Language of document : ECLI:EU:C:2024:478

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

6 de junho de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras — Diretiva 89/665/CEE — Artigo 2.°, n.° 1, alínea c) — Indemnização atribuída a um proponente ilegalmente excluído de um procedimento de adjudicação de contratos públicos — Alcance — Perda de oportunidade»

No processo C‑547/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Okresný súd Bratislava II (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava II, Eslováquia), por Decisão de 22 de julho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 17 de agosto de 2022, no processo

INGSTEEL spol. s r. o.

contra

Úrad pre verejné obstarávanie,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: E. Regan, presidente de secção, Z. Csehi, M. Ilešič, I. Jarukaitis e D. Gratsias (relator), juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 20 de setembro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Úrad pre verejné obstarávanie, por V. Országhová,

–        em representação do Governo Eslovaco, por E. V. Larišová e S. Ondrášiková, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Checo, por L. Halajová, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Francês, por R. Bénard e A. Daniel, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Austríaco, por J. Schmoll, M. Fruhmann e M. Winkler‑Unger, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por G. Gattinara, R. Lindenthal e G. Wils, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 7 de dezembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.°, n.° 1, alínea c), e do artigo 2.°, n.os 6 e 7, da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras (JO 1989, L 395, p. 33), conforme alterada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007, que altera as Diretivas 89/665/CEE e 92/13/CEE do Conselho no que diz respeito à melhoria da eficácia do recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos (JO 2007, L 335, p. 31) (a seguir «Diretiva 89/665»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a INGSTEEL spol. s r. o. à República Eslovaca, que atua por intermédio da Úrad pre verejné obstarávanie (Autoridade Reguladora dos Contratos Públicos, Eslováquia), a respeito de uma ação de indemnização intentada por esta sociedade na sequência da exclusão ilegal da associação de que era membro (a seguir «associação proponente») de um procedimento de adjudicação de um contrato público iniciado pela Slovenský futbalový zväz (Federação Eslovaca de Futebol, a seguir «entidade adjudicante»).

 Quadro jurídico

 Direito da União

 Diretiva 89/665

3        O sexto considerando da Diretiva 89/665 tem a seguinte redação:

«Considerando que é necessário assegurar que, em todos os Estados‑Membros, procedimentos apropriados permitam a anulação das decisões ilegais e a indemnização das pessoas lesadas por uma violação».

4        O artigo 1.° desta diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação e acesso ao recurso», prevê:

«1.      A presente diretiva é aplicável aos contratos a que se refere a Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços [(JO 2004, L 134, p. 114)], salvo os contratos excluídos nos termos dos artigos 10.° a 18.° dessa diretiva.

[...]

Os Estados‑Membros adotam as medidas necessárias para assegurar que, no que se refere aos contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva [2004/18], as decisões das autoridades adjudicantes possam ser objeto de recursos eficazes, e, sobretudo, tão céleres quanto possível, nos termos dos artigos 2.° a 2.°‑F da presente diretiva, com fundamento na violação, por tais decisões, do direito da União em matéria de contratos públicos ou das normas nacionais de transposição desse direito.

2.      Os Estados‑Membros devem assegurar que não se verifique qualquer discriminação entre as empresas que aleguem um prejuízo no âmbito de um procedimento de adjudicação de um contrato devido à distinção feita na presente diretiva entre as normas nacionais de execução do direito comunitário e as outras normas nacionais.

3.      Os Estados‑Membros devem garantir o acesso ao recurso, de acordo com regras detalhadas que os Estados‑Membros podem estabelecer, a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação.

[...]»

5        O artigo 2.° da referida diretiva, sob a epígrafe «Requisitos do recurso», dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que as medidas tomadas relativamente aos recursos a que se refere o artigo 1.° prevejam poderes para:

a)      Decretar, no mais curto prazo, mediante processo de urgência, medidas provisórias destinadas a corrigir a alegada violação ou a impedir que sejam causados novos danos aos interesses em causa, designadamente medidas destinadas a suspender ou a mandar suspender o procedimento de adjudicação do contrato público em causa ou a execução de quaisquer decisões tomadas pela entidade adjudicante;

b)      Anular ou mandar anular as decisões ilegais, incluindo suprimiras especificações técnicas, económicas ou financeiras discriminatórias que constem do convite à apresentação de propostas, dos cadernos de encargos ou de qualquer outro documento relacionado com o procedimento de adjudicação do contrato em causa;

c)      Conceder indemnizações aos lesados por uma violação.

