Language of document : ECLI:EU:T:2024:110

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção Alargada)

21 de fevereiro de 2024(*)

«Auxílios de Estado — Auxílio concedido pelas autoridades espanholas a favor de certos agrupamentos de interesse económico (AIE) e dos respetivos investidores — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira para a aquisição de navios (Sistema de arrendamento fiscal espanhol) — Decisão que declara o auxílio em parte incompatível com o mercado interno e ordena parcialmente a sua recuperação — Extinção parcial do objeto do litígio — Não conhecimento parcial do mérito — Novo auxílio — Recuperação — Cláusulas contratuais que protegem os beneficiários contra a recuperação de um auxílio de Estado ilegal e incompatível com o mercado interno — Repartição das competências entre a Comissão e as autoridades nacionais»

Nos processos apensos T‑29/14 e T‑31/14,

Telefónica Gestión Integral de Edificios y Servicios, SL, anteriormente Taetel, SL, com sede em Madrid (Espanha), representada por E. Navarro Varona, P. Vidal Martínez, J. López‑Quiroga Teijero, G. Canalejo Lasarte e A. Pérez Hernández, advogados,

recorrente no processo T‑29/14,

Banco Santander, S. A., anteriormente Banco Popular Español, S. A., com sede em Madrid, representada por E. Abad Valdenebro, R. Calvo Salinero e A. Lamadrid de Pablo, advogados,

recorrente no processo T‑31/14,

contra

Comissão Europeia, representada por J. Carpi Badía e P. Němečková, na qualidade de agentes, assistidos por M. Segura Catalán, advogada,

recorrida,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção Alargada),

composto por: A. Kornezov, presidente, G. De Baere, D. Petrlík, K. Kecsmár e S. Kingston (relatora), juízes,

secretário: P. Nuñez Ruiz, administradora,

vistos os autos, nomeadamente:

–        o Despacho de 18 de março de 2014 que ordena a apensação dos processos T‑29/14 e T‑31/14 para efeitos das fases escrita e oral do processo, bem como da decisão que põe termo à instância,

–        a Decisão de 2 de março de 2016 de suspender a instância até à decisão que ponha termo à instância no processo que deu origem ao Acórdão de 25 de julho de 2018, Comissão/Espanha e o. (C‑128/16 P, EU:C:2018:591),

–        a Decisão de 21 de novembro de 2018 de suspender a instância até que as decisões que põem termo à instância nos processos T‑515/13 RENV e T‑719/13 RENV tenham transitado em julgado,

–        a Decisão de 20 de abril de 2021 de retomar o processo,

–        a Decisão de 12 de abril de 2022 de suspender a instância até à decisão que ponha termo à instância nos processos que deram origem ao Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60),

–        a medida de organização do processo de 22 de fevereiro de 2023, que convida as partes a pronunciarem‑se sobre as consequências a retirar do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), para a tramitação dos processos,

–        a resposta da recorrente no processo T‑29/14, de 16 de março de 2023, que pede ao Tribunal Geral que se pronuncie sobre os fundamentos que não foram decididos no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), e a resposta da recorrente no processo T‑31/14, de 16 de março de 2023, que indica, em substância, que não se opõe a que o Tribunal Geral declare oficiosamente que o recurso ficou sem objeto e que não há que conhecer do mérito nos termos do artigo 131.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral,

–        a resposta da Comissão de 16 de março de 2023, segundo a qual, em substância, todas as questões suscitadas no âmbito dos presentes recursos foram decididas nos recursos em causa no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), e os recursos devem ser julgados improcedentes, exceto no que respeita aos quartos fundamentos, sobre os quais não haverá que conhecer do mérito quando tiver adotado as medidas necessárias à execução do referido acórdão,

–        a medida de organização do processo de 26 de maio de 2023, que convida a recorrente no processo T‑31/14, por um lado, a dar cumprimento às exigências do artigo 130.o, n.o 2, se pretender solicitar ao Tribunal Geral que declare que não há que conhecer do mérito nesse processo e, por outro, a especificar se, na hipótese de o Tribunal Geral considerar que há que conhecer do mérito, o referido pedido deve ser entendido como um pedido de desistência,

–        a resposta da recorrente no processo T‑31/14, de 9 de junho de 2023, que indica, em substância, que não pretende solicitar ao Tribunal Geral que declare que já não há que conhecer do mérito, nem desistir do seu recurso,

após a audiência de 16 de novembro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        Com os seus recursos interpostos ao abrigo do artigo 263.o TFUE, as recorrentes, Telefónica Gestión Integral de Edificios y Servicios, SL, anteriormente Taetel, SL, e Banco Santander, S. A., anteriormente Banco Popular Español, S. A., pedem a anulação da Decisão 2014/200/UE da Comissão, de 17 de julho de 2013, relativa ao auxílio estatal SA.21233 C/11 (ex NN/11, ex CP 137/06) concedido por Espanha — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira também conhecido por «Sistema de arrendamento fiscal espanhol» (JO 2014, L 114, p. 1, a seguir «decisão recorrida»).

 Antecedentes do litígio

 Quanto à decisão recorrida

2        No seguimento de denúncias de que o Sistema de arrendamento fiscal espanhol conforme aplicado a certos acordos de locação financeira para a aquisição de navios (a seguir «SAF») permitia às companhias de navegação adquirir navios construídos por estaleiros navais espanhóis beneficiando de preços reduzidos numa percentagem entre 20 % e 30 %, a Comissão iniciou o procedimento formal de investigação previsto no artigo 108.o, n.o 2, TFUE pela Decisão C(2011) 4494 final, de 29 de junho de 2011 (JO 2011, C 276, p. 5, a seguir «decisão de dar início ao procedimento formal de investigação»).

3        Nesse procedimento formal de investigação, a Comissão constatou que o SAF tinha sido utilizado, até à data de adoção da sua decisão referida no n.o 2, supra, para transações que consistiam na construção de navios pelos estaleiros navais e na sua aquisição por companhias de navegação, bem como no financiamento dessas transações por meio de uma estrutura jurídica e financeira ad hoc criada por um banco. O SAF envolvia, para cada encomenda de navio, uma companhia de navegação, um estaleiro naval, um banco, uma sociedade de locação financeira e um agrupamento de interesse económico (AIE) constituído pelo referido banco e por investidores que adquirissem participações nesse AIE. Este último tomava em locação o navio de uma sociedade de locação financeira desde o início da sua construção e fretava‑o a uma companhia de navegação em regime de casco nu. O referido AIE obrigava‑se a comprar o navio no final do contrato de locação financeira e a companhia de navegação obrigava‑se a comprá‑lo no final do contrato de fretamento em casco nu. Segundo a decisão recorrida, tratava‑se de uma operação fiscal destinada a gerar vantagens fiscais a favor de investidores agrupados num AIE «fiscalmente transparente», uma vez que os lucros e as perdas registados pelo AIE são automaticamente transferidos para os investidores residentes em Espanha, na proporção da sua participação no AIE, e a transferir uma parte dessas vantagens para uma companhia de navegação sob a forma de um desconto no preço do mesmo navio.

