Language of document : ECLI:EU:C:2023:510

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

TAMARA ĆAPETA

apresentadas em 22 de junho de 2023(1)

Processo C281/22

G. K.,

B. O. D. GmbH,

S. L.

sendo interveniente:

Österreichischer Delegierter Europäischer Staatsanwalt

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria)]

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Procuradoria Europeia — Regulamento (UE) 2017/1939 — Investigações transfronteiriças — Medidas de investigação delegadas num procurador delegado assistente — Autorização judicial prévia — Fiscalização jurisdicional efetiva — Princípio do reconhecimento mútuo — Direitos Fundamentais»






1.        A Procuradoria Europeia, que dispõe de poderes de investigação e ação penal relativamente a infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União Europeia, iniciou o seu funcionamento no dia 1 de junho de 2021. No presente processo, o Tribunal de Justiça é, pela primeira vez, chamado a interpretar o instrumento jurídico que institui essa entidade e que estabelece as regras relativas ao seu funcionamento, a saber, o regulamento que institui a Procuradoria Europeia (2).

2.        As infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União envolvem frequentemente agentes em vários Estados‑Membros. Consequentemente, para cumprir a sua missão, a Procuradoria Europeia tem de poder realizar investigações transfronteiriças. Estas investigações envolvem o Procurador Europeu Delegado competente (a seguir «PED competente») (3), que conduz a investigação num Estado‑Membro, e um Procurador Europeu Delegado assistente (a seguir «PED assistente») (4) a quem é atribuída a execução da medida de investigação noutro Estado‑Membro. O caso em apreço obriga o Tribunal de Justiça a clarificar certos aspetos do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia respeitantes a essas investigações transfronteiriças.

3.        As três questões suscitadas pelo órgão jurisdicional de reenvio podem ser apreciadas conjuntamente. Essencialmente, esse órgão jurisdicional pergunta a que órgão jurisdicional nacional (ou órgãos jurisdicionais nacionais) compete autorizar uma medida de investigação num Estado‑Membro que não aquele em que decorre a investigação principal da Procuradoria Europeia. Se couber ao órgão jurisdicional do Estado do PED assistente conceder a autorização, qual deve ser o alcance dessa fiscalização jurisdicional e desempenhará uma autorização judicial prévia noutro Estado‑Membro alguma função nesse processo?

4.        Esta não é, de todo, uma questão simples. Os participantes no presente processo propõem dois entendimentos mutuamente exclusivos dos artigos 31.o e 32.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Como demonstrarei, estas duas soluções contraditórias assentam nos métodos de interpretação padrão utilizados pelo Tribunal de Justiça: o texto, o contexto, os objetivos e a génese (5) do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Nenhum dos resultados propostos se mostra plenamente justificado por todas estas técnicas interpretativas. Contudo, o Tribunal de Justiça terá de optar por um.

I.      Matéria de facto, direito aplicável e questões prejudiciais

5.        A Procuradoria Europeia, por intermédio do seu Procurador Europeu Delegado na República Federal da Alemanha (Munique), está a realizar investigações preliminares contra G. K., S. L. e B. O. D. GmbH (a seguir «os arguidos»). Estes são suspeitos de terem prestado falsas declarações para contornar disposições aduaneiras aquando da importação de biodiesel (de origem americana) para a União Europeia, levando a uma perda de receitas de cerca de 1 295 000 EUR. Este alegado prejuízo constitui um interesse financeiro da União Europeia e, por conseguinte, é da competência da Procuradoria Europeia (6).

6.        Embora a investigação principal esteja a decorrer na Alemanha, a Procuradoria Europeia considerou necessário recolher elementos de prova noutros Estados‑Membros. Entendeu‑se, assim, ser necessário proceder a uma investigação transfronteiriça noutros Estados‑Membros, incluindo a Áustria. Mais precisamente, o PED competente atribuiu a busca e a apreensão dos bens dos arguidos na Áustria.

7.        Ao abrigo do direito austríaco, tal medida de investigação exige uma autorização judicial prévia. Consequentemente, o PED assistente solicitou e obteve mandados judiciais para realizar uma busca nos domicílios e estabelecimentos comerciais dos arguidos com vista à apreensão de documentos e de equipamento informático potencialmente incriminatórios.

8.        Como explicado na audiência, não fora pedida nem efetuada pelos órgãos jurisdicionais alemães nenhuma fiscalização jurisdicional prévia das medidas de busca e de apreensão solicitadas, embora isso fosse exigido numa situação nacional comparável. Tal foi o resultado da aplicação, pela Alemanha, do artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, em causa no presente processo. Nos termos dessa aplicação, não é necessária a concessão de autorização judicial para investigações transfronteiriças, se a medida de investigação dever ser executada num Estado‑Membro cujo direito também exija autorização judicial prévia (7). Em tal caso, o órgão jurisdicional desse outro Estado‑Membro é competente para autorizar a medida de investigação. Por conseguinte, o PED competente não pediu autorização judicial na Alemanha.

9.        Em 1 de dezembro de 2021, os arguidos recorreram para o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria), o órgão jurisdicional de reenvio, dos mandados de busca aprovados por quatro órgãos jurisdicionais austríacos. Alegaram que as medidas de busca e de apreensão autorizadas não eram necessárias nem proporcionadas.

10.      O órgão jurisdicional de reenvio explica que, na pendência do processo principal, o PED assistente austríaco alegou que o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia criara um novo quadro jurídico para as medidas de investigação transfronteiriças, segundo o qual a sua justificação só deve ser analisada no Estado‑Membro do PED competente. O órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED assistente não pode apreciar a validade material da medida de investigação. Apenas pode controlar a conformidade da medida com os requisitos formais e processuais da sua execução. O PED assistente considerou, assim, que devia ser negado provimento aos recursos.

11.      Deste modo, o órgão jurisdicional de reenvio defronta‑se com a questão de saber se os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro do PED assistente estão autorizados a realizar uma fiscalização completa como o fariam numa situação puramente interna ou se, tratando‑se de investigações transfronteiriças da Procuradoria Europeia, a sua fiscalização se deve cingir às questões processuais relativas ao exercício dessas medidas de investigação. Considera que a resposta a esta questão depende da interpretação do artigo 31.o e do artigo 32.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.

12.      O artigo 31.o, n.os 1 a 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, sob a epígrafe «Investigações transfronteiriças», dispõe:

«1.      Os Procuradores Europeus Delegados atuam em estreita cooperação e assistem‑se e consultam‑se mutuamente no âmbito dos processos transfronteiriços. Caso uma medida tenha de ser tomada num Estado‑Membro que não o Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado competente, este último decide adotar a medida necessária e atribui a sua execução a um Procurador Europeu Delegado localizado no Estado‑Membro onde a medida deve ser executada.

2.      O Procurador Europeu Delegado competente pode atribuir a execução de quaisquer medidas ao seu dispor nos termos do artigo 30.o. A justificação e a adoção dessas medidas regem‑se pelo direito do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado competente. Caso o Procurador Europeu Delegado competente atribua uma medida de investigação a um ou vários Procuradores Europeus Delegados de outro Estado‑Membro, informa ao mesmo tempo o seu Procurador Europeu supervisor.

3.      Se o direito do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado assistente exigir uma autorização judicial da medida, este último deve obter essa autorização em conformidade com o direito desse Estado‑Membro.

Em caso de recusa de autorização judicial da medida atribuída, o Procurador Europeu Delegado competente retira a atribuição.

Contudo, se o direito do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado assistente não exigir essa autorização judicial ao passo que a mesma é exigida pelo direito do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado competente, a autorização deve ser obtida por este último e apresentada juntamente com a atribuição.»

13.      O artigo 32.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, sob a epígrafe «Execução das medidas atribuídas», dispõe:

«As medidas atribuídas são executadas nos termos do presente regulamento e do direito do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado assistente. As formalidades e os procedimentos expressamente indicados pelo Procurador Europeu Delegado competente devem ser seguidos, a não ser que tais formalidades e procedimentos sejam contrários aos princípios fundamentais do direito do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado assistente.»

14.      Nestas circunstâncias, o órgão jurisdicional de reenvio, o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena), decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o direito da União, em especial o artigo 31.°, n.° 3, primeiro parágrafo, e o artigo 32.° do [regulamento que institui a Procuradoria Europeia], ser interpretado no sentido de que, no âmbito das investigações transfronteiriças, caso seja necessária uma autorização judicial de uma medida a executar no Estado-Membro do Procurador Europeu Delegado assistente, devem ser examinados todos os elementos materiais, como o caráter penalmente condenável, a suspeita, a necessidade e a proporcionalidade?

2)      No âmbito da análise, deve ser tido em conta se a admissibilidade da medida já foi examinada no Estado-Membro do Procurador Europeu Delegado competente por um órgão jurisdicional, à luz do direito desse Estado-Membro?

3)      Em caso de resposta negativa à primeira questão ou de resposta afirmativa à segunda questão, qual o alcance do exame jurisdicional a efetuar no Estado-Membro do Procurador Europeu Delegado?»

15.      Foram apresentadas observações escritas pelas partes no processo principal, pelos Governos austríaco, alemão, francês, neerlandês e romeno, pela Procuradoria Europeia e pela Comissão Europeia. Realizou‑se uma audiência em 27 de fevereiro de 2023, na qual todos estes participantes, com exceção da França, apresentaram alegações orais.

II.    Análise

16.      Para aconselhar o Tribunal de Justiça quanto à resposta a dar às questões do órgão jurisdicional de reenvio, procederei do seguinte modo. Em primeiro lugar, farei uma breve descrição da Procuradoria Europeia e do processo subjacente à sua criação, que (possivelmente) influenciou as escolhas plasmadas no texto final do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia (A). Em seguida, apresentarei as duas vias interpretativas propostas ao Tribunal de Justiça pelas partes no processo principal, bem como os seus argumentos (B). Na secção final, proporei ao Tribunal de Justiça a opção interpretativa a escolher, tendo em conta as vantagens e os inconvenientes das duas opções. Aí incluirei também uma reflexão sobre a proteção dos direitos fundamentais no âmbito da atividade da Procuradoria Europeia (C).

