Language of document : ECLI:EU:C:2022:196

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

17 de março de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Política social — Diretiva 2008/104/CE — Trabalho temporário — Artigo 1.o, n.o 1 — Cedência “temporária” — Conceito — Ocupação de modo duradouro de um lugar existente — Artigo 5.o, n.o 5 — Cedências sucessivas — Artigo 10.o — Sanções — Artigo 11.o — Derrogação pelos parceiros sociais da duração máxima fixada pelo legislador nacional»

No processo C‑232/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landesarbeitsgericht Berlin‑Brandenburg (Tribunal Superior do Trabalho de Berlim‑Brandeburgo, Alemanha), por Decisão de 13 de maio de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 3 de junho de 2020, no processo

NP

contra

Daimler AG, MercedesBenz Werk Berlin,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente da Primeira Secção, exercendo funções de presidente da Segunda Secção, I. Ziemele (relatora), T. von Danwitz, P. G. Xuereb e A. Kumin, juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

—        em representação de NP, por R. Buschmann e K. Jessolat, conseils,

—        em representação da Daimler AG, Mercedes‑Benz Werk Berlin, por U. Baeck e M. Launer, Rechtsanwälte,

—        em representação do Governo alemão, por J. Möller e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

—        em representação do Governo francês, por E. de Moustier e N. Vincent, na qualidade de agentes,

—        em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann e C. Valero, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de setembro de 2021,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 2008/104/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa ao trabalho temporário (JO 2008, L 327, p. 9), em especial do seu artigo 1.o, n.o 1.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe NP à Daimler AG, Mercedes‑Benz Werk Berlin (a seguir «Daimler»), a respeito do seu pedido destinado a que fosse declarada a existência de uma relação de trabalho com a Daimler com o fundamento de que, em razão da sua duração, a sua cedência a essa sociedade na qualidade de trabalhador temporário não poderia ser qualificada de «temporária».

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Os considerandos 12, 16, 17, 19 e 21 da Diretiva 2008/104 enunciam:

«(12)      A presente diretiva estabelece um quadro de proteção para os trabalhadores temporários que se caracteriza pela não discriminação, pela transparência e proporcionalidade, sem deixar de respeitar a diversidade dos mercados de trabalho e das relações laborais.

[…]

(16)      Para enfrentar de forma flexível a diversidade dos mercados de trabalho e das relações laborais, os Estados‑Membros podem dar aos parceiros sociais a possibilidade de definirem as condições de trabalho e emprego, desde que seja respeitado o nível geral de proteção dos trabalhadores temporários.

(17)      Além disso, em certas circunstâncias limitadas, os Estados‑Membros deverão ter a possibilidade de, com base em acordos celebrados pelos parceiros sociais a nível nacional e dentro de limites, derrogar ao princípio da igualdade de tratamento, desde que fique assegurado um nível adequado de proteção.

[…]

(19)      A presente diretiva não afeta a autonomia dos parceiros sociais nem deverá afetar as relações entre eles, nomeadamente o direito de negociar e celebrar convenções coletivas de acordo com as legislações e práticas nacionais, no respeito pelo primado do direito [da União].

[…]

(21)      Os Estados‑Membros deverão prever procedimentos administrativos ou judiciais para salvaguardar os direitos dos trabalhadores temporários, bem como sanções efetivas, dissuasivas e proporcionadas aplicáveis em caso de incumprimento dos deveres previstos na presente diretiva.»

4        O artigo 1.o desta diretiva, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação», dispõe:

«1.      A presente diretiva é aplicável aos trabalhadores com um contrato de trabalho ou uma relação de trabalho com uma empresa de trabalho temporário, que sejam cedidos temporariamente a utilizadores a fim de trabalharem sob a autoridade e direção destes.

2.      A presente diretiva é aplicável a empresas públicas ou privadas que sejam empresas de trabalho temporário e a utilizadores que exerçam uma atividade económica, com ou sem fins lucrativos.

3.      Os Estados‑Membros, após consulta aos parceiros sociais, podem prever que a presente diretiva não é aplicável aos contratos celebrados ou relações de trabalho constituídas no âmbito de um programa de formação, de inserção ou de reconversão profissionais público específico ou apoiado pelos poderes públicos.»

5        O artigo 2.o da referida diretiva, epigrafado «Objetivo», tem a seguinte redação:

«A presente diretiva tem como objetivo assegurar a proteção dos trabalhadores temporários e melhorar a qualidade do trabalho temporário, assegurando que o princípio da igualdade de tratamento, tal como definido no artigo 5.o é aplicável aos trabalhadores temporários, reconhecendo às empresas de trabalho temporário a qualidade de empregadores, tendo em conta a necessidade de estabelecer um quadro de utilização do trabalho temporário por forma a contribuir efetivamente para a criação de emprego e para o desenvolvimento de formas de trabalho flexíveis.»

6        O artigo 3.o da mesma diretiva, epigrafado «Definições», prevê, no seu n.o 1, alíneas b) a e):

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

b)      “Empresa de trabalho temporário”, a pessoa singular ou coletiva que, de acordo com a legislação nacional, celebra contratos de trabalho ou constitui relações de trabalho com trabalhadores temporários que são cedidos temporariamente a utilizadores a fim de trabalharem sob a autoridade e direção destes;

c)      “Trabalhador temporário”, trabalhador com um contrato de trabalho ou uma relação de trabalho com uma empresa de trabalho temporário, tendo em vista a sua cedência temporária a um utilizador para trabalhar sob a autoridade e direção deste;

d)      “Utilizador”, a pessoa singular ou coletiva que ocupa sob a sua autoridade e direção trabalhadores cedidos por uma empresa de trabalho temporário;

e)      “Período de cedência”, o período durante o qual o trabalhador temporário é posto à disposição do utilizador para trabalhar sob a autoridade e direção deste;»

7        O artigo 5.o da Diretiva 2008/104, epigrafado «Princípio da igualdade de tratamento», dispõe, nos seus n.os 1, 3 e 5:

«1.      As condições fundamentais de trabalho e emprego dos trabalhadores temporários são, enquanto durar a respetiva cedência ao utilizador, pelo menos iguais às condições que lhes seriam aplicáveis se tivessem sido recrutados diretamente pelo utilizador para ocuparem a mesma função.

Para efeitos da aplicação do primeiro parágrafo, as regras em vigor no utilizador em matéria de:

a)      Proteção das mulheres grávidas e lactantes e proteção das crianças e dos jovens; e

b)      Igualdade de tratamento de homens e mulheres, e ainda quaisquer ações destinadas a combater a discriminação por motivos de sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual,

devem ser respeitadas, conforme estabelecidas por lei, regulamento, disposição administrativa, convenção coletiva e/ou por outras disposições de caráter geral.

[…]

3.      Após consulta aos parceiros sociais, os Estados‑Membros podem dar‑lhes a possibilidade de manterem ou celebrarem, ao nível adequado e sob reserva das condições estabelecidas pelos Estados‑Membros, convenções coletivas que, assegurando embora a proteção geral dos trabalhadores temporários, estabeleçam as condições de trabalho e emprego desses trabalhadores, as quais podem ser distintas das referidas no n.o 1.

[…]

5.      Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias, nos termos da lei e/ou prática nacional, para evitar uma aplicação abusiva do presente artigo e, em especial, para evitar cedências sucessivas com o propósito de contornar o disposto na presente diretiva. Os Estados‑Membros devem informar a Comissão de qualquer medida tomada nesse sentido.»

