Language of document : ECLI:EU:C:2018:26

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

23 de janeiro de 2018 (*)

«Reenvio prejudicial — Alcance territorial do direito da União — Artigo 355.o, ponto 3, TFUE — Ato relativo às condições de adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e às adaptações dos Tratados — Artigo 29.o — Anexo I, parte I, ponto 4 — Exclusão de Gibraltar do território aduaneiro da União Europeia — Alcance — Diretiva 91/477/CEE — Artigo 1.o, n.o 4 — Artigo 12.o, n.o 2 — Anexo II — Cartão europeu de arma de fogo — Atividades de caça e de tiro desportivo — Aplicabilidade ao território de Gibraltar — Obrigação de transposição — Inexistência — Validade»

No processo C‑267/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Supreme Court of Gibraltar (Supremo Tribunal de Gibraltar), por decisão de 6 de maio de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de maio de 2016, no processo

The Queen, a pedido de:

Albert Buhagiar e o.,

contra

Minister for Justice,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, R. Silva de Lapuerta, M. Ilešič (relator), A. Rosas e C. G. Fernlund, presidentes de secção, E. Juhász, A. Borg Barthet, M. Safjan, D. Šváby, M. Berger, E. Jarašiūnas e M. Vilaras, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 16 de maio de 2017,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A. Buhagiar e o., por L. Baglietto, QC, e C. Bonfante, barrister,

–        em representação do Minister for Justice, por M. Llamas, QC, e Y. Sanguinetti, barrister,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por G. Brown e C. Brodie, na qualidade de agentes, assistidas por M. Demetriou, QC, e M. Birdling, barrister,

–        em representação do Parlamento Europeu, por P. Schonard, R. van de Westelaken e I. McDowell, na qualidade de agentes,

–        em representação do Conselho da União Europeia, por S. Petrova, E. Moro e I. Lai, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por E. Manhaeve, K. Mifsud‑Bonnici, E. White e G. Braga da Cruz, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 12 de setembro de 2017,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 29.o do Ato relativo às condições de adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e às adaptações dos Tratados (JO 1972, L 73, p. 14, a seguir «Ato de Adesão de 1972»), em conjugação com o seu anexo I, parte I, ponto 4, bem como a interpretação e a validade do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477/CEE do Conselho, de 18 de junho de 1991, relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas (JO 1991, L 256, p. 51), conforme alterada pela Diretiva 2008/51/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2008 (JO 2008, L 179, p. 5) (a seguir «Diretiva 91/477»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Albert Buhagiar e seis outros recorrentes (a seguir «A. Buhagiar e o.») ao Minister for Justice (Ministro da Justiça, Gibraltar, a seguir «Ministro»), a propósito do indeferimento por este último do pedido de A. Buhagiar e o. de obtenção de um cartão europeu de arma de fogo (a seguir «cartão»).

 Quadro jurídico

3        O artigo 28.o do Ato de Adesão de 1972 dispõe:

«Os atos das instituições da [União Europeia] relativos aos produtos abrangidos pelo anexo II do Tratado CEE e aos produtos cuja importação na [União] esteja submetida a uma regulamentação específica em consequência da execução da política agrícola comum, bem como os atos em matéria de harmonização das legislações dos Estados‑Membros relativas aos impostos sobre o volume de negócios não são aplicáveis a Gibraltar, a não ser que o Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão, disponha em contrário.»

4        Nos termos do artigo 29.o desse ato de adesão, «[o]s atos enumerados na lista constante do anexo I do presente ato são objeto das adaptações especificadas nesse anexo».

5        O anexo I do referido ato de adesão, que contém a lista referida no número anterior, compreende uma parte I, intitulada «Legislação aduaneira». O ponto 4 desta parte menciona as alterações introduzidas no Regulamento (CEE) n.o 1496/68 do Conselho, de 27 de setembro de 1968, relativo à definição do território aduaneiro da [União] (JO 1968, L 238, p. 1). O artigo 1.o deste regulamento foi substituído pelo seguinte texto:

«O território aduaneiro da [União] inclui os seguintes territórios:

[…]

–        o território do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte e das Ilhas Anglo‑Normandas e da Ilha de Man.»

6        O anexo I, parte VIII, intitulada «Política comercial», do Ato de Adesão de 1972 substituiu a lista de países constante do anexo II do Regulamento (CEE) n.o 1025/70 do Conselho, de 25 de maio de 1970, que estabelece um regime comum aplicável às importações de países terceiros (JO 1970, L 124, p. 6), conforme alterado pelos Regulamentos (CEE) n.os 1984/70 do Conselho, de 29 de setembro de 1970 (JO 1970, L 218, p. 1), (CEE) n.o 724/71 do Conselho, de 30 de março de 1971 (JO 1971, L 80, p. 3), (CEE) n.o 1080/71 do Conselho, de 25 de maio de 1971 (JO 1971, L 116, p. 8), (CEE) n.o 1429/71 do Conselho, de 2 de julho de 1971 (JO 1971, L 151, p. 8), e (CEE) n.o 2384/71 do Conselho, de 8 de novembro de 1971 (JO 1971, L 249, p. 1), por uma nova lista que exclui Gibraltar da mesma.

7        O anexo II, parte VI, também intitulada «Política comercial», do Ato de Adesão de 1972 dispõe a respeito do Regulamento n.o 1025/70:

«O problema resultante da supressão da menção Gibraltar no anexo II deve ser resolvido de modo a garantir que Gibraltar fique colocado, em relação ao regime de liberalização das importações na [União], na mesma situação em que se encontrava antes da adesão.»