A.      Breve introdução à Procuradoria Europeia e à génese das normas relativas às investigações transfronteiriças

17.      A criação da Procuradoria Europeia é uma verdadeira novidade e uma realização importante no processo de integração europeia. Trata‑se de um órgão único e, pese embora a sua organização descentralizada (8), indivisível da União Europeia (9), investido de poderes de investigação e ação penal contra infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União Europeia (10).

18.      A Procuradoria Europeia é instituída ao abrigo do artigo 86.o TFUE, introduzido pelo Tratado de Lisboa. Na Diretiva PIF preveem‑se ações que podem ser consideradas lesivas dos interesses financeiros da União Europeia e para as quais a Procuradoria Europeia é competente. Todavia, continua a ser da competência dos Estados‑Membros classificar essas ações como infrações penais e tipificar os elementos dessas infrações no seu direito nacional.

19.      Além disso, o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia só em parte regula os processos da Procuradoria Europeia. Em todas as situações para as quais não existem normas da União, este regulamento determina somente o Estado‑Membro cujas normas são aplicáveis (11).

20.      Assim, a Procuradoria Europeia é, de facto, um órgão único e indivisível, mas opera sem um direito penal substantivo ou processual comum. Essas questões dependem em grande medida dos direitos dos Estados‑Membros, que podem divergir quanto às soluções que adotam. Tanto a natureza única da Procuradoria Europeia, por um lado, como a sua dependência em relação aos direitos nacionais, por outro, constituem elementos importantes para interpretar o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.

21.      O caminho para a instituição da Procuradoria Europeia não foi fácil nem rápido. Após anos de preparação (12), e datando de 2013 a proposta inicial (13), que não obteve um acordo unânime, a Procuradoria Europeia veio a ser instituída como mecanismo de cooperação reforçada ao abrigo do artigo 20.o, n.o 2, TUE e do artigo 329.o, n.o 1, TFUE. Essencialmente, o novo projeto não era aceitável para todos os Estados‑Membros e, por conseguinte, nem todos participam nele (14).

22.      As negociações que conduziram à adoção do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia foram particularmente difíceis no que respeita às medidas de investigação transfronteiriças (15).

23.      Na Proposta de 2013, o artigo 26.o enumerava 21 medidas de investigação diferentes. Para dez delas, entre as quais a busca em instalações em causa no presente processo, teria sido necessária uma autorização da autoridade judiciária competente do Estado‑Membro onde essas medidas de investigação devessem ser executadas (16).

24.      Em resposta a esta proposta, 14 parlamentos nacionais enviaram pareceres fundamentados à Comissão, desencadeando assim o mecanismo de controlo da subsidiariedade previsto no artigo 7.o, n.o 2, do Protocolo n.o 2 (17). Nos seus pareceres fundamentados, alguns parlamentos nacionais manifestaram o receio de que o facto de elencar medidas de investigação enfraquecesse as normas processuais e de que, por algumas medidas de investigação inexistirem na legislação nacional de alguns Estados‑Membros, o nível necessário de proteção dos direitos fundamentais não fosse assegurado (18).

25.      Esta proposta acabou por ser rejeitada (19), tendo sido apresentadas várias contrapropostas. A proposta conjuntamente apresentada pelas delegações austríaca e alemã reveste‑se de especial interesse para o presente processo (20).

26.      A delegação alemã apresentou as seguintes observações escritas: (21) «O atual conceito do artigo 26.o‑A não é convincente e carece de revisão adicional para ser aceitável. Necessitamos de um sistema exequível e eficiente que funcione pelo menos tão bem quanto a cooperação transfronteiriça com base no AJM [auxílio judiciário mútuo] e nos processos de reconhecimento mútuo. Como já antes explicámos: pensamos que devemos estabelecer um sistema que utilize o conceito de reconhecimento mútuo (a DEI) como ponto de partida e proceder a ajustamentos sempre que isso seja adequado para dar resposta à ideia de ”entidade única”».

27.      A proposta conjunta austríaca e alemã reproduzia deste modo as soluções de reconhecimento mútuo da diretiva relativa à decisão europeia de investigação (22): «Quando uma medida deva ser tomada num Estado‑Membro que não o Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado competente, este último ordena a medida em conformidade com o direito do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado competente e, se necessário, requer autorização judicial da mesma ou pede que seja proferida decisão judicial relativa a essa medida» (23).

28.      Esta proposta conjunta também não veio a constar do texto final do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.

29.      O resultado legislativo escolhido, refletido no atual artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, criou precisamente os problemas para os quais a delegação alemã alertara a propósito de propostas anteriores (24). Não especifica claramente qual é o Estado‑Membro cujo direito determina se é necessária uma autorização judicial prévia para a execução de uma medida, nem qual o órgão jurisdicional responsável pela concessão dessa autorização. O presente processo é, por isso, uma ilustração perfeita desses problemas

30.      Contudo, uma questão mereceu a concordância de todas as delegações durante o processo legislativo: o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia deveria ser mais simples do que o que resulta da Diretiva DEI, que, aquando da sua introdução, constituía também um novo instrumento de cooperação em matéria penal, tendo em conta a natureza unitária da Procuradoria Europeia enquanto órgão (25).

B.      Vias interpretativas possíveis

31.      O Regulamento que institui a Procuradoria Europeia é omisso quanto à necessidade de autorização judicial prévia para as medidas de investigação transfronteiriças, deixando a matéria às leis penais dos Estados‑Membros. Particularmente problemática é a situação em que as leis dos Estados‑Membros do PED competente e do PED assistente exigem ambas autorização judicial prévia. O considerando 72 do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia explica que esse instrumento deverá especificar claramente em que Estado‑Membro a autorização deve ser obtida, mas que, em qualquer caso, só deverá haver uma única autorização. Terá este compromisso ficado expresso no artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia e, em caso afirmativo, de que forma?

32.      As partes no presente processo propuseram duas opções interpretativas opostas para esta disposição.

33.      Antes de apresentar e apreciar as suas posições, parece‑me necessário reiterar um ponto de vista que já exprimi noutra sede (26). Em meu entender, a interpretação literal, enquanto tal, não existe, na medida em que as palavras estão sempre integradas num contexto. As palavras contidas em normas jurídicas são, evidentemente, relevantes para os juízes, uma vez que a lei é principalmente expressa por palavras. Elas orientam e limitam os juízes (27). No entanto, o seu significado, incluindo nos atos jurídicos, depende do contexto em que são utilizadas. Por conseguinte, é difícil, ou mesmo impossível, separar interpretação literal e contextual.

34.      No que respeita à interpretação contextual, o Tribunal de Justiça entende‑a de diferentes formas. Mais comummente, o Tribunal de Justiça refere‑se às disposições que rodeiam aquela cuja interpretação é pedida ou ao documento no seu conjunto (28). Contudo, o Tribunal de Justiça também considerou a génese como sendo relevante para a interpretação das disposições do direito primário(29) e derivado da União (30). Por último, a realidade social é, por vezes, igualmente tida em consideração como pertinente para a compreensão das normas jurídicas (31). A escolha do contexto relevante, e a forma como este contexto é interpretado, influenciam o modo como a redação de uma disposição específica é compreendida. Isto resulta claramente da argumentação dos participantes no processo principal.

1.      Opção 1: Fiscalização completa no EstadoMembro do PED assistente

35.      Os Governos austríaco e alemão argumentam que, se o direito nacional do PED assistente exigir uma autorização judicial prévia para efeitos da execução de uma medida de investigação, tal autorização deve implicar uma fiscalização completa. Isto inclui não só os aspetos processuais (a execução da medida), mas também os aspetos substantivos que, desde logo, justificam a medida. Compete, portanto, ao juiz do Estado‑Membro do PED assistente apreciar se há indícios suficientes da prática de um crime; se a medida de investigação solicitada produziria as provas necessárias para agir penalmente; e se os mesmos elementos de prova não poderiam ser obtidos com uma medida menos intrusiva.

36.      Os Governos austríaco e alemão basearam‑se em grande medida no texto do artigo 31.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, o qual, na sua opinião, é claro. Ambos os governos insistiram no facto de a redação de uma disposição jurídica ser o instrumento de interpretação mais importante. Se a redação for clara, os órgãos jurisdicionais não podem afastar‑se dela.

37.      Em seu entender, há limites à interpretação criativa por parte do Tribunal de Justiça. Uma interpretação diferente da que decorre claramente da letra do atual texto do artigo 31.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia extravasaria os limites da interpretação jurisprudencial aceitável. Seria também contrária à exigência de segurança jurídica. Nas palavras do representante do Governo alemão, o Tribunal de Justiça não é uma oficina de reparação de produtos defeituosos. Em vez disso, o produto defeituoso deve ser restituído ao fabricante para melhoria, neste caso, ao legislador.

2.      Opção 2: uma repartição de tarefas clara no âmbito da autorização judicial

38.      A Procuradoria Europeia, a Comissão e os Governos francês, romeno e neerlandês argumentam, contrariamente à «opção 1», se o direito nacional do PED assistente exigir uma autorização judicial de uma medida de investigação, essa autorização só pode implicar uma fiscalização dos aspetos formais e processuais relativos à execução da medida. Assim, o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia contém uma repartição de tarefas clara entre os órgãos jurisdicionais do PED competente e os do respetivo Estado‑Membro do PED assistente. Isto resulta evidente se se ler o artigo 31.o, n.o 3, à luz do artigo 31.o considerado no seu conjunto.

39.      Se os direitos dos Estados‑Membros tanto do PED competente como do PED assistente exigirem uma autorização judicial, devem ser emitidas duas autorizações. O órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED competente autorizaria a medida se a considerasse justificada, enquanto o órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED assistente autorizaria as modalidades processuais da sua execução.

40.      Os poderes de fiscalização do órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED assistente cingem‑se aos aspetos processuais da execução da medida, mesmo numa hipótese em que o direito do PED competente não exija autorização judicial prévia numa situação interna comparável. Deste modo, o direito do Estado‑Membro do PED competente, que regula a justificação da medida em conformidade com o artigo 31.o, n.o 2, seria respeitado na sua opção de não exigir uma autorização judicial prévia da justificação da medida.