8        O artigo 9.o desta diretiva, epigrafado «Requisitos mínimos», prevê:

«1.      A presente diretiva não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem ou aprovarem disposições de natureza legislativa, regulamentar ou administrativa mais favoráveis aos trabalhadores, ou promoverem ou permitirem convenções coletivas celebradas entre parceiros sociais mais favoráveis aos trabalhadores.

2.      A aplicação da presente diretiva não constitui, em caso algum, motivo suficiente para justificar uma redução do nível geral de proteção dos trabalhadores nos domínios que abrange. As medidas adotadas em aplicação da presente diretiva não prejudicam o direito de os Estados‑Membros e/ou os parceiros sociais, atendendo à alteração das circunstâncias, estabelecerem disposições de natureza legislativa, regulamentar ou contratual diferentes das vigentes no momento da aprovação da presente diretiva, desde que sejam respeitados os requisitos mínimos nela previstos.»

9        O artigo 10.o da referida diretiva, epigrafado «Sanções», tem a seguinte redação:

«1.      Os Estados‑Membros devem adotar medidas adequadas em caso de incumprimento ao disposto na presente diretiva pelas empresas de trabalho temporário ou pelos utilizadores. Devem assegurar, nomeadamente, a existência de procedimentos administrativos ou judiciais que permitam fazer cumprir os deveres decorrentes da presente diretiva.

2.      Os Estados‑Membros estabelecem regras relativas às sanções aplicáveis em caso de violação das disposições nacionais aprovadas ao abrigo da presente diretiva e tomam todas as medidas necessárias para garantir a sua aplicação. As sanções previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas. […]»

10      O artigo 11.o da mesma diretiva, epigrafado «Aplicação», enuncia, no seu n.o 1:

«Os Estados‑Membros devem aprovar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva até 5 de dezembro de 2011, ou assegurar que os parceiros sociais estabeleçam as disposições necessárias, através de acordo, cabendo aos Estados‑Membros tomar todas as disposições necessárias que lhes permitam, a qualquer momento, garantir a realização dos objetivos definidos na presente diretiva. […]»

 Direito alemão

11      O § 1 da Gesetz zur Regelung der Arbeitnehmerüberlassung (Lei que Regula a Cedência de Trabalhadores), de 3 de fevereiro de 1995 (BGBl. 1995 I, p. 158), na versão em vigor entre 1 de dezembro de 2011 e 31 de março de 2017 (a seguir «AÜG»), epigrafado «Obrigação de dispor de uma autorização», dispunha, no seu n.o 1:

«Os empregadores que, enquanto empresas de trabalho temporário, no âmbito da sua atividade económica, pretendam ceder trabalhadores (trabalhadores temporários) a empresas terceiras ([empresas utilizadoras]) devem dispor de uma autorização. A cedência do trabalhador a [uma empresa utilizadora] tem caráter temporário.»

12      O § 3 da AÜG previa, a este respeito, que a autorização ou a sua prorrogação devia ser recusada quando elementos de facto permitissem considerar que o requerente não apresenta a fiabilidade exigida no § 1 para o exercício da atividade, designadamente porque não respeitava as disposições em matéria de segurança social, relativas à retenção e ao reembolso do imposto sobre o rendimento, relativas aos serviços de colocação, aos serviços de recrutamento noutros Estados ou ao emprego de trabalhadores provenientes de outros Estados, as disposições em matéria de proteção dos trabalhadores ou as obrigações previstas pelo direito do trabalho.

13      Segundo o § 5 da AÜG, a autorização podia ser revogada com efeitos para o futuro quando a autoridade que emitiu a autorização tinha o direito, com base em factos ocorridos posteriormente, de recusar essa emissão. A autorização perdia a sua validade no momento em que a revogação produzisse efeitos.

14      Nos termos do § 9 da AÜG, os contratos celebrados entre a empresa de trabalho temporário e a empresa utilizadora, bem como os celebrados entre a empresa de trabalho temporário e o trabalhador temporário, se a empresa de trabalho temporário não possuísse a autorização exigida pela lei, não produziam efeitos. Nesse caso, o § 10 da AÜG previa que se considerava constituída uma relação de trabalho entre a empresa utilizadora e o trabalhador temporário.

15      A AÜG foi alterada pela Gesetz zur Änderung des Arbeitnehmerüberlassungsgesetzes und anderer Gesetze (Lei que Altera a Lei sobre a Cedência de Trabalhadores e outras Leis), de 21 de fevereiro de 2017 (BGBl. 2017 I, p. 258, a seguir «AÜG, conforme alterada»), que entrou em vigor em 1 de abril de 2017.

16      O § 1 da AÜG, conforme alterado, epigrafado «Cedência de trabalhadores, obrigação de autorização», tem a seguinte redação:

«(1)      […] A cedência de trabalhadores é autorizada temporariamente até à duração máxima fixada no n.o 1b.

[…]

(1b)      A empresa de trabalho temporário não pode ceder o mesmo trabalhador temporário durante mais de 18 meses consecutivos [à mesma empresa utilizadora]; a empresa de trabalho temporário não pode empregar o mesmo trabalhador temporário durante mais de 18 meses consecutivos. A duração das anteriores cedências [à mesma empresa utilizadora], pela mesma ou por outra empresa de trabalho temporário, deve ser tida integralmente em conta caso não tenham decorrido mais de 3 meses entre cada período de cedência consecutivo. Os parceiros sociais do setor utilizador podem fixar, por convenção coletiva, uma duração máxima de cedência diferente da prevista na primeira frase. […] Pode ser fixada uma duração máxima de cedência diferente da prevista na primeira frase por acordo de empresa ou de serviço celebrado com base numa convenção coletiva celebrada pelos parceiros sociais do setor utilizador. […]»

17      O § 9, n.o 1, ponto 1b, da AÜG, conforme alterado, dispõe:

«Não produzem efeitos:

1b)      os contratos de trabalho entre empresas de trabalho temporário e trabalhadores temporários que excedam a duração máxima de cedência permitida prevista no § 1, n.o 1b, salvo se, no prazo de um mês a contar da ultrapassagem da duração máxima de cedência permitida, o trabalhador temporário informar por escrito a empresa de trabalho temporário ou [a empresa utilizadora] que pretende manter o contrato de trabalho com a empresa de trabalho temporário,

[…]»

18      O § 10, n.o 1, primeiro período, da AÜG, conforme alterado, enuncia:

«Caso o contrato celebrado entre uma empresa de trabalho temporário e um trabalhador temporário não produza efeitos em aplicação do § 9, considera‑se que se constituiu uma relação de trabalho entre [a empresa utilizadora] e o trabalhador temporário na data de início do período de cedência entre [a empresa utilizadora] e a empresa de trabalho temporário; caso a invalidade do referido contrato apenas se verifique após o trabalhador temporário ter iniciado a atividade junto [da empresa utilizadora], considera‑se que a relação de trabalho entre [a empresa utilizadora] e o trabalhador temporário se constituiu na data em que deixem de se produzir efeitos. […]»

19      O § 19, n.o 2, da AÜG, conforme alterado, contém uma disposição transitória, que tem a seguinte redação:

«Os períodos de cedência anteriores a 1 de abril de 2017 não são tidos em conta para o cálculo da duração máxima de cedência referida no § 1, n.o 1b […].»