4        A Comissão considerou que as operações realizadas no âmbito do SAF combinavam cinco medidas previstas em várias disposições do Real Decreto Legislativo 4/2004, por el que se aprueba el texto refundido da Ley del Impuesto sobre Sociedades (Real Decreto Legislativo 4/2004, que aprova o Texto Consolidado da Lei do Imposto sobre as Sociedades), de 5 de março de 2004 (BOE n.o 61, de 11 de março de 2004, p. 10951, a seguir «Lei do Imposto sobre as Sociedades»), e do Real Decreto 1777/2004, por el que se aprueba el Reglamento del Impuesto sobre Sociedades (Real Decreto 1777/2004, que aprova o Regulamento do Imposto sobre as Sociedades), de 30 de julho de 2004 (BOE n.o 189, de 6 de agosto de 2004, p. 28377, a seguir «Regulamento do Imposto sobre as Sociedades»). Essas cinco medidas eram a amortização acelerada dos ativos locados prevista no artigo 115.o, n.o 6, da referida lei, a aplicação discricionária da amortização antecipada resultante do artigo 48.o, n.o 4, do artigo 115.o, n.o 11, dessa lei, bem como do artigo 49.o do referido regulamento, as disposições relativas aos AIE, o regime do imposto sobre a arqueação previsto nos artigos 124.o a 128.o da mesma lei e o disposto no artigo 50.o, n.o 3, desse regulamento.

5        Em conformidade com o artigo 115.o, n.o 6, da Lei do Imposto sobre as Sociedades, a amortização acelerada começava na data em que o ativo adquirido no âmbito de uma locação financeira esteja em condições de funcionamento, ou seja, não antes de esse ativo ser entregue ao locatário e de este começar a utilizá‑lo. Contudo, o artigo 115.o, n.o 11, da referida lei dispunha que o Ministério da Economia e das Finanças espanhol podia, mediante pedido formal do locatário, fixar uma data anterior para o início da amortização em causa. Este artigo impunha duas condições gerais para a amortização antecipada. As condições específicas aplicáveis aos AIE figuravam no artigo 48.o, n.o 4, da mesma lei. O procedimento de autorização previsto no artigo 115.o, n.o 11, dessa lei era desenvolvido no artigo 49.o do Regulamento do Imposto sobre as Sociedades.

6        O regime do imposto sobre a arqueação foi autorizado como auxílio de Estado compatível com o mercado interno de acordo com as Orientações comunitárias sobre auxílios estatais aos transportes marítimos, de 5 de julho de 1997 (JO 1997, C 205, p. 5), conforme alteradas pela Comunicação C(2004) 43 da Comissão (JO 2004, C 13, p. 3) (a seguir «comunicações marítimas»), pela Decisão da Comissão C (2002) 582 final, de 27 de fevereiro de 2002, relativa ao auxílio estatal N 736/2001 concedido por Espanha — Regime de tributação das companhias de navegação, com base na arqueação (JO 2004, C 38, p. 4), alterada pela Decisão C(2004) 1931 final da Comissão, de 2 de junho de 2004, relativa ao auxílio estatal N 528/2003 concedido por Espanha — Alteração do regime de tributação das companhias de navegação com base na arqueação (JO 2005, C 77, p. 29). No âmbito desse regime, as empresas inscritas num dos registos das companhias de navegação e que tenham obtido uma autorização da administração fiscal para esse efeito não são tributadas em função dos seus ganhos e perdas, mas sim com base na sua arqueação. A lei espanhola permite aos AIE inscreverem‑se num desses registos, apesar de não serem companhias de navegação.

7        O artigo 125.o, n.o 2, da Lei do Imposto sobre as Sociedades previa um procedimento especial para os navios já adquiridos no momento da passagem ao regime do imposto sobre a arqueação e para os navios usados adquiridos quando a empresa já beneficiava desse regime. Ao aplicar normalmente esse regime, as eventuais mais‑valias eram tributadas ao transitarem para o mesmo regime, pressupondo‑se que a tributação das mais‑valias, embora adiada, tinha lugar aquando da venda ou do abate do navio. Contudo, em derrogação a essa disposição, o artigo 50.o, n.o 3, do Regulamento do Imposto sobre as Sociedades dispunha que, quando os navios eram adquiridos através de uma opção de compra no âmbito de um contrato de locação previamente aprovado pelas autoridades fiscais, eram considerados navios novos e não usados na aceção do artigo 125.o, n.o 2, da Lei do Imposto sobre as Sociedades, sem ter em conta que já estavam amortizados, pelo que as eventuais mais‑valias não eram tributadas. Esta derrogação, que não tinha sido notificada à Comissão, só foi aplicada aos contratos de locação específicos aprovados pelas autoridades fiscais no âmbito de pedidos de aplicação da amortização antecipada ao abrigo do artigo 115.o, n.o 11, dessa lei, isto é, a navios recém‑construídos e dados em locação, adquiridos através de operações abrangidas pelo SAF e, com uma única exceção, procedentes de estaleiros navais espanhóis.

8        De acordo com a decisão recorrida, ao aplicar esse conjunto de medidas, o AIE recolhia as vantagens fiscais em duas fases. Numa primeira fase, aplicava‑se uma amortização antecipada e acelerada do custo do navio locado no âmbito do regime normal do imposto sobre as sociedades, que se traduzia em grandes perdas para esse AIE, as quais, em virtude da transparência fiscal dos AIE, podiam ser deduzidas dos rendimentos próprios dos investidores proporcionalmente à sua participação no referido AIE. Apesar de essa amortização antecipada e acelerada ser, em geral, compensada em seguida pelo aumento dos impostos a pagar quando o navio estivesse integralmente amortizado ou fosse vendido gerando uma mais‑valia, mantinha‑se a economia fiscal resultante da transferência das perdas iniciais para os investidores, numa segunda fase, pelo facto de o AIE passar para o regime do imposto sobre a arqueação, que permitia a isenção total dos lucros resultantes da venda do referido navio à companhia de navegação.

9        Embora considerando que o SAF deveria ser descrito como um «sistema», a Comissão analisou cada uma das medidas em causa individualmente. Pela decisão recorrida, decidiu que, entre essas medidas, as resultantes do artigo 115.o, n.o 11, da Lei do Imposto sobre as Sociedades relativas à amortização antecipada, da aplicação do regime do imposto sobre a arqueação a empresas, navios ou atividades não elegíveis, e do artigo 50.o, n.o 3, do Regulamento do Imposto sobre as Sociedades constituíam um auxílio estatal aos AIE e aos seus investidores ilegalmente executado pelo Reino de Espanha desde 1 de janeiro de 2002, em violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE. Declarou que as medidas fiscais em causa eram incompatíveis com o mercado interno, exceto na medida em que o auxílio correspondesse a uma remuneração conforme ao mercado para a intervenção de investidores financeiros e fosse transferido para empresas de transporte marítimo que pudessem beneficiar das orientações sobre transportes marítimos. Decidiu que o Reino de Espanha devia pôr termo à aplicação desse regime de auxílios, porquanto era incompatível com o mercado interno, devendo ainda recuperar o auxílio incompatível junto dos investidores dos AIE que deles beneficiaram, sem que esses beneficiários pudessem transferir o encargo da recuperação desse auxílio para outras pessoas.

