Language of document : ECLI:EU:T:2009:474

Processos apensos T‑427/04 e T‑17/05

República Francesa e France Télécom SA

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Auxílios de Estado – Regime de sujeição da France Télécom ao imposto profissional nos anos de 1994 a 2002 – Decisão que declara o auxílio incompatível com o mercado comum e ordena a sua recuperação – Vantagem – Prescrição – Confiança legítima – Segurança jurídica – Violação das formalidades essenciais – Colegialidade – Direitos de defesa e direitos processuais dos terceiros interessados»

Sumário do acórdão

1.      Comissão – Princípio da colegialidade – Alcance – Possibilidade de a Comissão habilitar um dos seus membros a adoptar determinadas categorias de actos de administração e de gestão

(Artigos 219.° CE e 253.° CE)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados – Exame pela Comissão – Procedimento administrativo

(Artigo 88.°, n.os 2 e 3, CE)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados – Exame pela Comissão – Procedimento administrativo – Obrigação de a Comissão notificar os interessados para apresentarem as suas observações

(Artigo 88.°, n.° 2, CE)

4.      Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito – Regime especial de tributação de uma empresa

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

5.      Auxílios concedidos pelos Estados – Decisão da Comissão – Apreciação da legalidade em função dos elementos de informação disponíveis no momento da adopção da decisão

(Artigo 87.° CE)

6.      Auxílios concedidos pelos Estados – Conceito – Carácter selectivo da medida – Derrogação ao regime fiscal geral – Justificação assente na natureza e na economia do sistema – Ónus da prova

(Artigo 87.°, n.° 1, CE)

7.      Auxílios concedidos pelos Estados – Recuperação de um auxílio ilegal – Auxílio concedido em violação das regras processuais do artigo 88.° CE – Eventual confiança legítima dos beneficiários – Protecção – Condições e limites

(Artigos 87.°, n.° 1,CE e 88.° CE; Regulamento n.° 659/1999 do Conselho, artigo 14.°)

8.      Auxílios concedidos pelos Estados – Decisão da Comissão que declara a incompatibilidade de um auxílio com o mercado comum e ordena a sua restituição – Possibilidade de a Comissão deixar às autoridades nacionais a incumbência de calcular o montante preciso a restituir

(Artigo 88.°, n.° 2, CE)

9.      Auxílios concedidos pelos Estados – Recuperação de um auxílio ilegal – Prazo de prescrição de dez anos previsto no artigo 15.° do Regulamento n.° 659/1999 – Ponto de partida do prazo de prescrição

(Artigo 88.°, n.° 2, CE; Regulamento n.° 659/1999 do Conselho, artigo 15.°)

1.      Por força do artigo 219.° CE, as deliberações da Comissão são tomadas por maioria do número dos seus membros. O princípio da colegialidade, assim estabelecido, assenta na igualdade dos membros da Comissão relativamente à participação na tomada de decisões e implica, nomeadamente, por um lado, que as decisões sejam tomadas em comum e, por outro, que todos os membros do órgão colegial sejam colectivamente responsáveis, no plano político, pelo conjunto das decisões tomadas.

Embora a Comissão possa, sem no entanto violar o princípio da colegialidade, habilitar um dos seus membros a adoptar determinadas categorias de actos de administração e de gestão, as decisões através das quais a Comissão se pronuncia sobre a existência de um auxílio de Estado, sobre a sua compatibilidade com o mercado comum e sobre a necessidade de ordenar a respectiva recuperação pressupõem um exame de questões factuais e jurídicas complexas e não podem, em princípio, ser qualificadas de actos de administração e de gestão. Assim, como a parte decisória e as razões de decisões deste tipo, que devem ser fundamentadas por força do disposto no artigo 235.° CE, constituem um todo indissociável, compete unicamente ao colégio, por força do princípio da colegialidade, aprovar uma e outra. Incumbe, pois, em princípio, ao colégio dos membros da Comissão adoptar a versão definitiva das decisões que se pronunciam sobre a existência de auxílios de Estado e sobre a sua compatibilidade com o mercado comum. Após esta adopção, só poderão ser introduzidas ao texto destas decisões correcções puramente ortográficas ou gramaticais, cabendo qualquer outra alteração exclusivamente ao colégio.