20      A convenção coletiva de 23 de maio de 2012, relativa ao trabalho temporário na indústria metalúrgica e elétrica de Berlim e de Brandeburgo, e a de 1 de junho de 2017 que lhe sucedeu, preveem, designadamente, que é possível recorrer de modo provisório a trabalhadores temporários. Além disso, a convenção coletiva de 1 de junho de 2017, remete expressamente para a possibilidade legal de derrogação que figura no § 1, n.o 1b, da AÜG, conforme alterada. Os parceiros sociais estão além disso de acordo quanto ao facto de, em aplicação desta convenção coletiva, a duração máxima de um período de cedência não poder exceder 48 meses. O n.o 8 da referida convenção coletiva contém uma disposição transitória. Nos termos desta disposição, os parceiros sociais acordam, a nível da empresa, na duração máxima da cedência. Na falta de acordo, aplica‑se uma duração máxima de cedência de 36 meses a partir de 1 de junho de 2017.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

21      NP trabalhava, desde 1 de setembro de 2014, para uma empresa de trabalho temporário. Desde essa data e até 31 de maio de 2019, com exceção de um período de licença parental com duração de dois meses, este último foi cedido exclusivamente à Daimler na qualidade de empresa utilizadora, onde trabalhou sempre na linha de montagem de motores. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o emprego em causa não tinha por objeto substituir um trabalhador.

22      Em 27 de junho de 2019, NP intentou uma ação no Arbeitsgericht Berlin (Tribunal do Trabalho de Berlim, Alemanha), destinada a obter a declaração da existência de uma relação de trabalho entre si e a Daimler desde 1 de setembro de 2015, a título subsidiário, desde 1 de março de 2016, a título mais subsidiário, desde 1 de novembro de 2016, a título mais subsidiário ainda, desde 1 de outubro de 2018, e, a título subsidiário em último grau, desde 1 de maio de 2019. Para o efeito, alegou, designadamente, que, em razão da sua duração superior a um ano, a sua cedência à Daimler não pode ser qualificada de «temporária» e que a disposição transitória prevista no § 19, n.o 2, da AÜG, conforme alterada, é contrária ao direito da União. Por Sentença de 8 de outubro de 2019, este órgão jurisdicional julgou a ação improcedente.

23      Em 22 de novembro de 2019, NP interpôs recurso dessa sentença no Landesarbeitsgericht Berlin‑Brandenburg (Tribunal Superior do Trabalho de Berlim‑Brandeburgo, Alemanha).

24      Esse órgão jurisdicional refere que, embora o direito nacional que aplica a Diretiva 2008/104 preveja, desde o início, que a cedência de trabalhadores apenas podia ter caráter «temporário», a duração máxima de cedência só foi introduzida em direito nacional a partir de 1 de abril de 2017, tendo essa duração sido fixada em 18 meses, sob reserva de eventuais derrogações no âmbito de convenções coletivas celebradas pelos parceiros sociais do setor em causa ou no âmbito de um acordo de empresa ou de serviço celebrado com fundamento nessas convenções coletivas. Igualmente desde essa data, a regulamentação aplicável prevê, a título de sanção em caso de ser ultrapassada a referida duração, que uma relação de trabalho se considera constituída entre a empresa utilizadora e o trabalhador temporário na data acordada de início do período de cedência.

25      O referido órgão jurisdicional acrescenta que a alteração legislativa referida no número anterior contém uma disposição transitória, por força da qual apenas são tidos em conta para o cálculo da duração máxima de cedência os períodos de trabalho efetuados depois de 1 de abril de 2017. Além disso, a convenção coletiva de 1 de junho de 2017 referida no n.o 20 do presente acórdão, bem como o acordo geral de empresa de 20 de setembro de 2017 que se aplica à Daimler, preveem uma duração máxima de cedência de 36 meses, calculada, respetivamente, a partir de 1 de junho de 2017 e de 1 de abril de 2017. Daqui resulta que, relativamente a um trabalhador como NP, não se considera, por força da regulamentação aplicável, que a duração da sua cedência à Daimler tenha excedido a duração máxima prevista por esta regulamentação, ainda que essa cedência se tenha prolongado por um período de quase cinco anos.

26      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, na medida em que NP pede que seja declarada a existência de uma relação de trabalho com a Daimler antes de 1 de outubro de 2018, a sua ação apenas pode proceder plenamente caso o direito da União o imponha.

27      Foi nestas condições que o Landesarbeitsgericht Berlin‑Brandenburg (Tribunal Superior do Trabalho de Berlim‑Brandeburgo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve considerar‑se que a cedência de um trabalhador temporário a [uma empresa utilizadora] deixa de ser qualificada de “temporária”, na aceção do artigo 1.o da [Diretiva 2008/104], quando a atividade é realizada num posto de trabalho permanente que não é ocupado a título de substituição?

2)      Deve considerar‑se que a cedência de um trabalhador temporário durante um período inferior a 55 meses já não pode ser qualificada de “temporária” na aceção do artigo 1.o da [Diretiva 2008/104]?

[…] Em caso de resposta afirmativa à primeira e/ou à segunda questões […]:

[3)]      O trabalhador temporário tem direito à constituição de uma relação de trabalho com [a empresa utilizadora] ainda que o direito nacional não preveja tal sanção antes de 1 de abril de 2017?

[4)]      Uma disposição nacional como o § 19, n.o 2, da [AÜG, conforme alterada] é contrária ao artigo 1.o da [Diretiva 2008/104] caso imponha, pela primeira vez a partir de 1 de abril de 2017, uma duração máxima de cedência individual de 18 meses, mas não tenha expressamente em consideração os períodos anteriores da cedência, quando, tomando em conta esses períodos anteriores, a cedência já não poderia ser considerada temporária?

[5)]      Pode a extensão da duração máxima de cedência individual ser deixada à disposição das partes numa convenção coletiva? Em caso de resposta afirmativa: aplica‑se o mesmo às partes numa convenção coletiva que não são competentes no que respeita à relação de trabalho do referido trabalhador temporário, mas [sim no que respeita ao] setor de atividade [da empresa utilizadora]?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

28      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 deve ser interpretado no sentido de que o termo «temporariamente», que figura nesta disposição, se opõe à cedência de um trabalhador que tem um contrato de trabalho ou uma relação de trabalho com uma empresa de trabalho temporário a uma empresa utilizadora, para efeitos de prover a um lugar que existe de modo duradouro e que não é ocupado a título de substituição.

29      Há que recordar que, segundo jurisprudência constante, para a interpretação das disposições do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos de acordo com o seu sentido habitual na linguagem corrente mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte (v., neste sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2010, Pontini e o., C‑375/08, EU:C:2010:365, n.o 58, e de 29 de julho de 2019, Pelham e o., C‑476/17, EU:C:2019:624, n.o 28 e jurisprudência referida).

30      Em primeiro lugar, resulta da redação do artigo 1.o da Diretiva 2008/104, que define o âmbito de aplicação desta, que esta diretiva se aplica, por força do n.o 1 deste artigo, aos trabalhadores que têm um contrato de trabalho ou uma relação de trabalho com uma empresa de trabalho temporário e que são cedidos temporariamente a empresas utilizadoras a fim de trabalharem sob a autoridade e direção destas.

31      Decorre, assim, da própria redação desta disposição que o termo «temporariamente» não tem por objeto limitar a aplicação do trabalho temporário a lugares que não existissem de modo duradouro ou que devessem ser ocupados a título de substituição, uma vez que esse termo caracteriza não o lugar de trabalho que deve ser ocupado na empresa utilizadora, mas as modalidades de cedência de um trabalhador a essa empresa.

32      Em segundo lugar, esta interpretação literal do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 é corroborada pelo contexto em que se inscreve esta disposição e, em especial, pela economia desta diretiva.

33      Importa, com efeito, salientar, em primeiro lugar, que nenhuma disposição da Diretiva 2008/104 diz respeito à natureza do trabalho ou ao tipo de lugar que deve ser provido na empresa utilizadora. Do mesmo modo, esta diretiva não enumera os casos suscetíveis de justificar o recurso a esta forma de trabalho, uma vez que os Estados‑Membros conservaram, como salientou o advogado‑geral no n.o 37 das suas conclusões, uma margem de apreciação importante para determinar as situações que justificam o recurso à mesma. A este respeito, a Diretiva 2008/104 prevê apenas a aprovação de requisitos mínimos, como resulta do artigo 9.o, n.o 2, desta diretiva [v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 41].