C.      Resposta às questões do órgão jurisdicional de reenvio

1.      Comparação das duas opções interpretativas

41.      As duas opções oferecem resultados interpretativos diferentes e mutuamente exclusivos. Considero que as linhas de argumentação avançadas em apoio de cada uma das opções, quando analisadas à luz do respetivo enquadramento interpretativo, oferecem ambas interpretações admissíveis do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Ao mesmo tempo, implicam certos inconvenientes e inconsistências. Em seguida, irei analisá‑los no contexto de cada um dos métodos de interpretação em que assentam.

a)      Texto

42.      Segundo o Governo austríaco, cujos argumentos são subscritos pelo Governo alemão, o artigo 31.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia é claro. O seu n.o 2 estabelece que a justificação e a adoção de uma medida de investigação se regem pelo direito nacional do Estado‑Membro do PED competente. Todavia, depois o n.o 3 altera a lei aplicável, se o direito do Estado‑Membro do PED assistente exigir uma autorização judicial. Em tal hipótese, o artigo 31.o, n.o 3, primeiro período, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia indica claramente que o direito do Estado‑Membro do PED assistente regula os poderes e as obrigações do juiz que emite a autorização.

43.      A única exceção está prevista no artigo 31.o, n.o 3, terceiro período, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia que se aplica quando o direito do Estado‑Membro do PED assistente não exige uma autorização, mas o direito da Estado‑Membro do PED competente a exige. Só nessa hipótese é que a autorização judicial se baseia no direito do Estado‑Membro do PED competente. Também decorre da utilização do termo «contudo» no início dessa frase que tal situação constitui uma exceção à regra clara de que é aplicável o direito do Estado‑Membro do PED assistente (32)..

44.      Diversamente, para os defensores da segunda opção, o artigo 31.o, n.o 3, primeiro período, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia determina claramente que órgãos jurisdicionais devem conceder uma autorização judicial e em relação a quê, em duas hipóteses possíveis: o caso em que o direito do Estado‑Membro do PED competente e o do Estado‑Membro do PED assistente exigem ambos essa autorização e a situação em que o direito do Estado‑Membro do PED competente não exige uma autorização judicial prévia, mas o direito do Estado‑Membro do PED assistente a exige. Em ambas as situações, o órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED assistente só pode fiscalizar as questões relativas à execução da medida.

45.      O artigo 31.o, n.o 3, terceiro período, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia regula a outra hipótese possível, a saber, aquela em que o direito do Estado‑Membro do PED assistente não exige a autorização judicial da medida, mas o direito do Estado‑Membro do PED competente a exige. Em tal hipótese, o órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED competente terá de emitir uma autorização, que abrangerá tanto a justificação quanto a execução da medida.

46.      A Comissão salientou igualmente que a redação do artigo 32.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia especifica que a execução e os aspetos processuais relacionados com a medida solicitada são abrangidos pelo direito do Estado‑Membro do PED assistente.

b)      Contexto

47.      Para fundamentar a sua afirmação de que a redação do artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia é clara, o Governo alemão centrou‑se no seu contexto imediato. Argumentou que o artigo 31.o, n.o 3, terceiro período, seria redundante se, em conformidade com a leitura da Comissão, a norma principal para regular a repartição de tarefas em matéria de autorizações judiciais fosse o artigo 31.o, n.o 2. Se assim fosse, seria sempre claro que é o direito do Estado‑Membro do PED competente que regula a necessidade de autorização judicial de uma medida de investigação específica. Repeti‑lo no artigo 31.o, n.o 3, terceiro período, não teria, portanto, qualquer sentido. Esta disposição só tem sentido caso altere a regra expressa no artigo 31.o, n.o 2, numa situação em que o direito do Estado‑Membro do PED assistente exija igualmente uma autorização judicial.

48.      Os Governo austríaco e alemão basearam‑se igualmente no considerando 72 do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia como contexto interpretativo relevante. Em seu entender, a insistência numa autorização judicial única expressa no considerando 72, lido em conjugação com o artigo 31.o, n.o 3, só pode significar que é o direito do Estado‑Membro do PED assistente que determina a necessidade e o contexto de uma autorização judicial. A divisão de uma autorização judicial em diferentes tarefas entre os órgãos jurisdicionais do PED competente e do PED assistente não seriam conformes com a decisão de ter uma única autorização judicial.

49.      Segundo a Comissão, cuja posição é apoiada, em substância, por todos os defensores da segunda opção, o artigo 31.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia no seu conjunto segue a cronologia de uma investigação. Define as diferentes tarefas do PED competente e do PED assistente e dos órgãos jurisdicionais nacionais dos seus Estados‑Membros. O n.o 1 estabelece, de forma geral, a repartição das tarefas entre os dois PED.

50.      O artigo 31.o, n.o 2, é, no entender da Comissão, central: indica claramente que o direito do Estado‑Membro do PED competente regula a justificação e a adoção de uma medida de investigação. Isto significa igualmente que, se o direito do Estado‑Membro do PED competente exigir uma autorização judicial prévia, compete ao órgão jurisdicional desse Estado apreciar se a medida é justificada e necessária no âmbito da investigação específica.

51.      A Comissão salientou também que o artigo 31.o, n.o 2, nada diz sobre a execução da medida. Trata‑se de uma questão abrangida pelo artigo 32.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, que prevê que a execução se deve reger pelo direito do Estado‑Membro do PED assistente.

52.      O artigo 31.o, n.o 3, única disposição que trata expressamente da autorização judicial, não altera, segundo a Comissão, o direito aplicável no que respeita a esta autorização, o que é contrário à tese defendida pelos Governos da Áustria e da Alemanha. Em vez disso, deve considerar‑se subordinado ao n.o 2 do artigo 31.o. O n.o 3 desta mesma disposição não regula, portanto, a fiscalização do mérito da medida de investigação, uma vez que estas questões são abrangidas pelo n.o 2.

53.      O n.o 3, primeiro período, diz respeito, segundo a Comissão, a uma situação em que o direito do Estado‑Membro do PED assistente exige uma autorização judicial. Se for esse o caso, o órgão jurisdicional desse Estado‑Membro terá de conceder a autorização antes da execução da medida. Contudo, ao adotar essa decisão, esse órgão jurisdicional só deve atentar no modo de execução da medida de investigação solicitada e não na sua justificação.

54.      No que tange ao papel do considerando 72 do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, a Comissão reconheceu que o desejo de ter uma autorização judicial única não foi expresso de forma ideal no artigo 31.o do mesmo. Contudo, ainda que algumas hipóteses exijam duas autorizações judiciais, dada a clara repartição de tarefas, cada questão terá sempre uma única autorização. Com este entendimento, os defensores da segunda opção evitaram a contradição entre o artigo 31.o, n.o 3, como o interpretam, e o considerando 72 do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia (33).

c)      Objetivos

55.      Atentando nos objetivos da Procuradoria Europeia, a Áustria e a Alemanha reconheceram ambas que uma análise exaustiva no Estado‑Membro do PED assistente poderia causar dificuldades. Para poder decidir se a medida solicitada é justificada, o órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED assistente teria de ter acesso à totalidade do processo. Uma vez que a investigação principal é realizada noutro Estado‑Membro e para instaurar um processo junto do órgão jurisdicional desse Estado caso se obtenham elementos de prova suficientes, os autos podem estar noutra língua. A sua tradução, que pode ser necessária para permitir ao órgão jurisdicional do PED assistente resolver as questões de fundo relativas à legalidade da medida de investigação, exigirá, pelo menos, tempo (34). Isso tornaria as investigações transfronteiriças da Procuradoria Europeia mais complexas do que as realizadas no âmbito da Diretiva DEI.

56.      Um tal resultado, admitiram os dois governos, não é conforme com o objetivo da Procuradoria Europeia de criar um quadro ainda mais facilitado do que o anteriormente existente em matéria de luta contra as infrações penais lesivas dos interesses financeiros da União. Salientaram que, infelizmente, a sua proposta não foi adotada no âmbito do processo legislativo.

57.      Os defensores da segunda opção interpretativa salientaram que a criação da Procuradoria Europeia era necessária para tornar a investigação e a ação penal relativa a infrações penais lesivas dos interesses financeiros da UE mais eficientes do que se estas fossem objeto de ação penal num único Estado‑Membro. A Procuradoria Europeia, enquanto órgão único, deve, assim, ter ao seu dispor os instrumentos necessários para atingir o objetivo de combater eficientemente as infrações penais que afetam o orçamento da União. A eficiência deve, por conseguinte, orientar a interpretação do artigo 31.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Em todo o caso, as investigações transfronteiriças realizadas pela Procuradoria Europeia não podem ser interpretadas no sentido de estarem sujeitas a condições mais complexas do que as exigidas pela Diretiva DEI.

58.      A Procuradoria Europeia e a Comissão aprofundaram mais o aspeto da eficiência, salientando as dificuldades logísticas relacionadas com a transferência e a tradução de grandes quantidades de documentos do processo (35). Tal sustenta a interpretação segundo a qual a justificação da medida só deve ser apreciada no Estado‑Membro do PED competente. Além disso, atribuir a justificação da medida de investigação ao direito do Estado do PED competente e aos seus órgãos jurisdicionais é coerente com o facto de que estes disporiam de todos os elementos necessários para uma fiscalização completa. Afinal, toda a investigação é conduzida a partir desse Estado e o julgamento muito provavelmente decorreria perante os seus órgãos jurisdicionais (36).

