Language of document : ECLI:EU:C:2024:133

DESPACHO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

5 de fevereiro de 2024 (*)

[Texto retificado por Despacho de 8 de abril de 2024]

«Reenvio prejudicial — Artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça — Resposta que pode ser claramente deduzida da jurisprudência — Fiscalidade — Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Procedimento inspetivo — Venda de veículos de segunda mão aos consumidores finais — Operações sujeitas a IVA — Artigos 73.° e 78.° — Matéria coletável — Princípio da neutralidade fiscal — Faturação incorreta de uma taxa de IVA de zero — Aplicação da taxa normal de IVA pela Autoridade Tributária — Inclusão do IVA devido no preço de venda»

No processo C‑377/23 [Sancra] (i),

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), por Decisão de 10 de maio de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de junho de 2023, no processo

DC

contra

Autoridade Tributária e Aduaneira,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: F. Biltgen, presidente de secção, N. Wahl (relator) e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de decidir por despacho fundamentado, nos termos do artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

profere o presente

Despacho

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 73.° e 78.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1), lidos à luz do princípio da neutralidade do imposto sobre o valor acrescentado (IVA).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe DC à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal) (a seguir «Autoridade Tributária») a respeito da questão de saber se o montante que figura na fatura inclui o IVA quando a taxa de IVA de zero erradamente faturada ao consumidor final tenha sido substituída, no âmbito de um procedimento inspetivo, pela taxa normal de 23 %.

 Quadro jurídico

3        O considerando 7 da Diretiva 2006/112 enuncia:

«O sistema comum do IVA deverá, ainda que as taxas e isenções não sejam completamente harmonizadas, conduzir a uma neutralidade concorrencial, no sentido de que, no território de cada Estado‑Membro, os bens e os serviços do mesmo tipo estejam sujeitos à mesma carga fiscal, independentemente da extensão do circuito de produção e de distribuição.»

4        O artigo 1.° desta diretiva dispõe:

«1.      A presente diretiva estabelece o sistema comum do [IVA].

2.      O princípio do sistema comum do IVA consiste em aplicar aos bens e serviços um imposto geral sobre o consumo exatamente proporcional ao preço dos bens e serviços, seja qual for o número de operações ocorridas no processo de produção e de distribuição anterior ao estádio de tributação.

Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.

O sistema comum do IVA é aplicável até ao estádio do comércio a retalho, inclusive.»

5        Nos termos do artigo 2.°, n.° 2, alínea b), i), da referida diretiva, são considerados meios de transporte novos os veículos terrestres a motor, quando a entrega for efetuada no prazo de seis meses após a primeira entrada em serviço ou o veículo tiver percorrido um máximo de 6 000 quilómetros.

6        O artigo 73.° da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«Nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.° a 77.°, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente relacionadas com o preço de tais operações.»

7        O artigo 78.° da Diretiva 2006/112 prevê:

«O valor tributável inclui os seguintes elementos:

a)      Os impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos, com exceção do próprio IVA;

b)      As despesas acessórias, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte e seguro, exigidas pelo fornecedor ao adquirente ou ao destinatário.

Para efeitos da alínea b) do primeiro parágrafo, os Estados‑Membros podem considerar despesas acessórias as que sejam objeto de convenção separada.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

8        DC exerce uma atividade económica que consiste na venda aos consumidores finais de veículos automóveis em segunda mão. Considerando que as vendas desses veículos estavam sujeitas ao regime de IVA específico aplicável aos bens em segunda mão, DC fez constar das faturas dessas vendas as menções «Artigo 16.°, n.° 6 [Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA)]» ou «Regime da margem — Bens em segunda mão», bem como a taxa de IVA de «0 %».

9        No âmbito do procedimento inspetivo, a Autoridade Tributária entendeu que as operações efetuadas por DC deveriam ter sido consideradas no regime geral do IVA na medida em que eram relativas a meios de transporte «novos», na aceção do artigo 2.°, n.° 2, alínea b), da Diretiva 2006/112. Por conseguinte, corrigiu o IVA em falta fazendo acrescer ao valor constante das faturas de venda emitidas por DC aos consumidores finais uma taxa de IVA de 23 %.

10      DC impugnou estas correções de IVA resultantes do procedimento inspetivo no Tribunal Central Administrativo Sul (Portugal). Tendo sido negado provimento ao seu recurso por Acórdão de 10 de novembro de 2022, DC interpôs recurso no órgão jurisdicional de reenvio.

11      O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que a questão objeto do litígio no processo principal diz apenas respeito à determinação do rendimento coletável em sede de IVA. A este respeito, DC sustenta que a taxa deve ser calculada tendo em consideração o preço de venda mencionado na fatura e não, como entendeu a Autoridade Tributária, como um preço sem IVA a que este deve acrescer, mas como um preço que já inclui o IVA. Especifica que não tem mais a possibilidade de repercutir o IVA nos consumidores finais, pela falta de um mecanismo de regularização do IVA que assim o permita fazer. Daqui DC conclui que o método aplicado pela Autoridade Tributária implicaria acrescer ao valor declarado da venda que consta da fatura o valor do IVA, em violação dos artigos 73.° e 78.° da Diretiva 2006/112, bem como do princípio da neutralidade fiscal, conforme interpretados pelo Tribunal de Justiça.