34      Em segundo lugar, há que sublinhar que o termo «temporariamente» é igualmente utilizado no artigo 3.o, n.o 1, alíneas b) a e), da Diretiva 2008/104, que define os conceitos de «empresa de trabalho temporário», de «trabalhador temporário», de «empresa utilizadora» e de «período de cedência». Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que resulta destas definições que é a relação de trabalho com uma empresa utilizadora que reveste, por natureza, caráter temporário [v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 61].

35      Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça considerou igualmente que o artigo 5.o, n.o 5, primeiro período, desta diretiva, que prevê que os Estados‑Membros tomem as medidas necessárias, em conformidade com o direito nacional com as práticas em vigor no Estado‑Membro em causa, com vista a evitar o recurso abusivo à aplicação deste artigo e, em especial, períodos de cedência sucessivos com o propósito de contornar o disposto na referida diretiva, não impõe aos Estados‑Membros que façam depender o recurso ao trabalho temporário da indicação de razões de caráter técnico, ou relativas a imperativos de produção, de organização ou de substituição [v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 42].

36      Daqui resulta, como salienta, em substância, a Comissão, que o legislador da União não pretendeu limitar o recurso ao trabalho temporário ao autorizar unicamente o trabalhador temporário a ocupar um lugar que revista um caráter temporário.

37      Em terceiro lugar, tal interpretação não é infirmada pelos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2008/104, conforme enunciados no considerando 12 e no artigo 2.o desta diretiva, que visam estabelecer um quadro de proteção em relação aos trabalhadores temporários que é não discriminatório, transparente e proporcionado, respeitando simultaneamente a diversidade dos mercados de trabalho e das relações entre os parceiros sociais e favorecer o desenvolvimento de formas de trabalho flexíveis, a criação de emprego e a proteção dos trabalhadores temporários, na medida em que, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 42 das suas conclusões, a prossecução desses objetivos não exige que trabalhadores temporários não possam ser contratados para efeitos de lugares existentes de modo duradouro e que não sejam ocupados a título de substituição. Pelo contrário, a circunstância de a Diretiva 2008/104 visar igualmente, como o Tribunal de Justiça recordou, encorajar o acesso dos trabalhadores temporários a um emprego permanente na empresa utilizadora [Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 51] confirma a interpretação segundo a qual um trabalhador temporário pode ser cedido a uma empresa utilizadora para efeitos de prover, temporariamente, um lugar existente de modo duradouro, que este poderia ocupar posteriormente de modo duradouro.

38      Tendo em conta as considerações que precedem, há que responder à primeira questão que o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 deve ser interpretado no sentido de que o termo «temporariamente», utilizado nesta disposição, não se opõe à cedência de um trabalhador que tem um contrato de trabalho ou uma relação de trabalho com uma empresa de trabalho temporário a uma empresa utilizadora, para efeitos de prover um lugar que existe de modo duradouro e que não é ocupado a título de substituição.

 Quanto à segunda questão

 Quanto à competência do Tribunal de Justiça

39      A Daimler contesta a competência do Tribunal de Justiça para responder à segunda questão, com o fundamento de que esta questão se destina a que o Tribunal de Justiça proceda à apreciação factual da cedência do trabalhador que é objeto do litígio no processo principal.

40      A este respeito, basta constatar que a segunda questão tem por objeto não a verificação ou a apreciação dos factos do litígio no processo principal, mas a qualificação jurídica da duração da cedência do trabalhador temporário em causa no processo principal tendo em conta o requisito, previsto, designadamente, no artigo 1.o da Diretiva 2008/104, segundo a qual essa cedência deve permanecer «temporária». Ora, a qualificação, tendo em conta o direito da União, de factos apurados pelo órgão jurisdicional de reenvio pressupõe uma interpretação desse direito, para a qual, no âmbito do procedimento previsto no artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça é competente (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Asociación Profesional Elite Taxi, C‑434/15, EU:C:2017:981, n.o 20 e jurisprudência referida).

41      Por conseguinte, há que considerar que o Tribunal de Justiça é competente para responder à segunda questão.

 Quanto à admissibilidade

42      A Daimler considera que a segunda questão é, de qualquer modo, inadmissível, uma vez que não é pertinente para a resolução do litígio no processo principal.

43      A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre este último e os órgãos jurisdicionais nacionais, instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 25 de novembro de 2021, job‑medium, C‑233/20, EU:C:2021:960, n.o 17 e jurisprudência referida).

44      Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 25 de novembro de 2021, job‑medium, C‑233/20, EU:C:2021:960, n.o 18 e jurisprudência referida).

45      No caso em apreço, como foi salientado no n.o 40 do presente acórdão, com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a qualificação jurídica da duração da cedência do trabalhador temporário em causa no processo principal tendo em conta o requisito, previsto, nomeadamente, no artigo 1.o da Diretiva 2008/104, segundo o qual essa cedência deve permanecer «temporária». Este órgão jurisdicional acrescenta, como foi salientado no n.o 26 do presente acórdão, que, uma vez que NP pretende que se declare que existia uma relação de trabalho com a Daimler antes de 1 de outubro de 2018, a sua ação apenas pode proceder plenamente caso o direito da União o imponha.

46      Importa, por conseguinte, constatar que a segunda questão tem por objeto a interpretação do direito da União e que a resposta a esta questão é pertinente para a resolução do litígio submetido ao órgão jurisdicional de reenvio.

47      Daqui resulta que esta questão é admissível.

 Quanto ao mérito

48      A título preliminar, há que recordar que, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e cabe a este o Tribunal de Justiça, instituído no artigo 267.o TFUE, dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir do litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, sendo caso disso, reformular as questões que lhe são submetidas. Com efeito, o Tribunal tem por missão interpretar todas as disposições do direito da União de que os órgãos jurisdicionais nacionais necessitem para decidir dos litígios que lhes são submetidos, ainda que essas disposições não sejam expressamente referidas nas questões que lhe são dirigidas por esses órgãos jurisdicionais (Acórdão de 21 de junho de 2016, New Valmar, C‑15/15, EU:C:2016:464, n.o 28 e jurisprudência referida).

49      Por conseguinte, mesmo que, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado a sua segunda questão à interpretação unicamente do artigo 1.o da Diretiva 2008/104, tal circunstância não obsta a que o Tribunal lhe forneça todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a apreciação do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado da sua questão. A este respeito, cabe ao Tribunal extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação tendo em conta o objeto do litígio no processo principal (v., neste sentido e por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2016, New Valmar, C‑15/15, EU:C:2016:464, n.o 29 e jurisprudência referida).

50      No caso em apreço, embora, com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio peça ao Tribunal de Justiça que interprete o artigo 1.o da Diretiva 2008/104 e, em especial, o termo «temporariamente» que figura no n.o 1 deste artigo, resulta dos fundamentos da decisão de reenvio que, com esta questão, esse órgão jurisdicional pretende saber, não se a cedência do trabalhador temporário em causa é abrangida pelo âmbito de aplicação desta diretiva, mas sim se essa cedência ainda é suscetível de revestir caráter «temporário» na aceção da referida diretiva, ou, pelo contrário, reveste caráter abusivo em razão das renovações sucessivas do período de cedência desse trabalhador, que conduzem a uma duração de 55 meses da cedência, uma vez que o referido órgão jurisdicional sublinha que, perante ele, NP alegou esse caráter abusivo.

