Language of document : ECLI:EU:C:2016:920

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 1 de dezembro de 2016 (1)

Processo C499/15

W,

V

contra

X

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius, Lituânia)]

«Espaço de liberdade, segurança e justiça — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (CE) n.° 2201/2003 — Obrigações alimentares — Regulamento (CE) n.° 4/2009 — Residência habitual da criança — Interesse superior da criança — Competência dos tribunais do Estado‑Membro de residência de um dos progenitores para apreciar questões relacionadas com o direito de guarda, o direito de visita e as obrigações de alimentos devidos a um filho menor — Alteração de uma decisão com força de caso julgado»






1.        O processo submetido ao Tribunal de Justiça tem origem num litígio relativo ao direito de guarda, ao direito de visita e à fixação das obrigações de alimentos devidos a um filho menor.

2.        O Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius, Lituânia) solicita ao Tribunal de Justiça esclarecimentos relativos à aplicação concreta do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 (2) e do Regulamento (CE) n.° 4/2009 (3), a fim de determinar qual é o tribunal competente para decidir sobre estas questões. Com efeito, no processo principal, os órgãos jurisdicionais lituanos proferiram uma decisão, com força de caso julgado, a respeito do direito de guarda, do direito de visita e das obrigações de alimentos devidos a um filho menor. O pai desse menor apresentou, em seguida, um novo pedido junto dos órgãos jurisdicionais lituanos com vista à alteração dessa decisão. No entanto, uma vez que o menor em causa tem a sua residência habitual no território neerlandês, junto com a sua mãe, coloca‑se a questão de saber se a competência dos órgãos jurisdicionais lituanos para decidir sobre este pedido ainda pode ter fundamento.

3.        Nas presentes conclusões, explicaremos as razões pelas quais consideramos que o artigo 8.° do Regulamento n.° 2201/2003 e o artigo 3.°, alínea d), do Regulamento n.° 4/2009 devem ser interpretados no sentido de que, quando um tribunal de um Estado‑Membro proferiu uma decisão, que transitou em julgado, a respeito do direito de guarda, do direito de visita e das obrigações de alimentos devidos a um filho menor, esse tribunal deixa de ser competente para decidir sobre um pedido de alteração dessa decisão, na medida em que o menor não tem a sua residência habitual no território desse Estado‑Membro. Precisaremos por que motivo, em nosso entender, o órgão jurisdicional competente para decidir sobre esse pedido é, de acordo com as referidas disposições e com o princípio que visa preservar o interesse superior da criança, o órgão jurisdicional do Estado‑Membro em cujo território o menor tem a sua residência habitual.

I –    Quadro jurídico

A –    Regulamento n.° 2201/2003

4.        O Regulamento n.° 2201/2003 tem por objetivo uniformizar, no espaço de liberdade, segurança e justiça, as regras de competência judiciária internacional em matéria de divórcio, de separação judicial ou de anulação do casamento, bem como em matéria de responsabilidade parental.

5.        O considerando 12 do referido regulamento indica o seguinte:

«As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.»

6.        O artigo 3.° do referido regulamento estabelece a competência geral em matéria de divórcio, separação judicial ou anulação do casamento. Este artigo tem a seguinte redação:

«1.      São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado‑Membro:

a)      Em cujo território se situe:

–        a residência habitual dos cônjuges, ou

–        a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou

–        a residência habitual do requerido, ou

–        em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou

–        a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido, pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

–        a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido, pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado‑Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu ‘domicílio’;

b)      Da nacionalidade de ambos os cônjuges ou, no caso do Reino Unido e da Irlanda, do ‘domicílio’ comum.

[…]»

7.        No que diz respeito à competência dos tribunais em matéria de responsabilidade parental, o artigo 8.° do Regulamento n.° 2201/2003 estabelece a regra de competência geral seguinte:

«1.      Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.      O n.° 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.°, 10.° e 12.°»

8.        O artigo 12.° do Regulamento 2201/2003 tem a seguinte redação:

«1.      Os tribunais do Estado‑Membro que, por força do artigo 3.°, são competentes para decidir de um pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, são competentes para decidir de qualquer questão relativa à responsabilidade parental relacionada com esse pedido quando:

a)      Pelo menos um dos cônjuges exerça a responsabilidade parental em relação à criança; e

b)      A competência desses tribunais tenha sido aceite, expressamente ou de qualquer outra forma inequívoca pelos cônjuges ou pelos titulares da responsabilidade parental à data em que o processo é instaurado em tribunal, e seja exercida no superior interesse da criança.