59.      Por último, a Procuradoria Europeia fez também notar as dificuldades que se suscitariam caso os órgãos jurisdicionais dos diferentes Estados‑Membros em que são realizadas investigações transfronteiriças chegassem a decisões contraditórias quanto à justificação da medida. A interpretação proposta, de acordo com a qual a justificação da medida é sempre abrangida pelo direito do Estado‑Membro do PED competente, impede decisões contraditórias, mesmo quando um número elevado de Estados‑Membros participa na obtenção de provas num caso específico.

d)      Génese

60.      Tanto o Governo austríaco como o alemão salientaram a necessidade de ter em conta a génese do artigo 31.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Segundo a Áustria, dessa génese resulta claro que a maioria dos Estados‑Membros estava ciente dos problemas que se suscitariam devido à relação contraditória entre os n.os 2 e 3 do artigo 31.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Contudo, a proposta conjunta dos Governos austríaco e alemão de resolver este problema com base no reconhecimento mútuo não foi acolhida no texto final do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. É evidente, portanto, que o artigo 31.o, n.o 3, não exige, como sugerem os defensores da segunda opção, ao órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED assistente que reconheça a decisão do PED competente de que é necessária uma medida de investigação no Estado‑Membro do PED assistente. O que esta disposição exige ao órgão jurisdicional do Estado em que a medida deve ser executada é que fiscalize a legalidade da medida, incluindo a sua justificação.

61.      Na audiência, a Comissão abordou algumas das perplexidades relacionadas com a génese do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia e clarificou a posição atual da Comissão. Recorde‑se que a sua Proposta de 2013 estipulava que o tribunal do Estado‑Membro do PED assistente devia exercer uma fiscalização jurisdicional completa relativamente a medidas como a busca e a apreensão. No presente processo, a Comissão assume agora uma posição diferente.

62.      Para justificar a sua posição atual, a Comissão explicou que a Proposta de 2013 foi redigida antes de a Diretiva DEI ter entrado em vigor. Esta diretiva determina que a justificação de uma medida de investigação transfronteiriça incumbe ao Estado‑Membro de emissão e só pode ser impugnada junto dos órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro (37). Esta solução demonstrou funcionar bem neste instrumento de reconhecimento mútuo. Por conseguinte, a Comissão considerou feliz a circunstância de as instituições legislativas não terem aceitado a sua proposta inicial de que a autorização judicial dependesse apenas do direito do Estado‑Membro do PED assistente, mas que tenham alterado esta proposta no atual artigo 31.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Deste modo, o processo legislativo tornou a sua proposta inicial bem melhor e mais adequada ao necessário para a cooperação no âmbito das investigações transfronteiriças realizadas pela Procuradoria Europeia.

2.      A interpretação que proponho

63.      Em suma, as duas opções oferecem resultados diferentes. Ambas partilham, porém, um entendimento comum: o sistema da Procuradoria Europeia foi concebido como um mecanismo eficiente de luta contra as infrações penais lesivas dos interesses financeiros da UE. Isto abrange o mecanismo das investigações transfronteiriças. O Regulamento que institui a Procuradoria Europeia concretiza este objetivo legislativo (38).

64.      Uma regra interpretativa utilizada pelo Tribunal de Justiça exige que «quando uma disposição de direito comunitário é suscetível de várias interpretações, deve dar‑se a prioridade à que é adequada para salvaguardar o seu efeito útil» (39). Esta regra interpretativa favorece a segunda opção.

65.      Contudo, segundo os Governos austríaco e alemão, embora desejável do ponto de vista normativo, a segunda opção não é uma opção interpretativa possível, uma vez que a redação do artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia é clara.

66.      De facto, se a redação for clara, a atribuição de um significado diferente poderia ser considerada uma intervenção ilegítima do Tribunal de Justiça, por outras palavras, uma interpretação contra legem. No entanto, será a redação do artigo 31.o, n.o 3, realmente assim tão clara?

67.      É incontestável que os Governos austríaco e alemão consideram que o sentido correto do artigo 31.o, n.o 3, é o de que o órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED assistente é aquele que deve conceder uma autorização prévia para uma busca e uma apreensão a executar nesse Estado, procedendo a uma fiscalização completa. Não surpreende que os Governos austríaco e alemão tenham defendido tal interpretação perante o Tribunal de Justiça, dado que ambos os Estados alteraram a sua legislação para a adaptar a esta interpretação do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia (40). Todavia, perante a interpretação concorrente, e igualmente plausível, oferecida pelos defensores da segunda opção, torna‑se claro que a primeira opção é apenas uma das escolhas interpretativas possíveis. Ao abrigo dos Tratados, cabe ao Tribunal de Justiça escolher. Se o Tribunal de Justiça adotar a segunda opção em vez da primeira opção, tal não pode ser tratado como uma interpretação contra legem.

68.      O argumento mais convincente apresentado pelos Governos austríaco e alemão é, a meu ver, o de que o artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia se torna redundante com a segunda opção. Com efeito, se o artigo 31.o, n.o 2, indica que a justificação da medida de investigação é regida pelo direito do Estado do PED competente e o artigo 32.o indica que a execução da medida é regida pelo direito do Estado do PED assistente, qual é o objeto do artigo 31.o, n.o 3? Mais não faz do que repetir a mesma delimitação entre os direitos aplicáveis relativamente à questão da autorização judicial prévia. Por outras palavras, se o artigo 31.o, n.o 3, fosse eliminado, o resto do artigo 31.o, conjugado com o artigo 32.o, levar‑nos‑ia à mesma conclusão que a segunda opção apresenta como sendo o entendimento correto do artigo 31.o, n.o 3. A primeira opção confere, assim, algum sentido ao artigo 31.o, n.o 3, diferente do de outras disposições desse mesmo artigo e dos que o rodeiam.

69.      Uma outra regra interpretativa utilizada pelo Tribunal de Justiça exige que os termos das normas jurídicas não possam ser simplesmente ignorados, mas que tenha de lhes ser dado algum sentido (41). Esta regra interpretativa parece favorecer a primeira opção.

70.      Contudo, em meu entender, pode ser dado ao artigo 31.o, n.o 3, um sentido para além do do artigo 31.o, n.o 2, e do artigo 32.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. É uma disposição que exprime a escolha da ordem jurídica aplicável especificamente para as autorizações judiciais de uma medida atribuída, ainda que a aplicação destas duas outras disposições conduza ao mesmo resultado. Pode ter‑se considerado necessário exprimir de forma autonomizada a regra relativa ao direito aplicável às autorizações judiciais por causa das dificuldades suscitadas precisamente por esta questão aquando das negociações legislativas. A redundância do artigo 31.o, n.o 3, não pode, assim, servir de argumento contra a adoção da segunda opção.

71.      Se atentarmos nas consequências da escolha, pelo Tribunal de Justiça, de uma ou de outra opção interpretativa, é evidente que a escolha da primeira opção transformaria as investigações transfronteiriças da Procuradoria Europeia num sistema menos eficiente do que o estabelecido pela Diretiva DEI. Assim, se a vontade do legislador foi efetivamente criar um sistema mais eficiente, a adoção da primeira opção exigiria uma alteração ao Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, com vista a tornar possíveis investigações transfronteiriças eficientes. A escolha, pelo Tribunal de Justiça, da primeira opção poderia, portanto, ser entendida como um convite ao legislador da União para que este reagisse. Segundo o Governo alemão, só essa solução seria conforme com as exigências de segurança jurídica.

72.      Contudo, a insegurança jurídica existe porque existem várias opções interpretativas. Assim que o Tribunal clarificar o sentido do artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, escolhendo uma ou outra das duas opções, a confusão jurídica dissipar‑se‑á. A intervenção do legislador não me parece, portanto, necessária para restabelecer a segurança jurídica (42).

73.      O exposto leva‑me a concluir que o Tribunal de Justiça deve escolher a segunda opção. O artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia deve, portanto, ser interpretado como permitindo ao órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED assistente fiscalizar apenas os aspetos relacionados com a execução de uma medida de investigação, aceitando a apreciação do Estado‑Membro do PED competente de que a medida é justificada, independentemente de esta ser sustentada ou não por uma autorização judicial prévia do órgão jurisdicional do Estado‑Membro do PED competente. Esta interpretação não é contrária à redação do artigo 31.o, n.o 3, e responde melhor ao objetivo do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia de criar um sistema eficiente de luta contra as infrações lesivas dos interesses financeiros da União.

3.      Proteção dos Direitos Fundamentais — «mais do que» reconhecimento mútuo?

74.      As investigações transfronteiriças eficientes são, indubitavelmente, um objetivo importante do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Contudo, a eficiência não pode ser alcançada em detrimento da proteção dos direitos fundamentais. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça só pode escolher a segunda opção como a interpretação adequada do artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia se esta garantir a proteção dos direitos fundamentais, como exige a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

75.      A insistência dos Governos austríaco e alemão em que os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro do PED assistente devem estar habilitados a exercer uma fiscalização jurisdicional completa pode ser entendida como uma preocupação com a proteção dos direitos fundamentais. Os Estados‑Membros da UE dispõem de sistemas coerentes de direito penal. A proteção dos direitos fundamentais foi cuidadosamente integrada na sua legislação no domínio da ação penal e da aplicação de sanções por infrações penais, domínio esse no qual os Estados exercem os seus poderes coercivos, afetando a vida privada e as liberdades das pessoas.

76.      Os sistemas nacionais de direito penal contêm, assim, garantias inerentes em matéria de direitos fundamentais nas suas normas substantivas e processuais de direito penal. Estas normas são interdependentes e protegem os direitos fundamentais quando consideradas no seu conjunto (43). Contudo, quando uma única norma é retirada de um sistema e colocada num sistema diferente, a proteção dos direitos fundamentais pode diminuir: embora a norma tenha funcionado bem no seu quadro jurídico inicial, não o fará necessariamente noutro (44).

77.      Por esta razão, o recurso ao reconhecimento mútuo, ao implicar a transferência somente de certas normas de um sistema jurídico para outro, suscita preocupações quanto a um potencial enfraquecimento da proteção dos direitos fundamentais (45). Todavia, uma vez que o direito da União, no seu estado atual, não dispõe de um conjunto coerente de normas que regulem todos os aspetos das infrações penais em relação às quais a Procuradoria Europeia tem competência para agir penalmente ou as regras processuais que regem as ações penais da Procuradoria Europeia (46), o princípio do reconhecimento mútuo é a melhor alternativa disponível para eliminar obstáculos às investigações transfronteiriças.