8        A versão da Diretiva 91/477 aplicável à data dos factos do processo principal é a que resulta das alterações introduzidas no texto de base desta diretiva pela Diretiva 2008/51, na sequência da adesão da União ao Protocolo contra o Fabrico e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições, anexo à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, adotada pela Resolução 55/255 da Assembleia Geral, de 8 de junho de 2001. A Diretiva 2008/51 foi adotada com base no artigo 95.o, n.o 1, CE, cujo conteúdo corresponde, em substância, ao do artigo 100.o‑A, n.o 1, do Tratado CEE, no qual se baseou a Diretiva 91/477, bem como ao do artigo 114.o, n.o 1, TFUE, atualmente em vigor.

9        O segundo a sétimo considerandos da Diretiva 91/477 enunciam:

«Considerando que, na reunião de Fontainebleau de 25 e 26 de junho de 1984, o Conselho Europeu fixou expressamente como objetivo a supressão de todas as formalidades policiais e aduaneiras nas fronteiras intracomunitárias;

Considerando […] que a Comissão indicou, no seu “Livro Branco — A realização do mercado interno”, que a supressão dos controlos da segurança dos objetos transportados e das pessoas pressupõe, designadamente, uma aproximação das legislações sobre as armas;

Considerando que a abolição dos controlos da detenção de armas nas fronteiras intracomunitárias exige uma regulamentação eficaz que permita o controlo, no interior dos Estados‑Membros, da aquisição e da detenção de armas de fogo e da sua transferência para outro Estado‑Membro […];

Considerando que desta regulamentação resultará uma maior confiança mútua entre os Estados‑Membros no domínio da salvaguarda da segurança das pessoas, na medida em que se apoia em legislações parcialmente harmonizadas; que é conveniente, para o efeito, prever categorias de armas de fogo cuja aquisição e detenção por particulares sejam proibidas ou sujeitas a uma autorização ou a uma declaração;

Considerando que é indicado proibir, em princípio, a passagem de um Estado‑Membro para outro com armas, e que apenas é aceitável uma exceção se for seguido um processo que permita aos Estados‑Membros estarem ao corrente da introdução de uma arma de fogo no seu território;

Considerando, todavia, que devem ser adotadas regras mais flexíveis em matéria de caça e de competições desportivas, a fim de não entravar mais do que o necessário a livre circulação de pessoas.»

10      Nos termos do artigo 1.o desta diretiva:

«1.       Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “arma de fogo” qualquer arma portátil, com cano, apta a disparar ou que seja concebida para disparar ou que possa ser modificada para disparar balas ou projéteis através da ação de uma carga propulsora […] A classificação das armas de fogo consta da parte II do anexo I.

[…]

1‑D.      Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “localização” o acompanhamento continuado do percurso das armas de fogo e, sempre que possível, das suas partes e munições, desde o fabricante até ao comprador […]

[…]

2.      Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “armeiro” qualquer pessoa singular ou coletiva cuja atividade profissional consista […] no fabrico, comércio, troca, aluguer, reparação ou modificação de armas de fogo, das suas partes e de munições.

[…]

4.      O [cartão] é emitido pelas autoridades de um Estado‑Membro, a pedido de uma pessoa que se torna detentora e utilizadora legal de uma arma de fogo. É válido por um prazo máximo de cinco anos, prorrogável, e deve conter as informações estabelecidas no anexo II. É intransmissível e dele deve constar o registo da arma ou armas de fogo de que o titular do cartão é detentor e utilizador. Deve encontrar‑se sempre na posse do utilizador da arma de fogo e dele devem ainda constar todas as alterações da detenção ou das características da arma de fogo, bem como os seus extravio, furto ou roubo.»

11      O artigo 4.o da referida diretiva tem a seguinte redação:

«1.      Os Estados‑Membros asseguram que qualquer arma de fogo ou parte colocadas no mercado estejam marcadas e registadas nos termos da presente diretiva, ou tenham sido desativadas.

[…]

4.      [O]s Estados‑Membros devem assegurar que seja criado e mantido um ficheiro informatizado de dados […] que garanta às autoridades competentes o acesso aos ficheiros de dados em que é registada cada arma de fogo abrangida pela presente diretiva. […]

[…]

5.      Os Estados‑Membros devem assegurar que seja possível identificar em qualquer momento todas as armas de fogo e os respetivos proprietários. […]»

12      Nos termos do artigo 4.o‑A da Diretiva 91/477:

«Sem prejuízo do disposto no artigo 3.o, os Estados‑Membros só autorizam a aquisição e a detenção de armas de fogo a pessoas às quais tenha sido concedida uma licença ou, em relação às categorias C ou D, às pessoas às quais tenha sido especificamente autorizada a aquisição e a detenção de tais armas nos termos da legislação nacional.»

13      O artigo 5.o desta diretiva prevê:

«Sem prejuízo do disposto no artigo 3.o, os Estados‑Membros só autorizam a aquisição e a detenção de armas de fogo a pessoas que possuam um motivo válido para tal e que:

a)      Tenham 18 anos ou mais, exceto para a aquisição, por meios distintos da compra, e para a detenção de armas de fogo para a prática de caça e de tiro desportivo, na condição de, neste caso, os menores de 18 anos terem uma autorização parental […]

b)      Não sejam suscetíveis de constituir perigo para si próprias, para a ordem pública ou para a segurança pública. A condenação por crime doloso violento é considerada indiciadora desse perigo.

Os Estados‑Membros podem retirar a autorização de uso e porte de arma se qualquer dos requisitos que justificou a emissão deixar de se verificar.

[…]»

14      O artigo 6.o desta diretiva tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros tomarão todas as medidas necessárias para proibir a aquisição e detenção de armas de fogo e munições da categoria A. […]

[…]»

15      Nos termos do artigo 7.o da referida diretiva:

«1.      Não é permitida a aquisição de uma arma de fogo da categoria B no território de um Estado‑Membro sem que este tenha para o efeito autorizado o adquirente.

[…]

2.      Não é permitida a detenção de uma arma de fogo da categoria B no território de um Estado‑Membro sem que este tenha para o efeito autorizado o detentor. Se o detentor residir noutro Estado‑Membro, este será informado do facto.

