Language of document : ECLI:EU:T:2023:348

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Quinta Secção)

21 de junho de 2023 (*)

«Auxílios de Estado — Regime de auxílios aplicado por Portugal — Zona Franca da Madeira — Decisão que declara a não conformidade do regime com as Decisões C(2007) 3037 final e C(2013) 4043 final, declara esse regime incompatível com o mercado interno e ordena a recuperação dos auxílios pagos ao abrigo do mesmo — Recurso de anulação — Legitimidade — Admissibilidade — Conceito de “auxílio de Estado” — Auxílios existentes na aceção do artigo 1.º, alínea b), ii), do Regulamento (UE) 2015/1589 — Recuperação — Confiança legítima — Segurança jurídica — Princípio da boa administração — Impossibilidade absoluta de execução — Prescrição — Artigo 17.º do Regulamento 2015/1589»

No processo T‑131/21,

Região Autónoma da Madeira, representada por M. Gorjão‑Henriques e A. Saavedra, advogados,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por I. Barcew e P. Caro de Sousa, na qualidade de agentes,

recorrida,

O TRIBUNAL GERAL (Quinta Secção),

composto por: J. Svenningsen (relator), presidente, J. Martín y Pérez de Nanclares e M. Stancu, juízes,

secretário: H. Eriksson, administradora,

vistos os autos, nomeadamente:

–        a exceção de inadmissibilidade apresentada, nos termos do artigo 130.º do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, pela Comissão por requerimento separado apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 15 de junho de 2021,

–        o Despacho que ordena a apreciação da exceção de inadmissibilidade na decisão que conheça do mérito, de 19 de novembro de 2021,

–        as observações das partes sobre o Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira) (T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567),

–        a Decisão de 18 de janeiro de 2023 de não suspender a instância até decisão do Tribunal de Justiça que ponha termo à instância no processo Portugal/Comissão (C‑736/22 P),

após a audiência de 1 de março de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        Com o seu recurso baseado no artigo 263.º TFUE, a Região Autónoma da Madeira (Portugal) (a seguir «recorrente» ou «RAM») pede a anulação dos artigos 1.º e 4.º a 6.º da Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020, relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C) (ex‑2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira — ZFM — Regime III (JO 2022, L 217, p. 49; a seguir «decisão recorrida»).

I.      Antecedentes do litígio

2        O regime da Zona Franca da Madeira (a seguir «ZFM») assume a forma de diversos benefícios fiscais concedidos no âmbito do Centro Internacional de Negócios da Madeira, do Registo Internacional de Navios da Madeira e da Zona Franca Industrial (a seguir «ZFI»).

3        Este regime foi inicialmente aprovado em 1987 pela Decisão da Comissão Europeia de 27 de maio de 1987 no processo N 204/86 [SG(87) D/6736] enquanto auxílio com finalidade regional compatível com o mercado único. A sua prorrogação foi posteriormente autorizada pela Decisão da Comissão de 27 de janeiro de 1992 no processo E 13/91 [SG(92) D/1118] e, em seguida, pela Decisão da Comissão de 3 de fevereiro de 1995 no processo E 19/94 [SG(95) D/1287].

4        O regime que lhe sucedeu (a seguir «Regime II») foi aprovado por uma Decisão da Comissão de 11 de dezembro de 2002 no processo N 222A/01 (a seguir «Decisão de 2002»).

5        Com base nas Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para o período 2007‑2013 (JO 2006, C 54, p. 13; a seguir «Orientações de 2007»), foi aprovado um terceiro regime (a seguir «Regime III») pela Decisão da Comissão de 27 de junho de 2007 no processo N 421/2006 (a seguir «Decisão de 2007»), para o período compreendido entre 1 de janeiro de 2007 e 31 de dezembro de 2013. A Comissão aprovou este regime como auxílio ao funcionamento compatível com o mercado interno destinado à promoção do desenvolvimento regional e à diversificação da estrutura económica da Madeira, enquanto região ultraperiférica na aceção do artigo 299.°, n.° 2, CE (atual artigo 349.° TFUE).

6        O Regime III assume a forma de uma redução do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (a seguir «IRC») sobre os lucros resultantes de atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira (3 % de 2007 a 2009, 4 % de 2010 a 2012 e 5 % de 2013 a 2020), de uma isenção de impostos municipais e locais, bem como de uma isenção do imposto sobre a transmissão de bens imóveis para a criação de uma empresa na ZFM, até montantes máximos de auxílio baseados nos limites máximos da base tributável aplicáveis à base tributável anual dos beneficiários. Esses limites máximos são fixados em função do número de postos de trabalho mantidos pelo beneficiário em cada exercício. Em determinadas condições, as sociedades registadas na ZFI da ZFM podem beneficiar de uma redução adicional de 50 % sobre o IRC.

7        O acesso ao Regime III foi restrito às atividades que figuravam numa lista incluída na Decisão de 2007. Além disso, todas as atividades de intermediação financeira, seguros e atividades auxiliares financeiras e de seguros, bem como todas as atividades do tipo «serviços intragrupo» (centros de coordenação, de tesouraria e de distribuição), enquanto «serviços prestados a empresas, sobretudo», foram excluídas do âmbito de aplicação do Regime III.

8        A Decisão da Comissão de 2 de julho de 2013 no processo SA.34160 (2011/N) (a seguir «Decisão de 2013») aprovou uma versão alterada do Regime III para o período compreendido entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2013. Esta mantém condições idênticas às previstas no Regime III, sob reserva de um aumento de 36,7 % dos limites máximos da base tributável a que é aplicável a redução do IRC.

9        Em seguida, a Decisão da Comissão de 26 de novembro de 2013 no processo SA.37668 (2013/N) aprovou a prorrogação até 30 de junho de 2014 do Regime III alterado. A Decisão da Comissão de 8 de maio de 2014 no processo SA.38586 (2014/N) aprovou a prorrogação do referido regime até fim de 2014.

10      Em 12 de março de 2015, a Comissão iniciou, ao abrigo do artigo 108.º, n.º 1, TFUE e do artigo 17.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo [108.º TFUE] (JO 1999, L 83, p. 1), um exercício de monitorização do Regime III relativo aos anos de 2012 e 2013.

11      Por ofício de 6 de julho de 2018, a Comissão informou a República Portuguesa da sua decisão de dar início ao procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.º, n.º 2, TFUE relativamente ao Regime III (JO 2019, C 101, p. 7; a seguir «decisão de dar início ao procedimento formal»).

12      Este procedimento foi iniciado devido às dúvidas da Comissão quanto, por um lado, à aplicação das isenções de imposto sobre os rendimentos provenientes de atividades efetiva e materialmente realizadas na RAM e, por outro, à ligação entre o montante do auxílio e a criação ou a manutenção de postos de trabalho efetivos na Madeira.

13      No termo do referido procedimento, a Comissão adotou a decisão recorrida, cujo dispositivo tem a seguinte redação:

«Artigo 1.°

O regime de auxílios “Zona Franca da Madeira (ZFM) — Regime III”, na medida em que foi aplicado por Portugal em violação da Decisão [de 2007] e da Decisão [de 2013], foi executado ilegalmente por Portugal em violação do artigo 108.º, n.º 3, [TFUE], e é incompatível com o mercado interno.

Artigo 2.°

Os auxílios individuais concedidos ao abrigo do regime referido no artigo 1.º não constituem auxílios se, no momento da respetiva concessão, preencherem as condições estabelecidas num regulamento adotado nos termos do artigo 2.º do Regulamento (UE) 2015/1588, aplicável à data da concessão do auxílio.

Artigo 3.°

Os auxílios individuais concedidos ao abrigo do regime referido no artigo 1.º que, à data da respetiva concessão, preencherem as condições estabelecidas nas decisões referidas no artigo 1.º ou num regulamento adotado nos termos do artigo 1.º do Regulamento [...] 2015/1588, são compatíveis com o mercado interno até ao limite das intensidades máximas de auxílio aplicáveis a este tipo de auxílios.

Artigo 4.°

1. Portugal deve proceder à recuperação dos auxílios incompatíveis concedidos ao abrigo do regime referido no artigo 1.º junto dos beneficiários.

[...]

4. Portugal deve revogar o regime de auxílios incompatível na medida referida no artigo 1.º e cancelar todos os pagamentos pendentes relativos aos auxílios, com efeitos a partir da data de notificação da presente decisão.

Artigo 5.°

1. A recuperação dos auxílios concedidos ao abrigo do regime previsto no artigo 1.º deve ser imediata e efetiva.

2. Portugal deve assegurar a execução da presente decisão no prazo de oito meses a contar da data da respetiva notificação.

[...]»

II.    Pedidos das partes

14      A recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular o artigo 1.°, assim como os artigos 4.° a 6.° da decisão recorrida;

–        condenar a Comissão nas despesas.

15      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar a recorrente nas despesas.

III. Questão de direito

A.      Quanto à admissibilidade

16      Na sua exceção de inadmissibilidade, a Comissão alega que a recorrente não tem legitimidade para agir contra a decisão impugnada, uma vez que esta decisão não a afeta de forma individual.

17      A este respeito, a Comissão alega que, segundo a jurisprudência, se considera que uma decisão cujo destinatário é um Estado‑Membro diz individualmente respeito a uma entidade infraestatal apenas quando estão preenchidos dois requisitos cumulativos, nomeadamente, quando esta entidade é a autora do ou dos atos visados por essa decisão e quando esta a impede de exercer como entende as suas competências próprias, de modo que o seu interesse em contestar essa decisão é assim distinto do interesse do Estado‑Membro em causa.

18      Ora, no caso presente, os dois diplomas que servem de base jurídica ao regime da ZFM, a saber, o Decreto‑Lei n.º 500/1980 que autoriza a criação de uma zona franca na Região Autónoma da Madeira, de 20 de outubro de 1980 (Diário da República, I série, n.º 243, de 20 de outubro de 1980, p. 3493), e o Decreto‑Lei n.º 215/1989 que aprova o Estatuto dos Benefícios Fiscais, de 1 de julho de 1989 (Diário da República, I série, n.º 149, de 1 de julho de 1989, p. 2578), foram adotados pelas autoridades centrais da República Portuguesa e não pela recorrente. Além disso, a autoridade responsável pela concessão do auxílio é o Ministério das Finanças e da Administração Pública português.

19      A Comissão acrescenta que a decisão recorrida não tem consequências quanto ao exercício das competências próprias da recorrente e, em particular, quanto aos poderes do seu Secretário Regional, que tutela a ZFM e, nomeadamente, licencia a instalação e o funcionamento das entidades que pretendam operar na ZFM. Com efeito, o referido Secretário Regional não adotou o regime de auxílios que aqui se discute. De igual modo, o facto de o imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas constituir um recurso próprio da recorrente é irrelevante.