Todavia, não é possível excluir que o colégio dos membros da Comissão incumba um ou mais dos seus membros de adoptar o texto definitivo de uma decisão, cujo conteúdo essencial tenha por ele sido definido aquando das suas deliberações. Quando o colégio tenha feito uso de tal faculdade, cabe ao juiz comunitário, a quem tenha sido submetida a questão da regularidade do exercício desta habilitação, verificar se é possível considerar que foi o colégio que adoptou a decisão em causa em todos os seus elementos de facto e de direito.

(cf. n.os 116‑119)

2.      Segundo jurisprudência bem assente, o respeito dos direitos de defesa em qualquer processo dirigido contra uma pessoa e susceptível de levar à adopção de um acto que lese os interesses desta constitui um princípio fundamental do direito comunitário e deve ser garantido mesmo na falta de regulamentação específica. Este princípio exige que a pessoa interessada tenha sido colocada em condições, desde a fase do procedimento administrativo, de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre a realidade e a pertinência dos factos e circunstâncias alegadas e sobre os documentos utilizados pela Comissão que servem de apoio à sua alegação da existência de uma violação do direito comunitário.

Em matéria de auxílios de Estado, a Comissão não pode ser obrigada a apresentar uma análise cabal da medida em causa na sua comunicação relativa à abertura do procedimento formal de exame. Em contrapartida, é necessário que a Comissão defina suficientemente o âmbito da sua investigação, para permitir que o Estado‑Membro contra o qual é iniciado o procedimento se pronuncie sobre o conjunto dos elementos de facto e de direito que constituem os fundamentos da decisão final da Comissão a respeito da compatibilidade da medida em causa com o mercado comum.

Assim, a mera circunstância de, na decisão impugnada, a Comissão ter alterado a análise no tocante à natureza da medida estatal em causa só seria de natureza a conduzir à violação dos direitos de defesa do Estado‑Membro em questão se as indicações que constam da decisão de início ou que, seguidamente, foram fornecidas no momento do debate contraditório durante o procedimento administrativo não tivessem permitido às autoridades nacionais discutir utilmente o conjunto dos elementos de facto e de direito considerados na decisão impugnada. Em contrapartida, as divergências entre a decisão impugnada e a decisão de início que resultam da assunção total ou parcial, pela Comissão, dos argumentos avançados pelo referido Estado‑Membro não podem determinar a violação dos direitos de defesa deste último.

(cf. n.os 136‑138)

3.      No quadro do procedimento administrativo em matéria de auxílios de Estado, as empresas que beneficiaram dos auxílios são unicamente consideradas «interessadas» nesse procedimento. Daqui resulta que a empresa que beneficiou de um auxílio, longe de poder invocar os direitos de defesa reconhecidos às pessoas contra quem está aberto um procedimento, goza exclusivamente do direito a ser associada ao procedimento administrativo na medida adequada, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto.

Além disso, não podendo embora a Comissão ser obrigada a apresentar uma análise cabal do auxílio em causa na sua comunicação relativa à abertura do procedimento previsto no artigo 88.°, n.° 2, CE, é necessário, em contrapartida, que defina suficientemente o âmbito da sua investigação, para não esvaziar de sentido o direito dos interessados a apresentarem as suas observações. Contudo, o direito de informação que assiste aos interessados não excede o de ser ouvido pela Comissão. Em especial, não pode ser estendido ao direito geral de se pronunciar sobre todos as questões potencialmente capitais suscitadas no decurso do procedimento formal de exame.

(cf. n.os 146‑149)

4.      A noção de vantagem na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE abrange qualquer medida que isente uma empresa de um encargo que, de outro modo, deveria suportar. Com efeito, o conceito de auxílio é mais lato que o de subvenção, pois abrange não apenas prestações positivas, como as próprias subvenções, mas também as intervenções que, de formas diversas, aliviam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa e que, não sendo subvenções na acepção estrita da palavra, têm a mesma natureza e efeitos idênticos. Assim, uma medida através da qual as autoridades públicas atribuem a certas empresas uma isenção fiscal que, embora não implique transferência de recursos do Estado, coloca os beneficiários numa situação financeira mais favorável que a dos outros contribuintes, constitui um auxílio de Estado na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE.

