Language of document : ECLI:EU:C:2003:537

Conclusions

CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL
ANTONIO TIZZANO
apresentadas em 2 de Outubro de 2003 (1)



Processo C-418/01



IMS Health GmbH & Co. OHG

contra

NDC Health GmbH & Co. KG


(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Frankfurt am Main)


«Concorrência – Abuso de posição dominante – Recusa de licença para um direito de propriedade intelectual»






1.       Por despacho de 12 de Julho de 2001, o Landgericht Frankfurt am Main (a seguir «Landgericht») submeteu ao Tribunal de Justiça três questões prejudiciais relativas à interpretação do artigo 82.° CE  (2) . Em síntese, aquele órgão jurisdicional alemão pergunta se, em determinadas circunstâncias, uma empresa comete um abuso de posição dominante pelo facto de não permitir aos seus concorrentes a utilização (a título oneroso) da estrutura de uma base de dados sobre a qual dispõe de um direito de autor.

Factos e tramitação

Matéria de facto no litígio principal

2.       O litígio principal opõe a sociedade IMS Health GmbH & Co. OHG (a seguir «IMS») à sociedade NDC Health GmbH & Co. KG (a seguir «NDC») que, em Agosto de 2000, adquiriu e absorveu a sociedade Pharma Intranet Information AG (a seguir «PII»).

3.       As partes no processo dedicam‑se à recolha, tratamento e interpretação dos dados sobre as vendas regionais de produtos farmacêuticos na Alemanha. Para os presentes efeitos, importa sublinhar que os estudos realizados por estas sociedade estão estruturados com base num critério geográfico, reagrupando os dados referentes às vendas de produtos farmacêuticos numa série de «módulos» regionais em que está subdividido o território da República Federal da Alemanha.

4.       Do despacho de reenvio decorre que, para realizar os seus estudos, a IMS empreendeu nos anos 70 uma subdivisão do território alemão, primeiro em 418 módulos, que assentava o mais possível nos limites das cidades e das circunscrições municipais. Dado que esta estrutura era demasiado gravosa para os fabricantes de produtos farmacêuticos, procedeu‑se, em 1989, a uma subdivisão em 1000 módulos que teve em consideração, entre outros elementos, as diversas realidades do mercado e as estruturas de comercialização. Com a introdução, em 1 de Junho de 1993, dos códigos postais de cinco dígitos, a subdivisão do mercado sofreu nova alteração, tendo sido desenvolvida uma estrutura assente em 1845 módulos. Desde Janeiro de 2000, a IMS elabora os seus estudos com base numa subdivisão do território alemão em 1860 módulos, oferecendo, além disso, uma outra subdivisão em 2847 módulos, derivada daquela (a seguir «estrutura de 1860 módulos» e «estrutura de 2847 módulos», respectivamente).

5.       Estas estruturas foram criadas tendo em conta diversos critérios, entre os quais avultam as fronteiras administrativas dos municípios e das áreas postais. Para a delimitação de cada módulo foram tomados em consideração outros factores, tais como, por exemplo, as características do território (urbano ou rural), os meios de transporte e a concentração geográfica das farmácias e dos consultórios médicos.

6.       A fim de envolver a indústria farmacêutica na definição das suas estruturas, a IMS criou há alguns anos um grupo de trabalho designado por «RPM» [«Regionaler Pharmazeutischer Markt» (mercado farmacêutico regional)]. Nesse grupo, que se reúne duas vezes por ano, participam empresas da indústria farmacêutica clientes da IMS, que apresentam propostas de melhoramentos para, tendo em conta as suas necessidades respectivas, alcançar uma segmentação do mercado em termos óptimos. Segundo a IMS, o grupo de trabalho (cujas propostas só são retidas em situações excepcionais) apenas se debruça sobre menos de 10% dos módulos das suas estruturas e constitui, essencialmente, um instrumento de marketing que serve de ligação entre os clientes e os produtos da IMS. Ao invés, a NDC afirma que o grupo de trabalho teve um papel determinante na delimitação de cada módulo.

7.       A IMS não utiliza as estruturas de 1860 e 2847 módulos exclusivamente para os estudos de mercado vendidos às empresas farmacêuticas, procedendo também à sua distribuição gratuita aos centros farmacêuticos de informação e às uniões de caixas de previdência. Em consequência, segundo o órgão jurisdicional nacional, essas estruturas passaram a constituir um «modelo habitual» para as avaliações regionais do mercado farmacêutico alemão. As indústrias farmacêuticas harmonizaram os seus sistemas de comercialização e de tratamento informático dos dados com a estrutura territorial utilizada pela demandante.

8.       Inicialmente, a PII, representada por um ex‑gerente da IMS, elaborava os seus estudos com base na subdivisão do território da República Federal da Alemanha em 2201 módulos. Nas conversações com os potenciais clientes, ficou todavia provado que os estudos realizados deste modo seriam de difícil comercialização, pois assentavam numa estrutura diferente daquela com a qual as empresas farmacêuticas se tinham harmonizado. A PII passou, por isso, a trabalhar com uma estrutura territorial de 1860 e 3000 módulos, que correspondiam em grande parte aos da IMS  (3) .

As decisões anteriores dos órgãos jurisdicionais nacionais

9.       A fim de impedir a utilização destas estruturas, considerada lesiva dos seus direitos de autor, a IMS interpôs um recurso no Landgericht, pedindo que fossem decretadas medidas de proibição urgentes. Em 27 de Outubro de 2000, o órgão jurisdicional alemão deu provimento ao recurso e ordenou uma medida urgente contra a PII, proibindo a utilização da estrutura de 3000 módulos ou de outra divisão territorial que fosse uma variante da estrutura de 1860 módulos da IMS. A PII interpôs recurso desta decisão mas, em 19 de Junho de 2001, o Oberlandesgericht Frankfurt am Main julgou o recurso improcedente, pelo que a decisão transitou em julgado. Após a aquisição da PII pela NDC, foi decretada uma providência cautelar, sob a forma de despacho, contra esta última sociedade. Este despacho foi confirmado em 12 de Julho de 2001 por decisão do Landgericht, que ainda não tinha transitado em julgado à data do despacho de reenvio que está na origem do presente processo.

10.     Nessas providências, o órgão jurisdicional alemão considerou que as estruturas da IMS e as bases de dados (ou partes de bases de dados), estavam protegidas pela legislação alemã dos direitos de autor. Sem tomar posição quanto ao contributo do grupo de trabalho RPM para o desenvolvimento dessas estruturas, o órgão jurisdicional considerou que a IMS era, no mínimo, co‑titular dos respectivos direitos de autor e podia, assim, impedir a utilização não autorizada das referidas estruturas.

A decisão cautelar da Comissão europeia e os despachos dos presidentes do Tribunal de Primeira Instância e do Tribunal de Justiça

11.     Como o órgão jurisdicional de reenvio salienta, na pendência daquelas decisões, a utilização das estruturas da IMS foi também objecto de um processo em matéria de concorrência perante a Comissão europeia.

12.     Face à iminente adopção da primeira medida urgente do Landgericht, a NDC pediu à IMS que lhe concedesse, a título oneroso, uma licença para a utilização da estrutura de 1860 módulos. Perante a recusa da IMS, que se mostrou indisponível para negociar a concessão da licença, a NDC apresentou uma denúncia à Comissão, por abuso de posição dominante, pedindo‑lhe que adoptasse medidas urgentes.

13.     Acedendo ao pedido da NDC, em 3 de Julho de 2001 a Comissão adoptou, a título cautelar, nos termos da jurisprudência Camera Care  (4) , a Decisão 2002/165/CE, «relativa a um processo ao abrigo do artigo 82.° do Tratado CE»  (5) . Com esta decisão, a Comissão: i) obrigou a IMS «a conceder, sem demora, uma licença de utilização da estrutura de 1860 módulos, a todas as empresas actualmente presentes no mercado de serviços de dados de vendas regionais, a pedido das mesmas e de forma não discriminatória, a fim de permitir a utilização e a venda por essas empresas de dados de vendas regionais configurados segundo a dita estrutura» (artigo 1.°); ii) estabeleceu as modalidades para determinar as royalties a pagar por essa licença (artigo 2.°); e iii) previu a aplicação de uma multa à IMS (artigo 3.°).