[…]»

16      O artigo 8.o da mesma diretiva prevê:

«1.      Não é permitida a detenção de uma arma de fogo da categoria C sem que o detentor tenha para o efeito apresentado uma declaração às autoridades do Estado‑Membro em que essa arma é detida.

[…]

3.      Em aplicação do n.o 2 do artigo 12.o, se um Estado‑Membro proibir ou sujeitar a autorização no seu território a aquisição e a detenção de uma arma de fogo das categorias B, C ou D, informará desse facto os outros, Estados‑Membros, que o mencionarão expressamente ao emitirem um [cartão] para essa arma.»

17      O artigo 11.o da Diretiva 91/477 está redigido nos seguintes termos:

«1.      Sem prejuízo do artigo 12.o, as armas de fogo só podem ser transferidas de um Estado‑Membro para outro de acordo com o processo previsto nos números seguintes. Estas disposições são igualmente aplicáveis em caso de transferência de uma arma de fogo resultante de uma venda por correspondência.

[…]

3.      No que se refere à transferência de armas de fogo, […] cada Estado‑Membro pode conceder aos armeiros o direito de efetuar transferências de armas de fogo a partir do seu território para um armeiro estabelecido noutro Estado‑Membro sem a autorização prévia, na aceção do n.o 2. Para o efeito, emitirá uma licença válida por um período máximo de três anos que pode ser, em qualquer momento, suspensa ou anulada mediante decisão fundamentada. […]

[…]»

18      Nos termos do artigo 12.o desta diretiva:

«1.      A menos que tenha sido seguido o processo previsto no artigo 11.o, a detenção de uma arma de fogo durante uma viagem através de dois ou mais Estados‑Membros apenas será permitida se o interessado tiver obtido a autorização desses Estados‑Membros.

Os Estados‑Membros podem conceder esta autorização para uma ou várias viagens, por um período máximo de um ano, renovável. Estas autorizações serão inscritas no [cartão], que o viajante deve apresentar sempre que solicitado pelas autoridades dos Estados‑Membros.

2.      Não obstante o disposto no n.o 1, os caçadores, para as categorias C e D, e os atiradores desportivos, para as categorias B, C e D, podem deter sem autorização prévia uma ou várias armas de fogo durante uma viagem através de dois ou mais Estados‑Membros tendo em vista a prática das suas atividades, desde que possuam um [cartão] que abranja essa ou essas armas e que possam comprovar o motivo da viagem, nomeadamente mediante a apresentação de um convite ou de outro documento que prove a prática das atividades de caça ou de tiro desportivo no Estado‑Membro de destino.

Os Estados‑Membros não podem fazer depender a aceitação do [cartão] do pagamento de qualquer taxa ou encargo.

Contudo, esta derrogação não se aplica às viagens para um Estado‑Membro que proíba a aquisição e a detenção da arma em questão ou que por virtude do disposto no n.o 3 do artigo 8.o para ela exija uma autorização; neste caso, deve ser aposta uma menção expressa no [cartão].

[…]»

19      O anexo I, parte II, A, da referida diretiva enumera uma lista de objetos, repartidos nas seguintes categorias: «Categoria A — Armas de fogo proibidas», «Categoria B — Armas de fogo sujeitas a autorização», «Categoria C — Armas de fogo sujeitas a declaração» e «Categoria D — Outras armas de fogo», e que devem a este título, em princípio, ser consideradas «armas de fogo», na aceção desta mesma diretiva.

20      O anexo II da Diretiva 91/477 precisa as informações que o cartão deve conter e o facto de dever mencionar o seguinte:

«“O direito de efetuar uma viagem para outro Estado‑Membro com uma arma ou armas das categorias B, C ou D mencionadas no presente cartão é sujeito a uma autorização ou a autorizações correspondentes prévias do Estado‑Membro visitado. Esta ou estas autorizações podem ser inscritas no cartão.

A formalidade de autorização prévia acima referida não é, em princípio, necessária para efetuar uma viagem com uma arma da categoria C ou D para a prática da caça ou com uma arma da categoria B, C ou D para a prática do tiro desportivo, com a condição de a pessoa interessada estar na posse do [cartão] e poder estabelecer a razão da viagem”.

No caso de um Estado‑Membro ter, em conformidade com o disposto no n.o 3 do artigo 8.o [desta diretiva], informado os outros Estados‑Membros de que a detenção de certas armas de fogo das categorias B, C ou D é proibida ou sujeita a autorização, deve ser aditada uma das menções seguintes:

“É proibido a viagem a […] [Estado(s) em causa] com a arma […] (identificação).”

“É sujeita a autorização a viagem a […] [Estado(s) em causa] com a arma […] (identificação).”»

21      O considerando 1 da Diretiva 2008/51 enuncia:

«A Diretiva [91/477] constituiu uma medida de acompanhamento do mercado interno. Estabelece um equilíbrio entre, por um lado, o compromisso de assegurar uma certa liberdade de circulação para determinadas armas de fogo [na União] e, por outro lado, a necessidade de enquadrar essa liberdade por certas garantias de segurança, adaptadas a este tipo de produtos.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

22      A. Buhagiar e o. são membros da associação de tiro desportivo Gibraltar Target Shooting Association. Em 19 de maio de 2015, A. Buhagiar, na sua qualidade de presidente da referida associação, enviou uma carta ao Ministro, pedindo‑lhe a emissão de um cartão a cada um dos recorrentes no processo principal.

23      Em 2 de junho de 2015, o Ministro respondeu que, à luz da posição tanto da Comissão como do Governo do Reino Unido, segundo a qual a Diretiva 91/477 não se aplica no território de Gibraltar, devido ao facto de que esta visa facilitar a livre circulação de mercadorias, o Governo de Gibraltar decidiu não proceder à sua transposição. Por conseguinte, o Ministro respondeu que não estava em condições de emitir os cartões solicitados. Perante este indeferimento, A. Buhagiar e o. recorreram ao Supreme Court of Gibraltar (Supremo Tribunal de Gibraltar).