2.      A competência exercida nos termos do n.° 1 cessa:

a)      Quando a decisão de procedência ou improcedência do pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento transite em julgado; ou

b)      Se, à data referida na alínea a), ainda estiver pendente uma ação relativa à responsabilidade parental, logo que a decisão deste processo transite em julgado; ou

c)      Nos casos referidos nas alíneas a) e b), logo que o processo tenha sido arquivado por qualquer outra razão.

[…]»

9.        De acordo com o artigo 14.° do referido regulamento, «[s]e nenhum tribunal de um Estado‑Membro for competente, por força dos artigos 8.° a 13.°, a competência é, em cada Estado‑Membro, regulada pela lei desse Estado».

10.      O artigo 19.° do mesmo regulamento prevê:

«[…]

2.      Quando são instauradas em tribunais de Estados‑Membros diferentes ações relativas à responsabilidade parental em relação a uma criança, que tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar.

3.      Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declarar‑se‑á incompetente a favor daquele.

Neste caso, o processo instaurado no segundo tribunal pode ser submetida pelo requerente à apreciação do tribunal em que a ação foi instaurada em primeiro lugar.»

11.      Por força do artigo 21.°, n.° 1, do Regulamento n.° 2201/2003, «[a]s decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros, sem quaisquer formalidades».

12.      Por outro lado, existe uma lista de fundamentos de não reconhecimento de decisões em matéria de responsabilidade parental. Nomeadamente, nos termos do artigo 23.°, alínea a), desse regulamento, uma tal decisão não é reconhecida «[s]e o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido, tendo em conta o superior interesse da criança».

B –    Regulamento n.° 4/2009

13.      O Regulamento n.° 4/2009 visa facilitar a obtenção, noutro Estado‑Membro, de uma decisão relativa a um crédito alimentar, sem quaisquer outras formalidades (4).

14.      Por força do seu artigo 1.°, n.° 1, este regulamento é aplicável «às obrigações alimentares decorrentes das relações de família, de parentesco, de casamento ou de afinidade».

15.      Para esse efeito, o referido regulamento cria um sistema de regras comuns, nomeadamente no que diz respeito aos conflitos de jurisdição, estabelecendo regras de competência geral em matéria de obrigações alimentares.

16.      Nesse sentido, o artigo 3.° do Regulamento n.o 4/2009 estabelece o seguinte:

«São competentes para deliberar em matéria de obrigações alimentares nos Estados‑Membros:

a)      O tribunal do local em que o requerido tem a sua residência habitual; ou

b)      O tribunal do local em que o credor tem a sua residência habitual; ou

c)      O tribunal que, de acordo com a lei do foro, tem competência para apreciar uma ação relativa ao estado das pessoas, quando o pedido relativo a uma obrigação alimentar é acessório dessa ação, salvo se esta competência se basear unicamente na nacionalidade de uma das partes; ou

d)      O tribunal que, de acordo com a lei do foro, tem competência para apreciar uma ação relativa à responsabilidade parental, quando o pedido relativo a uma obrigação alimentar é acessório dessa ação, salvo se esta competência se basear unicamente na nacionalidade de uma das partes.»

II – Matéria de facto no processo principal

17.      W, de nacionalidade lituana, e X., de nacionalidade neerlandesa e argentina, casaram‑se em 9 de dezembro de 2003 em Portland, Oregon (Estados Unidos). V, que possui nacionalidade lituana e italiana, nasceu desta união em 20 de abril de 2006, nos Países Baixos.

18.      No período entre 2004 e 2011, W e X. viveram, em parte, nos Países Baixos, em Itália e no Canadá. Em novembro de 2011, X instalou‑se com V nos Países Baixos. De acordo com o órgão jurisdicional de reenvio, é assente que V nunca viveu nem visitou a Lituânia.

19.      W e X estão separados desde dezembro de 2010. É assente que W tem residência habitual na Lituânia, ao passo que X e V têm residência habitual nos Países Baixos.