12      O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade do método utilizado pela Autoridade Tributária com o direito da União. O órgão jurisdicional de reenvio observa que se pode deduzir facilmente dos acórdãos do Tribunal de Justiça que o sistema do IVA tem como objetivo onerar unicamente o consumidor final e que o valor tributável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais não pode ser superior à contraprestação efetivamente paga pelo consumidor final. Como DC alega, esses acórdãos militam a favor de um cálculo do IVA baseado num preço de venda que já inclui este imposto.

13      No entanto, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o presente processo diferencia‑se dos processos que foram objeto da jurisprudência do Tribunal de Justiça, caracterizados pela falta de menção de IVA nas faturas ou pela inexistência de fatura, uma vez que, no caso em apreço, DC fez constar das faturas, como resulta do n.° 8 do presente despacho, as menções «Artigo 16.°, n.° 6 CIVA» ou «Regime da margem — Bens em segunda mão», e, quanto ao IVA, a taxa de «0 %», e a Autoridade Tributária considerou como não provado que «as faturas não t[inham] no preço de venda cobrado ao consumidor final IVA incluído».

14      Nestas circunstâncias, o Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Tendo em conta os contornos particulares do caso, em face do disposto nos artigos 73.° e 78.° da Diretiva [2006/112], e do princípio da neutralidade fiscal, é conforme ao direito da União, considerar‑se que o preço/valor constante das faturas já inclui o IVA, ou deverá antes considerar‑se que se trata de um valor ao qual deve acrescer o IVA?»

 Quanto à questão prejudicial

15      Ao abrigo do artigo 99.° do Regulamento de Processo, quando a resposta a uma questão prejudicial possa ser claramente deduzida da jurisprudência, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, mediante proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, decidir pronunciar‑se por meio de despacho fundamentado.

16      Há igualmente que recordar que o sistema de cooperação instituído pelo artigo 267.° TFUE se baseia numa nítida separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça. Por um lado, o Tribunal de Justiça não tem poderes para aplicar as regras do direito da União a um caso concreto, mas apenas para se pronunciar sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União (v., neste sentido, Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia «Forumul Judecătorilor din România» e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.° 201 e jurisprudência referida). Por outro lado, em conformidade com o n.° 11 das Recomendações do Tribunal de Justiça da União Europeia à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (JO 2019, C 380, p. 1), é aos órgãos jurisdicionais nacionais que cabe retirar as respetivas consequências concretas dos elementos de interpretação fornecidos pelo Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdão de 25 de outubro de 2018, Roche Lietuva, C‑413/17, EU:C:2018:865, n.° 43).

17      No caso em apreço, o Tribunal de Justiça considera que a interpretação do direito da União solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio pode ser claramente deduzida dos Acórdãos de 7 de novembro de 2013, Tulică e Plavoşin (C‑249/12 e C‑250/12, EU:C:2013:722), e de 1 de julho de 2021, Tribunal Económico Administrativo Regional de Galicia (C‑521/19, EU:C:2021:527). Por conseguinte, há que aplicar o artigo 99.° do Regulamento de Processo no presente processo.

18      Como resulta do n.° 16 do presente despacho, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio retirar as consequências concretas, no litígio no processo principal, dos elementos de interpretação que decorrem desta jurisprudência do Tribunal de Justiça.

19      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 73.° da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o artigo 78.°, alínea a), e o artigo 2.°, n.° 2, alínea b), desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que, quando um sujeito passivo do IVA tenha erradamente feito constar das faturas que emitiu aos consumidores finais uma taxa de IVA de zero, embora fosse aplicável uma taxa superior, deve considerar‑se que o preço ou o montante indicado nessas faturas é um preço que já inclui IVA.

20      A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, no Acórdão de 7 de novembro de 2013, Tulică e Plavoşin (C‑249/12 e C‑250/12, EU:C:2013:722):

«33      Em conformidade com a norma geral enunciada no artigo 73.° da [Diretiva 2006/112], o valor tributável numa entrega de um bem ou numa prestação de um serviço, efetuadas a título oneroso, é constituído pela contraprestação realmente recebida para esse efeito pelo sujeito passivo. [...]

34      Essa regra deve ser aplicada em conformidade com o princípio de base da referida diretiva, que reside no facto de o sistema do IVA ter como objetivo onerar unicamente o consumidor final [...].

35      Ora, quando um contrato de compra e venda tiver sido celebrado sem menção do IVA, na hipótese de o fornecedor, segundo o direito nacional, não poder recuperar junto do adquirente o IVA posteriormente exigido pela [Autoridade Tributária], considerar que a totalidade do preço, sem dedução do IVA, constitui a base a que o IVA se aplica teria a consequência de o IVA onerar esse fornecedor e colidir, portanto, com o princípio de que o IVA é um imposto sobre o consumo, que deve ser suportado pelo consumidor final.