20      A recorrente contesta esta argumentação.

21      Nos termos do quarto parágrafo do artigo 263.° TFUE, qualquer pessoa singular ou coletiva pode interpor, nas condições previstas nos primeiro e segundo parágrafos, recursos contra os atos de que seja destinatária ou que lhe digam direta e individualmente respeito, bem como contra os atos regulamentares que lhe digam diretamente respeito e não necessitem de medidas de execução.

22      Sendo a República Portuguesa a destinatária da decisão recorrida, o presente recurso não pode ser declarado admissível com fundamento na primeira parte do quarto parágrafo do artigo 263.º TFUE.

23      Uma vez que a Comissão alega que a decisão recorrida não diz individualmente respeito à recorrente, o Tribunal Geral considera oportuno apreciar, antes de mais, se a legitimidade da recorrente pode ser demonstrada à luz da segunda parte do quarto parágrafo do artigo 263.º TFUE.

24      A este respeito, segundo a jurisprudência, um ato da União Europeia diz direta e individualmente respeito a uma entidade infraestatal quando a impede diretamente de exercer as suas competências próprias como entender (v. Acórdãos de 10 de junho de 2009, Polónia/Comissão, T‑257/04, EU:T:2009:182, n.º 56 e jurisprudência referida, e de 2 de outubro de 2009, Chipre/Comissão, T‑300/05 e T‑316/05, não publicado, EU:T:2009:380, n.º 249 e jurisprudência referida).

25      No caso presente, é pacífico que a decisão recorrida visa auxílios concedidos pela RAM por meio dos seus recursos próprios. Além disso, segundo o direito português, a recorrente é responsável pelo funcionamento da ZFM e pelo financiamento do Regime III, bem como pela verificação do cumprimento, por parte dos beneficiários do referido regime, das condições previstas neste último.

26      Em especial, primeiro, o acesso à ZFM depende da concessão de uma licença emitida pelas autoridades da RAM. Segundo, o Regime III é exclusivamente financiado através de recursos da recorrente, assumindo esse financiamento a forma de redução das receitas fiscais que alimentam o seu orçamento. Terceiro, o controlo do cumprimento das condições a que está subordinado o benefício do Regime III é efetuado pelas autoridades fiscais da RAM, que têm competência exclusiva para proceder à liquidação e à cobrança das receitas fiscais próprias da recorrente e para exercer controlos fiscais para esse efeito.

27      Ora, ao declarar que o Regime III, conforme aplicado pela RAM, é incompatível com o mercado interno, a decisão recorrida obsta a que a recorrente continue a conceder, segundo a interpretação que considera estar em conformidade com o direito nacional e as Decisões de 2007 e de 2013, o benefício do Regime III às empresas estabelecidas no seu território e às quais concedeu uma licença que subordina o acesso à ZFM. Esta decisão obriga‑a igualmente a proceder à recuperação dos auxílios que concedeu, segundo a Comissão, em violação das referidas decisões e, por conseguinte, a renunciar aos benefícios fiscais previstos pelo Regime III que considera necessários para o seu desenvolvimento económico.

28      Deste modo, a decisão recorrida impede a recorrente de exercer as suas competências próprias como entender na aceção da jurisprudência recordada acima no n.º 24. Por conseguinte, há que considerar que diz direta e individualmente respeito à recorrente na aceção da segunda parte do quarto parágrafo do artigo 263.º TFUE.

29      Esta conclusão não é infirmada pela argumentação da Comissão relativa ao facto de a recorrente não ser a autora dos diplomas que instituem o regime da ZFM, os quais foram adotados pelas autoridades centrais da República Portuguesa (v. n.° 80, supra).

30      Com efeito, no caso em apreço, esta circunstância não tem impacto na admissibilidade do presente recurso, uma vez que a decisão recorrida não põe em causa a legalidade dos diplomas que instituem o Regime III, mas apenas a sua execução, declarada não conforme com as Decisões de 2007 e de 2013, a qual, no essencial, tem origem na aplicação das condições previstas nas referidas decisões pelas autoridades fiscais da RAM, sendo que é facto assente que estas são responsáveis pela aplicação do Regime III visado pela decisão recorrida.

31      Assim, a legitimidade da recorrente está demonstrada à luz da segunda parte do quarto parágrafo do artigo 263.º TFUE.

32      Por conseguinte, há que julgar improcedente a exceção de inadmissibilidade suscitada pela Comissão e declarar o recurso admissível, sem que seja necessário apreciar se as condições previstas na terceira parte do quarto parágrafo do artigo 263.º TFUE estão preenchidas.

B.      Quanto ao mérito

1.      Quanto ao primeiro fundamento, relativo à violação do artigo 107.º, n.º 1, TFUE, na medida em que o Regime III não tem caráter seletivo

33      Com o seu primeiro fundamento, a recorrente acusa a Comissão de ter violado o artigo 107.°, n.° 1, TFUE, na medida em que qualificou de «auxílio estatal», na aceção desta disposição, o Regime III, conforme aplicado.

34      A este respeito, alega que o Regime III não preenche um dos requisitos exigidos para essa qualificação, a saber, não tem caráter seletivo. Em seu entender, o Regime III constitui uma medida de caráter geral que se insere na economia geral do sistema fiscal português e tem por objeto o enquadramento de situações que objetivamente merecem um tratamento diferenciado.

35      Em particular, a recorrente alega que o quadro de referência para apreciar a seletividade do Regime III deve corresponder ao território da RAM e não a todo o território português.

36      Isto decorre do facto de a recorrente dispor, no plano constitucional, de autonomia institucional, processual e económica suficiente em relação às autoridades centrais portuguesas. Baseando‑se no Acórdão de 6 de setembro de 2006, Portugal/Comissão (C‑88/03, EU:C:2006:511), alega que essa autonomia lhe permite adaptar o sistema fiscal nacional às suas especificidades regionais, sem que uma decisão sua de reduzir a taxa de imposto seja compensada por contribuições ou subvenções provenientes de outras regiões ou do governo central. Essa autonomia justifica, assim, que o Regime III seja considerado de aplicação geral no seu território. Por outro lado, na medida em que a finalidade do regime da ZFM consiste em permitir aos operadores económicos ultrapassarem as dificuldades estruturais decorrentes da sua localização insular e ultraperiférica, a sua aplicação não pode ser qualificada de auxílio estatal.

37      Ora, ao não determinar, na decisão recorrida, se a recorrente ou a ZFM dispunham de autonomia institucional, processual e económica suficiente, e se existia um nexo de causalidade direto entre o Regime III e o apoio financeiro do governo central, a Comissão violou não só o artigo 107.°, n.° 1, TFUE mas também o seu dever de fundamentação.

38      A Comissão contesta esta argumentação.

39      Por conseguinte, há que apreciar se, no considerando 148 da decisão recorrida, a Comissão teve razão ao qualificar de «auxílio estatal», na aceção do artigo 107.º, n.º 1, TFUE, o Regime III, conforme aplicado.

40      A este respeito, segundo jurisprudência constante, a qualificação de uma medida nacional de «auxílio estatal» requer que todos os requisitos seguintes estejam preenchidos. Primeiro, deve tratar‑se de uma intervenção do Estado ou através de recursos estatais. Segundo, essa intervenção deve ser suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros. Terceiro, deve conferir uma vantagem seletiva ao seu beneficiário. Quarto, deve falsear ou ameaçar falsear a concorrência (v. Acórdão de 6 de outubro de 2021, World Duty Free Group e Espanha/Comissão, C‑51/19 P e C‑64/19 P, EU:C:2021:793, n.º 30 e jurisprudência referida).

41      No caso em apreço, a recorrente limita‑se a contestar o caráter seletivo da vantagem concedida aos beneficiários do Regime III, conforme aplicado.

42      Ora, quanto a este ponto, o Tribunal Geral já declarou que o Regime III, conforme aplicado pelas autoridades portuguesas, conferia uma vantagem seletiva aos seus beneficiários [Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.os 53 a 65].

43      Para chegar a esta conclusão, antes de mais, o Tribunal Geral declarou que resultava dos considerandos 10 a 17 da decisão recorrida, não impugnados pela recorrente, que o Regime III prevê uma vantagem sob a forma de redução do IRC, a favor das sociedades registadas na ZFM, as quais devem exercer determinadas atividades económicas taxativamente enumeradas que figuram numa lista anexa à Decisão de 2007 e das quais são excluídas, nomeadamente, todas as atividades de intermediação financeira e de seguros e as atividades auxiliares financeiras e de seguros, bem como todas as atividades do tipo «serviços intragrupo» (centros de coordenação, tesouraria e distribuição).

44      Daqui decorre que apenas algumas sociedades, e não todas, se podem registar na ZFM e que só essas sociedades registadas na ZFM, com exclusão das estabelecidas noutras partes da RAM ou do território português, podem beneficiar das reduções de impostos previstas no Regime III.

45      Assim, o Tribunal Geral declarou que a Comissão concluiu com razão, nos considerandos 134 e 135 da decisão recorrida, que as vantagens fiscais previstas no Regime III apresentavam caráter seletivo, uma vez que este é suscetível de favorecer certas empresas ou certas produções relativamente a outras que se encontram, à luz do objetivo prosseguido pelo referido regime, numa situação factual e jurídica comparável e que estão sujeitas a um tratamento diferenciado que pode, em substância, ser qualificado de discriminatório [Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.º 56].

46      Em seguida, o Tribunal Geral considerou que a alegação da República Portuguesa de que a Comissão tinha cometido um erro na definição do quadro de referência adotado para efeitos da apreciação do caráter seletivo do Regime III não podia alterar esta conclusão.

47      Em especial, foi declarado que, mesmo admitindo que o quadro de referência para apreciar o caráter seletivo do Regime III possa ser o do território da RAM, o facto de as empresas registadas no território da RAM, mas fora da ZFM, não poderem beneficiar do referido regime é suficiente para demonstrar o caráter seletivo deste último e para privar de fundamento a alegação da República Portuguesa, igualmente apresentada pela recorrente, quanto à falta de fundamentação da decisão recorrida no que respeita a este ponto [Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.º 58].

48      Por último, o facto de o Regime III ter por finalidade atenuar as desvantagens permanentes a que estão sujeitas as empresas que exercem a sua atividade na RAM não é suficiente para considerar que este regime é justificado pela natureza ou pela economia do sistema fiscal português, uma vez que não beneficia as sociedades estabelecidas na RAM que não estão registadas na ZFM. Com efeito, o simples facto de um sistema fiscal regional estar concebido tendo em vista assegurar a correção de desvantagens relacionadas com a insularidade não permite considerar que qualquer benefício fiscal concedido nesse âmbito seja justificado pela natureza e pela economia do sistema fiscal nacional. Assim, o facto de se atuar com base numa política de desenvolvimento regional ou de coesão social não basta para que uma medida adotada no quadro de tal política se possa considerar justificada por esse simples facto (v., nesse sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2006, Portugal/Comissão, C‑88/03, EU:C:2006:511, n.º 82).