14.     Na parte da decisão relativa ao fumus boni juris e à violação, prima facie, do artigo 82.° CE, por parte da IMS, a Comissão partiu da premissa de que esta sociedade ocupa uma posição dominante no mercado dos serviços de dados relativos às vendas regionais na Alemanha (mercado extensivo a todo o território alemão e que pode considerar‑se uma parte substancial do mercado comum)  (6) .

15.     Nestes termos, para apreciar se a recusa de conceder uma licença para as estruturas da IMS podia configurar um abuso de posição dominante, a Comissão entendeu dever «avaliar se a estrutura de 1860 módulos, ou outra compatível com ela, [era] ou não indispensável para concorrer no mercado relevante, ou seja, se [havia] ou não uma possibilidade realista de que as empresas que desejam oferecer serviços de dados de vendas regionais na Alemanha empreg[assem] ─ em vez da estrutura 1860 ou de uma estrutura compatível ─ outra estrutura que não infrin[gisse] os direitos de autor da IMS»  (7) . Além disso, precisou que «a resposta a esta pergunta depend[ia] claramente da existência ou não de uma possibilidade real de que os clientes de dados de vendas regionais compr[assem] dados configurados segundo outra estrutura»  (8) .

16.     A Comissão concluiu pela afirmativa, com base nos resultados dos seus inquéritos e, designadamente, à luz das informações fornecidas por muitas empresas farmacêuticas inquiridas.

17.     A este respeito, apontou uma série de elementos que ligam os clientes (isto é, as empresas farmacêuticas) à estrutura de 1860 módulos da IMS, acentuando que:

        «o grupo de trabalho desempenhou um vasto papel na concepção da estrutura» de 1860 módulos e que «o sector farmacêutico da Alemanha investiu recursos consideráveis para assegurar que a estrutura modular satisfazia cabalmente as suas necessidades». Isto explica em parte «a dependência [das empresas farmacêuticas], desenvolvida ao longo de um extenso período, relativamente a esta estrutura, os desincentivos extremamente elevados que elas têm quanto a mudarem para uma estrutura nova e, consequentemente, a impossibilidade que um serviço de dados de vendas regionais configurado noutra estrutura tem para competir»  (9) ;

        «a estrutura de 1860 módulos funciona[va] como uma norma industrial, em parte devido ao papel desempenhado pelas empresas desta indústria na sua criação» e «as empresas farmacêuticas ficaram de tal modo ‘presas’ a esta norma que afastarem‑se dela e comprarem dados de vendas configurados numa estrutura não compatível, embora seja teoricamente possível, constituiria uma proposta económica inviável»  (10) ;

        «os dados relativos aos diferentes períodos [deviam ser] comparáveis, pelo que os dados apresentados em qualquer estrutura nova [deviam] ser convertidos para a estrutura 1860 (ou vice‑versa), a um custo considerável»  (11) ;

        «se os dados regionais fossem fornecidos numa estrutura não compatível com a estrutura 1860, seria necessário introduzir mudanças significativas nos territórios atribuídos aos delegados de informação médica pelas suas empresas farmacêuticas», com a consequente «perda da relação entre os delegados de informação médica e os médicos». Essa perda, que teria sido «um resultado inevitável da mudança para uma estrutura modular incompatível com a estrutura de 1860 módulos, funcionaria como um importante desincentivo para que certas empresas farmacêuticas fizessem tal mudança»  (12) ;

        o território de vendas, definido como a agregação de vários módulos, podia «ser indicado no contrato de trabalho entre a empresa e o delegado de informação médica, pelo que uma mudança de estrutura exigiria uma alteração do contrato de trabalho. Este procedimento constituiria outro desincentivo à mudança de estrutura modular»  (13) ;

        «os custos da modificação das aplicações internas que, [presentemente] est[avam] globalmente dependentes da estrutura de 1860 módulos [eram] significativos e constitu[íam] um desincentivo importante à substituição das estruturas modulares»  (14) .

18.     A Comissão analisou depois «se existiam ou não obstáculos técnicos e jurídicos que, pelo menos, fossem de natureza a tornar desrazoavelmente difícil, para quaisquer outras empresas, criar outra estrutura em que os serviços regionais pudessem ser configurados e comercializados na Alemanha»  (15) . A este respeito, observou que «a maioria dos parâmetros utilizados na construção da estrutura é do domínio público e está fixada (áreas de código postal, localização das farmácias e dos médicos, dados sociodemográficos, topologia, território susceptível de ser coberto pelos delegados de informação médica num só dia, etc.). A escolha das fronteiras entre os módulos depende em grande medida destes parâmetros objectivos, e limita, por isso, as alternativas à disposição dos eventuais criadores de novas estruturas»  (16) .

19.     Além disso, a Comissão referiu outros elementos que tornavam improvável a criação de uma estrutura alternativa pelos concorrentes da IMS, salientando, em especial: a falta de segurança jurídica em torno da venda de dados numa nova estrutura  (17) ; as anteriores tentativas infrutíferas de criar novas estruturas  (18) ; e a impossibilidade de retirar da experiência de outros países  (19) indicações que facilitassem a criação de novas estruturas.

20.     Com base nestes elementos, a Comissão considerou que a utilização da estrutura de 1860 módulos, ou de outras estruturas com ela compatíveis, era indispensável para competir no mercado relevante. Não existindo razões objectivas para a recusa de concessão da licença  (20) , a Comissão entendeu, prima facie, que tal recusa implicava um abuso de posição dominante.

21.     Respondendo aos argumentos da IMS que, com base na jurisprudência comunitária, entendia que «[tinha] o direito de recusar licenças da estrutura protegida pelos seus direitos de autor aos concorrentes no mercado a que os direitos de autor respeitam»  (21) , a Comissão sublinhou que «o facto de os casos considerados pelo TJCE e pelo TPI a que a IMS se refer[ia] envolverem dois mercados não exclu[ía] a possibilidade de uma recusa de licença de um direito de propriedade intelectual poder ser contrária ao artigo 82.°»  (22) . Para configurar uma violação da referida disposição no caso em apreço, a Comissão considerou suficiente, em especial: i) que «a estrutura de 1860 módulos constitua um factor de produção indispensável para permitir que as empresas concorram no mercado de serviços de dados de vendas regionais na Alemanha»; ii) que exista «uma distinção importante entre o produto, que são os serviços de dados de vendas regionais, e a estrutura modular em que os dados utilizados para criar estes serviços são configurados»; e iii) que «nas circunstâncias específicas e excepcionais em que a ‘estrutura de 1860 módulos’ foi desenvolvida e o direito de autor foi reivindicado e confirmado, o trabalho em causa, devido aos obstáculos técnicos e económicos atrás referidos, não possa ser reproduzido através de uma criação paralela que não viole esses direitos»  (23) . Ainda com referência à jurisprudência comunitária pertinente, a Comissão salientou, além disso, que «não basta que uma recusa de fornecimento impeça o aparecimento de um produto novo para ser abusiva»  (24) .

22.     Em 6 de Agosto de 2001, a IMS interpôs um recurso no Tribunal de Primeira Instância, pedindo a anulação da decisão da Comissão nos termos do artigo 230.° CE, com efeito suspensivo ao abrigo do artigo 243.° CE. Por despacho de 26 de Outubro de 2001, o presidente do Tribunal de Primeira Instância deferiu o pedido de suspensão da execução da referida decisão  (25) . Para os presentes efeitos note‑se que, na parte do despacho relativa ao fumus boni juris, o Tribunal de Primeira Instância considerou fundados, prima facie (ou, pelo menos, não manifestamente infundados), os argumentos da IMS, de que a Comissão se afastou da jurisprudência comunitária ao concluir que a recusa da licença implicava uma violação do artigo 82.° CE, mesmo que tal recusa não impedisse «o surgimento de um novo produto num mercado distinto daquele no qual a empresa em questão é dominante»  (26) .

23.     Ao recurso interposto desta decisão pela NDC foi negado provimento por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2002  (27) .

A decisão principal e as questões prejudiciais

24.     Segundo decorre do despacho de reenvio, no processo principal a IMS insiste no pedido que visa impedir a NDC de utilizar a estrutura de 1860 módulos ou de qualquer variante desta. O Landgericht conclui, porém, que o direito de proibir a utilização, em princípio reconhecido à IMS pela legislação nacional relativa aos direitos de autor, não pode ser reconhecido no caso em apreço, se se chegar à conclusão de que a recusa da IMS em celebrar com a NDC um contrato de licença em condições razoáveis constitui um comportamento abusivo na acepção do artigo 82.° CE.