20.      X requereu o divórcio num órgão jurisdicional canadiano. Daí resultaram diversas decisões, proferidas entre maio de 2011 e abril de 2012, a respeito do pedido de divórcio, da determinação da residência de V, do regime de visitas e das obrigações de alimentos devidos a V. Por decisão de 17 de abril de 2012, o órgão jurisdicional canadiano decretou o divórcio das partes, e atribuiu a guarda de V a X.

A –    Tramitação processual nos tribunais lituanos e neerlandeses

21.      A pedido de W, o Lietuvos apeliacinis teismas (Tribunal de Recurso da Lituânia) decidiu não reconhecer as decisões do tribunal canadiano.

22.      W intentou uma ação no Vilniaus miesto 1 apylinkės teismas (Tribunal do 1.° Distrito da cidade de Vílnius, Lituânia), na qual pediu o divórcio alegando culpa de X e a fixação da residência de V consigo. Em 28 de abril de 2011, a pedido de W, este tribunal deferiu o pedido de medidas provisórias e determinou temporariamente a residência de V com W. Este despacho de medidas provisórias foi anulado pelo tribunal onde foi intentada a ação de divórcio, por decisão de 12 de abril de 2013, com execução imediata. Em 19 de julho de 2013, por decisão proferida no recurso interposto por W, o Vilniaus apygardos teismas (Tribunal Regional de Vílnius, Lituânia) confirmou a decisão do Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius) de 12 de abril de 2013. W interpôs então um recurso de cassação, ao qual foi, no entanto, negado provimento.

23.      Por sentença de 8 de outubro de 2013, o Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius) decidiu quanto ao pedido de divórcio e fixou a residência de V junto de X, o regime de visitas de W, bem como o montante das obrigações de alimentos a pagar por este último ao filho.

24.      W interpôs recurso desta decisão no Vilniaus apygardos teismas (Tribunal Regional de Vílnius), que a confirmou, por decisão de 30 de maio de 2014. W interpôs recurso de cassação, que foi declarado inadmissível.

25.      Paralelamente à ação na Lituânia, X intentou uma ação nos órgãos jurisdicionais neerlandeses. Assim, por decisão de 29 de janeiro de 2014, o rechtbank Overijssel (Tribunal de Overijssel, Países Baixos) fixou a obrigação de alimentos devidos por W a X em 4 323,16 euros por mês a partir de 8 de maio de 2012 e devidos a V em 567,01 euros por mês, para o período de 27 de junho a 1 de novembro de 2011, e em 790 euros por mês, a partir de 2 de novembro de 2011.

26.      Por decisão de 22 de agosto de 2014, o mesmo tribunal anulou o direito de guarda conjunta de V e atribuiu a X a guarda exclusiva do menor. Segundo o direito neerlandês, a guarda da criança é atribuída exclusivamente a um dos progenitores quando existe um risco inaceitável de que a criança possa sofrer em resultado do desacordo dos pais e não existam perspetivas de uma melhoria no futuro próximo, ou quando seja necessária, por outros motivos, uma alteração do regime de guarda, tendo em conta o interesse da criança.

27.      Por decisão de 31 de outubro de 2014, o rechtbank Overijssel (Tribunal de Overijssel) recusou reconhecer e dar força executória nos Países Baixos à parte da decisão de 8 de outubro de 2013 do Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius) relativa ao divórcio dos cônjuges com culpa de ambos, à determinação da residência habitual de V com X, à obrigação de alimentos devidos a V e às despesas do processo. Por outro lado, reconheceu e deu força executória nos Países Baixos à parte da decisão de 8 de outubro de 2013 que fixa o direito de visita de W.

28.      Por decisão de 2 de fevereiro de 2015, proferida em sede de recurso interposto por W, o Lietuvos apeliacinis teismas (Tribunal de Recurso da Lituânia) recusou atribuir força executória na Lituânia à decisão do rechtbank Overijssel (Tribunal de Overijssel) de 29 de janeiro de 2014 e recusou reconhecer e atribuir força executória na Lituânia à decisão do mesmo tribunal proferida em 22 de agosto de 2014 relativa ao direito de guarda. Além disso, o Lietuvos apeliacinis teismas (Tribunal de Recurso da Lituânia) decidiu arquivar o processo no que respeita ao não reconhecimento, na Lituânia, da decisão do rechtbank Overijssel (Tribunal de Overijssel).