10      Contudo, a Comissão decidiu que não se procederia à recuperação do auxílio concedido no âmbito de operações de financiamento relativamente às quais as autoridades nacionais competentes se tinham comprometido a conceder o benefício das medidas através de um ato juridicamente vinculativo adotado antes de 30 de abril de 2007, data da publicação no Jornal Oficial da União Europeia da sua Decisão 2007/256/CE, de 20 de dezembro de 2006, relativa ao regime de auxílio executado pela França ao abrigo do artigo 39.o CA do Código Geral dos Impostos — Auxílio estatal C 46/04 (ex NN 65/04) (JO 2007, L 112, p. 41).

 Quanto aos outros recursos interpostos da decisão recorrida

11      Pelo Acórdão de 17 de dezembro de 2015, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 e T‑719/13, EU:T:2015:1004), o Tribunal Geral deu provimento a dois outros recursos interpostos, contra a decisão recorrida, pelo Reino de Espanha e pela Lico Leasing, S. A. e pela Pequeños y Medianos Astilleros Sociedad de Reconversión, S. A. (a seguir «PYMAR»), com base no fundamento relativo à violação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, e do artigo 296.o TFUE, e anulou a decisão recorrida.

12      Pelo Acórdão de 25 de julho de 2018, Comissão/Espanha e o. (C‑128/16 P, EU:C:2018:591), o Tribunal de Justiça anulou o Acórdão de 17 de dezembro de 2015, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 e T‑719/13, EU:T:2015:1004), e remeteu os processos T‑515/13 e T‑719/13 para o Tribunal Geral.

13      Pelo Acórdão de 23 de setembro de 2020, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 RENV e T‑719/13 RENV, EU:T:2020:434), o Tribunal Geral negou provimento aos recursos.

14      Pelo Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), o Tribunal de Justiça anulou parcialmente o Acórdão de 23 de setembro de 2020, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 RENV e T‑719/13 RENV, EU:T:2020:434), e, decidindo de forma definitiva nos dois recursos em causa, anulou parcialmente a decisão recorrida.

15      No Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), o Tribunal de Justiça começou por negar provimento aos recursos relativos à argumentação dos recorrentes no que se refere à alegada inexistência de seletividade do SAF. Negou igualmente provimento aos recursos no que respeita aos fundamentos relativos à aplicação dos princípios da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica, embora assinalando um erro de direito cometido pelo Tribunal Geral, mas que não tem incidência na sua apreciação. Por último, julgou procedente o fundamento do Reino de Espanha relativo à falta de fundamentação do Acórdão de 23 de setembro de 2020, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 RENV e T‑719/13 RENV, EU:T:2020:434), no que respeita à recuperação do auxílio em causa. Considerou que, ao limitar‑se a apreciar que as recorrentes não tinham contestado a designação dos beneficiários efetuada na decisão recorrida e ao reportar‑se à lógica e ao conteúdo dessa decisão, apesar de se deduzir do fundamento invocado que essas partes alegavam, implícita mas necessariamente, que não tinham sido os únicos beneficiários do auxílio em causa, uma vez que grande parte deste tinha sido transferido para as companhias de navegação, o Tribunal Geral não tinha respondido a este fundamento. Concluiu que o Tribunal Geral tinha violado o dever de fundamentação e anulou o referido acórdão do Tribunal Geral a esse respeito.

16      Pronunciando‑se definitivamente sobre o litígio, o Tribunal de Justiça julgou procedente o fundamento invocado pela Lico Leasing e pela PYMAR segundo o qual estas partes alegavam que os investidores dos AIE não tinham sido os únicos beneficiários do auxílio em causa, uma vez que grande parte deste último tinha sido transferida para as companhias de navegação. Por conseguinte, o Tribunal de Justiça anulou o artigo 1.o da decisão recorrida, dado que designava os AIE e os respetivos investidores como únicos beneficiários do auxílio objeto dessa decisão, bem como o artigo 4.o, n.o 1, da mesma decisão, na medida em que ordenava ao Reino de Espanha que recuperasse a totalidade do montante do auxílio em causa junto dos investidores dos AIE que dele tinham beneficiado.

 Pedidos das partes

17      As partes concluem pedindo, em substância, que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão recorrida, uma vez que declara a existência de um auxílio de Estado e ordena a respetiva recuperação junto dos investidores dos AIE;

–        a título subsidiário, declarar sem efeito a ordem de recuperação do auxílio que visa os investidores dos AIE do artigo 4.o, n.o 1, da referida decisão, porquanto viola os princípios de segurança jurídica e da proteção da confiança legítima;

–        a título mais subsidiário, anular o artigo 2.o desta decisão e declarar ilegal o método de cálculo da alegada vantagem a reembolsar pelos investidores dos AIE;

–        declarar a inexistência do artigo 4.o, n.o 1, da mesma decisão ou a anulação parcial desta disposição, dado que proíbe «transferir o ónus da recuperação para as outras pessoas»;

–        condenar a Comissão nas despesas.

18      Além disso, a recorrente no processo T‑29/14 conclui pedindo, a título subsidiário relativamente ao seu primeiro pedido, que o Tribunal Geral se digne anular os artigos 1.o, 2.o e o artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida, visto que identificam os investidores dos AIE como beneficiários que devem reembolsar o alegado auxílio.

19      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        a título principal, condenar as recorrentes nas despesas e, a título subsidiário, declarar que suportarão, além da totalidade das suas próprias despesas, três quartos das despesas efetuadas pela Comissão.

 Questão de direito

20      As recorrentes invocam, cada uma, cinco fundamentos de recurso:

–        os primeiros, relativos à violação do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, na parte em que a decisão recorrida declara a existência de um auxílio de Estado;

–        os segundos, relativos à violação do artigo 107.o TFUE, na parte em que a Comissão considerou erradamente que certas medidas fiscais que compõem o SAF, consideradas individualmente, constituíam auxílios de Estado novos;

–        os terceiros, relativos à violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima;

–        os quartos, relativos, em substância, à violação dos artigos 107.o e 108.o TFUE, do dever de fundamentação e do princípio da proporcionalidade no que respeita à identificação dos beneficiários e ao método de recuperação do auxílio;

–        os quintos, relativos à violação do artigo 108.o TFUE, do artigo 14.o do Regulamento (CE) n.o 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999, que estabelece as regras de execução do artigo [108.o TFUE] (JO 1999, L 83, p. 1), do artigo 3.o, n.o 6, TUE, e dos artigos 16.o e 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), na parte em que o artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida proíbe «transferir o ónus da recuperação para as outras pessoas».

21      Na sua resposta à medida de organização do processo do Tribunal Geral sobre as consequências a retirar do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), para o tratamento dos recursos, a recorrente no processo T‑29/14 referiu que renunciava aos fundamentos primeiro e terceiro. Na sua resposta à medida de organização do processo do Tribunal Geral adotada em 28 de setembro de 2023, a recorrente no processo T‑31/14 referiu que renunciaria aos mesmos fundamentos, na hipótese de o Tribunal Geral considerar que o recurso manteve o seu objeto e que há que conhecer do mérito. Na audiência, referiu também que tinha renunciado à segunda parte do quarto fundamento.