51      Assim, a referida questão visa, em substância, determinar se, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, tais renovações podem constituir um recurso abusivo aos períodos de cedência sucessivos de um trabalhador temporário, na aceção do artigo 5.o, n.o 5, da Diretiva 2008/104.

52      Nestas condições, há que reformular a segunda questão e considerar que, através da mesma, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 1, e o artigo 5.o, n.o 5, da Diretiva 2008/104 devem ser interpretados no sentido de que constitui um recurso abusivo às cedências sucessivas de um trabalhador temporário a renovação desses períodos de cedência para o mesmo lugar a uma empresa utilizadora por um período de 55 meses.

53      Antes de mais, há que salientar, por um lado, que a Diretiva 2008/104 não tem por objeto definir de maneira específica a duração da cedência de um trabalhador temporário a uma empresa utilizadora para além da qual essa cedência já não pode ser qualificada de «temporária». Com efeito, há que constatar que nem o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, que, como foi recordado no n.o 30 do presente acórdão, se refere à cedência de trabalhadores a empresas utilizadoras para trabalharem «temporariamente», nem nenhuma outra disposição desta diretiva fixa a duração para além da qual a cedência já não pode ser qualificada de «temporária». Do mesmo modo, nenhuma disposição da referida diretiva impõe aos Estados‑Membros a obrigação de prever, em direito nacional, tal duração.

54      Por outro lado, o artigo 5.o, n.o 5, primeiro período, da Diretiva 2008/104, que impõe designadamente aos Estados‑Membros que tomem as medidas necessárias para evitar cedências sucessivas com o propósito de contornar o disposto nesta diretiva, não impõe a esses Estados que limitem o número de cedências sucessivas de um mesmo trabalhador à mesma empresa utilizadora, nem prevê uma medida específica que os Estados‑Membros devam adotar para esse efeito, incluindo para prevenir abusos [v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.os 42 e 44].

55      Daqui resulta que as disposições da Diretiva 2008/104 não impõem aos Estados‑Membros a adoção de uma regulamentação determinada na matéria (v., por analogia, Acórdão de 17 de março de 2015, AKT, C‑533/13, EU:C:2015:173, n.o 31).

56      No entanto, como o Tribunal de Justiça já recordou, o artigo 5.o, n.o 5, primeiro período, da Diretiva 2008/104 impõe aos Estados‑Membros que tomem as medidas necessárias para evitar cedências sucessivas de um trabalhador temporário com o propósito de contornar as disposições desta diretiva no seu conjunto. Em especial, os Estados‑Membros devem assegurar que o trabalho temporário com a mesma a empresa utilizadora não se torne numa situação permanente para um trabalhador temporário [Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.os 55 e 60].

57      A este respeito, os Estados‑Membros podem fixar, em direito nacional, uma duração precisa para além da qual uma cedência já não pode ser considerada temporária, designadamente quando as renovações sucessivas da cedência do mesmo trabalhador temporário à mesma empresa utilizadora se prolongam na duração. Dito isto, essa duração deve, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, apresentar necessariamente um caráter temporário, a saber, segundo o significado desse termo na linguagem corrente, ser limitada no tempo.

58      Na hipótese de a regulamentação aplicável de um Estado‑Membro não ter previsto essa duração, compete aos órgãos jurisdicionais nacionais, determiná‑la caso a caso, tendo em conta todas as circunstâncias pertinentes, que incluem, designadamente, as especificidades do setor (v., neste sentido, Acórdão de 18 de dezembro de 2008, Andersen, C‑306/07, EU:C:2008:743, n.o 52) e assegurar, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.o 46 das suas conclusões, que os períodos de cedência sucessivos de um trabalhador temporário não têm como propósito contornar os objetivos da Diretiva 2008/104, em especial, a natureza provisória do contrato de trabalho temporário.

59      Para efeitos dessa determinação, o órgão jurisdicional de reenvio poderá, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, ter em conta as considerações seguintes.

60      Admitindo que as cedências sucessivas do mesmo trabalhador temporário à mesma empresa utilizadora conduzem a uma duração de atividade para essa empresa que é mais longa do que o que pode ser razoavelmente qualificado de «temporário», tendo em conta todas as circunstâncias pertinentes, que incluem designadamente as especificidades do setor, tal poderá constituir o indício de um recurso abusivo a cedências sucessivas, na aceção do artigo 5.o, n.o 5, primeiro período, da Diretiva 2008/104 [v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 69].

61      Do mesmo modo, as cedências sucessivas do mesmo trabalhador temporário à mesma a empresa utilizadora contornam a própria essência das disposições da Diretiva 2008/104 e constituem um abuso desta forma de relação de trabalho, na medida em que põem em causa o equilíbrio, realizado por esta diretiva, entre a flexibilidade dos empregadores e a segurança dos trabalhadores, comprometendo esta última [Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 70].

62      Por último, quando, num caso concreto, nenhuma explicação objetiva seja dada para o facto de a empresa utilizadora em causa recorrer a uma sucessão de contratos de trabalho temporário sucessivos, incumbe ao órgão jurisdicional nacional examinar, no contexto do quadro regulamentar nacional e tendo em conta as circunstâncias de cada caso, se uma das disposições da Diretiva 2008/104 é contornada, e isso, por maioria de razão, quando é o mesmo trabalhador temporário que é afetado à empresa utilizadora através das séries de contratos em questão [Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 71].

63      Tendo em conta todas as considerações que precedem, há que responder à segunda questão que o artigo 1.o, n.o 1, e o artigo 5.o, n.o 5, da Diretiva 2008/104 devem ser interpretados no sentido de que constitui um recurso abusivo às cedências sucessivas de um trabalhador temporário a renovação de tais cedências a uma empresa utilizadora para o mesmo lugar pela duração de 55 meses, na hipótese de as cedências sucessivas do mesmo trabalhador temporário à mesma empresa utilizadora conduzirem a uma duração de atividade nessa empresa que é mais longa do que o que pode ser razoavelmente qualificado de «temporário», tendo em conta todas as circunstâncias pertinentes, que incluem, designadamente, as especificidades do setor, e no contexto do quadro regulamentar nacional, sem que nenhuma explicação objetiva seja dada para o facto de a empresa utilizadora em causa recorrer a uma sucessão de contratos de trabalho temporários sucessivos, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar.

 Quanto à quarta questão

64      A título preliminar, há que salientar que a quarta questão, que importa examinar em terceiro lugar, é submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio tendo em conta a circunstância, exposta por este último, de que, embora a regulamentação nacional preveja, a partir de 1 de dezembro de 2011, que a cedência do trabalhador à empresa utilizadora deve ter caráter temporário, foi apenas através de uma alteração dessa regulamentação, que entrou em vigor em 1 de abril de 2017, ou seja, decorridos mais de seis anos sobre a data em que a Diretiva 2008/104 devia ter sido aplicada, que o legislador alemão previu, sob reserva de derrogações que possam ser estabelecidas em convenções coletivas entre os parceiros sociais do setor utilizador e em acordos de empresas ou de serviço celebrados com fundamento em tais convenções coletivas, que a duração máxima de cedência de um trabalhador temporário deve ser fixada em 18 meses, prevendo simultaneamente, a título de uma disposição transitória, que apenas os períodos de cedência posteriores a 1 de abril de 2017 devem ser tidos em conta para efeitos do cálculo dessa duração máxima.

65      Ora, além de esse órgão jurisdicional se interrogar sobre a questão de saber se a Diretiva 2008/104 se opõe a essa regulamentação, na medida em que esta exclui a tomada em consideração de períodos anteriores à sua entrada em vigor, uma vez que essa tomada em consideração poderia conduzir a que uma cedência deixe de revestir caráter «temporário», o referido órgão jurisdicional pretende saber se é obrigado a afastar a aplicação da disposição transitória em causa, no todo ou em parte.