24      Segundo esse órgão jurisdicional, o direito da União aplica‑se plenamente no território de Gibraltar, com base no artigo 355.o, ponto 3, TFUE, sem prejuízo das exceções previstas nos artigos 28.o a 30.o do Ato de Adesão de 1972. Por força do artigo 29.o deste ato de adesão, em conjugação com o seu anexo I, parte I, ponto 4, Gibraltar está excluído do território aduaneiro da União e, a este respeito, o Tribunal de Justiça já precisou que a aplicação das diretivas que têm como base jurídica o artigo 114.o ou o artigo 115.o TFUE, que têm como finalidade principal a livre circulação de mercadorias, está excluída no território de Gibraltar.

25      No entanto, os recorrentes no processo principal defendem, em primeiro lugar, que, à luz do objetivo das exclusões previstas pelo Ato de Adesão 1972, que devem ser interpretadas de maneira restritiva, as medidas do direito da União relativas à livre circulação de mercadorias que não comprometem a finalidade dessas exclusões devem aplicar‑se no território de Gibraltar. É o caso das disposições da Diretiva 91/477 relativas ao cartão, destinadas a beneficiar os caçadores e os atiradores desportivos, uma vez que esse documento é emitido para o fim exclusivo de viagens para e a partir dos Estados‑Membros, de forma a permitir a essas pessoas participar em eventos desportivos. A emissão do cartão é alheia às transações comerciais sobre as mercadorias a que este diz respeito, a saber, as armas de fogo.

26      Em seguida, os recorrentes do processo principal alegam que as disposições da Diretiva 91/477 relativas ao cartão visam facilitar a livre prestação e receção de serviços pelos caçadores e os atiradores desportivos entre os Estados‑Membros. A este título, estas disposições são aplicáveis no território de Gibraltar, o que obriga as autoridades competentes a transpô‑las para um ato de direito nacional aplicável nesse território. A falta dessa transposição gera uma discriminação relativamente aos caçadores e atiradores desportivos residentes em Gibraltar, que têm de suportar encargos adicionais e sujeitar‑se a demoras administrativas quando viajam na União com as suas armas de fogo para participar em eventos e em competições de caça ou de tiro desportivo, o que constitui uma violação do artigo 56.o TFUE. As armas de fogo utilizadas nesse contexto não podem ser vistas como mercadorias envolvidas em trocas comerciais, mas devem ser consideradas um equipamento desportivo necessário para esses eventos ou competições.

27      Por último, A. Buhagiar e o. alegam que as disposições da Diretiva 91/477 relativas ao cartão dizem respeito à livre circulação de pessoas, como confirma o sétimo considerando desta diretiva. Nesta medida, a referida diretiva, uma vez que foi adotada com base no artigo 100.o‑A, n.o 1, do Tratado CEE, assenta numa base jurídica incorreta. Com efeito, nos termos do artigo 100.o‑A, n.o 2, do Tratado CEE, cujo conteúdo corresponde, em substância, ao do artigo 95.o, n.o 2, CE, e ao do artigo 114.o, n.o 2, TFUE, o processo legislativo referido nos n.os 1 dos referidos artigos não pode ser seguido para a adoção de atos da União relativos à livre circulação de pessoas. Por conseguinte, os recorrentes no processo principal contestam a validade das disposições da Diretiva 91/477 relativas ao cartão, ou mesmo desta diretiva na sua integralidade.

28      Nestas circunstâncias, o Supreme Court of Gibraltar (Supremo Tribunal de Gibraltar) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Caso as disposições da [Diretiva 91/477 relativas ao cartão] respeitem exclusivamente à livre circulação de mercadorias, podem essas disposições, ainda assim, ser aplicáveis [no território de] Gibraltar, com o fundamento de que não implicam uma troca ou transação comercial e de que, por conseguinte, não estão abrangidas pelo âmbito de aplicação das derrogações concedidas a Gibraltar pelo Ato de [A]desão de 1972?

2)      Devem as disposições da [Diretiva 91/477 relativas ao cartão], no tocante aos caçadores e atiradores desportivos, ser aplicáveis [no território de] Gibraltar, com o fundamento de que respeitam à livre circulação de serviços?

3)      Devem as disposições da [Diretiva 91/477 relativas ao cartão], no tocante aos caçadores e atiradores desportivos, ser declaradas inválidas, com o fundamento de que respeitam à livre circulação de pessoas e de que, por conseguinte, a sua adoção assentou numa base jurídica errada?»

 Quanto às questões prejudiciais

29      Com as suas três questões, que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio convida o Tribunal de Justiça a precisar o alcance da exclusão de Gibraltar do território aduaneiro da União, conforme referida no artigo 29.o do Ato de Adesão de 1972, em conjugação com o anexo I, parte I, ponto 4, deste ato, e a apreciar, neste contexto, a questão da aplicabilidade, no território de Gibraltar, das disposições da Diretiva 91/477 relativas ao cartão, na parte em que estas dizem respeito aos caçadores e aos atiradores desportivos.

30      A título preliminar, há que precisar, em primeiro lugar, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal, ou seja, o indeferimento do pedido de A. Buhagiar e o. de emissão de um cartão a fim de o utilizarem no âmbito do procedimento simplificado de transferência de armas de fogo entre Estados‑Membros pelos caçadores e atiradores desportivos, que a disposição da Diretiva 91/477 que, segundo estes, devia ter sido transposta no território de Gibraltar é a que tem por objeto a utilização do cartão nesse contexto, a saber, o artigo 12.o, n.o 2, dessa diretiva, em conjugação com o seu artigo 1.o, n.o 4, e com o seu anexo II. Estas duas últimas disposições definem, respetivamente, o conceito de cartão e seu conteúdo.