B –    Tramitação processual no órgão jurisdicional de reenvio

29.      Em 28 de agosto de 2014, W intentou uma ação no Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius), na qual pedia a alteração do lugar de residência de V, do montante das obrigações alimentares e do regime do direito de visita.

30.      Por decisão proferida em 25 de setembro de 2014, o referido tribunal julgou os pedidos improcedentes com fundamento no facto de W não ter indicado quais as circunstâncias concretas que se alteraram após a decisão proferida em 8 de outubro de 2013.

31.      W interpôs recurso da decisão de 25 de setembro de 2014 no Vilniaus apygardos teismas (Tribunal Regional de Vílnius). Por decisão de 16 de dezembro de 2014, este último deu provimento ao recurso de W, anulando parcialmente a decisão recorrida e remetendo o processo ao tribunal de primeira instância para reapreciação.

32.      Por decisão de 23 de dezembro de 2014, o Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius) julgou a ação inadmissível, considerando que não era da sua competência, na medida em que V tinha a sua residência habitual nos Países Baixos junto de X. Assim, segundo o referido tribunal, os pedidos deduzidos por W não eram da competência dos órgãos jurisdicionais lituanos. O referido tribunal informou W de que poderia intentar a ação no tribunal competente dos Países Baixos.

33.      Por decisão de 31 de março de 2015, o Vilniaus apygardos teismas (Tribunal Regional de Vílnius), decidindo em sede de recurso interposto por W, anulou a decisão de 23 de dezembro de 2014 e remeteu a questão da admissibilidade do pedido ao tribunal de primeira instância, a saber, o Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius), para nova decisão.

34.      Tendo em conta as divergências entre os órgãos jurisdicionais nacionais quanto à questão da competência, o Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Nos termos dos artigos 8.° a 14.° do [Regulamento n.° 2201/2003], qual o Estado‑Membro — a República da Lituânia ou o Reino dos Países Baixos — competente para decidir sobre a alteração da residência, da obrigação de alimentos e do direito de visita a respeito do menor V., que reside habitualmente no Reino dos Países Baixos?»

III – Análise

35.      A título preliminar, gostaríamos de referir que, na audiência, o demandante no processo principal alegou, nomeadamente, que o menor V não tinha residência habitual nos Países Baixos, mas sim na Lituânia. Em seu entender, a partir do momento em que uma decisão judicial fixa a residência da criança com um dos seus progenitores, é esse lugar de residência «jurídica» que deve ser considerado o lugar de residência habitual. No entanto, segundo jurisprudência assente, «o conceito de ‘residência habitual’, na aceção do artigo 8.°, n.° 1, do [referido] regulamento, corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar. Esse lugar deve ser fixado pelo órgão jurisdicional nacional tendo em conta todas as circunstâncias de facto específicas de cada caso concreto» (5). O Tribunal de Justiça acrescentou que, «[e]ntre os critérios à luz dos quais cabe ao órgão jurisdicional nacional fixar o lugar da residência habitual de uma criança, devem, designadamente, ser referidas as condições e as razões da permanência da criança no território de um Estado‑Membro, bem como a sua nacionalidade […]. Como o Tribunal de Justiça precisou, por outro lado, no n.° 38 do [acórdão de 2 de abril de 2009, A. (6)], para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta última num Estado‑Membro, outros fatores suplementares devem indicar que essa presença não tem caráter temporário ou ocasional» (7).

36.      No caso vertente, o órgão jurisdicional de reenvio fixou precisamente a residência habitual do menor nos Países Baixos, indicando mesmo que a criança nunca viveu na Lituânia. Assim sendo, não resta qualquer dúvida de que a residência habitual do menor V se situa no território neerlandês.

37.      A dúvida relativa à competência dos tribunais lituanos para adotar a decisão de 8 de outubro de 2013 é pertinente. Contudo, importa precisar que, no caso em apreço, o Tribunal de Justiça não é chamado a pronunciar‑se sobre a questão de saber se os tribunais eram competentes, por força das regras estabelecidas pelo Regulamento n.° 2201/2003, para adotar essa decisão, nem tão‑pouco sobre o reconhecimento desta decisão pelos tribunais neerlandeses. Não é essa a questão que se nos coloca.