66      Assim, com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2008/104 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que fixa uma duração máxima da cedência do mesmo trabalhador temporário à mesma empresa utilizadora, excluindo, através de uma disposição transitória, para efeitos do cálculo dessa duração, a tomada em conta dos períodos que precedem a entrada em vigor dessa regulamentação. Em caso de resposta afirmativa, esse órgão jurisdicional pretende saber se, chamado a pronunciar‑se sobre um litígio que oponha exclusivamente particulares, é obrigado a afastar a aplicação dessa disposição transitória.

67      Como o Tribunal de Justiça já declarou, o artigo 5.o, n.o 5, primeiro período, da Diretiva 2008/104 obriga os Estados‑Membros, em termos claros, precisos e incondicionais, a tomarem as medidas necessárias a fim de impedir os abusos que consistam em fazer suceder cedências de trabalho temporário com o propósito de contornar as disposições desta diretiva. Daqui resulta que esta disposição deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro não tome nenhuma medida para preservar a natureza temporária do trabalho temporário [Acórdão de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 63].

68      Feita esta clarificação, foi recordado, no n.o 53 do presente acórdão, que nenhuma disposição da Diretiva 2008/104 impõe aos Estados‑Membros uma obrigação de prever, em direito nacional, uma duração para além da qual a cedência já não possa ser qualificada de «temporária».

69      Em contrapartida, os Estados‑Membros podem, por um lado, introduzir, em direito nacional, uma duração máxima de cedência para além da qual se considera que a cedência de um trabalhador temporário a uma empresa utilizadora já não reveste caráter temporário e, por outro, prever disposições transitórias para esse efeito.

70      Com efeito, resulta do artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 que esta diretiva não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem ou introduzirem disposições legislativas mais favoráveis aos trabalhadores, entre as quais figura uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que fixa uma duração máxima para além da qual se considera que a cedência de um trabalhador temporário a uma empresa utilizadora já não reveste caráter temporário.

71      Todavia, ao fazê‑lo, os Estados‑Membros não violam as disposições da Diretiva 2008/104. Assim, por um lado, aquando da fixação de uma duração máxima de cedência de um trabalhador temporário a uma empresa utilizadora, um Estado‑Membro não pode fixar essa duração de modo a que esta exceda o caráter temporário dessa cedência ou a que permita cedências sucessivas de um trabalhador temporário de um modo que contorne as disposições desta diretiva, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, e com o artigo 5.o, n.o 5, primeiro período, da mesma. Por outro lado, como resulta do artigo 9.o, n.o 2, da Diretiva 2008/104, a aplicação desta diretiva não constitui em caso algum um fundamento suficiente para justificar uma redução do nível geral de proteção dos trabalhadores nos domínios abrangidos por esta diretiva.

72      Uma vez que, em conformidade com o artigo 11.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, os Estados‑Membros estavam obrigados a dar cumprimento a essas disposições até 5 de dezembro de 2011, há que considerar que, a partir dessa data, estes tinham a obrigação de se assegurar de que a cedência dos trabalhadores temporários não excederia uma duração que pudesse ser qualificada de «temporária».

73      Ora, no caso em apreço, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 62 das suas conclusões, uma disposição transitória, como a referida no n.o 19 do presente acórdão, não pode ter como consequência privar de efeito útil a proteção conferida pela Diretiva 2008/104 a um trabalhador temporário que, devido à duração da sua cedência a uma empresa utilizadora, considerada na sua totalidade, teria sido objeto de tal cedência que já não pode ser considerada «temporária», na aceção desta diretiva.

74      Daqui resulta que a Diretiva 2008/104 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que fixa uma duração máxima da cedência do mesmo trabalhador temporário à mesma empresa utilizadora, na hipótese de essa regulamentação privar de efeito útil a proteção conferida pela Diretiva 2008/104 a um trabalhador temporário que, devido à duração da sua cedência a uma empresa utilizadora, considerada na sua totalidade, tinha sido objeto dessa cedência que já não pode ser considerada «temporária», na aceção desta diretiva. É ao órgão jurisdicional nacional que cabe determinar se esse é efetivamente o caso.

75      Em caso de resposta afirmativa, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, chamado a pronunciar‑se sobre um litígio que opõe exclusivamente particulares, é obrigado a afastar a aplicação de uma disposição transitória como a referida no n.o 19 do presente acórdão.

76      A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou reiteradamente que um órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciar‑se sobre um litígio que opõe exclusivamente particulares, deve, ao aplicar as disposições de direito interno adotadas a fim de transpor as obrigações previstas por uma diretiva, a tomar em consideração todas as normas de direito nacional e a interpretá‑las, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade dessa diretiva, para alcançar uma solução conforme com o objetivo prosseguido pela mesma (Acórdãos de 15 de janeiro de 2014, Association de médiation sociale, C‑176/12, EU:C:2014:2, n.o 38 e jurisprudência referida, e de 4 de junho de 2015, Faber, C‑497/13, EU:C:2015:357, n.o 33).

77      Todavia, o princípio da interpretação conforme do direito nacional conhece certos limites. Assim, a obrigação de o juiz nacional se basear no conteúdo de uma diretiva quando interpreta e aplica as normas pertinentes do direito nacional é limitada pelos princípios gerais do direito e não pode servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional [v., neste sentido, Acórdãos de 15 de janeiro de 2014, Association de médiation sociale, C‑176/12, EU:C:2014:2, n.o 39; de 13 de dezembro de 2018, Hein, C‑385/17, EU:C:2018:1018, n.o 51, e de 14 de outubro de 2020, KG (Cedências sucessivas no âmbito do trabalho temporário), C‑681/18, EU:C:2020:823, n.o 66 e jurisprudência referida].

78      No caso em apreço, como salientou o advogado‑geral nos n.os 63 e 64 das suas conclusões, compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se a disposição transitória referida no n.o 19 do presente acórdão é, tendo em consideração todas as normas do direito nacional, suscetível de ser objeto de uma interpretação conforme com os requisitos da Diretiva 2008/104 e, por conseguinte, de ser interpretada de um modo que não prive o demandante no processo principal do direito de invocar a duração total da sua cedência à empresa utilizadora, a fim de declarar, se for caso disso, que foi ultrapassado o caráter temporário dessa cedência.

79      Na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme às exigências do direito da União, o princípio do primado do direito da União exige que o juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do referido direito garanta o pleno efeito das mesmas, afastando, se necessário, a aplicação, por autoridade própria, de qualquer disposição contrária da legislação nacional, mesmo que posterior, sem ter de pedir ou de esperar pela revogação prévia desta por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Thelen Technopark Berlin, C‑261/20, EU:C:2022:33, n.o 30 e jurisprudência referida).

80      No entanto, importa ainda ter em conta outras características essenciais do direito da União e, em especial, a natureza e os efeitos jurídicos das diretivas (Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Thelen Technopark Berlin, C‑261/20, EU:C:2022:33, n.o 31 e jurisprudência referida).

81      Assim, uma diretiva não pode, por si mesma, criar obrigações em relação a um particular e não pode, assim, ser invocada enquanto tal contra este num órgão jurisdicional nacional. Com efeito, por força do artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE, o caráter vinculativo de uma diretiva, no qual se baseia a possibilidade de a invocar, só existe em relação ao «Estado‑Membro destinatário», só tendo a União o poder para impor, de maneira geral e abstrata, com efeito imediato, obrigações aos particulares, nos domínios em que lhe tenha sido atribuído o poder para adotar regulamentos. Por conseguinte, ainda que clara, precisa e incondicional, uma disposição de uma diretiva não permite ao juiz nacional afastar uma disposição do seu direito interno que lhe seja contrária, se, com isso, viesse a ser imposta uma obrigação adicional a um particular (Acórdão de 18 de janeiro de 2022, Thelen Technopark Berlin, C‑261/20, EU:C:2022:33, n.o 32 e jurisprudência referida).