31      Em segundo lugar, embora o direito da União se aplique, em princípio, no território de Gibraltar, nos termos do artigo 355.o, ponto 3, TFUE, a aplicabilidade de determinados atos da União nesse território está, no entanto, excluída, nos termos do Ato de Adesão de 1972, em consideração da situação jurídica especial e, designadamente, do estatuto de porto franco desse território (v., neste sentido, acórdãos de 21 de julho de 2005, Comissão/Reino Unido, C‑349/03, EU:C:2005:488, n.o 41, e de 13 de junho de 2017, The Gibraltar Betting and Gaming Association, C‑591/15, EU:C:2017:449, n.os 29 e 30).

32      Como o Tribunal de Justiça já declarou no n.o 59 do acórdão de 23 de setembro de 2003, Comissão/Reino Unido (C‑30/01, EU:C:2003:489), a exclusão de Gibraltar do território aduaneiro da União, prevista no artigo 29.o do Ato de Adesão de 1972, em conjugação com o anexo I, parte I, ponto 4, deste ato, implica que não lhe são aplicáveis nem as regras do Tratado relativas à livre circulação de mercadorias nem as do direito da União derivado que visam, relativamente à livre circulação de mercadorias, assegurar uma aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros, nos termos dos artigos 94.o e 95.o do Tratado CE, atualmente artigos 114.o e 115.o TFUE.

33      Esta conclusão não foi posta em causa pela circunstância de as diretivas em causa no processo que deu origem a esse acórdão, que visavam principalmente suprimir os entraves às trocas de mercadorias e se baseavam nos referidos artigos 94.o e 95.o, incluírem disposições relativas à proteção do ambiente, domínio em que as regras do direito da União são em princípio aplicáveis no território de Gibraltar (v., a este respeito, acórdão de 23 de setembro de 2003, Comissão/Reino Unido, C‑30/01, EU:C:2003:489, n.os 61 e 62).

34      O Tribunal de Justiça esclareceu a este respeito que é certo que a não aplicação, no território de Gibraltar, das diretivas em causa pode pôr em perigo a coerência de outras políticas da União quando essas diretivas prosseguem também, mas a título acessório, objetivos relacionados com essas outras políticas, como a política de proteção do ambiente. Não obstante, a existência deste risco não pode levar a alargar o âmbito de aplicação territorial destas diretivas que prosseguem, a título principal, objetivos relacionados com a livre circulação de mercadorias, para além dos limites impostos pelos Tratados e pelo Ato de Adesão de 1972 (v., neste sentido, acórdão de 23 de setembro de 2003, Comissão/Reino Unido, C‑30/01, EU:C:2003:489, n.o 63).

35      Resulta destas considerações que, por um lado, quando um ato da União visa, a título principal, assegurar uma aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros a respeito da livre circulação de mercadorias, em conformidade com os artigos 114.o e 115.o TFUE, este não pode ser aplicável no território de Gibraltar, mesmo se o ato prossegue, a título acessório, um ou mais objetivos relacionados com outras políticas da União.

36      Por outro lado, contrariamente ao que A. Buhagiar e o. parecem considerar, e à semelhança do que refere o advogado‑geral nos n.os 54 e 55 das suas conclusões, a análise do objetivo principal de um ato da União é pertinente para determinar se esse ato é aplicável num território excluído do âmbito de aplicação territorial do direito da União num determinado domínio.

37      É à luz das considerações precedentes que as interrogações do órgão jurisdicional de reenvio devem ser analisadas.

38      Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 29.o do Ato de Adesão de 1972, em conjugação com o seu anexo I, parte I, ponto 4, deve ser interpretado no sentido de que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, em conjugação com o artigo 1.o, n.o 4, e com o anexo II desta, é aplicável no território de Gibraltar, seja porque visa facilitar a livre prestação de serviços ou a livre circulação de pessoas, seja porque, embora diga respeito à livre circulação de mercadorias, não tem por objeto as trocas comerciais nem as transações comerciais relacionadas com armas de fogo.

39      Se o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477 for interpretado no sentido de que prossegue o objetivo de facilitar a livre circulação de pessoas, o referido órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à validade da referida disposição, ou mesmo da Diretiva 91/477 no seu todo, uma vez que a escolha da base jurídica da mesma seria incorreta, na medida em que a diretiva assenta no artigo 100.o‑A, n.o 1, do Tratado CEE, que passou a artigo 95.o, n.o 1, CE, com base no qual foi adotada a Diretiva 2008/51, que alterou a Diretiva 91/477, e posteriormente a artigo 114.o, n.o 1, TFUE, enquanto o artigo 100.o‑A, n.o 2, do Tratado CEE, que passou a artigo 95.o, n.o 2, CE e posteriormente a artigo 114.o, n.o 2, TFUE, exclui a adoção, com base nos respetivos n.os 1 dos referidos artigos, de disposições relativas à livre circulação de pessoas.

40      A este respeito, no que se refere, em primeiro lugar, à questão de saber se o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, em conjugação com o artigo 1.o, n.o 4, e com o anexo II da mesma, é aplicável a Gibraltar, porquanto visa facilitar a livre prestação de serviços ou a livre circulação de pessoas, há que analisar o objetivo principal dessa diretiva, conforme foi recordado no n.o 36 do presente acórdão.

41      Por outro lado, na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à escolha da base jurídica na qual se funda a Diretiva 91/477, importa salientar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a escolha da base jurídica de um ato da União deve assentar em elementos objetivos suscetíveis de serem objeto de fiscalização jurisdicional, entre os quais figuram a finalidade e o conteúdo desse ato. Se o exame do ato em causa demonstrar que este prossegue uma dupla finalidade ou que tem duas componentes e se uma destas for identificável como principal ou preponderante, enquanto a outra é apenas acessória, este ato deve ter por fundamento uma única base jurídica, a saber, a base jurídica exigida pela finalidade ou pela componente principal ou preponderante (acórdão de 6 de maio de 2014, Comissão/Parlamento e Conselho, C‑43/12, EU:C:2014:298, n.os 29 e 30 e jurisprudência referida).