38.      Embora, na sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio cite apenas as disposições do Regulamento n.° 2201/2003, importa referir que, no corpo do pedido que submeteu ao Tribunal de Justiça, se interroga também sobre a competência dos tribunais lituanos em matéria de obrigações alimentares. Ora, de acordo com o artigo 1.°, n.° 3, alínea e), desse regulamento, este não é aplicável aos alimentos. Pelo contrário, as questões relativas à competência jurisdicional em matéria de obrigações alimentares são reguladas pelo Regulamento n.° 4/2009.

39.      Contudo, não há dúvida de que estes dois aspetos, a saber, a responsabilidade parental e as obrigações de alimentos devidos ao menor em causa, são indissociáveis. De resto, a decisão única proferida pelo Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius) em 8 de outubro de 2013 refere‑se precisamente a estes dois aspetos. Assim, não temos dúvidas de que o pedido relativo às obrigações alimentares devidas ao menor V é acessório à ação relativa ao direito de guarda e ao direito de visita a ele respeitante.

40.      Ora, por força do 3.°, alínea d), do Regulamento n.° 4/2009, é competente para deliberar em matéria de obrigações alimentares o tribunal que, de acordo com a lei do foro, tem competência para apreciar uma ação relativa à responsabilidade parental, quando o pedido relativo a uma obrigação alimentar é acessório dessa ação.

41.      Assim sendo, por força desta disposição, a regra de competência que venha a ser estabelecida para a responsabilidade parental aplicar‑se‑á igualmente às obrigações alimentares.

42.      Propomos, por conseguinte, que a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio seja reformulada nos seguintes termos: com a sua questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Regulamento n.° 2201/2003 e o Regulamento n.° 4/2009 devem ser interpretados no sentido de que, quando um tribunal de um Estado‑Membro proferiu uma decisão, com força de caso julgado, a respeito do direito de guarda, do direito de visita e das obrigações de alimentos devidos a um filho menor, esse tribunal é igualmente competente para decidir sobre um pedido de alteração dessa decisão, mesmo que o menor em causa não tenha a sua residência habitual no território desse Estado‑Membro.

43.      Na verdade, a questão que se coloca no presente processo consiste em saber se os tribunais lituanos que adotaram a decisão de 8 de outubro de 2013, transitada em julgado e respeitante ao direito de guarda, ao direito de visita e às obrigações de alimentos devidos ao menor V, beneficiam de uma extensão da competência que lhes permite decidir novamente sobre o mesmo assunto, ainda que, por força da regra geral de competência estabelecida no Regulamento n.° 2201/2003, sejam os tribunais neerlandeses que têm competência em matéria de responsabilidade parental, uma vez que o menor V tem a sua residência habitual nos Países Baixos.

44.      Em nosso entender, não existe qualquer motivo que possa fundamentar a competência dos tribunais lituanos para decidir sobre esse pedido.

45.      O Tribunal de Justiça declarou que a competência de um tribunal em matéria de responsabilidade parental deve ser verificada e determinada em cada caso específico, quando um processo é instaurado num tribunal, o que implica que ela não se mantém após a conclusão de um processo pendente (8).

46.      É verdade que o pedido de W tem por objeto a alteração dos termos do direito de guarda, do direito de visita e das obrigações alimentares, fixados na decisão de 8 de outubro de 2013. Este tipo de pedido não tem nada de extraordinário. Acontece com frequência um dos pais pedir ao tribunal que altere o regime estabelecido, pelo facto de a sua situação pessoal ou financeira ter mudado.

47.      Contudo, esta decisão transitou em julgado, pelo que a ação intentada por W, em 28 de agosto de 2014, no Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius) deve ser considerada como uma nova ação.