A Comissão, quando examina uma medida susceptível de constituir um auxílio de Estado, tem o dever de tomar em consideração o conjunto dos seus efeitos para o beneficiário potencial e, nomeadamente, deduzir, eventualmente, os encargos específicos que oneram uma vantagem. Em contrapartida, a mera circunstância de determinada medida de isenção ser compensada, do ponto de vista do beneficiário, pelo agravamento de um encargo específico distinto e sem relação com a primeira não permite que essa primeira escape à qualificação de auxílio de Estado.

Assim, determinar se um excedente de tributação pago por uma empresa num determinado período, devido a uma imposição de montante fixo, compensa uma diferença de tributação favorável da qual pode ter beneficiado durante outro período depende, pois, da análise das características objectivas desta imposição de montante fixo e da questão de saber se pode ser considerada um encargo inerente à vantagem que, eventualmente, a empresa em causa retirou da sua sujeição ao regime especial de tributação.

(cf. n.os 195, 196, 206, 208)

5.      A legalidade de uma decisão em matéria de auxílios de Estado deve ser apreciada em função dos elementos de informação de que a Comissão podia dispor no momento em que a tomou. Consequentemente, a empresa que beneficiou de um auxílio não pode invocar no Tribunal que os dados de que partiu a Comissão na decisão impugnada não tinham qualquer relação com a realidade quando esta última se baseou nos dados numéricos que lhe foram comunicados pelo Estado‑Membro no decurso do procedimento administrativo.

(cf. n.os 219, 224)

6.      Para efeitos de aplicação do artigo 87.°, n.° 1, CE, há que determinar se, no quadro de um dado regime jurídico, uma medida estatal é susceptível de favorecer certas empresas ou certas produções relativamente a outras empresas que se encontrem numa situação factual e jurídica comparável à luz do objectivo prosseguido pela medida em causa. Todavia, é jurisprudência assente que o conceito de auxílio de Estado não abrange as medidas estatais que introduzem uma diferenciação entre empresas, e que, portanto, são a priori selectivas, quando essa diferenciação resulta da natureza ou da economia do sistema de imposições em que se inscrevem.

O ónus da prova da existência de uma justificação que assenta na natureza e na economia do referido sistema incumbe, em princípio, ao Estado‑Membro. Donde resulta que a empresa que beneficiou de uma medida estatal não pode, no quadro de um recurso de anulação, invocar, em apoio da sua argumentação, elementos de facto dos quais a Comissão não tinha conhecimento quando adoptou a decisão impugnada.

(cf. n.os 228, 229, 232)

7.      Decorre do princípio da protecção da confiança legítima, especialmente aplicável em matéria do controlo dos auxílios de Estado por força do artigo 14.° do Regulamento n.° 659/1999, relativo à execução do artigo 88.° CE, que a protecção da confiança legítima do beneficiário de um auxílio de Estado pode ser invocada, na condição de este dispor de garantias suficientemente precisas, resultantes de uma acção positiva da Comissão, que lhe permitam concluir que uma medida não constitui um auxílio na acepção do artigo 87.°, n.° 1, CE. Em contrapartida, na ausência de posição expressa da Comissão sobre uma medida que lhe tenha sido notificada, o silêncio da instituição não pode, com base no princípio da protecção da confiança legítima da empresa que beneficiou de um auxílio, opor‑se à recuperação deste.