49      Por conseguinte, a Comissão declarou com razão, no considerando 136 da decisão recorrida, que o Regime III, conforme aplicado, conferia uma vantagem seletiva aos seus beneficiários.

50      Em face do exposto, há que julgar improcedente o primeiro fundamento.

2.      Quanto aos segundo a quinto fundamentos, relativos à qualificação alegadamente errada do Regime III, conforme aplicado, de «novo auxílio» e não de «auxílio existente»

a)      Quanto ao objeto dos segundo a quinto fundamentos

51      Com os seus segundo a quinto fundamentos, a recorrente alega, em substância, que a Comissão considerou erradamente que o Regime III, conforme aplicado, não era conforme com as Decisões de 2007 e de 2013.

52      A este respeito, importa recordar que, quando um recorrente entende que a Comissão considerou erradamente que as modalidades de pagamento de auxílios individuais ao abrigo de um regime de auxílios previamente autorizado não eram conformes com essa autorização prévia, a argumentação dessa parte deve ser compreendida no sentido de que critica o facto de a Comissão ter recusado reconhecer aos referidos auxílios a qualificação jurídica de «auxílio existente», na aceção do artigo 1.º, alínea b), ii), do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.º TFUE (JO 2015, L 248, p. 9), a saber, as dos regimes de auxílios ou de auxílios individuais autorizados pela Comissão ou pelo Conselho da União Europeia [Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.º 100].

53      Por conseguinte, há que entender os segundo a quinto fundamentos no sentido de que visam, em substância, contestar o facto de, nos considerandos 150 a 180 e 228 da decisão recorrida, a Comissão não ter equiparado o Regime III, conforme aplicado, a um «auxílio existente» na aceção do artigo 1.º, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, cuja compatibilidade deveria ter sido apreciada no âmbito do exame permanente dos regimes de auxílios existentes, previsto no artigo 108.º, n.º 1, TFUE, tendo‑o qualificado, no considerando 180 da decisão recorrida, de «auxílio ilegal» e, assim, de «novo auxílio» na aceção do artigo 1.º, alínea c), do Regulamento 2015/1589, em violação do artigo 108.º, n.º 3, TFUE.

b)      Quanto ao mérito dos segundo a quinto fundamentos

54      Com os seus segundo a quinto fundamentos, que devem ser apreciados em conjunto pelos motivos evocados acima no n.º 52, a recorrente alega que a Comissão concluiu erradamente que o Regime III tinha sido aplicado segundo modalidades diferentes das que tinham sido autorizadas pelas Decisões de 2007 e de 2013.

55      Primeiro, em apoio do segundo fundamento, a recorrente acusa a Comissão de ter realizado uma leitura demasiado restritiva da condição, prevista nas Decisões de 2007 e de 2013, de os lucros das sociedades registadas na ZFM decorrerem de «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira».

56      Em seu entender, as Decisões de 2007 e de 2013 devem ser interpretadas no sentido de que permitem que as empresas com sede ou direção efetiva na Madeira sejam aí tributadas pela universalidade dos seus rendimentos, independentemente do local onde estes foram obtidos, desde que resultem de atividades admitidas na ZFM.

57      A este respeito, antes de mais, a recorrente alega que, nas negociações prévias à aplicação dos Regimes II e III, a República Portuguesa precisou que os sujeitos passivos com sede ou direção efetiva no território da RAM eram aí tributados pela universalidade dos seus rendimentos. Tendo em conta a finalidade da ZFM, que consiste na «captação» do investimento estrangeiro, e não na compensação direta dos custos adicionais relacionados com a situação da RAM ou ainda na criação de postos de trabalho, seria «absurdo» passar a limitar os benefícios fiscais previstos no Regime III apenas às atividades desenvolvidas no território da RAM.

58      Com efeito, o conceito de «atividades efetiva e materialmente realizadas» na região em causa é definido de modo menos detalhado nas Decisões de 2007 e de 2013 do que nas decisões relativas ao regime da zona franca das ilhas Canárias (Espanha), o que é normal, tendo em conta o facto de que, ao contrário do que sucede na RAM, nas ilhas Canárias existe um grave problema de desemprego, o que permite compreender que o regime esteja condicionado à criação ou à manutenção de emprego nessa região.

59      Por outro lado, a própria Comissão sempre teve consciência de que a instituição da ZFM teve em vista primacialmente objetivos de contribuição para o produto interno bruto (PIB) da RAM, internacionalização e modernização do tecido empresarial e, mais indiretamente, criação e manutenção de postos de trabalho. Além disso, os benefícios fiscais da ZFM são marcadamente inferiores aos custos adicionais resultantes da situação periférica da RAM.

60      Em seguida, a recorrente considera que a interpretação que propõe do conceito de «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira» está em conformidade com as «regras» da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que a Comissão não teve suficientemente em conta na decisão recorrida. Em seu entender, essas regras não exigem um vínculo definitivo de jure e de facto entre a atividade económica real desenvolvida dentro da zona económica especial em causa e os lucros para os quais o benefício fiscal é concedido.

61      Por conseguinte, a recorrente entende que uma atividade é considerada «efetiva e materialmente realizada na Madeira» se aí for exercida de forma real, com uma sede própria, quadros e recursos próprios e adequados, com um centro de decisão efetivo e real, sem que se possa exigir que a totalidade dos trabalhadores aí desempenhe as suas funções permanentemente ou que a atividade seja circunscrita ao território da RAM.

62      Por último, a recorrente alega que, ao exigir que as atividades sejam «efetiva e materialmente realizadas na Madeira», a decisão recorrida ignora as dificuldades sofridas pelas regiões ultraperiféricas e colide com o objetivo de atração do investimento estrangeiro para a RAM. Esta decisão é também omissa quanto ao facto de as atividades realizadas fora de uma determinada região poderem, ainda assim, beneficiar de modo significativo essa região. Em suma, tal exigência produziria efeitos profundamente devastadores para a economia da RAM, que, tendo em conta o seu estatuto de região ultraperiférica, merece tratamento favorável à luz dos Tratados.

63      Segundo, em apoio do quarto fundamento, a recorrente acusa a Comissão de ter interpretado incorretamente o requisito relativo à «manutenção ou de criação de postos de trabalho», ao considerar que, para efeitos do cálculo exato do número de postos de trabalho criados ou mantidos por cada beneficiário do Regime III, as autoridades portuguesas deviam ter seguido a metodologia de definição de postos de trabalho em «Equivalente a Tempo Integral» (ETI) e em «Unidades de Trabalho Anuais» (UTA).

64      A este respeito, contesta a existência, nas Decisões de 2007 e de 2013, de uma obrigação, à qual, aliás, sempre se opôs, de adotar uma metodologia de definição dos postos de trabalho em ETI e em UTA. A falta de menção destas metodologias nessas decisões decorre assim do facto de a Comissão ter aceitado a posição defendida pelas autoridades portuguesas aquando das negociações do Regime III, segundo as quais o conceito de «criação de emprego» devia ser interpretado à luz da legislação nacional.

65      Sublinha igualmente que o Regime III é um «auxílio ao funcionamento», na aceção da secção 5 das Orientações de 2007, e não um «auxílio ao investimento», na aceção da secção 4 das referidas orientações. Ora, o conceito de «criação de emprego» é mencionado exclusivamente nesta última secção, respeitante aos auxílios ao investimento, pelo que a metodologia de definição de postos de trabalho por ETI e UTA não é aplicável aos auxílios ao funcionamento.

66      Por outras palavras, a verificação do cumprimento das Decisões de 2007 e de 2013 deve ser efetuada por apelo aos n.os 76 a 83 das Orientações de 2007, e não com base nas regras aplicáveis aos auxílios ao investimento. Isto é conforme com a finalidade de qualquer auxílio ao funcionamento pago a uma região ultraperiférica, que visa atrair atividades económicas, independentemente do número e da localização dos postos de trabalho criados.

67      Além disso, na falta de um conceito uniforme ao nível da União, cabe a cada Estado‑Membro, em função da sua legislação, determinar o alcance a dar ao conceito de «posto de trabalho». Acresce que a interpretação deste conceito feita pela Comissão conduziria a que, na contabilização do número de trabalhadores, não fossem considerados os temporariamente ausentes, por exemplo em gozo de licenças parentais ou de maternidade ou os que exerceram o seu direito à livre circulação ou à livre prestação de serviços e que foram destacados pelo seu empregador para outro Estado‑Membro. A recorrente acrescenta, a este respeito, que as decisões relativas ao regime da zona franca das ilhas Canárias reconheceram que seria contrário aos Tratados UE e FUE exigir que o benefício em causa dependesse da criação de emprego na própria região apenas.

68      Além disso, contrariamente ao que o Tribunal Geral declarou no n.° 165 do Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira) (T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567), não se pode sustentar, à luz dos considerandos 40 e 41 da decisão de dar início ao procedimento formal e dos considerandos 171 e 173 a 175 da decisão recorrida, que a Comissão não impôs de modo nenhum às autoridades portuguesas o recurso aos métodos ETI e UTA.

69      Em apoio da sua argumentação, a recorrente apresenta um ofício da Comissão de 11 de agosto de 2017, do qual resulta que, no âmbito do exercício de monitorização de 2015, pediu às autoridades portuguesas que calculassem o número de postos de trabalho criados ou mantidos nos anos de 2012 e de 2013 segundo o método UTA.

70      Por último, a recorrente considera que, no n.° 175 do Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira) (T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567), o Tribunal Geral inverteu as regras relativas ao ónus da prova, segundo as quais cabia à Comissão demonstrar que as autoridades portuguesas não tinham implementado um método de cálculo objetivo e verificável ao recusarem ter em conta um caso concreto em que as autoridades fiscais aplicaram o método UTA.

71      Terceiro, em apoio dos terceiro e quinto fundamentos, a recorrente recorda que o benefício do Regime III está sujeito ao cumprimento de obrigações fiscais nacionais e regionais, tais como a manutenção de uma contabilidade separada para os rendimentos gerados na ZFM, bem como de outras obrigações fiscais acessórias, facilitando o controlo do cumprimento do pressuposto ligado às «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira». A isto acrescem os mecanismos de fiscalização e de controlo que foram instituídos para efeitos do controlo efetivo dos pressupostos contidos nas Decisões de 2007 e de 2013.