 Quanto à extinção parcial do objeto dos litígios

22      Segundo jurisprudência constante, o objeto do litígio, como determinado pela petição inicial, deve perdurar, tal como o interesse em agir, até à prolação da decisão jurisdicional, sob pena de não conhecimento do mérito da causa, o que pressupõe que o recurso possa, pelo seu resultado, conferir um benefício à parte que o interpôs (v. Acórdão de 7 de junho de 2007, Wunenburger/Comissão, C‑362/05 P, EU:C:2007:322, n.o 42 e jurisprudência referida, e Despacho de 14 de janeiro de 2014, Miettinen/Conselho, T‑303/13, não publicado, EU:T:2014:48, n.o 16 e jurisprudência referida).

23      Assim, no âmbito de um recurso interposto ao abrigo do artigo 263.o TFUE, foi declarado que a anulação da decisão recorrida no decurso da instância privava do seu objeto o recurso no que respeita aos pedidos de anulação da referida decisão (v., neste sentido, Acórdãos de 29 de abril de 2004, Itália/Comissão, C‑372/97, EU:C:2004:234, n.o 37, e de 19 de outubro de 2005, CDA Datenträger Albrechts/Comissão, T‑324/00, EU:T:2005:364, n.os 116 e 117).

24      Com efeito, com a anulação do ato recorrido, a recorrente obtém o único resultado que o seu recurso lhe pode trazer e, por isso, já não há matéria para decisão do juiz da União Europeia (v., neste sentido, Despacho de 8 de março de 1993, Lezzi Pietro/Comissão, C‑123/92, EU:C:1993:87, n.o 10).

25      O mesmo acontece quando a anulação parcial do ato recorrido tenha dado à recorrente o resultado que pretendia por uma parte do seu recurso, de modo que já não há que decidir sobre essa parte (v., neste sentido, Acórdão de 29 de abril de 2004, Itália/Comissão, C‑372/97, EU:C:2004:234, n.os 37 e 38).

26      Por outro lado, a autoridade absoluta de que goza um acórdão de anulação de um tribunal da União abrange tanto a parte decisória do acórdão como os fundamentos que constituem o seu alicerce necessário (v. Acórdão de 29 de abril de 2004, Itália/Comissão, C‑372/97, EU:C:2004:234, n.o 36 e jurisprudência referida).

27      No caso em apreço, há que observar que, no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), o Tribunal de Justiça anulou apenas parcialmente a decisão recorrida. Como foi referido no n.o 16, supra, o Tribunal de Justiça anulou o artigo 1.o da decisão recorrida na medida em que designava os AIE e os respetivos investidores como únicos beneficiários do auxílio objeto dessa decisão, bem como o artigo 4.o, n.o 1, na medida em que ordenava ao Reino de Espanha que recuperasse a totalidade do montante do auxílio em causa junto dos investidores dos AIE que dele tinham beneficiado.

28      Nos n.os 138 e 139 do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), o Tribunal de Justiça especificou que a Comissão tinha cometido um erro de direito no que respeita à identificação dos beneficiários do auxílio em causa, uma vez que os AIE eram obrigados, por força de contratos juridicamente vinculativos celebrados com as companhias de navegação e submetidos à administração fiscal, a transferir para as companhias de navegação uma parte do benefício fiscal obtido.

29      No âmbito dos seus recursos, as recorrentes, que sucederam a empresas que efetuaram investimentos nos AIE no âmbito do SAF, alegam, com a primeira parte dos seus quartos fundamentos, que a Comissão cometeu um erro ao qualificar, na decisão recorrida, os AIE e os investidores como os únicos beneficiários do auxílio e ao decidir que a totalidade do montante do auxílio devia ser recuperada junto destes últimos, apesar de outras empresas que participaram nas operações do SAF, como os estaleiros navais e as companhias de navegação, serem igualmente beneficiárias desse regime e também dele beneficiarem. A recorrente no processo T‑29/14 alega igualmente, no âmbito desta parte, que a decisão recorrida está insuficientemente fundamentada no que respeita à identificação dos beneficiários do SAF.

30      Assim, com a primeira parte dos quartos fundamentos, as recorrentes pedem, em substância, que o Tribunal Geral anule o artigo 1.o e o artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida, na parte em que designam os AIE e os seus investidores como sendo os únicos beneficiários do SAF e na parte em que ordenam ao Reino de Espanha que recupere a totalidade do montante do auxílio em causa junto dos referidos investidores.

31      Ora, como foi salientado nos n.os 16 e 27, supra, o artigo 1.o e o artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida foram parcialmente anulados, nessa medida, pelo Tribunal de Justiça.

32      Daqui resulta que a anulação parcial da decisão recorrida proferida pelo Tribunal de Justiça deu às recorrentes o resultado que pretendiam com uma parte do seu recurso, a saber, o desaparecimento deste aspeto da decisão da ordem jurídica da União (v., neste sentido, Despacho de 16 de setembro de 2014, Justice & Environment/Comissão, T‑405/10, não publicado, EU:T:2014:821, n.o 20 e jurisprudência referida).

33      Com efeito, mesmo admitindo que as acusações acima referidas no n.o 29 tivessem fundamento jurídico, não conduziriam a uma anulação da decisão recorrida além da declarada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60). Em particular, a acusação, mesmo admitindo‑a fundada, de que outras empresas que participaram em operações no âmbito do SAF, como, nomeadamente, os estaleiros navais, devem também ser consideradas como fazendo parte do círculo de beneficiários do SAF e das empresas objeto da ordem de recuperação, implicaria a anulação do artigo 1.o da decisão recorrida, na medida em que designa os AIE e os seus investidores como únicos beneficiários dos auxílios em causa, e do artigo 4.o, n.o 1, dessa decisão, uma vez que obriga o Reino de Espanha a recuperar a totalidade dos auxílios em causa junto dos investidores dos AIE que deles beneficiaram. Ora, como recordado nos n.os 16, 27 e 31, supra, estes artigos foram parcialmente anulados, nessa medida, pelo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).

34      Por conseguinte, há que considerar que os presentes recursos ficaram, nessa medida, sem objeto.

35      Além disso, pode salientar‑se, no que respeita à argumentação das recorrentes que contesta a exclusão dos estaleiros navais dos beneficiários do SAF e das empresas visadas pela ordem de recuperação, que as recorrentes não demonstraram que essa argumentação, admitindo‑a fundada, era suscetível de lhes conferir um benefício superior ao que retiram do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).

36      Segundo as recorrentes, os AIE só conservavam 10 a 15 % das vantagens resultantes das operações efetuadas a título do SAF, sendo a maior parte das vantagens obtidas graças a essas operações, a saber, 85 a 90 % da economia financeira e fiscal resultante de cada operação, transferida para terceiros. Indicam que esses terceiros são as companhias de navegação segundo a decisão recorrida, mas que, na realidade, os verdadeiros beneficiários do SAF são os estaleiros navais, mais precisamente os estaleiros navais espanhóis.