Contudo, tendo em conta o carácter imperativo do controlo dos auxílios de Estado efectuado pela Comissão nos termos do artigo 88.° CE, as empresas que beneficiavam de um auxílio só podem, em princípio, ter confiança legítima na regularidade de um auxílio se este tiver sido concedido no respeito do procedimento previsto no referido artigo. Com efeito, um operador económico diligente deve normalmente estar na posição de se assegurar que este procedimento foi respeitado. Consequentemente, de igual modo, um Estado‑Membro cujas autoridades concederam um auxílio em violação das regras de processo previstas no artigo 88.° CE não pode invocar a confiança legítima dos beneficiários para se subtrair à obrigação de tomar as medidas necessárias com vista à execução de uma decisão da Comissão que lhe ordena a recuperação do auxílio.

A possibilidade, para um beneficiário de um auxílio ilegal, de invocar circunstâncias excepcionais que legitimamente tenham podido fundar a sua confiança no carácter regular deste auxílio, e de se opor, por conseguinte, ao seu reembolso, não pode, todavia, ser excluída se este conseguir demonstrar a respectiva existência.

Por outro lado, a notificação de uma medida estatal susceptível de proporcionar uma vantagem a uma empresa é o meio, previsto no Tratado, que permite aos Estados‑Membros assegurarem‑se de que não concedem um auxílio ilegal e às empresas que não beneficiam de tal auxílio. Ora, uma vez que um regime especial de tributação constitui uma modalidade de sujeição ao imposto profissional que derroga o direito comum e é relativa a duas empresas, não se pode excluir a priori que se trate de um auxílio de Estado. A este respeito, na ausência de circunstâncias excepcionais, quando a um auxílio é dada execução sem notificação prévia à Comissão, pelo que é ilegal por força do artigo 88.°, n.° 3, CE, o beneficiário do auxílio não pode ter, nesse momento, uma confiança legítima na regularidade da sua concessão.

(cf. n.os 261‑263, 270, 276)

8.      A Comissão não está obrigada a indicar, na decisão que ordena a recuperação de um auxílio de Estado ilegal, o montante preciso do auxílio a restituir. Com efeito, as exigências do direito comunitário na matéria limitam‑se a que, por um lado, a recuperação dos auxílios ilegalmente concedidos conduza ao restabelecimento da situação anterior e, por outro, que esta restituição seja efectuada segundo as modalidades previstas pelo direito nacional, sem que a aplicação das disposições deste último possa prejudicar o alcance e a eficácia do direito comunitário. Basta, pois, que o cálculo do montante do auxílio a recuperar possa ser efectuado, vistas as indicações que figuram na decisão, sem dificuldade excessiva. A Comissão pode limitar‑se a declarar a obrigação de restituição do auxílio em questão e deixar às autoridades nacionais a tarefa de calcular o montante preciso do auxílio a restituir, especialmente quando este cálculo exija a tomada em consideração de regimes de imposição ou de segurança social cujas modalidades são fixadas pela legislação nacional aplicável.

(cf. n.os 297‑299)

9.      Nos termos do artigo 15.°, n.° 1, do Regulamento n.° 659/1999, os poderes da Comissão em matéria de recuperação de um auxílio ilegal estão sujeitos a um prazo de prescrição de dez anos. Decorre do artigo 15, n.° 2, do referido regulamento que o ponto de partida da contagem do prazo de prescrição é a data em que se considera que o auxílio cuja recuperação foi ordenada pela Comissão foi concedido, ou seja, quando a concessão do auxílio depende da adopção de actos jurídicos vinculativos, a data de adopção destes actos.

Ora, quando um acto jurídico instaura um regime especial de tributação aplicável no futuro, não se pode considerar que o prazo de prescrição comece a correr a contar da data de adopção deste acto, data em que é impossível determinar com certeza se este regime especial confere uma vantagem susceptível de constituir um auxílio de Estado. Em contrapartida, cabe tomar em conta a data da efectiva concessão de uma primeira vantagem. É este o caso de um auxílio que não é constituído por disposições fiscais especiais aplicáveis ao beneficiário, mas por uma diferença de tributação representada pela diferença entre o montante das cobranças de imposto profissional que teria sido devido pela empresa se tivesse estado sujeita ao imposto do regime normal e o que lhe foi efectivamente liquidado por força das disposições fiscais especiais às quais estava sujeita.

(cf. n.os 318, 320, 322, 324)