72      Sublinha que realiza controlos rigorosos nas sociedades registadas na ZFM, nomeadamente, procedendo ao cruzamento das informações fornecidas pelas empresas no âmbito do cumprimento das obrigações acessórias e efetuando correções de um montante elevado.

73      Por conseguinte, a Comissão cometeu um erro ao concluir, no considerando 178 da decisão recorrida, que os controlos fiscais realizados pelas autoridades portuguesas não eram eficazes no que referia ao cálculo exato do número de postos de trabalho mantidos na ZFM e à avaliação da relação entre os postos de trabalho criados e as «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira».

74      A Comissão contesta a procedência destes quatro fundamentos tal como apresentados acima nos n.os 55 a 73.

75      Importa recordar que, de acordo com o artigo 108.º, n.º 1, TFUE, os «auxílios existentes» podem ser regularmente executados enquanto a Comissão não tiver declarado a sua incompatibilidade com o mercado interno e estão sujeitos ao procedimento de exame permanente previsto nessa mesma disposição. Em contrapartida, o artigo 108.º, n.º 3, TFUE prevê que a Comissão deve ser notificada, em tempo útil, dos projetos de instituição de «novos auxílios» ou de alteração de «auxílios existentes» e que não lhes pode ser dada execução antes de o procedimento ter sido objeto de uma decisão final adotada nos termos do procedimento previsto no artigo 108.º, n.º 2, TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 27 de junho de 2017, Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania, C‑74/16, EU:C:2017:496, n.º 86 e jurisprudência referida).

76      Decorre desta jurisprudência, conjugada com o artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.º 794/2004 da Comissão, de 21 de abril de 2004, relativo à aplicação do Regulamento n.o 659/1999 (JO 2004, L 140, p. 1), que um regime de auxílios autorizado, logo, existente, deixa de ser abrangido pela decisão que o autorizou e, por conseguinte, constitui um «novo auxílio» quando o Estado‑Membro em causa aplica esse regime de auxílios, autorizado, é certo, pela Comissão, mas segundo modalidades substancialmente diferentes das previstas no projeto de regime de auxílios notificado por esse Estado‑Membro e, por isso, substancialmente diferentes das que foram tomadas em consideração pela Comissão para declarar a compatibilidade desse regime.

77      Assim, um regime de auxílios existente na aceção do artigo 1.º, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, como o autorizado pelas Decisões de 2007 e de 2013, que foi substancialmente alterado e aplicado em violação das condições de pagamento previamente autorizadas pela Comissão deixa de poder ser considerado autorizado e, por conseguinte, perde integralmente a sua qualificação de regime de auxílios existente (v., por analogia, no que respeita à inobservância de uma condição expressamente prevista por uma decisão da Comissão a fim de assegurar a compatibilidade do auxílio em causa com o mercado interno, Acórdão de 25 de outubro de 2017, Comissão/Itália, C‑467/15 P, EU:C:2017:799, n.os 47 e 54).

78      Em face do exposto, há que determinar se, nos considerandos 180, 211 e 228, bem como no artigo 1.° da decisão recorrida, a Comissão teve razão ao concluir que a República Portuguesa tinha aplicado o Regime III em violação das Decisões de 2007 e de 2013 e, por conseguinte, ao considerar que esse regime, conforme aplicado, era substancialmente diferente do autorizado por essas decisões e, por isso, constituía um novo auxílio executado por esse Estado‑Membro em violação do artigo 108.°, n.° 3, TFUE.

79      Para este efeito, importa verificar em seguida se a Comissão podia validamente considerar, primeiro, que só as atividades «efetiva e materialmente realizadas na Madeira» conferiam direito aos auxílios autorizados pelas Decisões de 2007 e de 2013 (considerandos 151 a 167 da decisão recorrida), segundo, que o método de cálculo adotado pelas autoridades portuguesas para determinar os postos de trabalho criados ou mantidos por cada beneficiário do Regime III não permitia controlar efetivamente a aplicação correta desse regime (considerandos 168 a 178 da decisão recorrida) e, terceiro, que os controlos fiscais efetuados pelas autoridades portuguesas não permitiam controlar efetivamente a aplicação correta do referido regime (considerandos 165, 176 e 178 da decisão recorrida).

1)      Quanto ao requisito relativo à origem dos lucros aos quais se aplica a redução do IRC

80      A argumentação da recorrente implica determinar se, apesar da redação do Regime III, bem como das Decisões de 2007 e de 2013, que subordinam a concessão dos auxílios autorizados à condição de os lucros das sociedades registadas na ZFM resultarem de atividades «efetiva e materialmente realizadas na Madeira», podia, sem violar essas decisões, aplicar o Regime III a sociedades registadas, é certo, na ZFM, mas cujos lucros provinham de atividades realizadas total ou parcialmente fora da RAM.

81      A este respeito, é jurisprudência constante que a determinação do significado e do alcance dos termos para os quais o direito da União não forneça nenhuma definição se deve fazer de acordo com o seu sentido habitual, tendo em conta o contexto em que são utilizados e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que fazem parte (v. Acórdão de 27 de janeiro de 2022, Zinātnes parks, C‑347/20, EU:C:2022:59, n.º 42 e jurisprudência referida).

82      Ora, contrariamente ao que alega a recorrente, a expressão «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira», na sua aceção habitual, não pode ser interpretada no sentido de que visa atividades realizadas fora da RAM, mesmo que por sociedades registadas na ZFM.

83      Esta conclusão é corroborada pelo contexto da decisão recorrida, bem como pelos objetivos prosseguidos pela regulamentação da União em matéria de auxílios de Estado e, em especial, pela regulamentação aplicável aos auxílios com finalidade regional.

84      Antes de mais, resulta das decisões que autorizam os Regimes II e III que, nos procedimentos administrativos que deram origem a essas decisões, a Comissão e as autoridades portuguesas partilharam sempre a interpretação a dar à expressão «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira».

85      Com efeito, resulta da Decisão de 2002 que, no procedimento administrativo que lhe deu origem, as autoridades portuguesas indicaram que «os benefícios fiscais ser[iam] limitados às atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira, o que dever[ia] permitir excluir as atividades que fossem exercidas fora da Madeira».

86      De igual modo, como resulta do considerando 226 da decisão recorrida, não impugnado pela recorrente, a Comissão «tinha solicitado a introdução, no projeto de lei notificado por Portugal em 28 de junho de 2006, de uma disposição expressa nos termos da qual as reduções do imposto apenas seriam aplicáveis aos lucros resultantes de atividades realizadas na Madeira [e a República Portuguesa] recusou‑se a fazê‑lo por considerar que essa disposição não era necessária, uma vez que essa restrição decorria da base jurídica da ZFM».

87      Em seguida, os termos das Decisões de 2007 e de 2013, mesmo admitindo que pudessem ser considerados ambíguos, devem ser interpretados em conformidade com as suas bases jurídicas, a saber, respetivamente, o artigo 87.º, n.º 3, alínea a), CE [atual artigo 107.º, n.º 3, alínea a), TFUE] e o artigo 107.º, n.º 3, alínea a), TFUE, bem como com as Orientações de 2007.

88      Ora, todas as derrogações ao princípio geral da incompatibilidade dos auxílios de Estado com o mercado interno, enunciado no artigo 107.º, n.º 1, TFUE, devem ser objeto de interpretação estrita (v. Acórdão de 29 de abril de 2004, Alemanha/Comissão, C‑277/00, EU:C:2004:238, n.º 20 e jurisprudência referida).

89      Além disso, como acertadamente referiu a Comissão no considerando 153 da decisão recorrida, as Orientações de 2007, e mais concretamente os seus n.os 6 e 76, enunciam que excecionalmente podem ser concedidos auxílios ao funcionamento nas regiões que beneficiam da derrogação prevista no n.º 3, alínea a), do artigo 87.º CE, como a RAM, cujo estatuto de região ultraperiférica é reconhecido pela Comissão, desde que sejam justificados pela sua contribuição para o desenvolvimento regional e pela sua natureza e que o seu nível seja proporcional às desvantagens que pretendem atenuar.

90      Isto implica que apenas as atividades afetadas pelas desvantagens e, por conseguinte, os custos adicionais específicos dessas regiões devem ser suscetíveis de beneficiar de tais auxílios ao funcionamento.

91      Assim, podem ser excluídas do benefício desses mesmos auxílios as atividades exercidas fora das referidas regiões que, devido a este facto, não são afetadas por esses custos adicionais, mesmo que sejam exercidas por sociedades estabelecidas nessas mesmas regiões.

92      Por último, como a Comissão indicou com razão no considerando 157 da decisão recorrida, a apreciação da compatibilidade do Regime III, na Decisão de 2007, foi efetuada com base nos custos adicionais suportados pelas empresas que exercem a sua atividade na RAM e não fora desta.

93      Com efeito, resulta dos n.os 44 a 53 da Decisão de 2007 que a Comissão se baseou num estudo, fornecido pelas autoridades portuguesas, que quantificava os «custos adicionais suportados pelo setor privado na [RAM]». Além disso, os custos adicionais tomados em consideração, nomeadamente as despesas de transporte, de existências, de recursos humanos, de financiamento ou de comercialização, são aqueles a que estão expostas as atividades exercidas efetiva e materialmente na RAM, e não as atividades exercidas fora dela por sociedades registadas nessa região. Por último, esta constatação é corroborada pelo facto de, no n.º 48 da Decisão de 2007, a Comissão ter considerado os custos adicionais em causa em percentagem apenas do valor acrescentado bruto do setor privado ou apenas do PIB da RAM.

94      Por conseguinte, além de não encontrar fundamento na redação e no contexto das Decisões de 2007 e de 2013, a interpretação lata da expressão «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira», defendida pela recorrente, é contrária não só aos objetivos prosseguidos pelo artigo 87.º, n.º 3, alínea a), CE e pelo artigo 107.º, n.º 3, alínea a), TFUE, que serviram de fundamento jurídico, respetivamente, às Decisões de 2007 e de 2013, mas igualmente às Orientações de 2007.

95      A este respeito, o facto de a interpretação adotada pela Comissão poder, como alega a recorrente, ser contrária a um comentário do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE, a um relatório do grupo «Base Erosion and Profit shifting» (BEPS, erosão da base tributável e transferência de lucros) dessa organização e às orientações de um fórum dessa mesma organização, bem como à prática decisória anterior da Comissão, não pode alterar esta conclusão.