78.      Terei, portanto, de abordar os argumentos dos defensores da segunda opção de acordo com os quais a Procuradoria Europeia não é um sistema de reconhecimento mútuo, mas «algo mais». Eu defendo o contrário: na medida em que não há normas de direito penal da União, a Procuradoria Europeia só pode operar com base no reconhecimento mútuo, enquanto não existirem normas comuns da União em matéria penal. Contudo, os níveis de reconhecimento mútuo diferem e a Procuradoria Europeia pode ser considerada o instrumento de reconhecimento mútuo mais desenvolvido no domínio da cooperação em matéria penal (subsecção a).

79.      A questão que daí decorre é a de saber se a interpretação do artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia proposta no ponto 73 destas Conclusões, que é parcialmente baseada no reconhecimento mútuo, garante os direitos fundamentais dos suspeitos e arguidos em investigações transfronteiriças. Defenderei que, com efeito, é esse o caso, no essencial, quando considerado o contexto mais vasto do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia (subsecção b).

a)      Natureza do reconhecimento mútuo em matéria penal

80.      Nas observações escritas e na audiência, as partes exprimiram o seu ponto de vista quanto ao reconhecimento mútuo. Evocaram a Diretiva DEI como exemplo de um mecanismo de reconhecimento mútuo, defendendo que o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia é «algo mais». Questionadas na audiência sobre o que significa exatamente esse «algo mais», as partes centraram‑se principalmente na natureza da Procuradoria Europeia: trata‑se de um órgão único e indivisível e as suas decisões não devem estar sujeitas à possibilidade de não reconhecimento (como a que existe ao abrigo da Diretiva DEI) (47).

81.      O termo reconhecimento mútuo foi utilizado para descrever uma situação em que uma decisão individual (por exemplo, sentença, mandado de detenção, decisão de investigação) emitida num Estado‑Membro é reconhecida noutro Estado‑Membro. Uma vez que o sistema da Procuradoria Europeia não exige que o pedido de medida de investigação seja «reconhecido» pelo Estado‑Membro do PED assistente para ser executado, o que constitui o passo habitual a dar relativamente aos instrumentos que regem os processos penais transfronteiriços. Assim, defende‑se que o mecanismo da Procuradoria Europeia não é um sistema de reconhecimento mútuo, mas algo mais.

82.      Com efeito, uma vez que a Procuradoria Europeia é um órgão único (48), os seus procuradores descentralizados fazem parte desse órgão. Seria estranho que um órgão único fosse chamado a reconhecer as suas próprias decisões. Ao PED assistente é, por conseguinte, atribuída uma medida, em vez de lhe ser exigido que reconheça uma decisão de investigação.

83.      Contudo, o ato de reconhecer um documento (e os seus efeitos jurídicos) emanado de outro Estado‑Membro não constitui a essência, mas meramente a manifestação do princípio do reconhecimento mútuo. A ideia fundamental do princípio do reconhecimento mútuo é a de que as normas jurídicas de um Estado‑Membro são reconhecidas e aplicadas noutro Estado‑Membro, ainda que sejam diferentes das soluções adotadas nesse segundo Estado. Esta aceitação do «outro» sistema exige um elevado grau de confiança nesse outro sistema.

84.      Uma vez que não existe atualmente uma solução legislativa da União para a questão suscitada no presente processo, a Procuradoria Europeia deve, em vez disso, basear‑se, em cada situação transfronteiriça, no direito de um dos Estados‑Membros envolvidos, no qual os demais Estados‑Membros devem então confiar.

85.      O reconhecimento mútuo em matéria penal inspirou‑se na utilização deste princípio no âmbito do mercado interno (49). Recorde‑se que o reconhecimento mútuo foi desenvolvido como princípio central do mercado interno, tal como criado pelos Tratados, no acórdão Cassis de Dijon do Tribunal de Justiça (50). Tal foi possível por existir um certo nível de comparabilidade básico entre as legislações nacionais em causa (51).

86.      O efeito do reconhecimento mútuo no mercado interno foi de desregulamentação e este ampliou os direitos das pessoas em detrimento da liberdade regulamentar do Estado (52).

87.      Embora o reconhecimento mútuo em matéria penal exija igualmente a aceitação das opções legislativas do outro Estado‑Membro, não segue exatamente a mesma lógica deste princípio quando aplicado no contexto do mercado interno. O objeto do reconhecimento é, neste contexto, as decisões judiciais e outras decisões individuais soberanas dos Estados‑Membros, nas quais o monopólio da força de um Estado‑Membro é posto em ação noutro Estado‑Membro (53). O indivíduo torna‑se objeto, e já não sujeito, da liberdade de circulação entre os Estados‑Membros (54). A desregulação que resulta do reconhecimento mútuo no mercado interno traduz‑se, em matéria penal, na obrigação de um Estado‑Membro utilizar ativamente o seu monopólio de força (55).

88.      Para que o reconhecimento mútuo funcione em matéria penal, é necessário um elevado nível de confiança mútua. Esta confiança diz respeito ao compromisso do outro Estado de proteger os direitos fundamentais da pessoa sujeita à força coerciva do Estado (56).

89.      Este é o ponto de partida de todos os instrumentos de reconhecimento mútuo, como a Diretiva DEI. Contudo, ainda que a confiança mútua seja necessária, ela não pode ser imposta (57). Por conseguinte, os atuais instrumentos de confiança mútua refletem igualmente um certo nível de desconfiança. Isto reflete‑se nas normas que permitem o não reconhecimento em determinadas circunstâncias (58), na harmonização de aspetos do processo penal ao nível da União (59) e na evolução da jurisprudência nesta matéria (60).

90.      No presente processo, as partes fizeram referência à Diretiva DEI para discutir as diferenças e as semelhanças deste sistema de reconhecimento mútuo face ao Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Irei analisar, portanto, de forma breve, a Diretiva DEI. 

91.      A Diretiva DEI foi adotada ao abrigo do artigo 82.o TFUE para reforçar as investigações transfronteiriças e baseia‑se no reconhecimento mútuo. Ao abrigo do seu sistema, uma autoridade (61) de um Estado‑Membro pode emitir uma decisão europeia de investigação (DEI) quando isso for necessário para a realização de uma investigação no âmbito do processo penal nacional. Não existe nenhuma condição de que a infração penal tenha de ser lesiva dos interesses financeiros da União Europeia: o que importa é que seja necessário executar uma medida de investigação num Estado‑Membro que não aquele em que decorre a investigação principal, incluindo no caso em que um elemento de prova já se encontre na posse das autoridades competentes do Estado‑Membro de execução (62).

92.      A autoridade de um Estado‑Membro pode emitir uma DEI mediante duas condições. Em primeiro lugar, uma DEI tem de ser necessária e proporcionada para as finalidades do processo penal, tendo em conta os direitos do suspeito ou arguido; e, em segundo lugar, a medida indicada na DEI teria de poder ter sido ordenada nas mesmas condições num processo nacional semelhante (63).

93.      Estes fundamentos materiais da emissão da DEI só podem ser impugnados no âmbito de uma ação interposta no Estado de emissão (64). Parece então, intuitivamente, que as apreciações de mérito são da competência exclusiva do Estado de emissão, sendo esta uma solução que simplifica significativamente a utilização da decisão europeia de investigação e possivelmente demonstra um elevado grau de confiança mútua. Será realmente o caso?

94.      Em primeiro lugar, é certo que o artigo 14.o, n.o 2, da Diretiva DEI prevê que os fundamentos da emissão de uma DEI só podem ser impugnados no Estado de emissão, mas «sem prejuízo das garantias dos direitos fundamentais no Estado de execução» (65). Esta regra é objeto de maior desenvolvimento no artigo 11.o, n.o 1, alínea f), da Diretiva DEI, de acordo com o qual uma DEI pode ser recusada no Estado de execução «se houver motivos substanciais para crer que a execução da medida de investigação indicada na DEI será incompatível com as obrigações do Estado de execução nos termos do artigo 6.o do TUE e da Carta» (66). Dependendo do modo como seja interpretado o conceito de «motivos substanciais», a referida disposição parece permitir que o Estado de execução fiscalize o respeito dos direitos fundamentais no Estado de emissão. Além disso, ao abrigo do artigo 10.o, n.o 3, da Diretiva DEI, é permitido à autoridade de execução que altere a medida de investigação solicitada por uma DEI se essa outra medida permitir alcançar o mesmo resultado por meios menos intrusivos.

95.      O breve resumo acima efetuado torna difícil defender que a Diretiva DEI mantém um elevado nível de confiança mútua. Continua a existir uma margem de manobra relativamente ampla para que a autoridade de execução duvide do nível de proteção dos direitos fundamentais ou da aplicação do princípio da proporcionalidade no Estado de emissão.

96.      Quando comparada, por exemplo, com o sistema do mandado de detenção europeu (MDE), com motivos limitados de recusa obrigatória e facultativa da sua execução, a Diretiva DEI confere à autoridade de execução uma maior margem de manobra. Em termos comparativos, podemos referir o sistema do MDE como um tipo de reconhecimento mútuo um pouco mais forte. Nenhum deles é completo, porque ainda se centram no reconhecimento de decisões individuais e continua a existir a possibilidade de recusa no Estado‑Membro de execução (67).

97.      O reconhecimento mútuo é, portanto, uma questão de grau.

98.      Nesta perspetiva, o argumento de que o sistema da Procuradoria Europeia é «algo mais» do que reconhecimento mútuo pode ser aceite se for entendido como uma afirmação de que o sistema da Procuradoria Europeia estabelece um grau de reconhecimento mútuo diferente e mais elevado.

99.      Porém, «algo mais» não pode significar «algo diferente». Dito de outro modo, não pode significar que o sistema da Procuradoria Europeia não assenta no princípio do reconhecimento mútuo, o qual exige confiança nos sistemas jurídicos dos outros Estados‑Membros. É precisamente este princípio, inerente ao sistema, que permite a aceitação de normas de outros Estados‑Membros, ainda que sejam diferentes. A possibilidade de aplicar este princípio exige, como em todos os outros instrumentos de reconhecimento mútuo, a confiança em que todos os Estados‑Membros garantem a proteção dos direitos fundamentais.

