplicar as disposições do direito da União, tem a obrigação de garantir o pleno efeito das mesmas, não aplicando, se necessário, por sua própria iniciativa, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, que seja incompatível com uma disposição do direito da União que tenha efeito direto.

No caso vertente, o Tribunal Geral considera que, nos termos de uma interpretação literal, contextual e teleológica do artigo 70.° da Diretiva 2013/36 (12), este deve ser entendido no sentido de que cabe à autoridade nacional competente e, consequentemente, ao BCE, determinar o tipo de medida administrativa tendo em conta todas as circunstâncias, o que implica, necessariamente, a existência de uma margem de apreciação por parte destes e exclui que estejam numa situação de competência vinculada quanto à imposição de juros de recuperação nos termos do § 97.°, n.° 1, ponto 2, do BWG.


1      Regulamento (UE) n.° 1024/2013 do Conselho, de 15 de outubro de 2013, que confere ao BCE atribuições específicas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das instituições de crédito (JO 2013, L 287, p. 63, a seguir «Regulamento n.° 1024/2013»).


2      Artigo 395.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as instituições de crédito e para as empresas de investimento e que altera o Regulamento (UE) n.° 648/2012 (JO 2013, L 176, p. 1, e retificações JO 2013, L 208, p. 68, e JO 2013, L 321, p. 6).


3      Artigo 4.°, n.° 1, alínea d), e n.° 3, bem como artigo 9.°, n.° 1, segundo parágrafo, do Regulamento n.° 1024/2013.


4      Bundesgesetz über das Bankwesen (Bankwesengesetz) (Lei relativa à Atividade Bancária), de 30 de julho de 1993 (BGBl. 532/1993), conforme alterada pela Lei de 28 de maio de 2021 (BGBl. I, 98/2021) (a seguir «BWG»).


5      Decisão ECB‑SSM‑2021‑ATSBE‑12.


6      Decisão ECB/SSM/2021‑ATBAW‑7‑ESA‑2018‑0000126.


7      Ao abrigo do artigo 23.°, n.° 2, do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.° e 102.° TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1).


8      Acórdão de 7 de agosto de 2018, VTB Bank (Áustria) (C‑52/17, EU:C:2018:648, n.os 40 a 42).


9      V., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2016, Safe Interenvíos (C‑235/14, EU:C:2016:154, n.° 79 e jurisprudência referida).


10      Acórdão de 7 de agosto de 2018, n.os 31 a 44.


11      Diretiva 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento, que altera a Diretiva 2002/87/CE e revoga as Diretivas 2006/48/CE e 2006/49/CE (JO 2013 L 176, p. 338).


12      Lido em conjugação com o artigo 4.°, n.° 1, o artigo 65.°, n.° 1, e o considerando 37 da Diretiva 2013/36.