96      Com efeito, embora a Comissão possa tomar em consideração textos adotados no âmbito da OCDE, não pode, de modo nenhum, estar vinculada por estes, nomeadamente na aplicação das regras do Tratado FUE, em particular as relativas aos auxílios de Estado [v., neste sentido, Acórdão de 12 de maio de 2021, Luxemburgo e Amazon/Comissão, T‑816/17 e T‑318/18, pendente de recurso, EU:T:2021:252, n.º 154, e Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo État luxembourgeois (Informações sobre um grupo de contribuintes), C‑437/19, EU:C:2021:450, n.º 67].

97      De igual modo, a legalidade de uma decisão da Comissão deve ser apreciada apenas no âmbito do artigo 107.º TFUE, e não à luz de uma alegada prática decisória anterior desta (v., neste sentido, Despacho de 10 de outubro de 2017, Greenpeace Energy/Comissão, C‑640/16 P, não publicado, EU:C:2017:752, n.º 27, e Acórdão de 26 de março de 2020, Larko/Comissão, C‑244/18 P, EU:C:2020:238, n.º 114).

98      Por conseguinte, mesmo admitindo que as Decisões de 2007 e de 2013 não têm o mesmo grau de precisão que as decisões relativas à zona franca das ilhas Canárias, esta circunstância não pode, de modo nenhum, pôr em causa a apreciação da Comissão.

99      Com efeito, a Comissão explicou, sem impugnação, que as decisões relativas à zona franca das ilhas Canárias são mais detalhadas simplesmente porque respondem às condições propostas pelo próprio Estado‑Membro em causa. Ora, no caso em apreço, como resulta acima do n.º 85, a Comissão podia legitimamente considerar que não era necessário especificar melhor o requisito controvertido, uma vez que a própria República Portuguesa tinha indicado, no procedimento que conduziu à Decisão de 2002 relativa ao Regime II, que pela primeira vez incluiu esse requisito no regime da ZFM, que o mesmo «dever[ia] permitir excluir as atividades que seriam exercidas fora da Madeira».

100    Também é irrelevante o facto de as autoridades portuguesas nunca terem ocultado à Comissão que as sociedades com sede ou direção efetiva na ZFM eram aí tributadas pela totalidade dos seus rendimentos.

101    Com efeito, o facto de essas sociedades serem tributadas sobre a totalidade dos seus rendimentos pelas autoridades fiscais da RAM de modo nenhum implica que os auxílios ao funcionamento concedidos por esta região às referidas sociedades devam necessariamente beneficiar todas as atividades dessas sociedades e não possam ser reservados a uma parte identificada dessas atividades.

102    Além disso, no âmbito da fiscalização da compatibilidade dos auxílios de Estado prevista no artigo 108.º TFUE e em conformidade com o artigo 4.º, n.º 3, TUE, cabe ao Estado notificante e à Comissão colaborarem de boa‑fé com vista a permitir a esta última superar as dificuldades que possa encontrar durante o exame de um projeto de auxílios notificado no âmbito do procedimento do artigo 108.º, n.º 3, TFUE (v. Acórdão de 15 de março de 2001, Prayon‑Rupel/Comissão, T‑73/98, EU:T:2001:94, n.º 99 e jurisprudência referida).

103    Isso implica, em especial, que o Estado em causa forneça à Comissão todas as informações necessárias para lhe permitir cumprir a sua missão e, em especial, apreciar a compatibilidade dos auxílios com o mercado interno, como resulta dos considerandos 6 e 16 do Regulamento n.º 659/1999 (atuais considerandos 6 e 16 do Regulamento 2015/1589).

104    Ora, a recorrente não demonstra que a República Portuguesa, durante o procedimento administrativo que conduziu às Decisões de 2002, de 2007 ou de 2013, informou expressa e univocamente a Comissão de que, apesar da redação das condições que enquadravam o Regime II ou o Regime III, estes últimos se destinavam a ser aplicados a todas as sociedades registadas na ZFM e a todas as suas atividades, incluindo as exercidas fora da RAM.

105    Pelo contrário, resulta dos n.os 85 e 86 que, em várias ocasiões, as autoridades portuguesas indicaram à Comissão que as reduções do IRC eram limitadas às «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira», o que excluía as atividades exercidas fora dessa região.

106    Foi, portanto, sem cometer nenhum erro de direito e sem introduzir condições adicionais às suas Decisões de 2007 e de 2013 que a Comissão concluiu acertadamente, no considerando 167 da decisão recorrida, que o Regime III, conforme aplicado, no que respeitava ao requisito relativo à origem dos lucros aos quais a redução do IRC era aplicada, era contrário às referidas decisões.

107    Esta conclusão não pode ser posta em causa pela argumentação da recorrente de que, ao interpretar a expressão «atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira» no sentido de que não visa as atividades exercidas fora dessa região por sociedades registadas na ZFM, a Comissão não teve suficientemente em consideração os efeitos negativos dos Regimes II e III na RAM, bem como o efeito de arrastamento do Regime III, conforme aplicado, ou ainda violou os princípios da livre circulação.

108    Primeiro, no que respeita à alegação de insuficiente consideração dos efeitos negativos dos Regimes II e III na RAM e do efeito de arrastamento do Regime III, conforme aplicado, há que salientar que, com esta alegação, a recorrente não pretende pôr em causa a apreciação efetuada pela Comissão quanto à não conformidade do Regime III, conforme aplicado, com as Decisões de 2007 e de 2013 nem, por conseguinte, a qualificação jurídica desse regime de «novo auxílio» na aceção do artigo 1.º, alínea c), do Regulamento 2015/1589, concedido em violação do artigo 108.º, n.º 3, TFUE.

109    Pelo contrário, a recorrente pretende implicitamente pôr em causa a apreciação da compatibilidade do Regime III efetuada nas Decisões de 2007 e de 2013, que se tornaram definitivas, sem que, no entanto, a sua argumentação possa ser interpretada no sentido de que invoca uma exceção de ilegalidade das referidas decisões na aceção do artigo 277.º TFUE. Em todo o caso, tal argumentação, que não é apoiada por nenhum argumento adicional, não preenche os requisitos do artigo 76.º, alínea d), do Regulamento de Processo do Tribunal Geral e deve, assim, ser julgada inadmissível.

110    Segundo, a alegação de violação dos princípios da liberdade de estabelecimento, da livre circulação de pessoas, da livre prestação de serviços e da livre circulação de capitais visa igualmente pôr em causa a legalidade das Decisões de 2007 e de 2013 e, além disso, apenas é apoiada pela afirmação de que a decisão recorrida proíbe ou limita a possibilidade de um trabalhador contratado por uma sociedade registada na ZFM poder exercer a sua atividade profissional noutro Estado‑Membro ou num Estado terceiro e de as sociedades em causa prestarem serviços fora da RAM.

111    Tal alegação, que se limita a parafrasear as disposições do Tratado FUE e que não é apoiada por nenhum argumento adicional, deve ser julgada inadmissível, por força do artigo 76.º, alínea d), do Regulamento de Processo.

112    Em face do exposto, a Comissão não cometeu nenhum erro de direito na interpretação do requisito, previsto nas Decisões de 2007 e de 2013, de as reduções do IRC previstas no Regime III apenas poderem ter por objeto os lucros resultantes de atividades «efetiva e materialmente realizadas na Madeira».

2)      Quanto ao requisito relativo à criação ou à manutenção de postos de trabalho na RAM

113    No considerando 178 da decisão recorrida, a Comissão entendeu que a aplicação pelas autoridades portuguesas do Regime III, no que respeitava ao requisito de criação ou de manutenção de postos de trabalho na RAM, violava as Decisões de 2007 e de 2013.

114    Em apoio desta conclusão, a Comissão indicou, em substância, nos considerandos 168 a 174 da decisão recorrida, que este requisito era uma condição para aceder ao Regime III e que, enquanto parâmetro do cálculo do montante do auxílio, se devia basear em métodos objetivos e verificáveis como os métodos UTA e ETI, utilizados nas Orientações de 2007 e nos regulamentos de isenção por categorias sucessivos.

115    Nos considerandos 175 a 176 da decisão recorrida, a Comissão referiu em seguida que, para as autoridades portuguesas, constituía um «posto de trabalho» para efeitos da aplicação do Regime III qualquer emprego, de qualquer natureza jurídica, independentemente do número de horas, dias e meses de trabalho ativo por ano, declarado pelos beneficiários sem que essas autoridades pudessem verificar quanto tempo foi efetivamente despendido pelo titular do posto no seu trabalho nem converter esse tempo em ETI.

116    Com essa fundamentação, a Comissão revelou de maneira clara e inequívoca o seu raciocínio, permitindo aos interessados conhecerem as razões da conclusão a que chegou e ao Tribunal Geral exercer a sua fiscalização.

117    Quanto ao mérito desta conclusão, a recorrente acusa essencialmente a Comissão de lhe ter imposto erradamente o recurso aos métodos ETI e UTA, com exclusão do conceito de «posto de trabalho» na aceção do direito português, para verificar o preenchimento do requisito relativo à criação ou à manutenção de postos de trabalho na RAM.

118    No entanto, essa argumentação resulta de uma leitura errada da decisão recorrida.

119    Com efeito, a conclusão de que o Regime III, conforme aplicado, viola as Decisões de 2007 e de 2013 não se baseia no facto de as autoridades portuguesas não terem recorrido aos métodos ETI e UTA para verificar se estava preenchido o requisito relativo à criação ou à manutenção de postos de trabalho na RAM. Essa conclusão assenta na constatação, que figura no considerando 176 da decisão recorrida, de que o método adotado pelas autoridades portuguesas para calcular o número de postos de trabalho criados ou mantidos na RAM não permitia verificar a realidade e a permanência dos postos de trabalho declarados pelos beneficiários do referido regime.

120    Ora, esta conclusão tem suporte suficiente nos considerandos 28 e 175 da decisão recorrida, segundo os quais, em aplicação do método adotado pelas autoridades portuguesas, constituía um posto de trabalho para efeitos da aplicação do Regime III qualquer emprego, de qualquer natureza jurídica, independentemente do número de horas, dias e meses de trabalho ativo por ano, declarado pelos beneficiários, incluindo os empregos a tempo parcial ou os de membros do conselho de administração que desenvolvem a sua atividade em mais do que uma sociedade beneficiária do Regime III.

121    Uma vez que a decisão recorrida não se baseou na constatação de que as autoridades portuguesas não recorreram aos métodos ETI e UTA para calcular o número de postos de trabalho, os argumentos apresentados pela recorrente para acusar a Comissão de lhe ter imposto erradamente o recurso a esses métodos devem, em todo o caso, ser rejeitados.

122    Em face do exposto, a Comissão não violou, assim, o artigo 296.º, segundo parágrafo, TFUE nem cometeu nenhum erro de apreciação ao declarar, no considerando 179 da decisão recorrida, que o Regime III, conforme aplicado, violava o requisito de criação e de manutenção de postos de trabalho na RAM.