100. Em suma, o reconhecimento mútuo em matéria penal não é um conceito unitário, tendo antes diferentes graus em diferentes mecanismos do ELSJ.

101. Se admitirmos que o reconhecimento mútuo em matéria penal tem diferentes graus, o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia é, com efeito, o ato legislativo mais avançado até ao momento — mas nem mesmo ele constitui um reconhecimento mútuo completo (68). A Procuradoria Europeia é um organismo único e, com efeito, as medidas transfronteiriças atribuídas não precisam de ser «reconhecidas», apenas executadas. Contudo, na falta de harmonização, os direitos fundamentais de suspeitos e arguidos têm de ser garantidos num contexto em que a Procuradoria Europeia «requisita» diversas normas penais nacionais, substantivas e processuais, como sucede no âmbito das investigações transfronteiriças.

b)      Garantias dos direitos fundamentais no Regulamento que institui a Procuradoria Europeia

102. Dado que as normas de um Estado‑Membro se aplicam à autorização judicial de medidas de investigação que serão executadas noutro Estado‑Membro, é possível que ocorra uma diminuição, ou mesmo que surjam lacunas, em sede de proteção fundamental.

103. O artigo 5.o, n.o 1, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia prevê que, «[n]o exercício das suas atividades, a Procuradoria Europeia assegura o respeito dos direitos consagrados na Carta» (69). Permitirá o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia cumprir esta obrigação quando se trate de investigações transfronteiriças? Em meu entender, sim.

104. Tenho em mente vários mecanismos em todo o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia que militam a favor desta conclusão. Em primeiro lugar, o mecanismo de cooperação entre o PED competente e o PED assistente (artigo 31.o, n.o 5, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia) (70); em segundo lugar, o artigo 41.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, relativo ao âmbito da proteção dos direitos fundamentais; e, em terceiro lugar, a exigência de que todos os Estados‑Membros prevejam a fiscalização jurisdicional dos atos processuais da Procuradoria Europeia (artigo 42.o, n.o 1, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia). Abordarei brevemente cada um deles, de forma sucessiva.

105. Em primeiro lugar, como a Procuradoria Europeia e a Comissão salientaram, o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia não contém motivos de não reconhecimento. Em vez disso, para ter em conta os requisitos do direito do Estado‑Membro do PED assistente e corrigir eventuais deficiências no pedido de medida de investigação, o sistema da Procuradoria Europeia assenta num diálogo interno entre o PED competente e o PED assistente. Em aplicação do artigo 31.o, n.o 5, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, ambos os procuradores delegados colaboram com vista à condução eficiente da investigação com respeito pela proteção dos direitos fundamentais (71). Este sistema de cooperação interna é um dos elementos importantes para assegurar a proteção dos direitos fundamentais no sistema da Procuradoria Europeia.

106. Em particular, o PED assistente pode informar o Procurador Europeu supervisor e consultar o PED competente quando se suscitem questões relativamente à medida atribuída. De especial interesse são as situações abrangidas pelo artigo 31.o, n.o 5, alínea c) e alínea d), do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia: aquela em que uma medida menos intrusiva conduz aos mesmos resultados e aquela em que a medida atribuída não existe ou não estaria disponível num processo nacional semelhante.

107. A apreciação de que uma medida menos intrusiva conduziria ao mesmo resultado corresponde ao artigo 10.o, n.o 3, da Diretiva DEI, ao abrigo do qual a autoridade de execução pode alterar a medida solicitada por uma DEI. Mais importante é o facto de isto significar que o PED assistente é chamado a efetuar uma análise da proporcionalidade da medida adotada, prevendo um controlo adicional.

108. A indisponibilidade da mesma medida num processo nacional semelhante é uma consideração igualmente presente no artigo 10.o, n.o 1, alínea b) da Diretiva DEI e consta como motivo de não execução em determinados casos no artigo 11.o, n.o 1, alínea c), da Diretiva DEI. Se os dois procuradores delegados não chegarem a acordo no prazo de sete dias, a questão é remetida à Câmara Permanente, em conformidade com o artigo 31.o, n.o 7, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, para decisão final. Em última análise, a medida pode subsistir independentemente das preocupações suscitadas pelo PED assistente. Contudo, é do interesse da Procuradoria Europeia que os elementos de prova resultantes da investigação transfronteiriça possam ser utilizados na fase de julgamento do processo (72). Por conseguinte, é pouco provável que a Câmara Permanente aprove uma medida que seja inaceitável num dos sistemas jurídicos participantes.

109. Embora o sistema de cooperação interna entre o PED competente e o PED assistente possa, em certa medida, atenuar o perigo de uma violação dos direitos fundamentais (73), não se pode pressupor que a Procuradoria Europeia não tem falhas.

110. Neste contexto, o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia contém mecanismos adicionais que permitem fiscalizar as ações da Procuradoria Europeia no âmbito de investigações transfronteiriças.

111. Em primeiro lugar, o artigo 41.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia define de forma mais pormenorizada os concretos direitos de que gozam os suspeitos e os arguidos em processos da Procuradoria Europeia. Faz referência às normas de proteção da Carta (n.o 1); à proteção garantida nos diferentes mecanismos da União Europeia que harmonizam aspetos do processo penal nos Estados‑Membros (n.o 2) (74); e a todos os direitos processuais conferidos pelo direito nacional aplicável (n.o 3) (75).

112. Em segundo lugar, o artigo 42.o, n.o 1, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia exige que esteja sempre disponível a fiscalização jurisdicional das medidas de investigação. Por conseguinte, se não tiver havido uma fiscalização jurisdicional prévia ou se a aplicação conjugada de dois sistemas jurídicos (um para a justificação da medida e outro para a sua execução) tiver conduzido a alguma falha na proteção dos direitos fundamentais, uma fiscalização jurisdicional a posteriori da medida permitirá corrigir qualquer potencial violação (76).

113. O Regulamento que institui a Procuradoria Europeia garante um elevado nível de proteção dos direitos fundamentais. É verdade que, em determinadas situações e do ponto de vista de alguns Estados‑Membros, isso pode conduzir a uma diminuição do anterior nível de proteção dos direitos individuais. Contudo, estes direitos são protegidos pelo menos ao nível da Carta e da Convenção Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH»). A harmonização, afinal de contas, conduz inevitavelmente a um enfraquecimento da proteção dos direitos fundamentais nos Estados‑Membros cujo anterior nível de proteção era mais elevado (77), a menos que o padrão mais elevado seja adotado como regra comum.

114. Trata‑se, porém, do preço de se construir um futuro em conjunto.

115. Em conclusão, quando se trata de investigações transfronteiriças, o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia é um sistema muito desenvolvido de reconhecimento mútuo. Embora não preveja a possibilidade de recusar a decisão do PED competente de que é necessário tomar uma medida de investigação num Estado‑Membro que não aquele em que decorre a investigação principal, comporta diferentes garantias que asseguram a proteção dos direitos fundamentais. Interpretar o artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia como uma repartição de competências de fiscalização de uma medida de investigação transfronteiriça entre as ordens jurídicas dos órgãos jurisdicionais do PED competente e do PED assistente não faz, portanto, perigar a proteção dos direitos fundamentais. Face ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça que acolha a interpretação dos artigos 31.o e 32.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia proposta no n.o 73 das presentes Conclusões.

III. Conclusão

116. À luz das considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pelo Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria):

1)      O artigo 31.o, n.o 3, e o artigo 32.o do Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017, que dá execução a uma cooperação reforçada para a instituição da Procuradoria Europeia («Regulamento que institui a Procuradoria Europeia»)

devem ser interpretados no sentido de que, no âmbito das investigações transfronteiriças, o órgão jurisdicional que aprove uma medida a ser executada no Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado assistente só pode apreciar os aspetos relativos à execução de uma medida de investigação.

2)      O artigo 31.o, n.o 3, e o artigo 32.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia

devem ser interpretados no sentido de que, no âmbito das investigações transfronteiriças, o órgão jurisdicional do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado assistente deve aceitar a apreciação do Procurador Europeu Delegado competente de que a medida é justificada, independentemente de a mesma ter sido objeto de autorização judicial prévia do órgão jurisdicional do Procurador Europeu Delegado competente.


1      Língua original: inglês.


2      Regulamento (UE) 2017/1939 do Conselho, de 12 de outubro de 2017, que dá execução a uma cooperação reforçada para a instituição da Procuradoria Europeia (JO 2017, L 283, p. 1) (a seguir «Regulamento que institui a Procuradoria Europeia»).


3      V. artigo 2.o, n.o 5, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.


4      V. artigo 2.o, n.o 6, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.


5      V., por exemplo, as seguintes explicações recentes sobre o método de interpretação utilizado pelo Tribunal de Justiça. «[…]em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para a interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte […]» V., por exemplo, Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Towarzystwo Ubezpieczeń Ż (Contratos‑tipo de seguro enganosos) (C‑208/21, EU:C:2023:64, n.o 76 e jurisprudência referida). «A génese de uma disposição do direito da União pode igualmente apresentar elementos pertinentes para a sua interpretação». V. Acórdão de 13 de outubro de 2022, Perfumesco.pl (C‑355/21, EU:C:2022:791, n.o 39)


6      A Diretiva (UE) 2017/1371 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de julho de 2017, relativa à luta contra a fraude lesiva dos interesses financeiros da UE através do direito penal (JO 2017, L 198, p. 29) (a seguir «Diretiva PIF») prevê um certo nível de harmonização dos elementos das infrações penais financeiras lesivas dos interesses da União.


7      Bundesgesetz zur Durchführung der Europäische‑Staatsanwaltschaft (Lei Federal relativa à Implementação da Procuradoria Europeia, a seguir «EUStA‑DG»), de 10 de julho de 2020 (BGBl. I S. p. 1648), § 3, n.o 2.