42      Assim, para responder utilmente às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio, há que identificar a finalidade principal da Diretiva 91/477 e analisar o seu conteúdo.

43      No que respeita à finalidade desta diretiva, resulta dos seus segundo a quarto considerandos que esta foi adotada com o objetivo de estabelecer um mercado interno e que, neste contexto, a supressão dos controlos da segurança dos objetos transportados e das pessoas pressupunha, entre outros, uma aproximação das legislações através de uma regulamentação eficaz sobre as armas de fogo, visando estabelecer o controlo, no interior dos Estados‑Membros, da sua aquisição, da sua detenção e da sua transferência (v., neste sentido, acórdão de 4 de setembro de 2014, Zeman, C‑543/12, EU:C:2014:2143, n.os 42 e 43). Uma regulamentação deste tipo, parcialmente harmonizada, cria, segundo o quinto considerando dessa diretiva, uma maior confiança mútua entre os Estados‑Membros no domínio da salvaguarda da segurança das pessoas.

44      O sexto considerando da referida diretiva enuncia que a passagem de um Estado‑Membro para outro com armas deve ser proibida, só sendo aceites derrogações a este princípio se existir um procedimento que permita aos Estados‑Membros estarem ao corrente da introdução de uma arma de fogo no seu território. O sétimo considerando enuncia que, todavia, devem ser adotadas regras mais flexíveis em matéria de caça e de competições desportivas, a fim de não entravar mais do que o necessário a livre circulação de pessoas.

45      No que respeita ao conteúdo da Diretiva 91/477, importa observar que o seu artigo 1.o, que figura no capítulo 1 da mesma, relativo ao seu âmbito de aplicação, define um certo número de conceitos que esta emprega, como os de «arma de fogo» e de «armeiro», bem como o de «cartão», definido no n.o 4 do referido artigo como sendo, em substância, um documento emitido pelas autoridades de um Estado‑Membro a pedido de uma pessoa que se torna detentora e utilizadora legal de uma arma de fogo. É ainda precisado que o cartão é um documento pessoal que menciona a arma ou armas de fogo detidas ou utilizadas pelo seu titular, que deve encontrar‑se sempre na posse do utilizador da arma de fogo, sendo o seu conteúdo definido mais detalhadamente no anexo II da referida diretiva.

46      O capítulo 2 da Diretiva 91/477, intitulado «Harmonização das legislações relativas às armas de fogo», contém disposições que preveem uma harmonização das legislações dos Estados‑Membros relativas à detenção e à aquisição de armas de fogo.

47      No seu capítulo 3, intitulado «Formalidades exigidas para a circulação de armas na [União]», a Diretiva 91/477 prevê o princípio da proibição da transferência de armas de fogo de um Estado‑Membro para outro, salvo se for seguido o procedimento previsto no seu artigo 11.o, que prevê a necessidade de uma autorização prévia, pelo Estado‑Membro no qual se encontram as armas, da transferência pretendida, após exame por esse Estado‑Membro das condições de segurança dessa transferência. O artigo 12.o, n.o 1, da referida diretiva prevê que, a menos que tenha sido seguido o procedimento previsto no seu artigo 11.o, a detenção de uma arma de fogo durante uma viagem através de dois ou mais Estados‑Membros apenas será permitida se o interessado tiver obtido a autorização desses Estados‑Membros, devendo essa autorização ser inscrita no cartão.

48      O artigo 12.o, n.o 2, primeiro parágrafo, desta diretiva dispõe que, em derrogação do n.o 1 desse artigo, os caçadores, para as categorias C e D, e os atiradores desportivos, para as categorias B, C e D, podem deter sem autorização prévia uma ou várias armas de fogo durante uma viagem através de dois ou mais Estados‑Membros, tendo em vista a prática das suas atividades, desde que possuam o cartão relativo a esta ou estas armas e que possam comprovar o motivo da viagem.

49      Resulta destes elementos da Diretiva 91/477 que, como confirma o considerando 1 da Diretiva 2008/51, aquela foi adotada como «medida de acompanhamento do mercado interno» que, ao mesmo tempo que assegura aos cidadãos europeus um nível elevado de segurança, contribui para a criação das condições que permitem a abolição dos controlos nas fronteiras entre os Estados‑Membros, através da criação de um quadro harmonizado mínimo relativo à aquisição e à detenção de armas de fogo para uso civil, bem como à sua transferência entre os Estados‑Membros.

50      Resulta, em especial, do seu conteúdo que a referida diretiva, por um lado, pretende aproximar as disposições dos Estados‑Membros no que se refere às condições em que armas de fogo de diferentes categorias podem ser adquiridas e detidas, prevendo ao mesmo tempo, por imperativos de segurança pública, que a aquisição de certos tipos de armas de fogo deve ser proibida.

51      Por outro lado, esta diretiva contém regras que visam harmonizar as medidas administrativas dos Estados‑Membros relativas à circulação de armas de fogo para uso civil, sendo o princípio de base, tendo sempre em vista assegurar um nível elevado de segurança pública, a proibição da circulação de armas, exceto se forem seguidos os procedimentos previstos para esse efeito pela referida diretiva.

52      Decorre do exposto que a Diretiva 91/477 constitui uma medida que visa assegurar, a respeito da livre circulação de mercadorias, a saber, das armas de fogo para uso civil, uma aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros, enquadrando simultaneamente essa liberdade com de garantias de ordem securitária adaptadas à natureza das referidas mercadorias.

53      Esta conclusão não é infirmada pelos argumentos dos recorrentes no processo principal, segundo os quais o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, em conjugação com o artigo 1.o, n.o 4, e com o anexo II da mesma, visa facilitar quer a livre prestação e receção de serviços por caçadores e atiradores desportivos quer a livre circulação de pessoas.