82      Daqui resulta que um órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciar‑se sobre um litígio que opõe exclusivamente particulares, não é obrigado, com fundamento unicamente no direito da União, a afastar a aplicação de uma disposição transitória contrária ao direito da União que exclui, para efeitos da aplicação de uma regulamentação que fixa uma duração máxima de cedência de um trabalhador temporário, a tomada em conta dos períodos de cedência que precedem a entrada em vigor dessa regulamentação.

83      Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à quarta questão que a Diretiva 2008/104 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que fixa uma duração máxima da cedência do mesmo trabalhador temporário à mesma empresa utilizadora, na hipótese de essa regulamentação excluir, através de uma disposição transitória, para efeitos do cálculo dessa duração, a tomada em conta dos períodos que precedem a entrada em vigor dessa regulamentação, ao privar o órgão jurisdicional nacional da possibilidade de ter em conta a duração real da cedência de um trabalhador temporário a fim de determinar se essa cedência revestiu caráter «temporário» na aceção desta diretiva, o que cabe a esse órgão jurisdicional determinar. Um órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciar‑se num litígio que oponha exclusivamente particulares, não é obrigado, com fundamento unicamente no direito da União, a afastar a aplicação dessa disposição transitória contrária ao direito da União.

 Quanto à terceira questão

 Quanto à admissibilidade

84      A Daimler alega que a terceira questão é inadmissível, com o fundamento de que não está demonstrada uma ligação com o direito da União.

85      A este respeito, basta observar que esta questão tem especificamente por objeto saber se um trabalhador temporário pode extrair diretamente do direito da União, um direito a uma relação de trabalho com uma empresa utilizadora na hipótese de o direito nacional não ter previsto uma sanção em caso de inobservância das disposições da Diretiva 2008/104. O vínculo com o direito da União está, portanto, suficientemente demonstrado.

86      Daqui resulta que a terceira questão é admissível.

 Quanto ao mérito

87      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 deve ser interpretado no sentido de que, na falta de uma disposição de direito nacional que vise sancionar o incumprimento desta diretiva pelas empresas de trabalho temporário ou pelas empresas utilizadoras, o trabalhador temporário, pode extrair do direito da União um direito subjetivo à constituição de uma relação de trabalho com a empresa utilizadora.

88      Esta questão é submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio em razão do facto de o legislador alemão não ter previsto, até 31 de março de 2017, nenhuma sanção quando a cedência de um trabalhador temporário já não possa ser considerada temporária.

89      Ora, esse órgão jurisdicional, que salienta que o direito nacional aplicável prevê que uma relação de trabalho com a empresa utilizadora se constitui quando a empresa de trabalho temporário não dispõe da autorização exigida para a cedência dos trabalhadores, interroga‑se sobre a questão de saber se não se deveria deduzir do efeito útil do artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 que a mesma sanção deveria atingir uma cedência que já não tem caráter temporário.

90      A título preliminar, há que salientar que a premissa em que se baseia o órgão jurisdicional de reenvio, segundo a qual nenhuma sanção tinha sido prevista na Alemanha para o caso de a cedência de um trabalhador temporário já não poder ser considerada temporária, é contestada pelo Governo alemão, que sublinha que as cedências de um trabalhador temporário que não apresentassem caráter temporário já eram sancionadas antes de 1 de abril de 2017 através da revogação da autorização exigida para a cedência de trabalhadores pelas empresas de trabalho temporário.

91      A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, as funções do Tribunal de Justiça e as do órgão jurisdicional de reenvio são claramente distintas e é exclusivamente a este último que cabe interpretar a legislação nacional (Acórdão de 14 de novembro de 2019, Spedidam, C‑484/18, EU:C:2019:970, n.o 28 e jurisprudência referida).

92      Assim, não cabe ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se, no contexto de um pedido de decisão prejudicial, sobre a interpretação das disposições nacionais. Com efeito, incumbe ao Tribunal de Justiça ter em conta, no âmbito da repartição das competências entre os órgãos jurisdicionais da União e nacionais, o contexto factual e regulamentar em que se inserem as questões prejudiciais, como definido pela decisão de reenvio (Acórdão de 14 de novembro de 2019, Spedidam, C‑484/18, EU:C:2019:970, n.o 29 e jurisprudência referida).

93      Nos termos do artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE, a diretiva vincula o Estado‑Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.

94      Embora esta disposição reserve aos Estados‑Membros a liberdade de escolha das vias e dos meios destinados a assegurar a aplicação da diretiva, essa liberdade deixa, no entanto, intacta a obrigação em relação a cada um dos Estados destinatários de adotarem, no âmbito da sua ordem jurídica nacional, todas as medidas necessárias para assegurar a plena eficácia da diretiva, em conformidade com o objetivo que esta prossegue (Acórdão de 10 de abril de 1984, von Colson e Kamann, 14/83, EU:C:1984:153, n.o 15).

95      No caso em apreço, o artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 impõe aos Estados‑Membros que adotem medidas adequadas em caso de incumprimento desta diretiva pelas empresas de trabalho temporário ou pelas empresas utilizadoras. Em especial, esses Estados devem garantir que existem procedimentos administrativos ou judiciais adequados para fazer cumprir as obrigações decorrentes da referida diretiva. O n.o 2 deste artigo acrescenta que os Estados‑Membros determinam o regime das sanções aplicáveis às violações das disposições nacionais adotadas em aplicação da Diretiva 2008/104 e adotam todas as medidas necessárias para assegurar a sua aplicação, e precisa que essas sanções devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas, o que é igualmente recordado no considerando 21 desta diretiva.

96      Como resulta inequivocamente da redação do artigo 10.o da Diretiva 2008/104, esta disposição não contém regras precisas no que respeita ao estabelecimento das sanções que aí são referidas, mas deixa aos Estados‑Membros a liberdade de escolherem entre as que serão adequadas à realização do seu objetivo.

97      Daqui resulta que um trabalhador temporário, cuja cedência a uma empresa utilizadora já não revista caráter temporário, em violação do artigo 1.o, n.o 1, e do artigo 5.o, n.o 5, primeiro período, da Diretiva 2008/104, não pode, tendo em conta a jurisprudência recordada no n.o 79 do presente acórdão, extrair do direito da União um direito subjetivo à constituição de uma relação de trabalho com essa empresa.

98      Uma interpretação contrária conduziria, na prática, a uma supressão do poder de apreciação conferido exclusivamente aos legisladores nacionais, aos quais cabe conceber um regime de sanções adequado, no quadro definido no artigo 10.o da Diretiva 2008/104 (v., por analogia, Acórdão de 4 de outubro de 2018, Link Logistik N&N, C‑384/17, EU:C:2018:810, n.o 54).

99      Feita esta observação, há que recordar que a parte lesada pela não conformidade do direito nacional com o direito da União poderia invocar a jurisprudência resultante do Acórdão de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428), para obter, sendo caso disso, a reparação do dano sofrido (v., neste sentido, Acórdão de 15 de janeiro de 2014, Association de médiation sociale, C‑176/12, EU:C:2014:2, n.o 50 e jurisprudência referida).