[...]

6.      Os Estados‑Membros podem estabelecer que, caso seja pedida indemnização com fundamento no facto de uma decisão ter sido tomada ilegalmente, a decisão contestada deva primeiro ser anulada por uma instância com a competência necessária para esse efeito.

7.      Salvo nos casos previstos nos artigos 2.°‑D a 2.°‑F, os efeitos do exercício dos poderes a que se refere o n.° 1 do presente artigo sobre o contrato celebrado na sequência de uma adjudicação são determinados pelo direito interno.

Além disso, exceto se a decisão tiver de ser anulada antes da concessão de indemnização, os Estados‑Membros podem prever que, após a celebração do contrato nos termos do n.° 5 do artigo 1.°, do n.° 3 do presente artigo, ou dos artigos 2.°‑A a 2.°‑F, os poderes da instância responsável pelo recurso se limitem à concessão de indemnização aos lesados por uma violação.

[...]»

 Diretiva 2007/66

6        Nos termos do considerando 36 da Diretiva 2007/66:

«A presente diretiva respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos, em especial, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Em especial, a presente diretiva destina‑se a assegurar o respeito pleno do direito a um recurso efetivo e a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, em conformidade com os primeiro e segundo parágrafos do artigo 47.° da Carta.»

 Direito eslovaco

7        De acordo com o artigo 3.°, n.° 1, alínea a), da zákon č. 514/2003 Z. z. o zodpovednosti za škodu spôsobenú pri výkone verejnej moci (Lei n.° 514/2003 Colet., relativa à Responsabilidade por Danos Causados no Exercício da Autoridade Pública), de 28 de outubro de 2003 (Zbierka zákonov, n.° 215, 2003, p. 3966), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei n.° 514/2003»), o Estado é responsável pelo prejuízo causado por uma decisão ilegal adotada pelos órgãos públicos no exercício da autoridade pública.

8        Segundo o § 5, n.° 1, desta lei, a parte no processo que sofreu um prejuízo devido a uma decisão ilegal proferida nesse processo tem direito à reparação desse prejuízo.

9        Em conformidade com o artigo 6.°, n.° 1, da referida lei, este direito à reparação só pode ser invocado se essa decisão tiver sido anulada ou alterada, devido à sua ilegalidade, por uma autoridade competente. O juiz que decide sobre a reparação desse prejuízo está vinculado pela decisão dessa autoridade.

10      Segundo o § 15, n.° 1, da mesma lei, o direito à reparação do prejuízo causado por um procedimento administrativo irregular deve ser objeto de uma análise preliminar com base num pedido escrito do lesado requerendo a análise preliminar do seu direito à autoridade competente.

11      Resulta do § 16, n.° 4, da Lei n.° 514/2003, por um lado, que, se a referida autoridade não deferir esse pedido ou se informar por escrito o lesado de que não o deferirá, o lesado pode intentar uma ação num órgão jurisdicional para que este se pronuncie sobre o referido pedido e, por outro, que, no âmbito da ação judicial intentada, o lesado só tem direito a indemnização na medida do pedido e do direito que foram objeto da análise preliminar.

12      O § 17, n.° 1, desta lei prevê que os danos reais e os lucros cessantes são indemnizados, salvo disposição especial em contrário.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13      Por anúncio publicado em 16 de novembro de 2013, a entidade adjudicante lançou um concurso para a adjudicação de uma empreitada de obras de reconstrução, modernização e construção de dezasseis estádios de futebol. A associação proponente participou nesse concurso.