48.      Ora, as regras de competência estabelecidas pelo Regulamento n.° 2201/2003 são claras. Nos termos do artigo 8.° deste regulamento, a competência em matéria de responsabilidade parental é, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança à data em que o processo seja instaurado no tribunal, ou seja, «[n]a data de apresentação ao tribunal do ato introdutório da instância»» (9). No caso vertente, o órgão jurisdicional de reenvio clarifica que o menor V tem residência habitual nos Países Baixos desde o mês de novembro de 2011 e nunca viveu na Lituânia. Por conseguinte, à data em que W instaurou o processo nos tribunais lituanos, isto é, em 28 de agosto de 2014, como indicado no número anterior, eram os tribunais neerlandeses que tinham competência para decidir sobre todas as questões respeitantes à responsabilidade parental em relação a essa criança.

49.      O facto de o pedido de W ter por objeto a alteração do regime fixado pela decisão de 8 de outubro de 2013 adotada pelos tribunais lituanos não pode levar à derrogação da regra geral e à extensão da competência desses tribunais.

50.      As regras de competência que o referido regulamento estabelece em matéria de responsabilidade parental são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade (10). É por isso que, por força do artigo 8.o deste regulamento, a competência nesta matéria é, em primeira linha, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro onde a criança tem a sua residência habitual à data em que o processo é instaurado no tribunal. Com efeito, em razão da proximidade geográfica, estes tribunais são os que estão em melhores condições para apreciar as medidas a adotar no interesse da criança (11).

51.      Embora seja verdade que existem exceções a esta regra geral de competência, estas encontram‑se, todavia, taxativamente enumeradas nos artigos 9.° a 15.° do Regulamento n.o 2201/2003 e devem ser interpretadas de forma estrita (12).

52.      O artigo 9.° desse regulamento é relativo aos casos em que a criança se desloca legalmente de um Estado‑Membro para outro. O artigo 10.° do mesmo regulamento diz respeito aos casos de rapto da criança. O artigo 12.° do referido regulamento refere‑se à extensão da competência que permite aos tribunais de um Estado‑Membro que não seja o da residência habitual da criança decidir de pedidos em matéria de responsabilidade parental respeitantes a essa criança, não só quando esses tribunais são competentes para decidir de um pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento como também quando a criança tem uma ligação particular com esse Estado‑Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado‑Membro ou de a criança ser nacional desse Estado‑Membro. Em ambos os casos, a competência «excecional» dos referidos tribunais deve ter sido aceite, expressamente ou de qualquer outra forma inequívoca, pelos cônjuges ou pelos titulares da responsabilidade parental (13).

53.      Quanto ao artigo 14.° desse regulamento, este aplica‑se quando nenhum tribunal de um Estado‑Membro for competente, por força dos artigos 8.° a 13.° do mesmo regulamento. Por último, o artigo 15.° do referido regulamento prevê a possibilidade de os tribunais de um Estado‑Membro competentes para conhecer do mérito reenviarem o processo para os tribunais de outro Estado‑Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, se estes se encontrarem mais bem colocados para conhecer do processo e se tal servir o superior interesse da criança.

54.      Há, pois, que observar que o caso que nos foi submetido não se enquadra em nenhuma das exceções previstas no referido regulamento.

55.      A extensão ou manutenção de uma competência apenas pode ser justificada se servir o superior interesse da criança. O artigo 24.°, n.° 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê, a este respeito, que «[t]odos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança».

56.      Com efeito, poderia argumentar‑se que, uma vez que a decisão que estabelece os termos do direito de guarda, do direito de visita e das obrigações alimentares tende a ser alterada pela tomada de uma nova decisão, seria oportuno que essa nova decisão fosse adotada pelo mesmo tribunal.

57.      Esse tipo de exceção à regra geral existe em relação ao direito de visita. O artigo 9.° do Regulamento n.° 2201/2003 prevê que, em situações de mudança de residência lícita da criança, que passa a ter uma nova residência habitual, os tribunais do Estado‑Membro da anterior residência habitual mantêm a sua competência durante um período de três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão sobre o direito de visita proferida nesse Estado‑Membro.

58.      O legislador da União justificou esta exceção à regra geral com o facto de ser preferível que incumba «ao tribunal que estava mais próximo da criança aquando da mudança alterar ele próprio a sua decisão anterior a fim de ter em conta essa mudança, o que garante uma certa continuidade sem, no entanto, alterar a definição de ‘residência habitual’» (14).