37      Ora, no n.o 138 do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), o Tribunal de Justiça declarou que os AIE «estavam obrigados, por força das normas jurídicas aplicáve[is] aos contratos celebrados com as companhias de navegação, a transferir para estas uma parte do benefício fiscal obtido». No n.o 131 deste acórdão, observou que, no considerando 11 da decisão recorrida, a Comissão tinha indicado que uma operação do SAF permitia a uma companhia de navegação adquirir um navio novo construído com um desconto de 20 a 30 % relativamente ao preço cobrado pelo estaleiro e que, no considerando 12 dessa decisão, esta tinha considerado que o SAF constituía uma montagem fiscal organizada em geral por um banco para gerar benefícios fiscais ao nível dos investidores no quadro de um AIE «fiscalmente transparente» e para transferir a parte destes benefícios fiscais para essa companhia de navegação, sob a forma de um desconto sobre o preço do navio, conservando os investidores os restantes benefícios. No n.o 132 do mesmo acórdão, referiu também que, no considerando 162 da referida decisão, a Comissão tinha indicado que, no plano económico, uma parte substancial do benefício fiscal obtido pelo AIE era transferida para a referida companhia de navegação através de um desconto sobre o preço.

38      A este respeito, resulta do considerando 19 da decisão recorrida que o «benefício fiscal de aproximadamente 30[%] do preço bruto inicial do navio […] — obtido inicialmente pelo AIE e respetivos investidores — fica[va] parcialmente (10[%]‑15[%]) nas mãos dos investidores, sendo o restante (85[%]‑90[%]) transferido para a companhia de navegação que, finalmente, passa[va] a ser proprietária do navio, com uma redução de 20[%] a 30[%] relativamente ao seu preço bruto inicial».

39      Nestas circunstâncias, e embora o Tribunal de Justiça não tenha sido chamado a pronunciar‑se, nos processos que deram origem ao Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), sobre a questão de saber se os estaleiros navais também deviam ser considerados beneficiários do SAF, pelo que não teve oportunidade de se pronunciar sobre esta questão, há que salientar que nada na argumentação das recorrentes indica que o montante da vantagem de que beneficiam os investidores, a saber, da ordem de 10 a 15 % das vantagens resultantes das operações efetuadas ao abrigo do SAF, e que devem reembolsar ao Reino de Espanha, seria diferente se os estaleiros navais fossem, também eles, considerados beneficiários do SAF. Com efeito, como a recorrente no processo T‑29/14 admitiu, aliás, na audiência, a parte da vantagem que os AIE conservaram a título do SAF não varia em função da questão de saber se, entre os outros beneficiários do SAF, figuram apenas as companhias de navegação ou estas últimas e os estaleiros navais.

40      Por conseguinte, há que concluir que as recorrentes não demonstraram, de qualquer modo, que tinham interesse em invocar a primeira parte dos quartos fundamentos, visto que visa contestar a exclusão dos estaleiros navais do SAF.

41      As recorrentes contestam, em seguida, com a segunda parte dos seus quartos fundamentos, o método descrito nos considerandos 263 a 269 da decisão recorrida para calcular o montante que deve ser reembolsado pelos investidores. Em especial, as recorrentes alegam que a Comissão cometeu um erro ao não ter em conta, no referido método, os investimentos ditos de «fundos perdidos» por elas efetuados. Entendem que, ao ordenar a recuperação, a Comissão deveria ter tido em conta os investimentos com perdas efetuadas pelos investidores dos AIE para gerar a vantagem fiscal, investimentos esses que seriam encargos específicos inerentes a essa vantagem. Nesta parte, as recorrentes alegam igualmente que a Comissão deveria ter deduzido os montantes das vantagens que os investidores dos AIE transferiram para terceiros no âmbito do SAF.

42      A este respeito, há que salientar que, nos considerandos 263 a 269, a decisão recorrida inclui uma secção intitulada «Determinação dos montantes a recuperar», na qual a Comissão indica um método em quatro passos, que considera que o Reino de Espanha deve aplicar para determinar, em cada caso, o montante do auxílio incompatível a recuperar junto dos beneficiários. A Comissão especifica que este método pode ser objeto de um maior alinhamento, a fim de determinar o montante efetivo do benefício fiscal de que gozavam os investidores, tendo em conta a respetiva situação fiscal.

43      Esses quatro passos são os seguintes:

–        primeiro, calcular o benefício fiscal total gerado pela operação [ou o valor atual líquido (VAL) dos benefícios fiscais obtidos pelo AIE ou pelos seus investidores, isto é, antes da dedução da parte dessas vantagens transferidas para a companhia de navegação através de um desconto sobre o preço];

–        segundo, calcular o benefício fiscal gerado pelas medidas fiscais de caráter geral aplicadas à operação (ou seja, o VAL — calculado da mesma forma que no primeiro passo — do montante dos benefícios fiscais que teriam obtido o AIE ou os seus investidores numa situação de referência em que a amortização acelerada só tivesse sido utilizada a contar do momento em que o navio começou a ser explorado e em que a operação foi tributada ao abrigo das regras ordinárias gerais do imposto sobre o rendimento das sociedades);

–        terceiro, calcular o benefício fiscal equivalente a um auxílio estatal, ou seja, a diferença entre os montantes obtidos no primeiro e no segundo passos;

–        quarto, calcular o montante do auxílio apurado no cálculo do terceiro passo que é compatível (ou seja, a vantagem transferida pela companhia de navegação que é compatível em conformidade com o capítulo 11 das Orientações sobre transportes marítimos, tendo a Comissão, com efeito, considerado, nos considerandos 202 e seguintes da decisão recorrida, que uma parte da vantagem transferida para a companhia de navegação podia ser considerada compatível se a empresa, o navio e as atividades de transporte fossem elegíveis nos termos das Orientações sobre transportes marítimos, como foi indicado no n.o 9, supra).

44      Ora, como a recorrente no processo T‑29/14 admitiu, em substância, na audiência, a argumentação das recorrentes destinada a contestar o método descrito nos considerandos 263 a 269 da decisão recorrida, nomeadamente a inexistência de dedução dos investimentos «a fundo perdido» e, de forma geral, dos montantes que foram transferidos para terceiros, assenta na premissa de que a recuperação do auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno seguirá o referido método.

45      No entanto, na sequência da anulação parcial do artigo 1.o e do artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida, os AIE e os seus investidores deixaram de ser considerados os únicos beneficiários do SAF e os investidores deixaram de ser considerados as únicas empresas junto das quais deve ser ordenado ao Reino de Espanha que recupere o auxílio. Assim, o método descrito nos considerandos 263 a 269 da decisão recorrida, uma vez que assenta na premissa, agora errada, de que a totalidade da vantagem deve ser recuperada apenas junto dos investidores dos AIE, tornou‑se obsoleto na sequência do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).

46      Em especial, uma parte significativa da vantagem pode ter de ser restituída por outros beneficiários do SAF. Ora, o método descrito nos considerandos 263 a 269 da decisão recorrida baseia‑se numa premissa diferente, considerada errada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), segundo a qual a totalidade da vantagem incompatível deve ser restituída pelos investidores dos AIE. Assim, por exemplo, no terceiro passo desse método, que diz respeito ao «[c]álculo do benefício fiscal equivalente a auxílio estatal» (considerando 266 da referida decisão), afirma‑se que «auxílio recebido pelo AIE e pelos seus investidores enquanto beneficiários das medidas fiscais em causa» corresponde ao «[valor atual líquido] do benefício total decorrente do uso da amortização antecipado, o regime de TT […] e a isenção fiscal das mais‑valias».