25.     Nesta matéria, o órgão jurisdicional nacional subscreve as conclusões da Comissão no que diz respeito à definição do mercado relevante e à posição dominante da IMS  (28) . No entanto, para concluir se a recusa da licença por parte da IMS constitui um abuso de posição dominante, o Landgericht Frankfurt am Main solicita ao Tribunal de Justiça que se pronuncie a título prejudicial sobre as seguintes questões:

«1)
O artigo 82.° CE deve ser interpretado no sentido de que o facto de uma empresa detentora de uma posição dominante no mercado que recusa celebrar um contrato de licença relativo à utilização de uma base de dados, protegida por direitos de autor, com uma empresa que pretendia entrar no mesmo espaço e tipo de mercado, se a parte contrária no jogo do mercado, ou seja, os potenciais consumidores, recusarem os produtos que não fazem uso da base de dados protegida porque se adaptaram à utilização de produtos compatíveis com a base de dados protegida, constitui um comportamento abusivo?

2)
É relevante, para averiguar do comportamento abusivo da empresa detentora da posição dominante, determinar em que medida os colaboradores da parte contrária no jogo da concorrência participaram no desenvolvimento da base de dados?

3)
É relevante, para averiguar do comportamento abusivo da empresa detentora da posição dominante, o montante das despesas de reconversão (em especial, os custos de reconversão) que suportariam os consumidores que até agora usavam o produto da empresa detentora da posição dominante, se no futuro passassem a usar o produto de uma empresa concorrente que não utiliza a base de dados?»

A tramitação no Tribunal de Justiça e a decisão pendente no Tribunal de Primeira Instância

26.     Foram apresentadas observações pelas partes no processo principal e pela Comissão, tendo as partes sido ouvidas na audiência realizada em 6 de Março de 2003.

27.     Por despacho de 26 de Setembro de 2002, foi suspensa a instância no recurso de anulação da decisão da Comissão, interposto pela IMS no Tribunal de Primeira Instância, até o Tribunal de Justiça se pronunciar no presente caso.

Análise jurídica

Introdução

28.     Como se viu, as questões prejudiciais inserem‑se numa matéria complexa sobre a qual já se debruçaram, a vários títulos, a Comissão e os presidentes do Tribunal de Primeira Instância e do Tribunal de Justiça. A fim de dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional nacional, tendo em conta o que resulta da decisão da Comissão e das providências cautelares decretadas pelas instâncias comunitárias, julgo conveniente fazer algumas observações preliminares sobre o alcance das questões prejudiciais e sobre os problemas que estas colocam.

29.     Começo por observar que a primeira questão parece alicerçar‑se em dois pressupostos: a) que a utilização de uma determinada estrutura de módulos, protegida por direitos de autor, é indispensável para comercializar estudos relativos às vendas regionais de produtos farmacêuticos num dado país e, por conseguinte, para operar no respectivo mercado, uma vez que os potenciais clientes (as empresas farmacêuticas) recusam comprar qualquer estudo que não seja realizado com base nessa estrutura  (29) ; b) que a empresa titular dos direitos de autor sobre a estrutura em causa detém uma posição dominante no mercado dos serviços de dados relativos às vendas regionais de produtos farmacêuticos no país em causa. Com base nestes pressupostos, o órgão jurisdicional alemão pretende saber se o artigo 82.° CE deve ser interpretado no sentido de que, nesta situação, a empresa titular dos direitos de autor abusa da sua posição dominante se recusar conceder (a título oneroso) uma licença para a utilização da sua estrutura a particulares que tencionem utilizá‑la para operar no mesmo mercado (geográfico e de produto) em que aquela ocupa a posição dominante e utiliza a referida estrutura.

30.     Por outras palavras, com a primeira questão, o órgão jurisdicional nacional pretende essencialmente saber se, numa situação como a referida, a recusa da licença pode constituir um abuso de posição dominante, mesmo que não restrinja nem elimine a concorrência num mercado distinto daquele em que o titular do direito de autor usufrui o seu direito e tem uma posição dominante ou se limite a impedir que potenciais concorrentes operem no mesmo mercado da empresa dominante.

31.     De resto, já foi assinalado que, precisamente com referência a esse aspecto, a IMS criticou a abordagem da Comissão, sustentando que tinha «o direito de recusar licenças da estrutura protegida pelos seus direitos de autor aos concorrentes no mercado a que os direitos de autor respeitam»  (30) . E foi neste aspecto que, como se viu, se centrou a decisão cautelar do presidente do Tribunal de Primeira Instância que, prima facie, julgou fundados (ou, pelo menos, não manifestamente infundados) os argumentos da IMS, segundo a qual a Comissão conclui erradamente que a recusa da licença constituía uma violação do artigo 82.° CE, embora não impedisse «o surgimento de um novo produto num mercado distinto daquele no qual a empresa em questão é dominante»  (31) .

32.     À luz da decisão da Comissão e das providências cautelares, as duas questões seguintes parecem centrar‑se num dos pressupostos da primeira questão, que visa essencialmente esclarecer quando é que uma determinada estrutura de módulos deve ser considerada indispensável para a comercialização dos estudos relativos às vendas regionais de produtos farmacêuticos num dado país. Em especial, o órgão jurisdicional nacional pretende saber que relevância têm, para efeitos dessa apreciação: i) o nível de participação das empresas farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura protegida por direitos de autor; ii) os encargos (designadamente, em termos de custos) que as empresas farmacêuticas terão de suportar para poderem adquirir estudos realizados com base numa estrutura diferente da que é protegida pelos direitos de autor.

33.     Esclarecido o alcance destas questões, passo a analisá‑las, começando pela primeira e examinando depois a segunda e a terceira em conjunto. Concluída a análise, farei algumas breves observações sobre os problemas que se prendem com a aplicação do artigo 82.° CE, concomitantemente pelo órgão jurisdicional nacional e pela Comissão.

Quanto à primeira questão

Argumentos das partes

34.     Quanto à primeira questão, a IMS começa por salientar que a fruição exclusiva de um direito de propriedade intelectual, e, portanto, o poder de o titular do direito recusar uma licença para a sua utilização, constitui um elemento essencial desse direito. Por isso, como decorre da jurisprudência, a mera recusa de concessão de uma licença, mesmo quando proveniente de uma empresa em posição dominante, não pode constituir, em si mesma, uma prática abusiva na acepção do artigo 82.° CE. Esta disposição só é violada se a recusa da licença for acompanhada de outro elemento que permita caracterizar uma prática abusiva  (32) . Uma interpretação diferente da norma, segundo a qual a recusa de licença seja considerada em si mesma abusiva, pode ter consequências gravíssimas e indesejáveis para a economia de mercado, pois privaria os titulares de um direito de propriedade intelectual da justa retribuição do seu trabalho criativo e desincentivaria os investimentos na inovação e na investigação.

35.     A IMS observa depois que, num caso como o presente, a recusa de licenciamento não pode configurar um abuso de posição dominante, nem sequer com base na doutrina da essential facility (infra‑estrutura essencial), na qual, basicamente, assenta a decisão da Comissão. De facto, esta doutrina pressupõe que a empresa dominante forneça num mercado, a montante, produtos ou serviços indispensáveis para concorrer com ela num segundo mercado a jusante: nessa situação, se negar injustificadamente o acesso aos seus produtos ou serviços, a empresa dominante restringe de modo abusivo a concorrência, no mercado a jusante  (33) . Com a doutrina da essential facility não se pode obrigar a empresa dominante a partilhar com outros operadores um seu direito de propriedade intelectual, apenas com o fim de permitir a estes últimos concorrerem mais eficazmente com a empresa dominante, no mesmo mercado em que esta goza do seu direito.

36.     A IMS salienta, além disso, que, no caso sub judice, não tem cabimento invocar o acórdão Magill para afirmar que a recusa de licenciamento constitui um abuso de posição dominante. Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que a recusa de licença só pode constituir um abuso, em «circunstâncias excepcionais», se: i) impedir o lançamento de um produto novo, não fornecido pela empresa dominante titular do direito de propriedade intelectual e para o qual existe uma procura potencial; ii) for injustificada; iii) tiver como consequência reservar à empresa dominante um mercado derivado. No caso em apreço, a primeira e terceira condições não estão preenchidas, pois a NDC não pretende lançar um produto novo num mercado derivado, mas servir‑se da estrutura desenvolvida pela IMS para fornecer, no mesmo mercado, um produto quase idêntico ao desta última empresa.