3)      Quanto à eficácia dos controlos fiscais efetuados para efeitos da verificação da correta aplicação dos requisitos relativos à origem dos lucros aos quais se aplica a redução do IRC e à criação ou à manutenção de postos de trabalho na RAM

123    No considerando 178 da decisão recorrida, a Comissão entendeu que os controlos fiscais efetuados pelas autoridades portuguesas aos beneficiários do Regime III, conforme aplicado, bem como os dados recolhidos no âmbito desses controlos, não permitiam controlar eficazmente os requisitos desse regime relativos à origem dos lucros aos quais se aplicava a redução do IRC e à criação ou à manutenção de postos de trabalho na RAM.

124    Em apoio dessa conclusão, a Comissão indicou, em substância, no considerando 165 da decisão recorrida, que os controlos fiscais das autoridades portuguesas tinham sido realizados em conformidade com a interpretação ampla do requisito relativo à origem dos lucros aos quais se aplicava a redução do IRC adotada por essas autoridades, que se afastava da sugerida nas Orientações de 2007 e nas Decisões de 2007 e de 2013.

125    No considerando 176 da decisão recorrida, a Comissão acrescentou que as autoridades portuguesas, com base nas declarações apresentadas pelos beneficiários do Regime III, não estavam em condições de verificar a realidade ou a permanência dos postos de trabalho declarados, devido à inexistência de um método de cálculo comum e objetivo aplicável a todas as relações de trabalho.

126    Com essa fundamentação, a Comissão revelou de maneira clara e inequívoca o seu raciocínio, permitindo aos interessados conhecerem as razões da conclusão a que chegou e ao Tribunal Geral exercer a sua fiscalização.

127    Quanto ao mérito desta conclusão, importa salientar, como foi recordado acima, nos n.os 123 a 125, que a Comissão considerou que os controlos efetuados pelas autoridades fiscais eram inadequados para a verificação da correta aplicação dos requisitos relativos à origem dos lucros a que se aplicava a redução do IRC e para a criação ou manutenção de postos de trabalho na RAM, previstas no Regime III. Entendeu que essa inadequação decorria essencialmente do facto de as autoridades portuguesas interpretarem ou aplicarem esses requisitos em violação das Decisões de 2007 e de 2013.

128    Ora, tendo o Tribunal Geral considerado acima, nos n.os 106 e 122, que as críticas da Comissão relativas à interpretação e à aplicação desses dois requisitos referidos no número anterior eram fundadas, o simples facto, de resto não impugnado pela Comissão, de as autoridades fiscais portuguesas exigirem a manutenção de uma contabilidade separada para os rendimentos gerados pela ZFM, disporem de instrumentos de controlo, a priori e a posteriori, dos sujeitos passivos e, em especial, dos beneficiários do Regime III ou procederem a controlos numerosos e sistemáticos que, em certos casos, conduziram a correções de um montante significativo não é suficiente para demonstrar que esses controlos fiscais permitem, em definitivo, a essas autoridades assegurar eficazmente a correta aplicação desse regime, uma vez que as referidas autoridades interpretam ou aplicam esse regime em violação das Decisões de 2007 e de 2013.

129    É o que sucede, em particular, com a obrigação de as sociedades estabelecidas na ZFM manterem uma contabilidade separada para os rendimentos gerados pela ZFM, uma vez que, como se observa acima no n.º 106, os rendimentos gerados pela ZFM não eram calculados em conformidade com as Decisões de 2007 e de 2013.

130    De igual modo, o facto de a recorrente invocar o exemplo de um controlo fiscal efetuado a uma sociedade registada na ZFM e que deu origem à aplicação do método UTA não basta para pôr em causa a conclusão a que a Comissão chegou, na impossibilidade de revelar práticas e métodos constantes e estabelecidos das autoridades portuguesas que lhes permitam controlar que, em geral, o Regime III é executado em conformidade com as Decisões de 2007 e de 2013.

131    Por conseguinte, a Comissão não violou o artigo 296.°, segundo parágrafo, TFUE nem cometeu um erro de apreciação ao declarar, no considerando 178 da decisão recorrida, que os controlos fiscais efetuados pelas autoridades portuguesas aos beneficiários do Regime III, bem como os dados recolhidos no âmbito desses controlos, não permitiam controlar eficazmente o respeito dos requisitos do Regime III relativos à origem dos lucros aos quais se aplicava a redução do IRC e à criação ou à manutenção de postos de trabalho na RAM.

132    Em face de todas estas considerações, a Comissão concluiu com razão que o Regime III, conforme aplicado, não respeitava vários dos requisitos exigidos pelas Decisões de 2007 e de 2013.

133    Uma vez que este regime foi executado em violação das Decisões de 2007 e de 2013, tendo sido substancialmente alterado em relação ao regime autorizado pelas referidas decisões, a Comissão também teve razão ao concluir, no considerando 180 da decisão recorrida, pela existência de um novo auxílio ilegal (v., neste sentido, Acórdão de 25 de outubro de 2017, Comissão/Itália, C‑467/15 P, EU:C:2017:799, n.º 48).

134    Por conseguinte, os segundo a quinto fundamentos devem ser julgados improcedentes.

3.      Quanto ao sexto fundamento, relativo à violação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima e da boa administração

135    Com o seu sexto fundamento, a recorrente alega que os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima e da boa administração foram violados a diversos títulos.

136    Salienta que a decisão de dar início ao procedimento formal não incluía um convite à apresentação de observações sobre as expectativas legítimas que poderiam colocar dificuldades à recuperação dos auxílios em causa e que diversas circunstâncias, consideradas isoladamente ou em conjunto, demonstram a violação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima e da boa administração.

137    A este respeito, a recorrente alega que o Regime III, conforme aplicado, não constitui um auxílio de Estado ou, em todo o caso, que esse regime constitui um auxílio existente; que os requisitos do Regime III resultam do Regime II; que esses requisitos, além de não serem claros, são interpretados pela Comissão de modo contrário ao texto das Decisões de 2007 e de 2013, bem como à sua prática decisória anterior; que não existe jurisprudência relativa à interpretação desses requisitos; que a Comissão, depois de ter inicialmente subscrito a interpretação dos requisitos dos Regimes II e III, só numa fase muito tardia se opôs à execução do Regime III, e que a duração de 29 meses do procedimento formal de investigação obsta a qualquer recuperação dos auxílios em causa.

138    Alega igualmente que a jurisprudência segundo a qual o beneficiário de um «auxílio individual», na aceção do artigo 1.°, alínea e), do Regulamento 2015/1589, não pode ter uma confiança legítima na regularidade da sua atribuição face ao desrespeito do procedimento previsto no artigo 108.°, n.° 3, TFUE é inaplicável ao presente caso, que diz respeito a um «regime de auxílios», na aceção do artigo 1.°, alínea d), deste mesmo regulamento, que só foi colocado em questão decorridas décadas desde a sua génese.

139    A recorrente indica ainda que a violação dos princípios referidos acima é ainda mais evidente na medida em que a República Portuguesa e as 102 partes interessadas que participaram no procedimento formal de investigação pugnaram pelo arquivamento do processo, que a Comissão foi sensibilizada para a relevância económica, fiscal e social da ZFM enquanto região ultraperiférica que deve ser tratada mais favoravelmente e que as autoridades portuguesas não só reforçaram os controlos à ZFM mas também propuseram alterações ao Regime III, tendo em vista o arquivamento do processo.

140    Por último, a recorrente alega que a recuperação dos auxílios é contrária ao conceito de «Estado de Direito», ao artigo 2.° da Constituição Portuguesa e ao artigo 6.° TUE.

141    A Comissão contesta esta argumentação.

142    A título preliminar, importa recordar que a supressão de um auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno, através de recuperação, é a consequência lógica da declaração da incompatibilidade desse auxílio. Com efeito, a obrigação que incumbe ao Estado‑Membro em causa de suprimir um auxílio considerado pela Comissão incompatível com o mercado interno visa o restabelecimento da situação anterior, fazendo perder ao beneficiário a vantagem de que efetivamente beneficiou em relação aos seus concorrentes [v., neste sentido, Acórdão de 29 de abril de 2021, Comissão/Espanha (TNT em Castela‑Mancha), C‑704/19, não publicado, EU:C:2021:342, n.º 48 e jurisprudência referida].

143    Além disso, de acordo com o artigo 16.º, n.º 1, do Regulamento 2015/1589, a Comissão é sempre obrigada a ordenar a recuperação de um auxílio que declara incompatível com o mercado interno, salvo se essa recuperação for contrária a um princípio geral do direito da União (Acórdão de 28 de julho de 2011, Mediaset/Comissão, C‑403/10 P, não publicado, EU:C:2011:533, n.° 124).

144    Quanto ao princípio da proteção da confiança legítima, um Estado‑Membro, cujas autoridades tenham concedido, como no caso presente, um auxílio em violação das regras processuais previstas no artigo 108.º, n.º 3, TFUE, não pode, em princípio, invocar a confiança legítima dos beneficiários para se subtrair à obrigação de tomar as medidas necessárias com vista ao cumprimento de uma decisão da Comissão que lhe ordena a recuperação do auxílio. Admitir tal possibilidade significaria, na verdade, privar as disposições dos artigos 107.° e 108.° TFUE de qualquer efeito útil, na medida em que as autoridades nacionais se poderiam assim basear no seu próprio comportamento ilegal para anular a eficácia das decisões tomadas pela Comissão ao abrigo das referidas disposições (v. Acórdão de 9 de junho de 2011, Diputación Foral de Vizcaya e o./Comissão, C‑465/09 P a C‑470/09 P, não publicado, EU:C:2011:372, n.º 150 e jurisprudência referida).

145    Além disso, quando um auxílio é executado sem notificação prévia à Comissão, sendo assim ilegal por força do artigo 108.º, n.º 3, TFUE, o beneficiário do auxílio não pode, nesse momento, depositar uma confiança legítima na regularidade da sua concessão, sendo esta constatação válida para os auxílios concedidos em aplicação de um regime de auxílios (v., neste sentido, Acórdão de 15 de dezembro de 2005, Unicredito Italiano, C‑148/04, EU:C:2005:774, n.º 104 e jurisprudência referida).

146    Ora, no caso em apreço, a recorrente não demonstra que, no que respeita aos auxílios concedidos em violação das Decisões de 2007 e de 2013, que, por isso, foram concedidos em violação do artigo 108.º, n.º 3, TFUE, a Comissão lhe tenha dado, ou mesmo dado aos beneficiários desses auxílios, garantias precisas, incondicionais e concordantes, mas igualmente conformes às normas aplicáveis, suscetíveis de gerar uma expectativa legítima no seu espírito, como exige a jurisprudência (v., neste sentido, Acórdão de 5 de março de 2019, Eesti Pagar, C‑349/17, EU:C:2019:172, n.º 97 e jurisprudência referida).