59.      No entanto, além de dizer unicamente respeito ao direito de visita, existe uma diferença fundamental entre uma situação como a que se encontra prevista no artigo 9.° desse regulamento e a situação em causa no processo principal. Em momento algum, os tribunais lituanos que proferiram a decisão de 8 de outubro de 2013 que W pretende ver alterada podiam basear a sua competência no lugar de residência da criança, uma vez que esta, recorde‑se, nunca viveu na Lituânia. Tendo em conta os elementos que constam dos documentos dos autos, afigura‑se que os tribunais lituanos que proferiram a decisão puderam considerar‑se competentes com base no artigo 14.° do referido regulamento, que estabelece uma competência subsidiária, conforme indicado no n.° 53 das presentes conclusões. Portanto, não foi em função do critério da proximidade e, por conseguinte, em função do superior interesse da criança que a competência desses tribunais foi estabelecida.

60.      Consequentemente, a extensão de uma competência que não serve o superior interesse da criança é totalmente contrária ao sistema instituído pelo Regulamento n.° 2201/2003 e ao princípio fundamental, consagrado no artigo 24.° da Carta dos Direitos Fundamentais, segundo o qual todos os atos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.

61.      Tendo em conta todos estes elementos, consideramos que o artigo 8.° do Regulamento n.° 2201/2003 e o artigo 3.°, alínea d), do Regulamento n.° 4/2009 devem ser interpretados no sentido de que, quando um tribunal de um Estado‑Membro proferiu uma decisão, com força de caso julgado, a respeito do direito de guarda e do direito de visita de um filho menor, esse tribunal deixa de ser competente para decidir sobre um pedido de alteração dessa decisão, na medida em que o menor não tem a sua residência habitual no território desse Estado‑Membro. O tribunal competente para decidir sobre esse pedido é, de acordo com as referidas disposições e com o princípio que visa preservar o interesse superior da criança, o tribunal do Estado‑Membro em cujo território o menor tem a sua residência habitual.

IV – Conclusão

62.      Atendendo às considerações precedentes, propomos ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo ao Vilniaus miesto apylinkės teismas (Tribunal Distrital da cidade de Vílnius, Lituânia):

O artigo 8.° do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, e o artigo 3.°, alínea d), do Regulamento (CE) n.° 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares, devem ser interpretados no sentido de que, quando um tribunal de um Estado‑Membro proferiu uma decisão, com força de caso julgado, a respeito do direito de guarda, do direito de visita e das obrigações de alimentos devidos a um filho menor, esse tribunal deixa de ser competente para decidir sobre um pedido de alteração dessa decisão, na medida em que o menor não tem a sua residência habitual no território desse Estado‑Membro.

O tribunal competente para decidir sobre esse pedido é, de acordo com as referidas disposições e com o princípio que visa preservar o interesse superior da criança, o tribunal do Estado‑Membro em cujo território o menor tem a sua residência habitual.


1      Língua original: francês.


2       Regulamento do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1).


3       Regulamento do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares (JO 2009, L 7, p. 1, e retificação no JO 2011, L 131, p. 26).


4       V. considerando 9 do referido regulamento.


5       V. acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi (C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.° 47 e jurisprudência referida).


6       C‑523/07, EU:C:2009:225.


7       V. acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi (C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.os  48 e 49).


8       V. acórdão de 1 de outubro de 2014, E. (C‑436/13, EU:C:2014:2246, n.° 40).


9       V. artigo 16.°, n.° 1, do referido regulamento. V., igualmente, acórdão de 1 de outubro de 2014, E. (C‑436/13, EU:C:2014:2246, n.° 38).


10       V. décimo segundo considerando do Regulamento n.° 2201/2003. V., igualmente, acórdão de 1 de outubro de 2014, E. (C‑436/13, EU:C:2014:2246, n.° 44).


11       V. acórdão de 23 de dezembro de 2009, Detiček (C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.° 36).


12       V., neste sentido, acórdão de 21 de outubro de 2015, Gogova (C‑215/15, EU:C:2015:710, n.° 41).


13       V. artigo 12.°, n.° 1, alínea b), e n.° 3, alínea b), do Regulamento n.° 2201/2003.


14       Proposta de Regulamento do Conselho relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000 e altera o Regulamento (CE) n.° 44/2001 em matéria de obrigação de alimentos [COM(2002) 222 final (JO 2002, C 203 E, p. 155)].