8      A Procuradoria Europeia trabalha através de uma rede de Procuradores Europeus ao nível da União Europeia (Luxemburgo) dirigida pelo Procurador‑Geral Europeu. A Procuradoria Europeia é composta por Procuradores Europeus, por Câmaras Permanentes (que acompanham e orientam as investigações e asseguram a coerência das atividades da Procuradoria Europeia) e pelo Colégio de Procuradores Europeus (composto por um Procurador Europeu de cada Estado‑Membro). O nível descentralizado é composto por Procuradores Europeus Delegados (PED) de cada Estado‑Membro participante.


9      Artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.


10      V. artigo 86.o, n.o 2, TFUE e artigo 4.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.


11      V. artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.


12      V., nomeadamente, Corpus Juris 2000, Livro Verde sobre a proteção penal dos interesses financeiros comunitários e a criação de um Procurador Europeu (COM/2001/0715 final) («proposta de Florença»). O Corpus Juris veio no seguimento do Corpus Juris 1997 [«Introducing penal provisions for the purpose of the financial interests of the European Union» (Apresentação de disposições penais para efeitos dos interesses financeiros da União Europeia)], ed. Economica Paris, 1997), apresentado por um grupo de peritos nomeados na reunião dos Presidentes das Associações Europeias de Direito Penal na Universidade Urbino (Itália) em 1995. A principal proposta contida no Corpus Juris era a da criação de um espaço jurídico único, que regulasse tanto o direito penal substantivo quanto o processual, incluindo este último uma proposta de criação de um Procurador Europeu. Para mais informações, v. https://www.eppo.europa.eu/pt/contexto.


13      Proposta de regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia, COM(2013)534 final, a seguir «Proposta de 2013»).


14      Os Estados‑Membros não participantes são a Hungria, a Polónia e a Suécia. A Dinamarca e a Irlanda beneficiam de uma cláusula de autoexclusão do espaço de liberdade, segurança e justiça (ELSJ).


15      Herrnfeld, H.H., «Article 31», in Herrnfeld, H.H., Brodowski, D. e Burchard, C. (eds), European Public Prosecutor’s Office. ArticlebyArticle Commentary, Bloomsbury Publishing, 2020, p. 300.


16      V., a este respeito, os n.os 4 e 5 do artigo 26.o da Proposta de 2013: «4. Os Estados‑Membros devem assegurar que as medidas de inquérito referidas no n.o 1, alíneas a) a j), são sujeitas a autorização da autoridade judicial competente do Estado‑Membro em que devam ser executadas» e «5. As medidas de inquérito referidas no n.o 1, alíneas k) a u), devem ser sujeitas a autorização judicial se tal for exigido pelo direito nacional do Estado‑Membro em que a medida de inquérito deva ser executada».


17      Protocolo n.o 2 relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade (JO 2008, C 115, p. 206).


18      Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho e aos parlamentos nacionais sobre a revisão da proposta de regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia relativamente ao princípio da subsidiariedade em conformidade com o Protocolo n.o 2 (COM/2013/0851 final), p. 9.


19      Herrnfeld, nota 15, supra, p. 291.


20      Proposta de Regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia — Observações escritas das delegações austríaca e alemã, Dossiê Interinstitucional: 2013/0255 (APP), DS 1237/15, 21 de abril de 2015.


21      Proposta de regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia — Observações escritas das delegações austríaca e alemã, Dossiê Interinstitucional: 2013/0255 (APP), DS 1234/15, 21 de abril de 2015.


22      Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal (JO 2014, L 130, p. 1) (a seguir «Diretiva DEI»).


23      As observações escritas da Áustria e da Alemanha propunham ainda: «Sempre que o direito do Estado‑Membro do Procurador Europeu Delegado assistente exija uma autorização judicial ou uma decisão judicial para que a medida seja reconhecida, este apresenta a decisão e, se for caso disso, a autorização judicial que a acompanha, à autoridade judiciária competente do seu Estado‑Membro para reconhecimento.»


24      As observações escritas da Alemanha acrescentavam: «Apontando apenas algumas questões principais: O texto do artigo 26.o‑A terá de ser claro quanto à questão de saber quem toma a decisão de ordenar uma medida ou solicitar que uma medida seja ordenada por um órgão jurisdicional e qual a lei aplicável para ordenar/solicitar tais medidas. O texto atual parece deixar esta questão em aberto ou talvez até dar ao PED competente uma escolha: o termo “atribui” constante do n.o 1 não especifica quem toma a decisão de ordenar uma medida». Proposta de Regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia — Observações escritas das delegações austríaca e alemã, Dossiê Interinstitucional: 2013/0255 (APP), DS 1234/15, 21 de abril de 2015. V., igualmente, as Orientações do Colégio da Procuradoria Europeia sobre a aplicação do artigo 31.o do Regulamento (UE) 2017/1939, Decisão do Colégio 006/2022, p. 4, ponto 8 («Além disso, o artigo 31.o, n.o 3, não aborda expressamente as situações em que tanto o direito do Estado‑Membro do PED competente quanto o do Estado‑Membro do PED assistente exigem autorização judicial»).


25      V. Proposta de Regulamento do Conselho que institui a Procuradoria Europeia — Outras questões. Presidência do Conselho 12344/16, 20 de setembro de 2016, p. 5.


26 Conclusões da advogada‑geral T. Ćapeta no processo Rigall Arteria Management (C‑64/21, EU:C:2022:453, n.o 43) (a seguir «Rigall Arteria Management»).


27      Mesmo os autores mais ortodoxos de estudos jurídicos s críticos, admitemque as normas jurídicas, tal como redigidas, limitam a interpretação judicial. V., por exemplo, Kennedy, D., A Critique of Adjudication (fin de siècle), Harvard University Press, Cambridge, Massachussetts, 1997, p. 13.


28      Por exemplo, no Acórdão de 28 de janeiro de 2020, Comissão/Itália (Diretiva luta contra os atrasos de pagamento) (C‑122/18, EU:C:2020:41, n.o 43) (que interpreta um artigo no contexto do seguinte); de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas) (C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.os 56 a 69) (que interpreta uma disposição no contexto dos artigos iniciais de uma diretiva e dos seus considerandos); e de 24 de fevereiro de 2022, Namur‑Est Environnement/Région wallonne (C‑463/20, EU:C:2022:121, n.o 46) (interpretação de uma disposição por referência à diretiva em causa no seu conjunto).


29      Por exemplo, no Acórdão de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o. (C‑621/18, EU:C:2018:999, n.o 47); de 27 de novembro de 2012, Pringle (C‑370/12, EU:C:2012:756, n.o 135).


30      Por exemplo, no Acórdão de 10 de março de 2021,  Ordine Nazionale dei Biologi e o. (C‑96/20, EU:C:2021:191, n.os 26 e 27); e de 13 de outubro de 2022, Rigall Arteria Management (C‑64/21, EU:C:2022:783, n.o 31).


31      Sobre este ponto, v. Acórdão de 17 de abril de 1986, Reed (59/85, EU:C:1986:157, n.o 15) (no qual o Tribunal de Justiça declarou que, na falta de qualquer indicação de um desenvolvimento social geral, o termo «cônjuge» não inclui o companheiro não casado). O mesmo termo foi visto de forma diferente 32 anos depois, nas Conclusões do advogado‑geral M. Wathelet no processo Coman e o. (C‑673/16, EU:C:2018:2, n.os 56 a 58) (em que este analisa os desenvolvimentos relativos ao modo como o conceito de «cônjuge» é compreendido, para demonstrar que um número crescente de Estados‑Membros o compreendem no sentido de incluir o casamento homossexual).


32      Na audiência, a Procuradoria Europeia também reconheceu que a utilização do termo «contudo» complica a interpretação do artigo 31.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.


33      Na audiência, a Procuradoria Europeia acrescentou que o considerando 72 não tem valor normativo e, por conseguinte, não deve ser determinante para a interpretação do artigo 31.o


34      A Procuradoria Europeia esclareceu, na audiência, que os processos contêm, por vezes, milhares de páginas, o que exigiria tradutores externos e, por conseguinte, acrescentaria custos consideráveis ao funcionamento da Procuradoria Europeia e levaria meses, ou mesmo anos, a traduzir.


35      V. nota 34, supra.


36      O Regulamento que institui a Procuradoria Europeia prevê a possibilidade de alterar o Estado‑Membro em que a investigação é realizada até que a decisão de instaurar uma ação penal seja tomada ao abrigo do artigo 26.o, n.o 5 (em conformidade com o artigo 36.o do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia).


37      Considerando 22 e artigo 14.o, n.o 2, da Diretiva DEI. Isto foi igualmente sublinhado no Acórdão de 11 de novembro de 2021, Gavanozov II (C‑852/19, EU:C:2021:902, n.o 40).


38      V., por exemplo, os considerandos 14, 20 e 54 e os artigos 12.o, n.o 3, e 34.o, n.o 3, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia.


39      Por exemplo, Acórdão de 24 de fevereiro de 2000, Comissão/França (C‑434/97, EU:C:2000:98, n.o 21).


40      V. n.os 7 e 8, supra.


41      Por exemplo, Acórdão de 1 de abril de 2004, Comissão/JégoQuéré (C‑263/02 P, EU:C:2004:210, n.os 36 a 38).


42      Em contrapartida, se o Tribunal de Justiça adotar a segunda opção, isso exigirá uma intervenção dos legisladores austríaco e alemão, pois tornará essas legislações, que foram adaptadas à primeira opção, contrárias ao Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. O Governo austríaco precisou, na audiência, que está consciente disso e que, evidentemente, o direito desse Estado teria de ser alinhado com o direito da União se o Tribunal de Justiça decidir interpretar de forma diferente o Regulamento que institui a Procuradoria Europeia. Este Governo reiterou, porém, que a interpretação refletida no seu direito é a correta.


43      Allegrezza, S. e Mosna, A., «Cross‑border Criminal Evidence and the Future European Public Prosecutor: One Step Back on Mutual Recognition?», in Bachmaier Winter, L. (ed.), The European Public Prosecutor’s Office. The Challenges Ahead, Springer, 2018, p. 141, na p. 146.


44      Para um texto persuasivo sobre transplantações jurídicas e «irritantes» jurídicos, v. Teubner, G., «Legal irritants: Good Faith in British Law or How Unifying Law Ends Up in New Divergences», vol. 61(1), Modern Law Review 1998, p.11.