147    A este respeito, o facto de a decisão de dar início ao procedimento formal não incluir um convite para a apresentação de observações sobre as expectativas legítimas que pudessem obstar à recuperação dos auxílios também não é suscetível de demonstrar uma violação do princípio da proteção da confiança legítima. Com efeito, mesmo na falta desse convite, a obrigação de cooperação de boa‑fé que impende sobre as autoridades portuguesas impunha‑lhes que dessem a conhecer, por sua própria iniciativa, essas dificuldades à Comissão [v., neste sentido, Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.º 232].

148    Além disso, mesmo admitindo‑a demonstrada, a convicção das autoridades portuguesas de que o Regime III, conforme aplicado, escapava à qualificação de «auxílio de Estado» na aceção do artigo 107.º, n.º 1, TFUE, ou devia ser qualificado de «auxílio existente» na aceção do artigo 1.º, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, não pode equivaler a garantias precisas, incondicionais e concordantes fornecidas pela Comissão.

149     Além disso, a não qualificação desse regime de «auxílio de Estado» era altamente improvável à luz das decisões da Comissão relativas aos regimes da ZFM anteriores. O mesmo sucedia quanto à qualificação de «auxílio existente», na aceção do artigo 1.º, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, tendo em conta as diferenças substanciais existentes entre o Regime I e o Regime III, bem como à interpretação que a Comissão fez do requisito relativo à origem dos lucros a que se aplicava a redução do IRC, que resultava inequivocamente das conversações entre a Comissão e as autoridades portuguesas durante o procedimento que culminou nas Decisões de 2002 e 2007, como já foi salientado acima nos n.os 85 e 86.

150    Também não pode equivaler a garantias precisas, incondicionais e concordantes fornecidas pela Comissão o facto, por um lado, de a República Portuguesa e as muitas partes interessadas que participaram no procedimento formal de investigação não terem invocado nesse procedimento a mesma interpretação que a Comissão acabou por adotar na decisão recorrida ou, por outro, de esta instituição não ter dado seguimento às propostas das autoridades portuguesas destinadas a alterar o Regime III tendo em vista a obtenção do arquivamento do procedimento formal de investigação.

151    Por conseguinte, não se pode concluir pela existência de nenhuma violação do princípio da proteção da confiança legítima.

152    Quanto ao princípio da segurança jurídica, que se distingue do princípio da proteção da confiança legítima (v., neste sentido, Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão, C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60, n.º 83), importa salientar que, em matéria de auxílios estatais, os argumentos destinados a impugnar a obrigação de recuperação com fundamento numa violação desse princípio só são acolhidos em circunstâncias absolutamente excecionais [Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.º 204].

153    A este respeito, resulta da jurisprudência que há que examinar uma série de elementos a fim de apurar a existência de uma violação do princípio da segurança jurídica, designadamente a falta de clareza do regime jurídico aplicável (v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2010, Nuova Agricast e Cofra/Comissão, C‑67/09 P, EU:C:2010:607, n.º 77) ou a inação da Comissão durante um período prolongado sem justificação (v., neste sentido, Acórdãos de 24 de novembro de 1987, RSV/Comissão, 223/85, EU:C:1987:502, n.os 14 e 15, e de 22 de abril de 2008, Comissão/Salzgitter, C‑408/04 P, EU:C:2008:236, n.os 106 e 107).

154    Em relação a este último elemento, importa recordar que a Comissão é obrigada a agir num prazo razoável no âmbito de um procedimento formal de investigação no quadro de auxílios de Estado e não está autorizada a perpetuar um estado de inação durante a fase preliminar de investigação. Importa acrescentar que o caráter razoável do prazo do procedimento deve ser apreciado em função das circunstâncias próprias de cada processo, como a complexidade deste e o comportamento das partes (Acórdão de 13 de junho de 2013, HGA e o./Comissão, C‑630/11 P a C‑633/11 P, EU:C:2013:387, n.os 81 e 82).

155    Ora, no caso em apreço, já foi declarado que o tempo decorrido entre as Decisões de 2007 e de 2013, por um lado, e o início, em 12 de março de 2015, do exercício de monitorização do Regime III, ou mesmo a decisão de dar início ao procedimento formal, em 6 de julho de 2018, por outro, não podem ser considerados irrazoáveis [Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.º 207].

156    Antes de mais, esta conclusão assenta no facto de que, em conformidade com o artigo 15.º, n.º 2, do Regulamento 2015/1589, a Comissão não estava vinculada por prazos específicos, como os previstos no capítulo II deste regulamento, relativo ao processo aplicável aos auxílios notificados (v., neste sentido, Despacho de 20 de janeiro de 2021, KC/Comissão, T‑580/20, não publicado, EU:T:2021:14, n.º 26).

157    Em seguida, no que respeita aos exercícios de monitorização relativos a auxílios ou a regimes de auxílios autorizados, como no caso em apreço, não se pode considerar que a Comissão devia dar provas de especial diligência, uma vez que o princípio da cooperação leal, enunciado no artigo 4.º, n.º 3, TUE, impõe aos Estados‑Membros que tomem todas as medidas adequadas para garantir o alcance e a eficácia do direito da União.

158    No domínio dos auxílios de Estado, isso implica, em particular, que esses Estados devem providenciar no sentido de não pôr em execução auxílios ou regimes de auxílios em violação de decisões de autorização prévia, muito especialmente quando a compreensão das condições de execução desses auxílios ou desses regimes de auxílios é inicialmente partilhada pela Comissão e pelo Estado‑Membro em causa, como referido acima nos n.os 85 e 86.

159    Por último, tendo em conta a descrição do procedimento prévio à decisão de dar início ao procedimento formal, efetuada nos considerandos 1 e 2 da decisão recorrida, não é possível identificar no caso presente nenhuma inação da Comissão durante um período prolongado e sem justificação.

160    Quanto à duração de 29 meses do procedimento formal de investigação, também esta não pode ser considerada irrazoável, tendo em conta, como resulta dos considerandos 3 a 9 e 96 da decisão recorrida, a necessidade de a Comissão, primeiro, tratar o pedido das autoridades portuguesas sobre a confidencialidade da decisão de dar início a esse procedimento, segundo, pedir várias vezes a essas autoridades a comunicação de informações em falta, bem como, terceiro, tratar as observações do enorme número de partes interessadas que participaram no procedimento.

161    Neste sentido, o processo que conduziu à decisão recorrida distingue‑se claramente do que estava em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 24 de novembro de 1987, RSV/Comissão (223/85, EU:C:1987:502), que a recorrente não pode, assim, validamente invocar.

162    Por conseguinte, não se pode concluir pela existência de nenhuma violação do princípio da proteção da segurança jurídica.

163    As constatações efetuadas acima no n.º 160 permitem igualmente afastar qualquer violação do princípio da boa administração.

164    Por outro lado, na medida em que a recorrente alega que a obrigação de recuperação dos auxílios em causa imposta às autoridades portuguesas é contrária ao princípio do Estado de Direito, ao artigo 2.º da Constituição Portuguesa e ao artigo 6.º TUE, basta referir que esta alegação é inadmissível nos termos do artigo 76.º, alínea d), do Regulamento de Processo, por não ser apoiada por nenhuma argumentação.

165    Tendo em conta o exposto, o sexto fundamento deve ser julgado parcialmente inadmissível e parcialmente improcedente.

4.      Quanto ao sétimo fundamento, relativo à impossibilidade de a recorrente dar cumprimento à decisão que ordena a recuperação dos auxílios em causa

166    Com o seu sétimo fundamento, a recorrente invoca a impossibilidade de dar cumprimento à decisão que ordena a recuperação dos auxílios em causa, essencialmente pelo facto de a decisão recorrida não lhe permitir determinar os montantes a recuperar «sem dificuldades excessivas».

167    A este propósito, a recorrente não tem capacidade para determinar, no que respeita à última década, se as sociedades que beneficiaram do Regime III cumpriram efetivamente os dois requisitos controvertidos previstos nas Decisões de 2007 e de 2013. Esta dificuldade é reforçada pela necessidade de verificar se essas sociedades cumpriam as condições para beneficiar de um regulamento de minimis (artigo 2.º da decisão recorrida) ou de um regulamento de isenção por categoria (artigo 3.º da decisão recorrida). Neste contexto, a Comissão deveria, pelo menos, ter indicado o montante bruto da recuperação pedida. Por último, a RAM acrescenta que muitas das decisões de recuperação conduzirão a situações de insolvência.

168    A Comissão contesta esta argumentação.

169    A título preliminar, ainda que a recorrente não seja destinatária da decisão recorrida, resulta do exposto que, por força do direito português, é responsável pela recuperação dos auxílios que concedeu em aplicação do Regime III.

170    Por conseguinte, há que considerar que, à semelhança da República Portuguesa, pode utilmente invocar a impossibilidade de recuperar os auxílios declarados ilegais e incompatíveis com o mercado interno pela decisão recorrida.

171    A este respeito, importa assinalar que a Comissão não pode adotar, sob pena de invalidade, uma ordem de recuperação cuja execução seja, desde o início, objetiva e absolutamente impossível de realizar (v. Acórdão de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci, C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.° 82 e jurisprudência referida).

172    No entanto, neste contexto, o pressuposto da existência de uma impossibilidade absoluta não está preenchido quando a entidade infraestatal que concedeu os auxílios e que é chamada a proceder à sua recuperação se limita a invocar dificuldades jurídicas, políticas ou práticas e imputáveis à própria atuação ou às omissões das autoridades nacionais, com as quais possa ser confrontada para dar execução à decisão em causa, sem propor à Comissão outras modalidades de execução dessa decisão que permitam superar essas dificuldades, nomeadamente através de uma recuperação parcial desses auxílios (v., neste sentido, Acórdão de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci, C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.os 91 e 92 e jurisprudência referida).

173    Acresce que as dificuldades de ordem administrativa e prática que o grande número de beneficiários dos auxílios acarreta não permitem considerar que a recuperação seja tecnicamente impossível de realizar [Acórdão de 12 de maio de 2021, Comissão/Grécia (Auxílios aos produtores agrícolas), C‑11/20, não publicado, EU:C:2021:380, n.° 44].

174    Ora, no caso em apreço, a recorrente limita‑se a invocar a complexidade do procedimento de recuperação dos auxílios em causa e das dificuldades de ordem política, jurídica e prática, sem fazer prova bastante da impossibilidade objetiva e absoluta, desde a adoção da decisão recorrida, de proceder à sua recuperação.