14      Considerando que esta associação não tinha cumprido as exigências do anúncio do concurso relativas, nomeadamente, à sua capacidade económica e financeira, a entidade adjudicante decidiu excluí‑la do concurso em causa. Esta decisão de exclusão foi confirmada por decisão da recorrida no processo principal de 9 de maio de 2014 e, posteriormente, por decisão do Conselho Superior da mesma, de 7 de julho de 2014. Tendo o Krajský súd v Bratislave (Tribunal Regional de Bratislava, Eslováquia) negado provimento ao recurso interposto desta última decisão por Acórdão de 13 de janeiro de 2015, a referida associação interpôs recurso desse acórdão para o Najvyšší súd Slovenskej republiky (Supremo Tribunal da República Eslovaca).

15      Após ter submetido ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial que deu origem ao Acórdão de 13 de julho de 2017, Ingsteel e Metrostav (C‑76/16, EU:C:2017:549), o Najvyšší súd Slovenskej republiky (Supremo Tribunal da República Eslovaca) anulou essas decisões de 9 de maio e 7 de julho de 2014. Em 3 de abril de 2018, a recorrida no processo principal adotou uma nova decisão ordenando à entidade adjudicante a anulação da exclusão da associação proponente do procedimento de adjudicação do contrato público em causa.

16      Uma vez que este procedimento foi entretanto encerrado com a celebração de um acordo‑quadro com o único proponente que continuou no concurso na sequência da exclusão desta associação, a recorrente no processo principal intentou no órgão jurisdicional de reenvio, o Okresný súd Bratislava II (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava II, Eslováquia), uma ação de indemnização do prejuízo alegadamente sofrido devido às decisões ilegais da recorrida no processo principal e do seu Conselho Superior.

17      Nesse órgão jurisdicional, a recorrente no processo principal alega que esse prejuízo resulta da exclusão ilegal da associação proponente do contrato em causa, uma vez que o adjudicatário só obteve o contrato devido a essa exclusão. Considera, em substância, que, se essa associação não tivesse sido excluída do procedimento de adjudicação em causa, teria obtido o contrato, uma vez que a sua proposta era mais vantajosa do que a desse adjudicatário e preenchia todos os requisitos do anúncio do concurso em causa.

18      Para determinar o montante do prejuízo alegadamente sofrido, a recorrente no processo principal requereu a realização de uma peritagem, que tinha por objeto a quantificação dos lucros cessantes correspondentes ao contrato assim perdido. Com base nesta peritagem, a mesma reclama lucros cessantes correspondentes ao contrato perdido no montante de 819 498,10 euros, sem imposto sobre o valor acrescentado incluído, bem como uma indemnização no montante de 2 500 euros, correspondente às despesas efetuadas com a realização da referida peritagem.

19      No órgão jurisdicional de reenvio, a recorrida no processo principal salienta que a associação proponente foi excluída no termo da primeira fase do procedimento de adjudicação do contrato em causa e que reintegrá-la nesse procedimento não teria conduzido automaticamente à adjudicação desse contrato a esta, uma vez que a entidade adjudicante teria de avaliar a sua proposta de forma mais aprofundada e, designadamente, determinar se o preço desta última constituía uma proposta anormalmente baixa.

20      Por outro lado, a recorrida no processo principal considera, invocando, a este respeito, o Acórdão de 17 de março de 2005, AFCon Management Consultants e o./Comissão (T‑160/03, EU:T:2005:107), que o pedido da recorrente no processo principal é puramente hipotético. O relatório pericial apresentado por esta última baseia‑se em dados fictícios, dado que, nomeadamente, a quantidade de trabalhos de construção prevista no concurso em causa não é necessariamente efetuada na realidade.

21      Neste contexto, a recorrente no processo principal observa que uma pretensão que, por razões objetivas, não é determinada com certeza não pode, logo à partida, ser qualificada de hipotética. Contrariamente aos danos reais, os lucros cessantes não consistem na redução dos bens do lesado, mas na perda do lucro esperado, que deve ser razoavelmente previsível, tendo em conta a ordem normal das coisas, se não existisse o ato ilícito em causa. No que respeita à realização do concurso público, a recorrente no processo principal salienta que, se a entidade adjudicante lança um concurso público, pode presumir‑se que tem interesse na execução do contrato em causa e que tem a intenção de celebrar um contrato com o adjudicatário, como acontece, aliás, no caso em apreço, visto que a entidade adjudicante celebrou um contrato com o adjudicatário para todas as obras previstas no concurso em causa.