54      A este respeito, importa observar que, tendo em conta o risco para a segurança das pessoas que as armas de fogo representam, a livre circulação destas armas só pôde ser atingida através de um enquadramento estrito das condições da sua transferência entre Estados‑Membros, entre as quais figura o princípio da autorização prévia emitida pelos Estados‑Membros em causa para uma transferência dessas mercadorias.

55      Não obstante, o legislador da União quis que certas transferências de armas de fogo não fossem necessariamente objeto desta autorização, desde que se possa demonstrar que estas representam um risco menor para a segurança pública. Entre essas transferências figuram as referidas no artigo 11.o, n.o 3, da Diretiva 91/477, operadas por certos armeiros. O benefício deste regime está sujeito à concessão de uma licença específica, que acresce aos controlos rigorosos da atividade destes últimos, previstos no artigo 4.o, n.o 3, desta diretiva. Da mesma forma, as transferências visadas no artigo 12.o, n.o 2, da referida diretiva são efetuadas por caçadores e atiradores desportivos, ou seja, por uma categoria de detentores de armas de fogo que se considera, em virtude das suas atividades, terem razões legítimas e facilmente controláveis, designadamente através do cartão de que devem obrigatoriamente ser portadores, para realizarem transferências de armas de fogo.

56      Assim, tendo em conta imperativos de segurança pública, o legislador da União previu condições menos exigentes no que se refere às transferências de armas de fogo destinadas à prática da caça e às competições desportivas, na medida em que, como decorre do sétimo considerando da Diretiva 91/477, o quadro harmonizado por esta estabelecido é suscetível de ter um impacto negativo sobre o exercício das outras liberdades fundamentais por pessoas que pretendem transferir as suas armas de fogo para fins legítimos.

57      Neste contexto, o Tribunal de Justiça esclareceu que o cartão tem como objetivo permitir a livre circulação dos caçadores e dos atiradores desportivos na posse das respetivas armas de um Estado‑Membro para outro, salientando ao mesmo tempo que o artigo 1.o, n.o 4, em conjugação com o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, visa principalmente facilitar a circulação das armas destinadas à prática da caça ou de atividades desportivas (v., neste sentido, acórdão de 4 de setembro de 2014, Zeman, C‑543/12, EU:C:2014:2143, n.os 39, 52 e 57).

58      Consequentemente, embora um processo simplificado de transferência de armas de fogo como o previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, que envolve o cartão, possa ter um impacto positivo sobre a livre prestação de serviços e a livre circulação de pessoas no domínio da caça e do tiro desportivo, isso não altera o facto de que esta disposição contribui para o objetivo principal da diretiva em causa, que não é o de facilitar essas liberdades, mas enquadrar a aquisição e a detenção de armas de fogo para uso civil, bem como a livre circulação dessas armas na União.

59      Não se pode, pois, considerar que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, em conjugação com o seu artigo 1.o, n.o 4, e com o seu anexo II, seja aplicável a Gibraltar com o fundamento de que esta disposição não visa facilitar a livre circulação de mercadorias.

60      Da mesma forma, a análise desta diretiva, que consiste em identificar a sua finalidade principal e em examinar o seu conteúdo, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 41 do presente acórdão, não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a sua validade pelo facto de o legislador da União ter optado por basear a referida diretiva no artigo 100.o‑A, n.o 1, do Tratado CEE, e, no que diz respeito à Diretiva 2008/51, no artigo 95.o, n.o 1, CE.

61      Em segundo lugar, no que respeita à questão de saber se o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, em conjugação com o seu artigo 1.o, ponto 4, e com o seu anexo II, é aplicável a Gibraltar, com o fundamento de que, embora diga respeito à livre circulação das mercadorias, não tem por objeto as trocas comerciais nem as transações comerciais relativas às armas de fogo, há que precisar que, certamente, o órgão jurisdicional de reenvio concorda com a premissa de que a exclusão de Gibraltar prevista no artigo 29.o do Ato de Adesão de 1972, em conjugação com o seu anexo I, parte I, n.o 4, implica, em princípio, que os atos da União que visam, a título principal, assegurar a aproximação das disposições dos Estados‑Membros em relação à livre circulação de mercadorias não se aplicam no território de Gibraltar, em conformidade com a jurisprudência resultante do acórdão de 23 de setembro de 2003, Comissão/Reino Unido (C‑30/01, EU:C:2003:489).

62      No entanto, este tem dúvidas sobre o destino a dar aos argumentos dos recorrentes do processo principal segundo os quais o princípio geral da interpretação restritiva das exceções torna disposições como o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, em conjugação com o seu artigo 1.o, n.o 4, e com o seu anexo II, aplicáveis nesse território, porquanto não dizem respeito à livre circulação de mercadorias num contexto comercial e, por conseguinte, fazem parte de uma categoria de medidas relativas à livre circulação de mercadorias que não prejudica os interesses, recordados no n.o 31 do presente acórdão, que esta exclusão visa preservar.

63      A este respeito, é facto assente que o artigo 29.o do Ato de Adesão de 1972 constitui uma exceção à regra, prevista no artigo 355.o, ponto 3, TFUE, segundo a qual o direito da União é aplicável a Gibraltar, devendo esta exceção ser interpretada de maneira restritiva, no sentido de que o seu alcance está limitado ao que é estritamente necessário à salvaguarda dos interesses que permite que Gibraltar preserve, como salientou o Tribunal de Justiça nos n.os 43 e 51 do acórdão de 21 de julho de 2005, Comissão/Reino Unido (C‑349/03, EU:C:2005:488).