37.     Por último, na opinião da IMS, uma interpretação do artigo 82.° CE, segundo a qual a recusa de uma empresa dominante de conceder uma licença constitui em si mesma um abuso, implica uma violação: a) do direito da propriedade protegido pela Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; b) dos compromissos internacionais que resultam para a Comunidade do acordo da OMC sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio e da Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas.

38.     Como é natural, as conclusões da NDC apontam em sentido diametralmente oposto.

39.     Esta empresa alega, em especial, que o caso concreto do processo principal apresenta muitas analogias com o processo Magill, no qual o Tribunal de Justiça julgou abusiva a recusa de licença por parte do titular dos direitos de autor. Com efeito, tal como nesse processo:

o bem incorpóreo protegido por direitos de autor não é o resultado de um grande esforço criativo e de investimentos consideráveis (no caso vertente, a estrutura assenta em grande parte nos limites dos códigos postais alemães e foi elaborada com o contributo decisivo da indústria farmacêutica);

esse bem é colocado à disposição de sujeitos que não fazem concorrência ao titular dos direitos de autor (no caso presente, por exemplo, os serviços cartográficos);

o produto da empresa que pretende obter a licença é, em vários aspectos, melhor do que o da titular dos direitos de autor (no caso vertente, por exemplo, a gama dos dados tratados é mais ampla, os clientes têm a possibilidade de aceder «on‑line» a esses dados e estes têm mais valor significativo e são apresentados de modo mais acessível para o cliente);

a situação de monopólio na actividade a montante (no presente caso, a estrutura de módulos) é extensiva à actividade a jusante (no caso vertente, a comercialização dos estudos sobre as vendas regionais de produtos farmacêuticos).

40.     Segundo a NDC, o facto de esta não pretender limitar‑se a reproduzir os dados coligidos pela IMS, mas antes recolher e tratar autonomamente os dados sobre as vendas regionais, a fim de seguidamente os transpor para o seu produto, advoga também em favor da solução apontada. A NDC sublinha, além disso, que, no caso sub judice, o bem incorpóreo protegido por direitos de autor é uma regra sectorial que, com base nas apreciações efectuadas pela Comissão nas suas orientações sobre a aplicação do artigo 81.° CE aos acordos de cooperação horizontal  (34) , deve ser o mais acessível possível.

41.     A NDC observa, por último, que, para uma recusa de licença ser considerada abusiva, não é necessário que existam dois mercados distintos (a montante e a jusante)  (35) . Como decorre do acórdão Magill, para o artigo 82.° CE ser aplicável basta que a empresa dominante num determinado mercado tenha o monopólio das informações necessárias para lhe poder ser feita concorrência. O facto de essas informações não serem colocadas no mercado pela empresa dominante não tem qualquer importância.

42.     Por seu lado, a Comissão sustenta que, para considerar abusiva a recusa de uma empresa dominante, de permitir aos seus concorrentes o acesso a uma infra‑estrutura essencial, não é necessário que a infra‑estrutura se localize num mercado diferente daquele em que os concorrentes pretendem operar. Basta que a infra‑estrutura se localize numa fase da produção, a montante, e constitua um input necessário para a produção de um determinado bem ou serviço, a jusante.

43.     Em especial, segundo a Comissão, para um determinado bem ou serviço ser considerado uma estrutura ou um input essencial é necessário que se distinga do bem ou serviço a jusante e que entre ele e o bem ou serviço a jusante se crie um «valor acrescentado». Esta abordagem, que assenta na distinção entre as diversas fases de produção, mais do que na existência de mercados distintos, é confirmada pela análise do Tribunal de Justiça nos acórdãos Magill e Bronner e do Tribunal de Primeira Instância no acórdão Ladbroke.

44.     De resto, o facto de o input indispensável para a produção do bem ou serviço a jusante não ser comercializado autonomamente pela empresa dominante não exclui que a recusa injustificada de acesso a esse input constitua uma prática abusiva. Com efeito, mesmo nesse caso, a recusa de acesso consubstancia uma restrição importante da concorrência no mercado do bem ou serviço a jusante, em violação do artigo 82.° CE. A restrição é ainda mais grave se o input indispensável não for de todo comercializado, pois as empresas interessadas na produção do bem ou serviço, a jusante, não poderão sequer adquirir esse input indirectamente, a terceiros que o tenham obtido da empresa dominante.

45.     A Comissão acrescenta que esta conclusão também é válida quando o input essencial é um bem incorpóreo protegido por direitos de autor. Na verdade, se esse bem incorpóreo for diferente do bem ou serviço a jusante, para cuja produção é indispensável, a recusa da licença por parte da empresa dominante, titular dos direitos de autor, extravasa a função essencial desse direito, pois reserva à empresa o mercado do bem ou serviço a jusante. A este respeito, a Comissão salienta que o direito de autor é um direito de propriedade como muitos outros, com os quais tem em comum não só o seu titular poder dispor, em exclusivo, do bem (corpóreo ou incorpóreo) que é seu objecto, como também estar vinculado pelas obrigações decorrentes do direito da concorrência.

Apreciação

46.     Como se viu, a questão em análise coloca um problema importante e delicado de interpretação do artigo 82.° CE, no que se refere à obrigação que incumbe a uma empresa dominante de conceder (a título oneroso) aos seus concorrentes a utilização de um bem incorpóreo protegido por direitos de autor, que seja indispensável para operar no mesmo mercado em que a referida empresa goza do seu direito e ocupa a posição dominante.

a)     A jurisprudência relevante

47.     Para a análise desta matéria, há que referir, antes de mais, as decisões do Tribunal de Justiça relativas à possibilidade de considerar a recusa de contratar um abuso de posição dominante, nas quais (ou, pelo menos, nalgumas das quais) seja possível vislumbrar uma aplicação da doutrina da essential facility, que as partes repetidamente invocam  (36) .

48.     A este respeito, começo por recordar o acórdão Commercial Solvents, em que o problema se colocou a propósito de uma interrupção do fornecimento de matérias‑primas. Confirmando a decisão da Comissão, impugnada naquele processo, o Tribunal de Justiça concluiu que «o detentor de uma posição dominante no mercado das matérias‑primas que, com o fim de as reservar para a sua própria produção de derivados, recusa o seu fornecimento a um cliente que também é produtor desses derivados, com o risco de eliminar toda e qualquer concorrência da parte desse cliente, explora a sua posição dominante de forma abusiva, na acepção do artigo 86.°»  (37) .

49.     No acórdão Telemarketing, o Tribunal de Justiça teve oportunidade de esclarecer que esta conclusão «é igualmente válida para o caso de uma empresa que detém uma posição dominante no mercado de um serviço indispensável para as actividades de outra empresa num outro mercado»  (38) . Nesse processo, o juiz comunitário entendeu que era contrário ao artigo 86.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 82.° CE) que uma empresa dominante no mercado da publicidade televisiva se recusasse a vender tempos de antena a empresas independentes de telemarketing, sem justificação objectiva, reservando para uma empresa sua associada as operações nesse domínio, com o risco de eliminar qualquer concorrência no respectivo mercado. Com referência a esse caso concreto, o Tribunal de Justiça reiterou o princípio de que «constitui abuso na acepção do artigo 86.° o facto de uma empresa detentora de uma posição dominante num dado mercado, se reservar [...], sem necessidade objectiva, uma actividade auxiliar que poderia ser exercida por uma terceira empresa no quadro de actividades desta num mercado próximo, embora distinto, com risco de eliminar qualquer concorrência por parte desta empresa»  (39) .