22      Tendo em conta a argumentação das partes no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a compatibilidade do § 17 da Lei n.° 514/2003 com a Diretiva 89/665. Refere que, no decurso do processo nele tramitado, a recorrente no processo principal pediu uma indemnização pela oportunidade perdida recorrendo ao conceito de «lucros cessantes», sendo este o mais próximo do direito a reparação de um prejuízo resultante da perda de oportunidade que invocava. Com efeito, o direito eslovaco não distingue entre as diferentes categorias de danos indemnizáveis, pelo que a perda de oportunidade pertence à categoria dos lucros cessantes. A recorrente no processo principal acrescenta que o Tribunal de Justiça já há muito tempo e de forma constante declarou que, em caso de exclusão ilegal de um proponente de um concurso público, este tem o direito de pedir a reparação do prejuízo que sofreu pela perda de uma oportunidade, a qual não pode ser equiparada a lucros cessantes e não exige um grau tão elevado de probabilidade de obtenção de uma vantagem patrimonial. Trata‑se de uma indemnização pela oportunidade perdida de realização de lucros e não de uma indemnização do próprio lucro.

23      Neste contexto, o Okresný súd Bratislava II (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      A prática de um órgão jurisdicional nacional, que aprecia um litígio que tem por objeto um pedido de reparação dos danos causados a um proponente ilegalmente excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público, segundo a qual é recusada a concessão de uma indemnização a título de perda de oportunidade (loss of opportunity), é compatível com o artigo 2.°, n.° 1, alínea c), [da Diretiva 89/665], em conjugação com o artigo 2.°, n.os 6 e 7, [desta diretiva]?

2)      A prática de um órgão jurisdicional nacional, que aprecia um litígio que tem por objeto um pedido de reparação dos danos causados a um proponente ilegalmente excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público, segundo a qual um pedido de lucros cessantes provocados pela impossibilidade de participar num contrato público não faz parte do pedido de indemnização, é compatível com o artigo 2.°, n.° 1, alínea c), [da Diretiva 89/665], em conjugação com o artigo 2.°, n.os 6 e 7, [desta diretiva]?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à admissibilidade

24      A recorrida no processo principal contesta a admissibilidade das questões prejudiciais alegando, em substância, que não são pertinentes para efeitos da apreciação do recurso no processo principal, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não deu por demonstrada a sua admissibilidade nem mesmo a legitimidade ativa da recorrente no processo principal. Além disso, o Tribunal de Justiça não é competente para responder às questões prejudiciais, dado que, com estas, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, na realidade, obter a reapreciação, pelo Tribunal de Justiça, do litígio no processo principal ou das instruções relativas aos trâmites a seguir no caso de decidir não atribuir uma indemnização por perda de oportunidade.

25      A este respeito, resulta de jurisprudência constante que, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.° TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 12 de outubro de 2023, INTER CONSULTING, C‑726/21, EU:C:2023:764, n.° 32 e jurisprudência referida).

26      Daqui decorre que as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro normativo e factual que define sob a sua própria responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. A rejeição, pelo Tribunal, de um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional só é possível se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 12 de outubro de 2023, INTER CONSULTING, C‑726/21, EU:C:2023:764, n.° 33 e jurisprudência referida).

27      Ora, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio não pede ao Tribunal de Justiça que proceda à aplicação, ao litígio no processo principal, das disposições do direito da União visadas nas questões prejudiciais, mas sim à sua interpretação. Além disso, esse órgão jurisdicional, que deve, segundo a jurisprudência, assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar (Acórdão de 13 de janeiro de 2022, Regione Puglia, C‑110/20, EU:C:2022:5, n.° 23 e jurisprudência referida), expôs com suficiente clareza as razões por que considera que a interpretação dessas disposições é necessária para decidir esse litígio.