64      Não obstante, importa salientar que, no processo que deu origem a este último acórdão, o Tribunal de Justiça não foi chamado a pronunciar‑se sobre o estatuto de atos da União relacionados com a livre circulação de mercadorias à luz da referida exceção, contrariamente ao processo que deu origem ao acórdão de 23 de setembro de 2003, Comissão/Reino Unido (C‑30/01, EU:C:2003:489).

65      Daqui decorre que a necessidade, recordada no n.o 63 do presente acórdão, de interpretar de maneira restritiva o artigo 29.o do Ato de Adesão de 1972 não significa que existam disposições da União que, embora contribuam para o objetivo principal de um ato que visa assegurar uma harmonização das disposições dos Estados‑Membros relativamente à livre circulação de mercadorias, sejam aplicáveis no território de Gibraltar, como parecem considerar os recorrentes no processo principal.

66      Neste contexto, cumpre recordar que, por força do artigo 28.o, n.o 1, TFUE, que figura no título II da terceira parte do Tratado FUE, relativo à livre circulação de mercadorias, a união aduaneira abrange a totalidade do comércio de mercadorias. Esta união implica necessariamente que seja assegurada a livre circulação de mercadorias entre Estados‑Membros e, de maneira mais geral, no interior da mesma (acórdão de 23 de setembro de 2003, Comissão/Reino Unido, C‑30/01, EU:C:2003:489, n.o 53).

67      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, deve entender‑se por «mercadorias», na aceção dessa disposição, os produtos avaliáveis em dinheiro suscetíveis, como tal, de ser objeto de transações comerciais. Ora, as disposições do Tratado FUE em matéria de livre circulação de mercadorias aplicam‑se, em princípio, independentemente de as mercadorias serem transportadas através das fronteiras para efeitos de venda ou de revenda ou para uso ou consumo pessoal (v., neste sentido, acórdãos de 7 de março de 1989, Schumacher, 215/87, EU:C:1989:111, n.o 22, e de 3 de dezembro de 2015, Pfotenhilfe‑Ungarn, C‑301/14, EU:C:2015:793, n.o 47).

68      Assim, na medida em que o direito derivado da União tem, em princípio, o mesmo âmbito de aplicação que os próprios Tratados (v., por analogia, acórdão de 15 de dezembro de 2015, Parlamento e Comissão/Conselho, C‑132/14 a C‑136/14, EU:C:2015:813, n.o 77), e que a interpretação estrita da exclusão de Gibraltar do território aduaneiro comum da União não pode, sob pena de prejudicar a aplicação uniforme do direito da União, redundar na interpretação segundo a qual a livre circulação de mercadorias tem, nas relações com Gibraltar, um alcance mais limitado do que o que resulta das disposições do Tratado FUE, deve considerar‑se que as disposições da Diretiva 91/477 relativas à transferência de armas de fogo para uso civil são do domínio da livre circulação de mercadorias, sejam essas transferências efetuadas num contexto comercial, incluindo através de armeiros ou no âmbito de uma venda por correspondência, ou fora desse contexto, isto é, por particulares, designadamente caçadores e atiradores desportivos para efeitos do seu uso no âmbito das suas atividades respetivas.

69      Daqui resulta que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, em conjugação com o seu artigo 1.o, n.o 4, e o seu anexo II, não se aplica no território de Gibraltar, ainda que esta disposição do direito da União não tenha por objeto nem as trocas nem as transações comerciais relativas às armas de fogo.

70      Além disso, contrariamente ao que sugerem os recorrentes no processo principal nas suas observações escritas, a aplicabilidade dos atos da União que harmonizam disposições dos Estados‑Membros relativas à livre circulação de mercadorias no território de Gibraltar não pode depender das razões que motivam a transferência das mercadorias em causa. Conforme salientaram o Governo de Gibraltar e a Comissão na audiência no Tribunal de Justiça, da mesma forma que o advogado‑geral no n.o 73 das suas conclusões, se fosse esse o caso, isso criaria uma situação de insegurança jurídica quanto à determinação das regras do direito da União relativas à livre circulação de mercadorias aplicáveis no território de Gibraltar, o que poderia também prejudicar os interesses que o regime reconhecido a Gibraltar pelo Ato de Adesão de 1972 visa proteger.

71      Acresce que resulta do exposto, por um lado, que a aplicação do procedimento previsto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477 não pode ser ponderada fora do quadro legislativo parcialmente harmonizado relativo aos controlos da aquisição e da detenção de armas de fogo, criado por essa diretiva.

72      Por outro lado, a transposição, no território de Gibraltar, das disposições da Diretiva 91/477 necessárias para assegurar um funcionamento eficaz e fiável do cartão no contexto do referido procedimento e a realização do objetivo que consiste em garantir um elevado nível de segurança das pessoas exigiria que fosse transposto um número significativo de disposições da referida diretiva, o que alargaria indevidamente o âmbito de aplicação territorial do direito da União.

73      Tendo em conta todas as considerações anteriores, há que responder às questões submetidas que o artigo 29.o do Ato de Adesão de 1972, em conjugação com o seu anexo I, parte I, ponto 4, deve ser interpretado no sentido de que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477, em conjugação com o seu artigo 1.o, n.o 4, e o seu anexo II, não se aplicam no território de Gibraltar. A análise das questões não revelou qualquer elemento suscetível de afetar a validade desta diretiva.

 Quanto às despesas

74      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 29.o do Ato relativo às condições de adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da GrãBretanha e da Irlanda do Norte e às adaptações dos Tratados, em conjugação com o seu anexo I, parte I, ponto 4, deve ser interpretado no sentido de que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 91/477/CEE do Conselho, de 18 de junho de 1991, relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas, conforme alterada pela Diretiva 2008/51/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2008, em conjugação com o seu artigo 1.o, n.o 4, e o seu anexo II, não se aplicam no território de Gibraltar.

2)      A análise das questões prejudiciais não revelou qualquer elemento suscetível de afetar a validade da Diretiva 91/477, conforme alterada pela Diretiva 2008/51.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.