47      Por conseguinte, por força do artigo 266.o TFUE, que lhe impõe que retire as consequências do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), a Comissão deve, nomeadamente, reexaminar integralmente o método de cálculo dos montantes a recuperar. De resto, esta indicou, na sua resposta a uma medida de organização do processo adotada pelo Tribunal Geral em 25 de maio de 2023 e na audiência, que a ordem de recuperação devia ser adaptada para assegurar a execução do referido acórdão.

48      Daqui resulta que, como as recorrentes admitiram na audiência, os recursos perderam o seu objeto na medida em que visam contestar o método descrito nos considerandos 263 a 269 da decisão recorrida, tendo, aliás, a recorrente no processo T‑31/14 renunciado às acusações que tinha suscitado a este respeito, como indicado no n.o 21, supra.

49      Atendendo às considerações precedentes, há que considerar que os presentes recursos ficaram sem objeto, dado que visam contestar, por um lado, a identificação dos beneficiários do SAF e das empresas visadas pela ordem de recuperação e a fundamentação da decisão recorrida a esse respeito e, por outro, o método descrito nos considerandos 263 a 269 da decisão recorrida.

50      Em contrapartida, continua a ser necessário decidir sobre os pedidos das recorrentes na medida em que estes têm por objeto a anulação de partes da decisão recorrida que não foram anuladas pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).

51      Com efeito, alguns pedidos apresentados pelas recorrentes visam uma anulação da decisão recorrida além da declarada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60). Assim, cada uma das recorrentes pediram ao Tribunal Geral, em particular, no âmbito do primeiro pedido do seu recurso, que anulasse a referida decisão na parte em que declara a existência de um auxílio de Estado e ordena que este seja recuperado junto dos investidores dos AIE, no âmbito do segundo pedido do seu recurso, que declarasse sem efeito a ordem de recuperação do auxílio destinado aos investidores dos AIE, uma vez que viola os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima e, no âmbito do quarto pedido do seu recurso, que anulasse o artigo 4.o, n.o 1, dessa decisão, porquanto proíbe a transferência do ónus da recuperação para as outras pessoas. Além disso, a recorrente no processo T‑29/14 pede a anulação dos artigos 1.o, 2.o e do artigo 4.o, n.o 1, da mesma decisão, visto que identificam os investidores como beneficiários que devem reembolsar o auxílio.

52      Quanto aos fundamentos invocados em apoio dos pedidos acima mencionados no n.o 51, há que recordar desde logo, como foi referido no n.o 21, supra, que as recorrentes renunciaram, cada uma, aos fundamentos primeiro e terceiro do seu recurso.

53      Daqui resulta que há que decidir sobre a parte dos recursos em que as recorrentes invocam, no âmbito dos segundos fundamentos, uma violação do artigo 107.o TFUE, dado que a Comissão considerou erradamente que certas medidas fiscais que compõem o SAF, consideradas individualmente, constituíam auxílios de Estado novos e, no âmbito dos quintos fundamentos, uma violação do artigo 108.o TFUE, do artigo 14.o do Regulamento n.o 659/1999, do artigo 3.o, n.o 6, TUE e dos artigos 16.o e 17.o da Carta, porquanto o artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida proíbe «transferir o ónus da recuperação para as outras pessoas».

54      Com efeito, se os segundos e quintos fundamentos fossem julgados procedentes, poderiam conduzir à anulação de partes da decisão recorrida que não foram anuladas pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).

55      A este respeito, contrariamente ao que alega a recorrente no processo T‑31/14, a identificação dos AIE e dos seus investidores como beneficiários do SAF e a ordem de recuperação dos auxílios junto destes últimos, constante da decisão recorrida, não foram totalmente anulados pelo Tribunal de Justiça, pelo que os recursos perderam o seu objeto na totalidade.

56      Com efeito, a afirmação da recorrente no processo T‑31/14 resulta de uma interpretação errada do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).

57      Com o Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), como acima se refere no n.o 16, o Tribunal de Justiça anulou apenas parcialmente a decisão recorrida, a saber, unicamente, o seu artigo 1.o «na medida em que designa os [AIE] e os respetivos investidores como únicos beneficiários do auxílio referido nessa decisão» (n.o 3 do dispositivo desse acórdão) e o seu artigo 4.o, n.o 1, «na medida em que ordena ao Reino de Espanha que recupere a totalidade do montante do auxílio referido nessa decisão junto dos investidores dos [AIE] que dele beneficiaram» (n.o 4 do mesmo dispositivo).

58      Em contrapartida, a identificação dos AIE e dos investidores como beneficiários do SAF e a obrigação de o Reino de Espanha recuperar o auxílio, ou parte dele, pelo menos junto destes últimos não foram anuladas pelo Tribunal de Justiça.

59      Com efeito, a consequência lógica da declaração da ilegalidade de um auxílio é a sua supressão por via de recuperação, para restabelecer a situação anterior (v. Acórdão de 8 de dezembro de 2011, Residex Capital IV, C‑275/10, EU:C:2011:814, n.o 33 e jurisprudência referida).

60      Ora, no Acórdão de 25 de julho de 2018, Comissão/Espanha e o. (C‑128/16 P, EU:C:2018:591, n.o 46), o Tribunal de Justiça declarou que a Comissão tinha considerado acertadamente que os AIE tinham a qualidade de beneficiários do SAF. Além disso, nos recursos que deram origem ao Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), os argumentos dos recorrentes nesses processos destinados a demonstrar que o SAF não constituía um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE em benefício dos AIE e dos seus investidores foram rejeitados. Por outro lado, os argumentos desses recorrentes destinados a demonstrar que a recuperação junto dos investidores dos AIE era contrária aos princípios da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica também não foram acolhidos pelo Tribunal de Justiça.

61      Assim, na sequência do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), a decisão recorrida continua válida, uma vez que declara ilegal e incompatível com o mercado interno o auxílio que beneficia, pelo menos, os AIE e os seus investidores, e obriga o Reino de Espanha a recuperar esse auxílio, ou parte dele, junto destes últimos. Por outro lado, a circunstância de, para o cálculo dos montantes a recuperar, o método descrito nos considerandos 263 a 269 da decisão recorrida dever ser alterado à luz do referido acórdão em nada altera o facto de essa obrigação de recuperação persistir enquanto tal.

62      Resulta das considerações precedentes que não há que conhecer dos recursos na parte em que têm por objeto a anulação do artigo 1.o da decisão recorrida na medida em que designa os AIE e os respetivos investidores como únicos beneficiários do auxílio referido nessa decisão, e do artigo 4.o, n.o 1, da referida decisão, na medida em que ordena ao Reino de Espanha que recupere a totalidade do montante do auxílio referido nessa decisão junto dos investidores dos AIE que dele beneficiaram.

 Quanto ao mérito

 Quanto aos segundos fundamentos, relativos à qualificação errada das medidas fiscais que constituem o SAF, tomadas individualmente, como auxílios novos

63      Com os segundos fundamentos, as recorrentes alegam que a Comissão cometeu erros de direito na sua análise das diferentes medidas fiscais que compõem o SAF tomadas individualmente.