28      Por outro lado, importa recordar que, segundo jurisprudência igualmente constante, embora possa ser vantajoso, segundo as circunstâncias, que os factos do processo estejam determinados e que os problemas de puro direito nacional estejam resolvidos no momento do reenvio ao Tribunal de Justiça, os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem da mais ampla faculdade para recorrer ao Tribunal de Justiça se considerarem que um processo neles pendente suscita questões sobre as quais têm de decidir e que implicam uma interpretação ou uma apreciação da validade de disposições do direito da União (Acórdão de 4 de junho de 2015, Kernkraftwerke Lippe‑Ems, C‑5/14, EU:C:2015:354, n.° 31 e jurisprudência referida). Por conseguinte, a argumentação da recorrida no processo principal segundo a qual o recurso interposto pela recorrente no processo principal não preenche os requisitos de admissibilidade previstos no direito eslovaco não determina a inadmissibilidade das questões prejudiciais.

29      Nestas condições, há que declarar que as questões prejudiciais são admissíveis.

 Quanto ao mérito

30      Com as duas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação ou a uma prática nacionais que excluem a possibilidade de um proponente excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público em virtude de uma decisão ilegal da entidade adjudicante ser indemnizado pelo prejuízo sofrido devido à perda de oportunidade de participar nesse procedimento para obter o contrato em causa.

31      Resulta do pedido de decisão prejudicial que o órgão jurisdicional de reenvio pede, mais especificamente, ao Tribunal de Justiça que esclareça se esta disposição deve ser interpretada no sentido de que os lesados por uma violação do direito da União em matéria de contratos públicos e que têm, assim, direito a ser indemnizados incluem não só os lesados que sofreram um prejuízo pelo facto de não terem obtido um contrato público, a saber, os lucros cessantes, mas também os que sofreram um prejuízo relacionado com a oportunidade perdida de participar no procedimento de adjudicação desse contrato e obter lucros com essa participação.

32      Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para a interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os termos dessa disposição mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 20 de abril de 2023, DIGI Communications, C‑329/21, EU:C:2023:303, n.° 41 e jurisprudência referida).

33      No que respeita, primeiro, à redação do artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665, há que observar que esta disposição, formulada de forma ampla, prevê que os Estados‑Membros asseguram a concessão de indemnizações aos lesados por uma violação do direito da União em matéria de adjudicação de contratos públicos, o que, na falta de indicação relativa à distinção entre diferentes categorias de prejuízo, é suscetível de contemplar qualquer tipo de prejuízo sofrido por esses lesados, incluindo o resultante da perda de oportunidade de participar no procedimento de adjudicação de um contrato.

34      Segundo, esta conclusão é confirmada pelo contexto em que a referida disposição se insere.

35      Com efeito, segundo jurisprudência constante, os particulares lesados por uma violação do direito da União imputável a um Estado‑Membro têm direito a reparação, desde que estejam preenchidos três requisitos, a saber, que a norma do direito da União violada tenha por objeto conferir‑lhes direitos, que a violação dessa norma seja suficientemente caracterizada e que haja um nexo de causalidade direto entre essa violação e o dano sofrido pelos particulares (Acórdão de 29 de julho de 2019, Hochtief Solutions Magyarországi Fióktelepe, C‑620/17, EU:C:2019:630, n.° 35 e jurisprudência referida). Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que a reparação dos danos causados aos particulares por violações do direito da União deve ser adequada ao prejuízo sofrido, no sentido de que deve permitir, se necessário, compensar integralmente os prejuízos efetivamente sofridos [Acórdão de 28 de junho de 2022, Comissão/Espanha (Violação do direito da união pelo legislador), C‑278/20, EU:C:2022:503, n.° 164 e jurisprudência referida]. Ora, o artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665 constitui uma concretização destes princípios, inerentes à ordem jurídica da União (v., neste sentido, Acórdão de 9 de dezembro de 2010, Combinatie Spijker Infrabouw‑De Jonge Konstruktie e o., C‑568/08, EU:C:2010:751, n.° 87).