45      V., por exemplo, Allegrezza e Mosna, já referidos na nota 43, pp. 145 e 158 (pondo a tónica nos perigos que decorrem para os direitos fundamentais de, por exemplo, níveis divergentes de garantias processuais e regras processuais relativas à execução das medidas de investigação ou à recolha de prova, defendendo que são necessárias garantias suplementares, nomeadamente em matéria de prova). Para um primeiro aviso a respeito desta mesma questão, v. Kaiafa‑Gbandi, M., «The Establishment of an EPPO and the Rights of Suspects and Defendants: Reflections upon the Commission’s 2013 Proposal and the Council’s Amendments», in Asp, P. (ed.), The European Public Prosecutor’s Office — Legal and Criminal Policy Perspectives, Stifelsen Skrifter utgivna av Juridiska fakulteten vid Stockholms universitet, 2015, pp. 245‑246.


46      Para uma proposta inicial relativa às modalidades de um futuro procurador da UE, cujo êxito depende da harmonização do direito penal substantivo, v. Peers, S., «Mutual recognition and criminal law in the European Union: Has the Council got it wrong?», vol. 41, Common Market Law Review, 2004, p. 5, p. 34.


47      Defendendo que o sistema da DEI é, na verdade, mais simples e mais eficiente do que as soluções normativas do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, v. Allegrezza e Mosna, já referidos na nota 43, pp. 155 a 156.


48      Por confronto com a ideia do Corpus Juris de criar um espaço jurídico único, que não foi acolhida no Regulamento que institui a Procuradoria Europeia, a solução de um órgão único é uma opção diluída em torno da qual os Estados‑Membros participantes puderam pôr‑se de acordo. V. Mitsilegas, V. e Giuffrida, F., «The European Public Prosecutor’s Office and Human Rights», in Geelhoed, W., Erkelens, L.H. and Meij, A.W.H. (eds.) Shifting Perspectives on the European Public Prosecutor’s Office, TMC Asser Press, 2018, p. 89.


49      «...inspirada em conceitos que deram bons resultados na realização do Mercado Único, a ideia de que a cooperação judicial também pode beneficiar do conceito de reconhecimento mútuo...» Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu. Reconhecimento Mútuo de Decisões Finais em Matéria Penal. COM(2000) 495 final, Bruxelas, 26 de julho de 2000, p.2.


50      Acórdão de 20 de fevereiro de 1979, ReweZentral (120/78, EU:C:1979:42).


51      Schmidt, S.K., «Mutual Recognition as a New Mode of Governance», Journal of European Public Policy, vol. 14(5), 2007, p. 667, p. 669; Peers, S., «Mutual Recognition and Criminal Law in the European Union: Has the Council Got It Wrong?», Common Market Law Review, vol. 41(1), 2004, p. 5, p. 20.


52      Schmidt, já referido na nota 51, p. 672. Perišin, T., Free Movement of Goods and Limits of Regulatory Autonomy in the EU and WTO, T.M.C. Asser Press, 2008, p. 23.


53      Nicolaïdis, K., «Trusting the Poles? Constructing Europe through Mutual Recognition», Journal of European Public Policy, vol. 14(5), 2007, p. 685.


54      Peers, nota 51, supra, p. 24.


55      Peers, referido supra, na nota 51, p. 25.


56      Isto foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça. V., por exemplo, Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH), de 18 de dezembro de 2014 (EU:C:2014:2454, n.o 191), no qual o Tribunal de Justiça precisou que este princípio do reconhecimento mútuo «impõe, designadamente no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça, que cada um dos Estados‑Membros considere, salvo em circunstâncias excecionais, que todos os outros Estados‑Membros respeitam o direito da União e, muito em especial, os direitos fundamentais reconhecidos por esse direito».


57      Iglesias Sánchez, S. e González Pascual, M., «Fundamental Rights at the Core of the EU AFSJ», in Iglesias Sánchez, S., and González Pascual, M. (eds.), Fundamental Rights in the EU Area of Freedom, Security and Justice, Cambridge University Press, 2021, pp. 8‑9 (defendendo que as preocupações de direitos fundamentais desencadearam uma limitação gradual da confiança mútua, visível no desenvolvimento da jurisprudência do Tribunal de Justiça e na harmonização positiva no ELSJ).


58      V., por exemplo, artigos 3.o, 4.o e 4.o‑A da Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, que altera as Decisões‑Quadro 2002/584/JAI, 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI e 2008/947/JAI, e que reforça os direitos processuais das pessoas e promove a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido (JO 2009, L 81, p. 24); e artigo 11.o da Diretiva DEI.


59      V., por exemplo, Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal (JO 2012, L 142, p. 1); V, igualmente, Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1).


60      Quanto à jurisprudência que admite fundamentos adicionais para a não execução de um mandado de detenção europeu, v. Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 93 e 94); e acórdão de 15 de outubro de 2019, Dorobantu (C‑128/18, EU:C:2019:857, n.os 52 e 55).


61      Ao abrigo do artigo 2.o, alínea c), da Diretiva DEI, uma autoridade de emissão pode ser «um juiz, tribunal, juiz de instrução ou magistrado do Ministério Público competente no processo em causa», bem como «qualquer outra autoridade competente definida pelo Estado de emissão», se a decisão europeia de investigação for validada por um juiz, tribunal, juiz de instrução ou um magistrado do Ministério Público no Estado de emissão. Trata‑se de um conceito mais amplo do que o de «autoridade judiciária de emissão» para efeitos do mandado de detenção europeu, que exclui um magistrado do Ministério Público. Especificamente sobre esta diferença, v. Acórdão de 8 de dezembro de 2020, Staatsanwaltschaft Wien (Ordens de transferência falsificadas) (C‑584/19, EU:C:2020:1002, n.os 74 e 75).


62      Artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva DEI.


63      Artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva DEI.


64      Acórdão de 16 de dezembro de 2021, Spetsializirana prokuratura (Dados de tráfego e de localização) (C‑724/19, EU:C:2021:1020, n.o 53) (no qual o Tribunal de Justiça sublinhou que a autoridade de execução não pode fiscalizar a conformidade de uma decisão europeia de investigação com as condições da sua emissão ao abrigo da diretiva, sob pena de violar o sistema de confiança mútua subjacente a esta diretiva).


65      V. também o considerando 22 da Diretiva DEI.


66      V. também o considerando 19 da Diretiva DEI.


67      Defendendo que o reconhecimento mútuo no direito da União é limitado no sentido de que não há aceitação automática no Estado‑Membro de execução, v. Möstl, M., «Preconditions and Limits of Mutual Recognition», Common Market Law Review, vol, 47(2), Kluwer Law International, 2010  p. 405, pp. 412, 418, 420.


68      Com a mesma conclusão, v. Mitsilegas e Giuffrida, nota 48, supra, p. 89.


69      Esta disposição, evidentemente, mais não é do que uma expressão mais concreta da obrigação de todos os órgãos da União Europeia de respeitarem a Carta, tal como se encontra expressa no seu artigo 51.o, n.o 1.


70      O artigo 31.o, n.o 5, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia dispõe: Se o Procurador Europeu Delegado assistente considerar que: a) A atribuição é incompleta ou contém um erro manifesto relevante; b) A medida não pode ser executada no prazo fixado na atribuição por razões justificadas e objetivas; c) Medidas alternativas menos intrusivas produziriam os mesmos resultados que a medida atribuída; ou d) A medida atribuída não existe ou não estaria disponível em casos nacionais equiparáveis nos termos do direito do seu Estado‑Membro, informa o seu Procurador Europeu supervisor e consulta o Procurador Europeu Delegado competente a fim de resolver a questão a nível bilateral.


71      V., a este respeito, Herrnfeld, nota 15 supra, pp. 293 a 295. É interessante notar que Allegrezza e Mosna veem o mecanismo de cooperação dos dois PED como um obstáculo à simplificação e à agilização das investigações transfronteiriças, nomeadamente por não haver prazo para a execução da medida de investigação. Allegrezza e Mosna, já referidos na nota 43, pp. 154 a 155.


72      No que diz respeito à admissibilidade dos elementos de prova, o artigo 37.o, n.o 1, do Regulamento que institui a Procuradoria Europeia prevê apenas que os elementos de prova não devem ser recusados unicamente pelo facto de terem sido recolhidos noutro Estado‑Membro ou em conformidade com o direito de outro Estado‑Membro.


73      Allegrezza e Mosna concluem que o processo de cooperação entre os dois PED significará, na prática, que os direitos de ambos os respetivos Estados‑Membros serão respeitados. Allegrezza and Mosna, supra, na nota 43, p. 153.


74      Incluindo o direito a interpretação e tradução, o direito à informação e acesso aos elementos do processo, o direito de acesso a um advogado e o direito de comunicar com terceiros e de os informar em caso de detenção, o direito de guardar silêncio e o direito de presunção da inocência, bem como o direito a apoio judiciário.


75      Incluindo explicitamente a possibilidade de apresentar elementos de prova, solicitar a designação de peritos ou a realização de perícias e a audição de testemunhas, e de solicitar à Procuradoria Europeia que obtenha tais medidas em nome da defesa.


76      V., por analogia, Conclusões do advogado‑geral Richard de la Tour no processo MM  (C‑414/20 PPU, EU:C:2020:1009, n.o 133) (nas quais explicou que uma proteção jurisdicional efetiva exige que as condições de emissão de um mandado de detenção europeu sejam objeto de fiscalização na fase do processo penal posterior à entrega, se não estiver prevista nenhuma via de recurso numa fase anterior).


77      Ilustrado claramente pela harmonização das normas relativas aos julgamentos realizados na ausência do arguido. A solução adotada no artigo 4.o‑A da Decisão‑Quadro relativa ao MDE era contrária ao nível de proteção espanhol, como ficou patente no Acórdão Melloni. Contudo, como é sabido, o Tribunal de Justiça concluiu que, quando há lugar a harmonização ao nível da União, as normas nacionais mais elevadas não podem constituir impedimento à eficácia do sistema de confiança mútua. Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107, n.os 62 a 64).