64      Primeiro, as recorrentes alegam que o regime de amortização antecipada tem um alcance geral e que não constitui uma medida seletiva e não confere nenhuma vantagem económica, pelo que não deve ser qualificado de auxílio de Estado.

65      Segundo, quanto à aplicação do regime do imposto sobre a arqueação aos AIE e do artigo 50.o, n.o 3, do Regulamento do Imposto sobre as Sociedades, os recorrentes referem, em substância, que essas medidas não são seletivas, e que já tinham sido autorizadas pela Comissão na Decisão C 2004) 1931, pelo que, se essas medidas devessem ser consideradas auxílios de Estado, constituiriam, sendo caso disso, auxílios existentes.

66      A Comissão contesta os argumentos das recorrentes.

67      A este respeito, há que salientar que os argumentos das recorrentes, que contestam a qualificação de certas medidas fiscais que compõem o SAF como auxílios novos, o seu caráter seletivo e a existência de uma vantagem, se baseiam, na realidade, na premissa de que as referidas medidas devem ser apreciadas separadamente, à luz do artigo 107.o TFUE, e não tendo em conta o SAF no seu conjunto.

68      Ora, esta premissa está errada. Com efeito, como a Comissão indicou no considerando 116 da decisão recorrida, as diferentes medidas fiscais que compõem o SAF estão juridicamente ligadas, em substância, porque a amortização antecipada estava sujeita à obtenção de uma autorização pelas autoridades fiscais, da qual dependia, além disso, a aplicação do artigo 50.o, n.o 3, do Regulamento do Imposto sobre as Sociedades que estabelece uma exceção ao regime de imposto sobre a arqueação. Estavam, além disso, ligadas de facto, uma vez que a autorização administrativa para a amortização antecipada só era concedida no contexto de contratos de locação financeira de navios elegíveis para o referido regime, que puderam, por isso, beneficiar da regra prevista no artigo 50.o, n.o 3, do referido regulamento.

69      Foi devido à existência dessa ligação entre as medidas fiscais que compõem o SAF que o Tribunal Geral declarou, no n.o 101 do Acórdão de 23 de setembro de 2020, Espanha e o./Comissão (T‑515/13 RENV e T‑719/13 RENV, EU:T:2020:434), que, tendo em conta que uma das medidas que permite beneficiar do SAF no seu conjunto era seletiva, a saber, a autorização da amortização antecipada, a Comissão não cometeu um erro ao considerar, na decisão recorrida, que o sistema era seletivo no seu conjunto, conclusão que foi confirmada pelo Tribunal de Justiça nos n.os 71 e 72 do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).

70      Além disso, a necessidade de avaliar o SAF no seu conjunto como um regime de auxílios foi implicitamente confirmada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60). Com efeito, no n.o 137 desse acórdão, o Tribunal de Justiça, para concluir que a Comissão tinha cometido um erro de direito quanto à designação dos beneficiários do auxílio em causa e, por conseguinte, quanto à sua recuperação, baseou‑se, nomeadamente, no facto de a Comissão ter considerado que o SAF constituía, no seu conjunto, um regime de auxílios decorrente da aplicação da legislação fiscal espanhola e das autorizações concedidas pela Administração Fiscal espanhola, e destinado, independentemente dos mecanismos jurídicos utilizados, a gerar uma vantagem em benefício, nomeadamente, dos AIE e das companhias de navegação.

71      Daqui decorre que todos os argumentos das recorrentes, uma vez que assentam na premissa errada de que cada uma das três medidas fiscais que compõem o SAF acima mencionadas nos n.os 64 e 65 deve ser analisada individualmente à luz do artigo 107.o TFUE, sem avaliar o SAF no seu conjunto, devem ser julgados manifestamente improcedentes.

72      Assim, para responder mais especificamente às acusações suscitadas pelas recorrentes, em primeiro lugar, no que respeita às acusações que contestam a seletividade de certas medidas fiscais que compõem o SAF, nomeadamente a aplicação do regime de amortização antecipada, a aplicação do regime do imposto sobre a arqueação aos AIE e o artigo 50.o, n.o 3, do Regulamento do Imposto sobre as Sociedades, o Tribunal de Justiça confirmou, nos n.os 57 a 74 do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), a apreciação do Tribunal Geral segundo a qual a existência dos aspetos discricionários do SAF era suscetível de favorecer os beneficiários em relação a outros sujeitos passivos que se encontram numa situação factual e jurídica comparável, e confirmou que a amortização antecipada apresentava assim um caráter seletivo. Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que o Tribunal Geral pôde concluir com razão que a Comissão não cometeu um erro ao considerar que a amortização antecipada tornava o SAF seletivo no seu conjunto.

73      Nestas condições, há que rejeitar as acusações das recorrentes segundo as quais a Comissão considerou erradamente que o regime de amortização antecipada, a aplicação do regime do imposto sobre a arqueação aos AIE e o artigo 50.o, n.o 3, do Regulamento do Imposto sobre as Sociedades, considerado individualmente como medidas fiscais que compõem o SAF, eram seletivos.

74      Em segundo lugar, no que respeita às alegações das recorrentes relativas à conclusão da Comissão de que o regime de amortização antecipada confere uma vantagem económica aos beneficiários do SAF, refira‑se que, na decisão recorrida, a Comissão descreveu as vantagens concedidas aos AIE e aos investidores que dela eram membros no sentido de que consistiam:

–        no facto de a amortização acelerada poder ter início antes do ativo entrar em funcionamento, em conformidade com o artigo 115.o, n.o 11, da Lei do Imposto sobre as Sociedades (considerando 132 da decisão recorrida);

–        na aplicação do regime de imposto sobre a arqueação aos AIE (considerando 142 da referida decisão);

–        na exceção à aplicação ordinária do artigo 125.o, n.o 2, dessa lei, nos termos da qual alguns navios de mar que normalmente seriam considerados usados ou em segunda mão, são considerados novos no momento da sua transferência para o referido regime, com a consequência de o pagamento das obrigações fiscais implícitas ser anulado definitivamente (considerando 145 dessa decisão).

75      Ora, como recordado no n.o 70, supra, no n.o 137 do Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60), o Tribunal de Justiça, para concluir que a Comissão tinha cometido um erro de direito quanto à designação dos beneficiários do auxílio em causa, salientou que o SAF constituía, no seu conjunto, um regime de auxílios decorrente da aplicação da legislação fiscal espanhola e das autorizações concedidas pela Administração Fiscal espanhola, e destinado a gerar uma vantagem em benefício, nomeadamente, dos AIE e das companhias de navegação.

76      Daqui decorre que o argumento das recorrentes segundo o qual a amortização antecipada não confere uma vantagem económica deve ser julgado manifestamente improcedente, uma vez que assenta na premissa errada de que essa medida fiscal deve ser analisada individualmente à luz do artigo 107.o TFUE, e não apreciando o SAF no seu conjunto.