36      A este respeito, e em conformidade com o artigo 1.°, n.° 3, da Diretiva 89/665, os processos de recurso previstos nesta última devem ser acessíveis, pelo menos, a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação. De resto, conforme resulta do considerando 36 da Diretiva 2007/66, o sistema de vias de recurso estabelecido pela Diretiva 89/665 visa assegurar o respeito pleno do direito a um recurso efetivo e o acesso a um tribunal imparcial, em conformidade com o artigo 47.°, primeiro e segundo parágrafos, da Carta dos Direitos Fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 14 de julho de 2022, EPIC Financial Consulting, C‑274/21 e C‑275/21, EU:C:2022:565, n.° 88 e jurisprudência referida).

37      Esta última diretiva não prevê a possibilidade de limitar esse acesso. Pelo contrário, os Estados‑Membros podem prever, nos termos do artigo 2.°, n.° 7, segundo parágrafo, da referida diretiva, que, após a celebração do contrato na sequência da atribuição do mesmo, os poderes da instância responsável pelo recurso se limitem à concessão de indemnização aos lesados por uma violação. A ação de indemnização prevista no artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da mesma diretiva foi, assim, considerada pelo legislador da União Europeia como a via de direito de último recurso, que deve permanecer acessível aos lesados por uma violação do direito da União quando estejam privados, de facto, da possibilidade de beneficiarem do efeito útil de uma das outras vias de recurso previstas nesta última disposição.

38      É, em especial, o caso de um proponente ilegalmente preterido que, tendo pedido e obtido a anulação da sua exclusão de um procedimento de adjudicação de um contrato público como o que está em causa no processo principal, deixou, porém, devido ao encerramento desse procedimento entretanto verificado, de poder beneficiar dos efeitos dessa anulação.

39      Com efeito, embora da não obtenção, enquanto tal, de um contrato público possa resultar um prejuízo, há que observar que, num caso como o identificado no número anterior, é possível que o proponente que tenha sido ilegalmente preterido sofra um prejuízo distinto, que corresponde à oportunidade perdida de participar no procedimento de adjudicação em causa para obter esse contrato (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2023, United Parcel Service/Comissão, C‑297/22 P, EU:C:2023:1027, n.° 69). Ora, à luz das considerações expostas no n.° 37 do presente acórdão, esse prejuízo deve poder ser objeto de reparação nos termos do artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665.

40      Terceiro, a interpretação ampla do artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665 é corroborada pelo objetivo prosseguido por esta diretiva de não excluir nenhum tipo de prejuízo do âmbito de aplicação desta diretiva.

41      Em especial, importa recordar que, embora certamente não se possa considerar que a Diretiva 89/665 procede a uma harmonização completa e, portanto, prevê todas as vias de recurso possíveis em matéria de contratos públicos (Acórdão de 26 de março de 2020, Hungeod e o., C‑496/18 e C‑497/18, EU:C:2020:240, n.° 73), não é menos verdade que, como enunciado no sexto considerando desta diretiva, esta última procede da vontade do legislador da União de assegurar que, em todos os Estados‑Membros, procedimentos apropriados permitam não só a anulação das decisões ilegais mas também a indemnização dos lesados por uma violação do direito da União.

42      Ora, este objetivo ficaria comprometido se o artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665 devesse ser interpretado no sentido de que permite excluir, por princípio, a possibilidade de as pessoas referidas no artigo 1.°, n.° 3, desta diretiva obterem uma indemnização pelo prejuízo que alegam ter sofrido devido a uma violação do direito da União em matéria de contratos públicos.

43      Com efeito, à semelhança do que o Tribunal de Justiça declarou no que respeita aos lucros cessantes, a exclusão total, a título do dano reparável, da perda de oportunidade de participar num procedimento de adjudicação de um contrato público para obter este último não pode ser admitida em caso de violação do direito da União, uma vez que, especialmente a propósito de litígios de ordem económica ou comercial, a exclusão total dessa perda de oportunidade seria suscetível de tornar de facto impossível a reparação do dano (v., por analogia, Acórdãos de 5 de março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame, C‑46/93 e C‑48/93, EU:C:1996:79, n.° 87; de 13 de julho de 2006, Manfredi e o., C‑295/04 a C‑298/04, EU:C:2006:461, n.° 96 e jurisprudência referida; e de 17 de abril de 2007, AGM‑COS.MET, C‑470/03, EU:C:2007:213, n.° 95).