100    Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à terceira questão que o artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 deve ser interpretado no sentido de que, na falta de uma disposição de direito nacional que vise sancionar a inobservância desta diretiva pelas empresas de trabalho temporário ou pelas empresas utilizadoras, o trabalhador temporário não pode extrair do direito da União um direito subjetivo à constituição de uma relação de trabalho com a empresa utilizadora.

 Quanto à quinta questão

101    Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2008/104 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que permite aos parceiros sociais derrogarem, ao nível do setor de atividade das empresas utilizadoras, a duração máxima da cedência de um trabalhador temporário fixada por essa regulamentação.

102    Segundo esse órgão jurisdicional, esta questão é submetida tendo em conta a circunstância de que o artigo 5.o, n.o 3, da Diretiva 2008/104, que prevê que os parceiros sociais podem aplicar disposições que derrogam o princípio previsto no n.o 1 deste artigo, apenas diz respeito às derrogações ao princípio da igualdade de tratamento, tal como concretizado no referido artigo. Assim, não se afigura que tenham sido atribuídas competências aos parceiros sociais no que respeita à organização da duração da cedência dos trabalhadores.

103    É certo que, como resulta do artigo 5.o, n.o 3, da Diretiva 2008/104, os Estados‑Membros podem, unicamente sob certas condições, conferir aos parceiros sociais a possibilidade de se afastarem dos requisitos referidos no n.o 1 deste artigo. Além disso, o considerando 17 desta diretiva enuncia a este respeito que, em certas circunstâncias limitadas, os Estados‑Membros deveriam, com base num acordo celebrado pelos parceiros sociais a nível nacional, ter a possibilidade de derrogar, de maneira limitada, o princípio da igualdade de tratamento, desde que um nível suficiente de proteção seja assegurado.

104    Todavia, há que constatar que o papel dos parceiros sociais na aplicação da Diretiva 2008/104 não está limitado à missão que lhes é atribuída pelo artigo 5.o desta diretiva.

105    Em especial, em primeiro lugar, o considerando 16 da referida diretiva prevê um âmbito amplo de intervenção dos parceiros sociais ao precisar que os Estados‑Membros podem autorizar os parceiros sociais a definirem as condições de trabalho e de emprego, desde que seja respeitado o nível geral de proteção dos trabalhadores temporários. Além disso, resulta do considerando 19 da mesma diretiva que esta não afeta a autonomia dos parceiros sociais nem as relações entre eles, incluindo o direito de negociar e celebrar convenções coletivas, em conformidade não só com o direito da União mas também com as práticas nacionais, respeitando simultaneamente a legislação da União em vigor. Daqui resulta que os Estados‑Membros dispõem, a este respeito, de uma ampla margem de apreciação, designadamente para definir os parceiros sociais habilitados para este efeito.

106    Em segundo lugar, há que salientar que o artigo 9.o da Diretiva 2008/104 prevê, em substância, que os Estados‑Membros têm a possibilidade de permitir convenções coletivas ou acordos celebrados entre os parceiros sociais, desde que sejam respeitados os requisitos mínimos previstos por esta diretiva.

107    Em terceiro lugar, como resulta inequivocamente do artigo 11.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104, os Estados‑Membros têm a possibilidade, para dar cumprimento ao resultado desta diretiva, quer de adotar as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias a este respeito, quer de assegurar que os parceiros sociais estabeleçam as disposições necessárias, através de acordo, devendo os Estados‑Membros tomar todas as disposições necessárias que lhes permitam, a qualquer momento, alcançar os objetivos por ela fixados.

108    A faculdade assim reconhecida aos Estados‑Membros pela Diretiva 2008/104 é conforme com a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual estes podem deixar, em primeiro lugar, ao cuidado dos parceiros sociais a realização dos objetivos de política social visados por uma diretiva nesse domínio (v., neste sentido, Acórdão de 11 de fevereiro de 2010, Ingeniørforeningen i Danmark, C‑405/08, EU:C:2010:69, n.o 39 e jurisprudência referida).

109    Esta faculdade não dispensa, porém, os Estados‑Membros da obrigação de assegurar, através de medidas legislativas, regulamentares ou administrativas adequadas, que os trabalhadores possam beneficiar, em toda a sua extensão, da proteção que lhes é conferida pela Diretiva 2008/104 (v., neste sentido, Acórdão de 11 de fevereiro de 2010, Ingeniørforeningen i Danmark, C‑405/08, EU:C:2010:69, n.o 40 e jurisprudência referida).

110    Quanto à circunstância de os parceiros sociais serem competentes, no caso em apreço, a nível do setor de atividade das empresas utilizadoras, há que salientar que a Diretiva 2008/104 não prevê nenhuma limitação ou obrigação a este respeito, pelo que essa decisão está abrangida pela margem de apreciação dos Estados‑Membros.

111    Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à quinta questão que a Diretiva 2008/104 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que permite aos parceiros sociais derrogarem, ao nível do setor de atividade das empresas utilizadoras, a duração máxima da cedência de um trabalhador temporário fixada por essa regulamentação.

 Quanto às despesas

112    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

1)      O artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa ao trabalho temporário, deve ser interpretado no sentido de que o termo «temporariamente», que figura nesta disposição, não se opõe à cedência de um trabalhador que tem um contrato de trabalho ou uma relação de trabalho com uma empresa de trabalho temporário a uma empresa utilizadora, para efeitos de prover um lugar que existe de modo duradouro e que não é ocupado a título de substituição.

2)      O artigo 1.o, n.o 1, e o artigo 5.o, n.o 5, da Diretiva 2008/104 devem ser interpretados no sentido de que constitui um recurso abusivo às cedências sucessivas de um trabalhador temporário a renovação de tais cedências a uma empresa utilizadora para o mesmo lugar, pela duração de 55 meses, na hipótese de as cedências sucessivas do mesmo trabalhador temporário à mesma empresa utilizadora conduzirem a uma duração de atividade nessa empresa que é mais longa do que o que pode ser razoavelmente qualificado de «temporário», tendo em conta todas as circunstâncias pertinentes, que incluem, designadamente, as especificidades do setor, e no contexto do quadro regulamentar nacional, sem que nenhuma explicação objetiva seja dada para o facto de a empresa utilizadora em causa recorrer a uma sucessão de contratos de trabalho temporários sucessivos, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar.

3)      A Diretiva 2008/104 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que fixa uma duração máxima da cedência do mesmo trabalhador temporário à mesma empresa utilizadora, na hipótese de essa regulamentação excluir, através de uma disposição transitória, para efeitos do cálculo dessa duração, a tomada em conta dos períodos que precedem a entrada em vigor dessa regulamentação, ao privar da possibilidade de ter em conta a duração real da cedência de um trabalhador temporário a fim de determinar se essa cedência revestiu caráter «temporário» na aceção desta diretiva, o que cabe ao referido órgão jurisdicional determinar. Um órgão jurisdicional nacional, chamado a pronunciarse sobre um litígio que oponha exclusivamente particulares, não é obrigado, com fundamento unicamente no direito da União, a afastar a aplicação dessa disposição transitória contrária ao direito da União.

4)      O artigo 10.o, n.o 1, da Diretiva 2008/104 deve ser interpretado no sentido de que, na falta de uma disposição de direito nacional que vise sancionar a inobservância desta diretiva pelas empresas de trabalho temporário ou pelas empresas utilizadoras, o trabalhador temporário não pode extrair do direito da União um direito subjetivo à constituição de uma relação de trabalho com a empresa utilizadora.

5)      A Diretiva 2008/104 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que permite aos parceiros sociais derrogarem, ao nível do setor de atividade das empresas utilizadoras, a duração máxima da cedência de um trabalhador temporário fixada por essa regulamentação.

 

Assinaturas      

 

*      Língua do processo: alemão.