50.     Especificamente quanto aos direitos de propriedade intelectual, há que referir o processo Volvo, no qual, em substância, foi perguntado ao Tribunal de Justiça se esta empresa abusou da sua posição dominante no (previsto) mercado de peças sobresselentes de origem, por não conceder a terceiros uma licença para o fabrico das referidas peças. Em resposta a essa questão, o Tribunal de Justiça afirmou que «a faculdade de o titular de um modelo industrial protegido impedir terceiros de fabricar, bem como de vender ou importar, sem o seu conhecimento, produtos integrantes do modelo industrial constitui a própria essência do seu direito exclusivo. Daqui resulta que impor, ao titular do modelo industrial protegido a obrigação de conceder a terceiros, mesmo com royalties razoáveis a título de compensação, uma licença para o fornecimento de produtos integrantes do modelo industrial, teria por consequência privar aquele titular de parte essencial do seu direito exclusivo e que, por isso, a recusa de concessão de semelhante licença não pode constituir, sem mais, um abuso de posição dominante»  (40) . No entanto, o Tribunal de Justiça acrescentou que «o exercício do direito exclusivo pelo titular de um modelo industrial relativo a painéis de carroçaria de veículos automóveis pode ser proibido pelo artigo 86.° se der origem, por parte de uma empresa em posição dominante, a certos comportamentos abusivos, tais como a recusa arbitrária de fornecer peças sobresselentes a garagens independentes, a fixação dos preços das peças sobresselentes a um nível não equitativo, ou a decisão de deixar de produzir peças sobresselentes para um determinado modelo, apesar de muitos veículos desse modelo ainda continuarem a circular, desde que esses comportamentos possam afectar o comércio entre Estados‑Membros»  (41) .

51.     Pronunciando‑se no recurso de dois acórdãos do Tribunal de Primeira Instância, no já referido processo Magill, o Tribunal de Justiça voltou à questão da recusa de licença para um direito de propriedade intelectual. Nos acórdãos recorridos, o Tribunal de Primeira Instância confirmou uma decisão na qual a Comissão considerou que algumas estações de televisão abusaram da posição dominante no mercado das suas listas de programas televisivos, reivindicando direitos de autor sobre essas listas, com vista a impedir terceiros de publicarem guias semanais completos dos programas das diversas estações de televisão.

52.     A este respeito, o Tribunal de Justiça salientou antes de mais que, segundo decorre do acórdão Volvo, embora a recusa de licença para um direito de propriedade intelectual não constitua, em si mesma, um abuso de posição predominante, «o exercício do direito exclusivo pelo titular pode, em circunstâncias excepcionais, dar lugar a um comportamento abusivo»  (42) . No processo Magill, o Tribunal de Justiça entendeu que as circunstâncias levavam a considerar abusivo o comportamento das estações de televisão recorrentes, porque:

em primeiro lugar, «as recorrentes – que eram, pela força das coisas, as únicas fontes da informação em bruto sobre a programação, matéria‑prima indispensável para criar um guia semanal de televisão – não deixavam assim ao telespectador que pretendesse informar‑se das ofertas de programas para a semana seguinte outra possibilidade senão a de comprar os guias semanais de cada estação emissora e deles retirar ele próprio os dados úteis para fazer comparações. A recusa das recorrentes de fornecerem as informações em bruto, invocando as disposições nacionais sobre o direito de autor, constitui, assim, um entrave ao lançamento de um produto novo, um guia semanal completo dos programas de televisão, que as recorrentes não ofereciam, e para o qual existia uma procura potencial por parte dos consumidores, o que constitui um abuso nos termos do artigo 86.°, segundo parágrafo, alínea b), do Tratado»  (43) ;

em segundo lugar, a «recusa não era justificada nem pela actividade de radiodifusão televisiva nem pela de edição de revistas de televisão»  (44) ;

em terceiro lugar, «as recorrentes, pelo seu comportamento, reservaram para si um mercado derivado, o dos guias semanais de televisão, excluindo toda a concorrência neste mercado [...], uma vez que as recorrentes negavam o acesso à informação em bruto, matéria‑prima indispensável para criar um tal guia»  (45) .

53.     No acórdão Bronner, o Tribunal de Justiça também se debruçou sobre a problemática relativa à recusa de contratar. Nesse caso, referindo‑se à existência de um mercado autónomo dos sistemas de distribuição domiciliária de jornais diários à escala nacional, o Tribunal de Justiça teve que verificar «se o facto [de] o proprietário do único sistema de distribuição domiciliária existente à escala nacional no território de um Estado‑Membro e que utiliza este sistema para a distribuição dos seus próprios jornais diários [...] recusar o acesso ao mesmo ao editor de um jornal diário concorrente constitui um abuso de posição dominante na acepção do artigo 86.° do Tratado, pela razão de essa recusa privar o referido concorrente de um modo de distribuição que é julgado essencial para a sua venda»  (46) .

54.     Após referir o acórdão Magill, o Tribunal de Justiça observou que «mesmo supondo que esta jurisprudência referente ao exercício de um direito de propriedade intelectual seja aplicável ao exercício de qualquer direito de propriedade», para a recusa de contratar constituir um abuso de posição dominante, teria sido necessário «não só que a recusa do serviço que constitui a distribuição domiciliária [fosse] de natureza a eliminar toda e qualquer concorrência no mercado dos jornais diários por parte de quem procura o serviço e não [pudesse] ser objectivamente justificada, ainda que o serviço [fosse] em si mesmo indispensável para o exercício da sua actividade, no sentido de que não exist[i]a qualquer substituto real ou potencial para o sistema de distribuição domiciliária»  (47) .

b)     Deduções

55.     Desta sucinta análise jurisprudencial resulta que, efectivamente, como salientou a IMS, em todos os casos em que se admitiu que a recusa de fornecer ou disponibilizar determinados bens (corpóreos ou incorpóreos) ou serviços podia constituir um abuso de posição dominante, o Tribunal de Justiça distinguiu entre um mercado desses bens ou serviços (a montante) e um mercado derivado (a jusante) em que estes são utilizados como input na produção de bens ou serviços diferentes. As violações do artigo 82.° declaradas ou admitidas como hipótese nestes casos diziam respeito a empresas integradas verticalmente que (pelo menos em hipótese), por se recusarem a contratar, abusaram da sua posição dominante num mercado a montante, a fim de restringir ou eliminar a concorrência num mercado a jusante.

56.     Como correctamente observaram a NDC e a Comissão, para reconhecer a existência de um mercado de inputs (a montante), o Tribunal de Justiça não considerou necessário que estes fossem comercializados autonomamente pela empresa dominante. Com efeito, no acórdão Magill, o Tribunal de Justiça reconheceu a existência de um mercado das listas de programas de televisão, embora estas não fossem comercializadas autonomamente pelas estações de televisão, mas distribuídas gratuitamente a alguns jornais. No acórdão Bronner, o Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de reconhecer a existência de um mercado dos sistemas de distribuição domiciliária dos jornais diários à escala nacional, embora a empresa que detinha um monopólio nesse mercado (hipotético) não vendesse autonomamente o serviço de distribuição domiciliária  (48) .

57.     Por conseguinte, para os efeitos da jurisprudência citada quanto à recusa de contratar, parece‑me suficiente que possa ser reconhecida a existência de um mercado de inputs, a montante, mesmo que o mercado seja apenas «potencial», no sentido de nele operar uma empresa monopolista que decide não comercializar autonomamente os inputs em questão (não obstante existir uma procura efectiva), mas utilizá‑los, com carácter exclusivo, num mercado a jusante, restringindo ou eliminando toda a concorrência nesse mercado.

58.     Para referir um exemplo clássico da doutrina da essential facility, pense‑se no caso de o acesso a um porto ser indispensável para a prestação de serviços de transporte marítimo num determinado mercado geográfico. Imagine‑se que o proprietário do porto utiliza essa estrutura com carácter exclusivo, a fim de garantir um monopólio no mercado dos serviços de transporte marítimo, recusando, sem justificação objectiva, fornecer os indispensáveis serviços portuários a empresas terceiras que os solicitem. Julgo que, nesse caso, a jurisprudência sobre a recusa de contratar deve ser aplicada independentemente do facto de os serviços portuários não estarem disponíveis no mercado. Com efeito, essa circunstância não exclui a possibilidade de reconhecimento da existência de um mercado dos serviços portuários solicitados pelas empresas de transporte marítimo, atendendo a que existe realmente uma procura desses serviços e que não há obstáculos de natureza técnica à sua comercialização. Por conseguinte, nos termos da jurisprudência sobre a recusa de contratar, é possível considerar que, ao negar injustificadamente o acesso à infra‑estrutura portuária, o proprietário dessa infra‑estrutura abusa da sua posição dominante (de monopólio) no mercado dos serviços portuários, na medida em que, com o seu comportamento, elimina qualquer concorrência no mercado derivado dos serviços de transporte marítimo.

59.     Uma vez esclarecido que, para se reconhecer a existência de um mercado dos inputs, a montante, não é necessário que estes sejam autonomamente comercializados pela empresa que tem o seu controlo, parece‑me evidente que, por definição, a existência desse mercado pode ser reconhecida se: a) os inputs em questão forem indispensáveis (na medida em que não haja alternativa nem possam ser reproduzidos) para operar num determinado mercado; b) existir uma procura efectiva desses inputs por parte de empresas que pretendam operar no mercado em que os mesmos são indispensáveis.