175    Em especial, a recorrente não demonstra nem a realidade das dificuldades que invoca nem a inexistência de modalidades alternativas de recuperação (v., neste sentido, Acórdão de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci, C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 96).

176    Por outro lado, nenhuma disposição do direito da União exige que a Comissão, quando ordena a recuperação de um auxílio ilegal declarado incompatível com o mercado interno, fixe o montante exato do auxílio a restituir (v. Acórdãos de 18 de outubro de 2007, Comissão/França, C‑441/06, EU:C:2007:616, n.º 29 e jurisprudência referida, e de 20 de março de 2013, Rousse Industry/Comissão, T‑489/11, não publicado, EU:T:2013:144, n.º 77 e jurisprudência referida). Além disso, a obrigação de um Estado‑Membro calcular o montante preciso dos auxílios a recuperar inscreve‑se no âmbito mais amplo da obrigação de cooperação leal que liga mutuamente a Comissão e os Estados‑Membros na aplicação das regras do Tratado em matéria de auxílios de Estado (v. Acórdão de 20 de março de 2013, Rousse Industry/Comissão, T‑489/11, não publicado, EU:T:2013:144, n.º 79 e jurisprudência referida).

177    Assim, basta que a decisão da Comissão contenha indicações que permitam ao seu destinatário determinar por si próprio, sem dificuldades excessivas, esse montante (v. Acórdão de 18 de outubro de 2007, Comissão/França, C‑441/06, EU:C:2007:616, n.º 29 e jurisprudência referida).

178    Ora, no caso em apreço, contrariamente ao que alega a recorrente, há que constatar que, no considerando 213 e nos artigos 1.° a 4.° da decisão recorrida, a Comissão forneceu as indicações necessárias, mas igualmente suficientes, para permitir às autoridades portuguesas determinarem, sem dificuldades excessivas, os montantes a restituir.

179    Em especial, no considerando 213 da decisão recorrida, a Comissão forneceu indicações suficientes que permitem às autoridades portuguesas distinguir, entre os beneficiários dos auxílios pagos ao abrigo do Regime III, os que receberam um «auxílio existente» na aceção do artigo 1.º, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, ou seja, um auxílio previamente autorizado pelas Decisões de 2007 e de 2013, daqueles que receberam um «novo auxílio», na aceção do artigo 1.º, alínea c), do Regulamento 2015/1589, a cuja recuperação se deve proceder.

180    A este respeito, resulta da decisão recorrida que as autoridades da RAM devem determinar se, entre 1 de janeiro de 2007 e 31 de dezembro de 2014, cada beneficiário respeitou as condições necessárias para poder beneficiar do regime da ZFM tal como foi aprovado nas Decisões de autorização de 2007 e de 2013.

181    Por um lado, isso implica determinar a parte dos seus rendimentos que estava ligada a uma «atividade efetiva e materialmente realizada na Madeira», com exclusão dos rendimentos gerados por atividades realizadas fora da RAM, mesmo que fossem exercidas por sociedades estabelecidas nessas mesmas regiões. Por outro lado, cabe às autoridades da recorrente determinar, com base num método objetivo, o número de postos de trabalho criados ou mantidos na Madeira por cada beneficiário.

182    No caso de ser identificado um beneficiário de um «novo auxílio» e, assim, ilegal e incompatível, a quantificação do montante do auxílio a recuperar deverá ser efetuada em conformidade com a metodologia enunciada pela Comissão no considerando 216 da decisão recorrida.

183    Improcede, portanto, o sétimo fundamento.

5.      Quanto ao oitavo fundamento, relativo à violação do princípio da proporcionalidade

184    Com o seu oitavo fundamento, a recorrente considera que a Comissão violou o princípio da proporcionalidade ao adotar uma abordagem restritiva e retroativa dos dois requisitos controvertidos, tendo em conta os efeitos devastadores dessa abordagem e a inexistência de prática decisória anterior nesse sentido. Esta violação é acompanhada de uma violação do seu dever de cooperação leal, previsto no artigo 4.°, n.° 3, TUE, e do princípio da boa administração.

185    A Comissão contesta esta argumentação.

186    A este respeito, basta recordar que a supressão de um auxílio ilegal e incompatível mediante recuperação é a consequência lógica da declaração da respetiva ilegalidade, de modo que a recuperação desse auxílio, com vista ao restabelecimento da situação anterior, não pode, em princípio, ser considerada uma medida desproporcionada relativamente aos objetivos das disposições do Tratado FUE em matéria de auxílios de Estado (v. Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Comissão/Aer Lingus e Ryanair Designated Activity, C‑164/15 P e C‑165/15 P, EU:C:2016:990, n.° 116 e jurisprudência referida).

187    No que respeita aos auxílios pagos ao abrigo do Regime III, conforme aplicado, o Tribunal Geral já declarou que a sua recuperação não era contrária ao princípio da proporcionalidade, tendo em conta, nomeadamente, o facto de essa obrigação não ter por objeto todos os auxílios individuais concedidos ao abrigo do referido regime, mas apenas os auxílios que tenham sido concedidos em violação das Decisões de 2007 e de 2013, e sob reserva de os beneficiários destes não preencherem os requisitos fixados num regulamento de minimis ou num regulamento de isenção por categoria, como resulta dos artigos 1.° a 3.° da decisão recorrida [Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.º 239].

188    Além disso, segundo jurisprudência constante, o facto de a recuperação dos auxílios ilegais e incompatíveis ser suscetível de conduzir à insolvência das sociedades que deles beneficiaram ilegalmente não pode afetar o caráter obrigatório dessa recuperação (v. neste sentido, Acórdão de 12 de fevereiro de 2015, Comissão/França, C‑37/14, não publicado, EU:C:2015:90, n.º 84 e jurisprudência referida).

189    Por outro lado, na medida em que a recorrente invoca, através dos mesmos argumentos, a violação pela Comissão do seu dever de cooperação leal previsto no artigo 4.º, n.º 3, TUE, bem como do princípio da boa administração, há que rejeitar estas alegações pelos mesmos motivos.

190    Por conseguinte, o oitavo fundamento deve ser julgado improcedente.

6.      Quanto ao nono fundamento, relativo à ultrapassagem do prazo de prescrição para proceder à recuperação dos auxílios pagos

191    Com o seu nono fundamento, a recorrente alega que, tendo em conta a data da decisão de dar início ao procedimento formal, que foi notificada à República Portuguesa em 9 de julho de 2018, os auxílios concedidos até 9 de julho de 2008 encontram‑se prescritos, de acordo com o artigo 17.° do Regulamento 2015/1589.

192    A Comissão contesta esta argumentação.

193    No que respeita à prescrição de alguns dos auxílios concedidos ao abrigo do Regime III, importa recordar que, por força do artigo 17.º, n.os 1 e 2, do Regulamento 2015/1589, no âmbito de um regime de auxílios, o prazo de prescrição de dez anos começa a correr no dia em que o auxílio ilegal é efetivamente concedido ao seu beneficiário e não no dia da adoção do regime de auxílios (v. Despacho de 7 de dezembro de 2017, Irlanda/Comissão, C‑369/16 P, não publicado, EU:C:2017:955, n.° 41 e jurisprudência referida).

194    Segundo esta mesma disposição, qualquer medida adotada pela Comissão relativamente a um auxílio ilegal interrompe esse prazo de prescrição. É esse o caso, em particular, dos ofícios enviados pela Comissão aos Estados‑Membros através dos quais os informa de que uma medida é suscetível de ser qualificada de auxílio de Estado (v., neste sentido, Acórdão de 26 de abril de 2018, ANGED, C‑233/16, EU:C:2018:280, n.os 83 e 84) ou lhes pede que notifiquem uma medida (v., neste sentido, Despacho de 7 de dezembro de 2017, Irlanda/Comissão, C‑369/16 P, não publicado, EU:C:2017:955, n.º 42) ou ainda lhes pede informações (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2003, Département du Loiret/Comissão, T‑369/00, EU:T:2003:114, n.os 81 e 82).

195    Ora, no caso em apreço, como o Tribunal Geral já sublinhou, resulta dos considerandos 1 e 3 da decisão recorrida que a Comissão enviou à República Portuguesa, em 12 de março de 2015, um pedido de informações destinado a determinar se o Regime III, conforme aplicado, respeitava as Decisões de 2007 e de 2013, antes de a informar, em 6 de julho de 2018, da sua decisão de dar início ao procedimento formal de investigação [v., neste sentido, Acórdão de 21 de setembro de 2022, Portugal/Comissão (Zona Franca da Madeira), T‑95/21, pendente de recurso, EU:T:2022:567, n.º 247].

196    Assim, tendo em conta que os auxílios individuais que a Comissão obrigou a República Portuguesa a recuperar são os concedidos ao abrigo do Regime III, que foi inicialmente notificado em 28 de junho de 2006 e posteriormente autorizado em 27 de junho de 2007 antes de ser aplicado por este Estado‑Membro, o prazo de prescrição de dez anos previsto no artigo 17.º, n.º 2, do Regulamento 2015/1589 não podia começar a correr antes dessas datas e foi interrompido em 12 de março de 2015, ou seja, menos de dez anos após as referidas datas.

197    Por conseguinte, a recorrente não tem razão quando alega que os auxílios em causa concedidos até 9 de julho de 2008 se encontram prescritos.

198    Em todo o caso, o simples facto de certos auxílios individuais concedidos ao abrigo de um regime de auxílios, cujo caráter ilegal e incompatível com o mercado interno é declarado por uma decisão da Comissão, estarem prescritos não pode levar à anulação dessa decisão. Com efeito, no que respeita aos regimes de auxílios, cabe às autoridades nacionais sobre as quais impende a obrigação de recuperação imediata e efetiva dos referidos auxílios determinar, à luz das circunstâncias específicas próprias de cada beneficiário de um regime de auxílios, se cada um dos beneficiários deve efetivamente restituir o referido auxílio (v., por analogia, Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Mediaset, C‑69/13, EU:C:2014:71, n.º 22).

199    Em face do exposto, há que julgar improcedente o nono fundamento e, por conseguinte, negar integralmente provimento ao recurso, sem que seja necessário deferir os pedidos de medidas de organização do processo apresentados pela recorrente.

 Quanto às despesas

200    Nos termos do artigo 134.°, n.° 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a recorrente sido vencida, há que condená‑la nas despesas, em conformidade com o pedido da Comissão.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Quinta Secção)

decide:

1)      Negase provimento ao recurso.

2)      A Região Autónoma da Madeira é condenada nas despesas.

Svenningsen

Martín y Pérez de Nanclares

Stancu

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 21 de junho de 2023.

O Secretário

 

O Presidente

V. Di Bucci

 

M. van der Woude


*      Língua do processo: português.