44      Por conseguinte, o artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665 deve ser interpretado no sentido de que a indemnização que os lesados por uma violação do direito da União em matéria de contratos públicos podem pedir ao abrigo desta disposição é suscetível de cobrir o prejuízo sofrido devido a uma perda de oportunidade.

45      Todavia, importa salientar que, embora este artigo 2.°, n.° 1, alínea c), imponha que possam ser concedidas indemnizações aos lesados por uma violação do direito da União em matéria de contratos públicos, cabe, na falta de disposições da União nesse domínio, à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro fixar os critérios com base nos quais o dano resultante da perda de uma oportunidade de participar num procedimento de adjudicação de um contrato público para obter este último deve ser apurado e avaliado, desde que sejam respeitados os princípios da equivalência e da efetividade (v., neste sentido, Acórdão de 9 de dezembro de 2010, Combinatie Spijker Infrabouw‑De Jonge Konstruktie e o., C‑568/08, EU:C:2010:751, n.° 90 e jurisprudência referida).

46      No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que o § 17 da Lei n.° 514/2003 apenas visa expressamente, como danos indemnizáveis, os «danos reais» e os «lucros cessantes». Na audiência, o Governo Eslovaco referiu que, segundo jurisprudência constante dos órgãos jurisdicionais eslovacos, os «lucros cessantes» devem ser reparados quando for altamente provável, ou mesmo quase certo, que, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, a pessoa em causa teria obtido lucros. Todavia, referindo‑se à posição da Comissão Europeia segundo a qual os órgãos jurisdicionais eslovacos deveriam recorrer a todos os meios nacionais para permitir que o proponente ilegalmente excluído de um contrato público peça efetivamente uma indemnização devido a uma oportunidade perdida, esse Governo declarou, na audiência, que nada impede o requerente de utilizar os meios processuais à sua disposição para fazer valer o seu direito e apresentar os elementos de prova que o demonstram.

47      A este respeito, basta recordar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, para garantir a efetividade de todas as disposições do direito da União, o princípio do primado impõe, nomeadamente, aos órgãos jurisdicionais nacionais que, tanto quanto possível, interpretem o seu direito interno em conformidade com o direito da União (Acórdão de 4 de março de 2020, Bank BGŻ BNP Paribas, C‑183/18, EU:C:2020:153, n.° 60 e jurisprudência referida) e que essa obrigação de interpretação conforme impõe aos órgãos jurisdicionais nacionais que, sendo caso disso, alterem a jurisprudência assente, ou mesmo constante, se esta assentar numa interpretação do direito interno incompatível com os objetivos de uma diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 3 de junho de 2021, Instituto Madrileño de Investigación y Desarrollo Rural, Agrario y Alimentario, C‑726/19, EU:C:2021:439, n.° 86 e jurisprudência referida).

48      Atendendo às considerações expostas, há que responder às questões submetidas que o artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação ou a uma prática nacionais que excluem, por princípio, a possibilidade de um proponente excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público em virtude de uma decisão ilegal da entidade adjudicante ser indemnizado pelo prejuízo sofrido devido à perda de oportunidade de participar nesse procedimento para obter o contrato em causa.

 Quanto às despesas

49      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:

O artigo 2.°, n.° 1, alínea c), da Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos procedimentos de recurso em matéria de celebração dos contratos de direito público de fornecimentos e de obras, conforme alterada pela Diretiva 2007/66/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007,

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma legislação ou a uma prática nacionais que excluem, por princípio, a possibilidade de um proponente excluído de um procedimento de adjudicação de um contrato público em virtude de uma decisão ilegal da entidade adjudicante ser indemnizado pelo prejuízo sofrido devido à perda de oportunidade de participar nesse procedimento para obter o contrato em causa.

Assinaturas


*      Língua do processo: eslovaco.