60.     Se examinarmos, à luz do que antecede, o caso perspectivado na primeira questão, é forçoso reconhecer que, no caso em apreço, não se pode afastar a aplicação da jurisprudência relativa à recusa de contratar apenas pelo facto de a empresa que pediu a licença para a estrutura de módulos pretender operar no mesmo mercado do titular dos direitos de autor. Como a questão parte do pressuposto de que a estrutura de módulos para a qual a licença foi pedida é indispensável para a comercialização de estudos sobre as vendas regionais de produtos farmacêuticos num determinado país, é possível, desde logo, reconhecer a existência de um mercado, a montante, quanto ao acesso à estrutura de módulos (monopolizado pelo titular do direito de autor) e de um mercado derivado, a jusante, quanto às vendas dos estudos.

61.     Posto isto, devo todavia acrescentar que os acórdãos do Tribunal de Justiça sobre a recusa da licença para um direito de propriedade intelectual me levam a concluir que, para se considerar abusiva uma recusa injustificada, não basta que o bem incorpóreo objecto do direito de propriedade intelectual seja indispensável para operar num mercado e que, com a recusa, o titular do direito possa eliminar qualquer concorrência no mercado derivado.

62.     Mesmo nessas circunstâncias, na ponderação entre a protecção do direito de propriedade intelectual e a livre iniciativa económica do seu titular, por um lado, e a protecção da liberdade de concorrência, por outro, em minha opinião o fiel da balança só pode inflectir no sentido desta última se a recusa da licença impedir o desenvolvimento do mercado derivado, em prejuízo dos consumidores. Em especial, entendo que a recusa da licença só pode ser considerada abusiva se a empresa que a solicita não pretender limitar‑se a reproduzir os bens ou serviços já disponibilizados, no mercado derivado, pelo titular do direito de propriedade intelectual, mas tencionar produzir bens ou serviços com características diferentes que ─ embora concorrendo com os do titular do direito ─ satisfaçam exigências especiais de consumidores insatisfeitos com os bens ou serviços existentes.

63.     É neste sentido que parece apontar claramente o acórdão Magill, no qual, como se viu, o Tribunal de Justiça considerou abusiva a recusa injustificada de uma licença, na medida em que: a) essa recusa constituía «um entrave ao lançamento de um produto novo, um guia semanal completo dos programas de televisão, que as recorrentes não ofereciam, e para o qual existia uma procura potencial por parte dos consumidores»; b) «as recorrentes, pelo seu comportamento, reservaram para si um mercado derivado, o dos guias semanais de televisão, excluindo toda a concorrência neste mercado»  (49) .

64.     Nesse processo, o Tribunal de Justiça considerou abusiva a recusa de uma licença pelo facto de a empresa solicitante pretender lançar no mercado um guia semanal dos programas de televisão diferente dos produzidos pelos titulares dos direitos de autor (já que não se limitaria a indicar os programas de uma única estação de televisão, mas constituiria um guia completo dos programas das estações de televisão), que satisfaria exigências específicas dos consumidores. Desse modo, impediu‑se o lançamento de um produto «novo», que faria concorrência aos dos titulares dos direitos de autor, no mercado geral dos guias semanais de programas de televisão.

65.     No mesmo sentido pode também ser entendido o acórdão Volvo, no qual o Tribunal de Justiça esclareceu que «a recusa de concessão de [uma] licença não pode constituir, sem mais, um abuso de posição dominante»  (50) . Embora, nesse caso, a patente do modelo industrial das diversas partes da carroçaria pudesse ser considerada um input indispensável para operar no (previsto) mercado de peças sobresselentes, o Tribunal de Justiça não considerou abusiva a recusa da licença, porque a empresa solicitante apenas pretendia reproduzir os produtos do titular do modelo industrial, ou seja, fabricar peças sobresselentes da Volvo.

66.     À luz das considerações que antecedem, entendo que é possível responder à primeira questão prejudicial que o artigo 82.° CE deve ser interpretado no sentido de que a recusa de conceder uma licença para a utilização de um bem incorpóreo protegido por direitos de autor constitui um abuso de posição dominante na acepção daquele artigo, se: a) não houver justificação objectiva para a recusa; b) a utilização do bem incorpóreo for indispensável para operar num mercado derivado e, em consequência dessa recusa, o titular do direito puder eliminar toda a concorrência nesse mercado. Isto, porém, na condição de a empresa que solicita a licença não pretender limitar‑se a reproduzir os bens ou serviços já disponibilizados no mercado derivado pelo titular do direito de propriedade intelectual, mas tencionar produzir bens ou serviços com características diferentes que ─ embora concorrendo com os do titular do direito ─ satisfaçam exigências específicas de consumidores insatisfeitos com os bens ou serviços existentes.

Quanto à segunda e à terceira questões

67.     Como já foi dito, com a segunda e a terceira questões, o órgão jurisdicional nacional pretende saber, essencialmente, se uma estrutura de módulos protegida por direitos de autor deve ser considerada indispensável para a comercialização de estudos relativos às vendas regionais de produtos farmacêuticos num determinado país. Em especial, o órgão jurisdicional nacional pretende saber que relevância têm, para efeitos dessa apreciação: i) o nível de participação das empresas farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura protegida por direitos de autor; ii) os encargos (designadamente, em termos de custos) que as empresas farmacêuticas terão de suportar para poderem adquirir estudos realizados com base numa estrutura diferente da que é protegida por direitos de autor.

Argumentos das partes

68.     No que se refere aos problemas colocados pelas questões em apreço, a IMS observa, em termos gerais, que as preferências da clientela não justificam a qualificação da estrutura de 1860 módulos como uma essential facility. Para apurar se uma estrutura de módulos é indispensável para a comercialização de estudos relativos às vendas regionais de produtos farmacêuticos, não se pode tomar como referência a disponibilidade subjectiva dos clientes para aceitarem estudos realizados com base numa outra estrutura; pelo contrário, para esse efeito, o que é determinante é a possibilidade objectiva de um concorrente de dimensões análogas criar uma estrutura alternativa.

69.     Quanto ao papel desempenhado pelas empresas farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura de módulos, a IMS observa que o contributo dos clientes para a criação de produtos ou serviços que satisfaçam cada vez melhor as suas exigências é absolutamente normal. Nesta óptica, impor uma obrigação de licença acarreta consequências negativas, na medida em que pode levar as empresas a prescindirem de qualquer contacto com a clientela para o desenvolvimento dos seus produtos.

70.     Quanto aos custos de adaptação que os clientes terão que suportar para utilizar estudos realizados com base noutras estruturas, a IMS observa que o facto de os clientes terem de suportar despesas para optarem por um produto diferente é absolutamente normal e não pode ser considerado relevante para determinar se a recusa de licença constitui um abuso de posição dominante.

71.     Em sentido contrário, a NDC alega que as práticas da indústria ou as expectativas dos clientes são relevantes para determinar se uma infra‑estrutura constitui uma essential facility pois, em determinadas circunstâncias, podem tornar indispensável o acesso a uma estrutura que, de outra forma, não estaria disponível.

72.     A NDC salienta ainda que, nos termos do acórdão Bronner, o acesso a uma determinada infra‑estrutura pode ser considerado indispensável se a criação de uma infra‑estrutura alternativa não for rentável. No caso em apreço, os custos de adaptação que as empresas farmacêuticas terão que suportar para mudar de uma estrutura para outra serão de tal modo elevados que a criação de uma estrutura concorrente não só não é rentável como é até financeiramente incomportável.

73.     Por seu lado, a Comissão recorda que a sua decisão cautelar refere muitos elementos que levam a considerar que a estrutura de 1860 módulos da IMS é indispensável para a comercialização dos estudos relativos às vendas regionais de produtos farmacêuticos na Alemanha; o órgão jurisdicional nacional referiu apenas alguns dos elementos tomados em consideração para efeitos da referida apreciação.

74.     Feito este esclarecimento, a Comissão salienta que a importante participação dos clientes no desenvolvimento da estrutura de módulos da IMS contribuiu para criar uma dependência das empresas farmacêuticas em relação à referida estrutura. Em sua opinião, uma colaboração tão intensa e regular dos clientes, com vista à criação de uma estrutura comum para o fornecimento de um conjunto de serviços compatíveis, apresenta as características próprias de um processo para a criação de uma situação de facto.