36      Essa tomada em consideração colidiria, por outro lado, com a regra segundo a qual a [Autoridade Tributária] não poderá cobrar um montante de IVA superior ao que foi recebido pelo sujeito passivo [...].

37      Em contrapartida, isso não sucederia se o fornecedor tivesse, segundo o direito nacional, a possibilidade de adicionar ao preço estipulado um suplemento correspondente ao imposto aplicável à operação e de o recuperar junto do adquirente do bem.

[...]

43      [Assim,] a Diretiva [2006/112], nomeadamente os seus artigos 73.° e 78.°, deve ser interpretada no sentido de que, quando o preço de um bem tenha sido determinado pelas partes sem menção do IVA e o fornecedor do referido bem seja o devedor do IVA devido sobre a operação tributada, e caso o fornecedor não tenha a possibilidade de recuperar junto do adquirente o IVA reclamado pela [Autoridade Tributária], se deve considerar que o preço convencionado já inclui o IVA.»

21      Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, no Acórdão de 1 de julho de 2021, Tribunal Económico Administrativo Regional de Galicia (C‑521/19, EU:C:2021:527):

«39      [A] Diretiva 2006/112, nomeadamente os seus artigos 73.° e 78.°, lidos à luz do princípio da neutralidade do IVA, deve ser interpretada no sentido de que, quando os sujeitos passivos do IVA, por meio de fraude, não indicaram a existência da operação à [Autoridade] Tributária, não emitiram fatura nem incluíram os rendimentos gerados por ocasião desta operação numa declaração a título de impostos diretos, deve considerar‑se que a reconstituição, no âmbito da inspeção de tal declaração, dos montantes pagos e recebidos durante a operação em causa levada a cabo pela [Autoridade] Tributária em causa é um preço que já inclui o IVA, a menos que, nos termos do direito nacional, os sujeitos passivos tenham a possibilidade de fazer repercutir e deduzir ulteriormente o IVA em causa, não obstante a fraude.»

22      Resulta nomeadamente desta jurisprudência, por um lado, que o IVA tem como objetivo onerar unicamente o consumidor final e, por outro, que a Autoridade Tributária não pode cobrar a título do IVA um montante superior ao recebido pelo sujeito passivo. Estes princípios não podem ser afastados pelo facto de constar das faturas em causa uma taxa de IVA de zero, que DC considerava ser aplicável no caso em apreço. Por um lado, com efeito, a aplicação desta taxa permite que o sujeito passivo deduza o imposto a montante e, por outro, não põe em causa o facto de o IVA ter sido efetivamente aplicado aos consumidores finais.

23      Daqui decorre que, em circunstâncias como as do litígio no processo principal, em que o IVA foi cobrado nas faturas emitidas aos consumidores finais, mas a uma taxa declarada incorreta pela Autoridade Tributária, no caso em apreço uma taxa de zero, o IVA resultante da aplicação da taxa normal deve ser calculado deduzindo do preço de venda faturado o montante de IVA devido ao Tesouro Público, desde que, segundo o direito nacional, o fornecedor não tenha a possibilidade de recuperar essa taxa junto do adquirente do bem.

24      [Conforme retificado por Despacho de 8 de abril de 2024] Nestas condições, há que responder à questão submetida que o artigo 73.° da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o artigo 78.°, alínea a), e o artigo 2.°, n.° 2, alínea b), desta diretiva, deve ser interpretado no sentido de que, quando um sujeito passivo de IVA tenha erradamente feito constar das faturas que emitiu aos consumidores finais uma taxa de IVA de zero, embora fosse aplicável uma taxa superior, deve não obstante considerar‑se que o preço ou o montante indicado nessas faturas é um preço que já inclui IVA, a menos que, nos termos do direito nacional, o sujeito passivo tenha a possibilidade de repercutir nos consumidores finais e de recuperar junto destes últimos o IVA correspondente à aplicação da taxa retificada.

 Quanto às despesas

25      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

[Conforme retificado por Despacho de 8 de abril de 2024] O artigo 73.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, lido em conjugação com o artigo 78.°, alínea a), e o artigo 2.°, n.° 2, alínea b), desta diretiva,

deve ser interpretado no sentido de que:

quando um sujeito passivo de IVA tenha erradamente feito constar das faturas que emitiu aos consumidores finais uma taxa de IVA de zero, embora fosse aplicável uma taxa superior, deve não obstante considerar-se que o preço ou o montante indicado nessas faturas é um preço que já inclui IVA, a menos que, nos termos do direito nacional, o sujeito passivo tenha a possibilidade de repercutir nos consumidores finais e de recuperar junto destes últimos o IVA correspondente à aplicação da taxa retificada.

Assinaturas


*      Língua do processo: português.


i      O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.