75.     A Comissão observa depois que, para determinar o carácter indispensável de uma infra‑estrutura, há que apurar se um concorrente de dimensões análogas tem possibilidade de criar uma alternativa válida. Para essa apreciação, convém proceder a um exame criterioso dos factores relevantes do ponto de vista da procura, e, designadamente, dos esforços de adaptação que os clientes terão de realizar a fim de mudar de uma para outra infra‑estrutura. Uma análise conjunta da situação do ponto de vista da oferta e da procura será particularmente oportuna para determinar se uma infra‑estrutura alternativa é economicamente rentável.

76.     Recordando as apreciações constantes da sua decisão, a Comissão sublinha os obstáculos que, no caso sub judice, desincentivam as empresas farmacêuticas de mudarem para uma estrutura de módulos incompatível com a da IMS e os encargos, não apenas financeiros, que essa mudança comporta.

Apreciação

77.     Para a análise das questões em apreço, convém voltar ao acórdão Bronner, no qual o Tribunal de Justiça forneceu algumas indicações úteis para determinar se um bem (corpóreo ou incorpóreo) ou um serviço pode ser considerado indispensável para operar num determinado mercado.

78.     Nesse processo, o Tribunal de Justiça excluiu que o único sistema de distribuição domiciliária existente à escala nacional no território de um Estado‑Membro fosse indispensável para a venda de jornais diários, sublinhando, por um lado, que estava «assente que outros modos de distribuição de jornais diários, como a distribuição por via postal e a venda nas lojas e quiosques, mesmo admitindo que são menos vantajosos para a distribuição de certos de entre eles, existem e são utilizados pelos editores desses jornais» e, por outro, que «não se verifica que existam obstáculos técnicos, regulamentares ou mesmo económicos que sejam de natureza a tornar impossível, ou mesmo desrazoavelmente difícil, para qualquer outro editor de jornais diários criar, sozinho ou em colaboração com outros editores, o seu próprio sistema de distribuição domiciliária à escala nacional e de o utilizar para a distribuição dos seus próprios jornais diários»  (51) .

79.     O Tribunal de Justiça sublinhou, além disso, que «para demonstrar que a criação de semelhante sistema não constitui uma alternativa potencial realista e que o acesso ao sistema existente é, portanto, indispensável, não basta invocar que não é economicamente rentável devido à fraca tiragem do ou dos jornais diários a distribuir. Com efeito, para que esse acesso possa eventualmente ser considerado como sendo indispensável, será, pelo menos, necessário provar [...] que não é economicamente rentável criar um segundo sistema de distribuição domiciliária para a distribuição de jornais diários com uma tiragem comparável à dos jornais diários distribuídos pelo sistema existente»  (52) .

80.     Decorre destes acórdãos que, para apurar se um input é indispensável para operar num determinado mercado, há que apreciar: a) se existem inputs alternativos que possam ser utilizados para operar (com maior ou menor eficácia) no mercado em questão; b) se existem obstáculos técnicos, regulamentares ou mesmo económicos que sejam de natureza a tornar impossível, ou mesmo desrazoavelmente difícil, para qualquer empresa que tencione operar no referido mercado, a criação, eventualmente em colaboração com outros operadores, de inputs alternativos. Segundo o Tribunal de Justiça, para se poder admitir a existência de obstáculos de carácter económico à criação de inputs alternativos deve ser demonstrado, pelo menos, que a sua criação não é economicamente rentável para uma produção a escala comparável à do titular dos inputs existentes.

81.     No caso em apreço, como já foi dito, há que determinar que relevância têm, para os efeitos dessa apreciação: a) o nível de participação das empresas farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura protegida por direitos de autor; ii) os encargos (designadamente, em termos de custos) que as empresas farmacêuticas terão de suportar para poderem adquirir estudos realizados com base numa estrutura diferente da que é protegida por direitos de autor.

82.     Em minha opinião, estes aspectos devem ser apreciados em conjunto pois, em última análise, ambos se traduzem em obstáculos de carácter económico à criação de uma estrutura alternativa.

83.     Segundo sustentam a NDC e a Comissão, a participação das empresas farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura da IMS, embora não constitua um impedimento absoluto, de carácter técnico ou jurídico, à mudança de uma estrutura para outra, é uma das causas da dependência das empresas farmacêuticas em relação à estrutura existente. No entanto, a participação das indústrias farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura da IMS só explica por que razão essas indústrias terão de suportar encargos extraordinários para poderem adquirir estudos realizados com base numa estrutura diferente.

84.     Ora, é evidente que, se as indústrias farmacêuticas tiverem de suportar encargos extraordinários (financeiros e de organização) a fim de mudar para uma estrutura alternativa, este facto torna mais onerosa ou, dependendo do ponto de vista, menos rentável, a criação dessa estrutura por um concorrente da IMS. Para convencer os potenciais clientes a comprarem os estudos realizados com base na estrutura alternativa, o concorrente da IMS terá de lhes oferecer condições especialmente vantajosas, correndo o risco de não conseguir amortizar os investimentos realizados.

85.     Por conseguinte, deve‑se concluir que o nível de participação das empresas farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura protegida por direitos de autor e os encargos que essas empresas terão de suportar para poderem adquirir estudos realizados com base numa estrutura alternativa à que é protegida por direitos de autor são elementos que têm de ser tomados em consideração para determinar se existem ou não obstáculos de natureza económica susceptíveis de tornar impossível, ou mesmo desrazoavelmente difícil, para qualquer empresa que tencione operar no referido mercado a criação, eventualmente em colaboração com outros operadores, de uma estrutura alternativa.

86.     À luz do que antecede, entendo que se deve responder às segunda e terceira questões que o nível de participação das empresas farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura protegida por direitos de autor e os encargos que essas empresas terão de suportar para poderem adquirir estudos realizados com base numa estrutura alternativa à que é protegida por direitos de autor são elementos que têm de ser tomados em consideração para determinar se esta última estrutura é indispensável para a comercialização dos estudos sobre as vendas regionais de produtos farmacêuticos.

Quanto à aplicação do artigo 82.° CE, concomitantemente pelo órgão jurisdicional nacional e pela Comissão

87.     Antes de concluir, gostaria ainda de fazer algumas considerações sintéticas sobre os problemas que se colocam no caso em apreço, com referência à aplicação do artigo 82.° CE pelo órgão jurisdicional nacional e pela Comissão, concomitantemente. Esses problemas surgem na medida em que o acórdão a proferir pelo Tribunal de Justiça no presente processo, embora definindo a interpretação correcta do artigo 82.° CE com referência às questões submetidas pelo órgão jurisdicional nacional, deixará provavelmente a este último uma certa margem de apreciação para determinar se a recusa da licença por parte da IMS constitui ou não um abuso de posição dominante. Por conseguinte, teoricamente, o órgão jurisdicional nacional pode decidir em sentido contrário ao da decisão cautelar da Comissão, na qual foi afirmado, prima facie, que essa recusa é contrária ao artigo 82.° CE.

88.     Nesse caso, porém, convém lembrar que o Tribunal de Justiça decidiu que, «quando os órgãos jurisdicionais nacionais se pronunciam sobre acordos ou práticas que já sejam objecto de uma decisão da Comissão [em aplicação dos artigos 81.° ou 82.° CE], não podem tomar decisões contrárias à decisão da Comissão»  (53) . Em minha opinião, esta proibição, que se fundamenta na obrigação de cooperação leal enunciada no artigo 10.° CE e no carácter obrigatório das decisões adoptadas pela Comissão em aplicação dos artigos 81.° ou 82.° CE  (54) , deve ser aplicável mesmo que esta instituição se tenha pronunciado a título cautelar, uma vez que a natureza cautelar de uma decisão não prejudica o seu carácter obrigatório nem a referida obrigação de cooperação. Além disso, como o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de esclarecer, a proibição de adoptar decisões contrárias às da Comissão mantém‑se mesmo no caso de a execução destas ter sido suspensa, a título provisório, pelo presidente do Tribunal de Primeira Instância  (55) .

89.     Obviamente, se o órgão jurisdicional nacional ─ dentro da margem de apreciação que presumivelmente lhe será deixada pelo Tribunal de Justiça ─ tiver dúvidas quanto à validade da decisão da Comissão, pode apresentar uma nova questão prejudicial  (56) . Se o entender conveniente, o órgão jurisdicional nacional pode mesmo suspender a instância até o Tribunal de Justiça se pronunciar sobre a decisão cautelar da Comissão  (57) , ou aguardar pela decisão definitiva, eventualmente mediante consulta prévia da própria Comissão. Como o Tribunal de Justiça sublinhou, quando o órgão jurisdicional nacional suspende a instância, incumbe‑lhe examinar a necessidade de decretar medidas provisórias para salvaguardar os interesses das partes até proferir uma decisão definitiva  (58) .

Conclusão

À luz das considerações que antecedem, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao Landgericht nos termos seguintes:

«1)
O artigo 82.° CE deve ser interpretado no sentido de que a recusa de conceder uma licença para a utilização de um bem incorpóreo protegido por direitos de autor constitui um abuso de posição dominante na acepção daquele artigo, se: a) não houver justificação objectiva para a recusa; b) a utilização do bem incorpóreo for indispensável para operar num mercado derivado e, em consequência dessa recusa, o titular do direito puder eliminar toda a concorrência nesse mercado. Isto, porém, na condição de a empresa que solicita a licença não pretender limitar‑se a reproduzir os bens ou serviços já disponibilizados no mercado derivado pelo titular do direito de propriedade intelectual, mas tencionar produzir bens ou serviços com características diferentes que – embora concorrendo com os do titular do direito – satisfaçam exigências específicas de consumidores insatisfeitos com os bens ou serviços existentes.

2)
O nível de participação das empresas farmacêuticas no desenvolvimento da estrutura protegida por direitos de autor e os encargos que essas empresas terão de suportar para poderem adquirir estudos realizados com base numa estrutura alternativa à que é protegida pelos direitos de autor são elementos que têm de ser tomados em consideração para determinar se esta última estrutura é indispensável para a comercialização dos estudos sobre as vendas regionais de produtos farmacêuticos.»


1
Língua original: italiano.


2
Este artigo dispõe:

«É incompatível com o mercado comum e proibido, na medida em que tal seja susceptível de afectar o comércio entre os Estados‑Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma abusiva uma posição dominante no mercado comum ou numa parte substancial deste.

Estas práticas abusivas podem, nomeadamente, consistir em:

a) Impor, de forma directa ou indirecta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transacção não equitativas.

b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento técnico em prejuízo dos consumidores.

c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações equivalentes colocando‑os, por esse facto, em desvantagem na concorrência.

d) Subordinar a celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objecto desses contratos.»


3
A estrutura de 1860 módulos incluía apenas 30 módulos diferentes dos da estrutura correspondente da IMS, ao passo que a estrutura de 3000 módulos se baseava na estrutura de 2847 módulos da IMS, com a ulterior subdivisão de aproximadamente 150 módulos.


4
Despacho do Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 1980, Camera Care/Comissão (792/79 R, Recueil, p. 119).


5
JO L 59, p. 18.


6
N.os 45 a 62.


7
N.° 71.


8
N.° 72.


9
.Ibidem.


10
N.os 86 e 92.


11
N.° 93.


12
N.° 114. Relativamente às relações entre os médicos e os delegados de informação médica em especial, a Comissão observou que «as empresas farmacêuticas atribuem grande importância à relação entre o médico e o delegado de informação médica, que é um dos poucos meios disponíveis para promover um medicamento» (n.° 113).


13
N.° 115.


14
N.° 122.


15
N.° 124.


16
N.° 131. A Comissão salientou especificamente que «a clara importância da utilização das áreas de código postal limita as opções à disposição dos potenciais criadores de novas estruturas modulares» (n.° 132); que existem fortes argumentos «justificativos da necessidade de que as estruturas modulares respeitem as fronteiras das 440 Kreise (associações de municípios) alemãs» (n.° 137); e que «há uma probabilidade de que a legislação alemã de protecção dos dados imponha algumas restrições à construção de uma segunda estrutura na Alemanha» (n.° 142).


17
N.os 143 a 145.


18
N.os 146 a 152.


19
N.os 153 a 166.


20
N.os 167 a 174.


21
N.° 182.


22
N.° 184.


23
.Ibidem.


24
N.° 180.


25
Despacho do presidente do Tribunal de Primeira Instância de 26 de Outubro de 2001, IMS Health Inc./Comissão (T‑184/01 R, Colect., p. II‑3193).


26
N.° 105.


27
Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2002, NDC Health Corporation e NDC Health GmbH & Co. KG/IMS Health Inc. e Comissão [C‑481/01 P (R) Colect., p. I‑3401].


28
O Landgericht remete, em especial, para os n.os 45 a 55, 59 e 60 da decisão cautelar da Comissão.


29
A razão dessa recusa, que não parece estar em discussão na questão em apreço, reconduz‑se a problemas de organização das empresas farmacêuticas.


30
N.° 182 da decisão cautelar da Comissão.


31
N.° 105 do despacho do presidente do Tribunal de Primeira Instância.


32
Quanto a este ponto, a IMS invoca os acórdãos de 5 de Outubro de 1988, CICRA/Renault (53/87, Colect., p. 6039); Volvo (238/87, Colect., p. 6211); e de 6 de Abril de 1995, RTE e ITP/Comissão (C‑241/91 P e C‑242/91 P, Colect., p. I‑743, n.° 49, a seguir acórdão «Magill»).


33
Neste sentido, segundo a IMS, depõem todos os acórdãos comunitários e as decisões da Comissão relativas à recusa de contratar e às essential facilities. A este respeito, a IMS refere, em especial, os acórdãos do Tribunal de Justiça de 6 de Março de 1974, Commercial Solvents (6/73 e 7/73, Colect., p. 122); de 3 de Outubro de 1985, CBEM/CLT e IPB, «Télémarketing» (311/84, Recueil, p. 3261); de 13 de Dezembro de 1991, GB‑Inno‑BM (C‑18/88, Colect., p. I‑5941); de 6 de Abril de 1995, Magill, já referido na nota 32; de 26 de Novembro de 1998, Bronner (C‑7/97, Colect., p. I‑7791); e do Tribunal de Primeira Instância de 12 de Junho de 1997, Ladbroke (T‑504/93, Colect., p. II‑923); e ainda a Decisão 98/190/CE da Comissão de 14 de Janeiro de 1998 relativa a um processo de aplicação do artigo 86.° do Tratado CE (IV/34.801 FAG ─ Flughafen Frankfurt/Main AG, JO L 72, p. 30).


34
JO C 3, de 6 de Janeiro de 2001, p. 2.


35
A este respeito, a NDC salienta, em especial, que, no n.° 47 do acórdão Magill, o Tribunal de Justiça não se limitou a apreciar se, nesse caso, era possível distinguir dois mercados, em sentido técnico.


36
Com referência a esta doutrina e à sua aplicação nos Estados Unidos da América e na Europa, v., em especial, as conclusões do advogado‑geral F. G. Jacobs apresentadas no processo Bronner, já referido, n.os 45 a 53.


37
Acórdão já referido, n.° 25.


38
Acórdão já referido, n.° 26.


39
.Ibidem, n.° 27. O mesmo princípio foi depois reafirmado num contexto parcialmente diferente, no acórdão RTT/GB, já referido, n.° 18.


40
Acórdão Volvo, já referido, n.° 8.


41
N.° 9. Na mesma data, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se substancialmente no mesmo sentido, no acórdão Renault, já referido.


42
N.° 50.


43
N.os 53 e 54.


44
N.° 55.


45
N.° 56.


46
N.° 37.


47
N.° 41.


48
Para o reconhecimento da existência do mercado relevante, o Tribunal de Justiça não parece ter tido em consideração o facto de o proprietário do sistema de distribuição fornecer um conjunto de serviços a um editor independente, incluindo o de distribuição domiciliária de um seu jornal diário. Todavia, naquele caso, o serviço de distribuição domiciliária não era vendido autonomamente, mas fazia parte de um «pacote» que incluía também a impressão e a distribuição em geral, incluindo a venda nos quiosques do jornal diário em questão.


49
N.° 56.


50
N.° 8.


51
N.os 43 e 44.


52
N.os 45 e 46.


53
Acórdão de 14 de Dezembro de 2000, Masterfoods (C‑344/98, Colect., p. I‑1369, n.° 52).


54
N.os 49 e 50.


55
N.° 53.


56
N.° 57.


57
.Ibidem.


58
N.° 58.