77      Em terceiro lugar, no que respeita às acusações das recorrentes relativas à inexistência de novo auxílio, a título preliminar, importa salientar que, embora a Comissão tenha demonstrado, no considerando 238 da decisão recorrida, que, «as medidas consideradas separadamente constitu[íam] um auxílio estatal (exceto a amortização acelerada de ativos locados)», não deixa de ser verdade que, como foi salientado no n.o 68, supra, o SAF foi analisado conjuntamente com o regime de imposto sobre a arqueação e que foi a operação do SAF no seu conjunto que foi considerada um auxílio de Estado ilegal e parcialmente incompatível com o mercado interno e que esta abordagem foi validada pelo Tribunal de Justiça, como recordado no n.o 70, supra.

78      Com efeito, como as recorrentes confirmaram na audiência, não contestam que o SAF enquanto sistema não foi notificado à Comissão nem autorizado por esta instituição numa decisão anterior e que o referido regime, apreciado no seu conjunto, não pode, por conseguinte, ser qualificado de auxílio existente. Além disso, é facto assente que pelo menos uma das medidas fiscais que compõem o SAF, nomeadamente a amortização antecipada, tomada individualmente, não foi notificada à Comissão e que esta última não a aprovou numa decisão anterior.

79      Daqui resulta que, contrariamente ao que afirmam as recorrentes, a Comissão não devia recorrer ao procedimento aplicável aos regimes de auxílios existentes quando examinou o SAF na decisão recorrida.

80      Nestas circunstâncias, há que julgar improcedentes os segundos fundamentos, sem que seja necessário responder à argumentação das recorrentes relativa ao caráter seletivo, à existência de uma vantagem ou à qualificação de auxílio novo das medidas fiscais em causa, tomadas individualmente.

 Quanto aos quintos fundamentos, relativos às cláusulas contratuais que protegem os beneficiários contra a recuperação de um auxílio de Estado ilegal e incompatível

81      Os quintos fundamentos são relativos à violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, do artigo 14.o do Regulamento n.o 659/1999, do artigo 3.o, n.o 6, TUE, bem como da liberdade de empresa e do direito de propriedade consagrados nos artigos 16.o e 17.o da Carta.

82      Em especial, as recorrentes alegam que o artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida, segundo o qual o Reino de Espanha deve recuperar o auxílio junto dos beneficiários «sem a possibilidade de [estes] transferirem o ónus da recuperação para as outras pessoas», prevê erradamente que as cláusulas contratuais por força das quais os investidores podem reclamar, nomeadamente junto dos estaleiros navais, os montantes que tiveram de reembolsar ao Estado (a seguir «cláusulas de indemnização») são nulas.

83      Segundo as recorrentes, a Comissão não tem competência, nos procedimentos de controlo dos auxílios de Estado, para considerar, como fez no considerando 275 da decisão recorrida, que as cláusulas de indemnização, celebradas entre particulares, são contrárias à própria essência do sistema de controlo dos auxílios de Estado. Não pode proibir fluxos económicos ou acordos de indemnização entre particulares, que não afetem o Estado, nem os seus recursos.

84      A Comissão contesta os argumentos das recorrentes.

85      Antes de mais, importa recordar, no que respeita ao princípio da atribuição de competências, que, em conformidade com o artigo 5.o, n.o 2, TUE, a União atua unicamente dentro dos limites das competências que os Estados‑Membros lhe tenham atribuído nos Tratados para alcançar os objetivos que estes Tratados estabelecem. Nos termos do artigo 4.o, n.o 1, TUE e do artigo 5.o, n.o 2, TUE, as competências que não sejam atribuídas à União nos Tratados pertencem aos Estados‑Membros.

86      No que respeita aos princípios que regem os papéis da Comissão e das autoridades nacionais em matéria de auxílios de Estado, há que recordar que, em conformidade com o artigo 108.o TFUE e com o artigo 14.o, n.o 1, do Regulamento n.o 659/1999, aplicável ratione temporis aos factos do caso em apreço, a Comissão é competente não só para apreciar a compatibilidade de um auxílio de Estado com o mercado interno mas também para ordenar a recuperação de um auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno. Em especial, em conformidade com o artigo 14.o, n.o 1, deste regulamento, a Comissão pode, nas decisões negativas relativas a auxílios ilegais, decidir que o Estado‑Membro em causa «deve tomar todas as medidas necessárias para recuperar o auxílio do beneficiário». Embora a ordem de recuperação deva ser executada pelas autoridades nacionais, em conformidade com os procedimentos previstos no direito nacional, importa recordar que a autonomia processual dos Estados‑Membros está limitada, nomeadamente, pelo princípio da efetividade do direito da União, como resulta, em substância, do artigo 14.o, n.o 3, do mesmo regulamento.

87      Assim, um Estado‑Membro destinatário de uma decisão que o obrigue a recuperar os auxílios ilegais deve, por força do artigo 288.o TFUE, tomar todas as medidas adequadas para garantir o cumprimento da referida decisão. Deve obter uma recuperação efetiva dos montantes devidos por forma a eliminar a distorção da concorrência causada pela vantagem concorrencial proporcionada pelo auxílio ilegal (v. Acórdão de 24 de janeiro de 2013, Comissão/Espanha, C‑529/09, EU:C:2013:31, n.o 91 e jurisprudência referida).

88      A obrigação de o Estado‑Membro em causa eliminar, por via de recuperação, um auxílio considerado pela Comissão como sendo incompatível com o mercado interno visa, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o restabelecimento da situação anterior à concessão desse auxílio. Este objetivo é alcançado quando os auxílios em causa, acrescidos eventualmente de juros de mora, são restituídos pelo beneficiário ou, por outras palavras, pelas empresas que deles beneficiaram efetivamente. Ao restituir o auxílio, o beneficiário perde a vantagem de que tinha beneficiado no mercado relativamente aos seus concorrentes e a situação anterior à concessão do auxílio é reposta (v. Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão, C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60, n.o 130 e jurisprudência referida).

89      Além disso, a aplicação das regras da União em matéria de auxílios de Estado assenta numa obrigação de cooperação leal entre, por um lado, os órgãos jurisdicionais nacionais e, por outro, a Comissão e as jurisdições da União, no âmbito da qual cada um atua em função da missão que lhe é conferida pelo Tratado FUE. No âmbito desta cooperação, os órgãos jurisdicionais nacionais devem tomar todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes do direito da União e abster‑se das que são suscetíveis de pôr em perigo a realização dos fins do Tratado, como resulta do artigo 4.o, n.o 3, TUE (v. Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Mediaset, C‑69/13, EU:C:2014:71, n.o 29 e jurisprudência referida).

90      Assim, no âmbito da fiscalização do respeito pelos Estados‑Membros das obrigações que lhes são impostas pelos artigos 107.o e 108.o do Tratado FUE, os órgãos jurisdicionais nacionais e a Comissão desempenham papéis complementares e distintos. Enquanto a apreciação da compatibilidade de medidas de auxílio com o mercado interno é da competência exclusiva da Comissão, que atua sob o controlo do juiz da União, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar a salvaguarda dos direitos dos litigantes em caso de violação da obrigação de notificação prévia dos auxílios de Estado à Comissão, prevista no artigo 108.o, n.o 3, TFUE (v. Acórdão de 21 de outubro de 2003, van Calster e o., C‑261/01 e C‑262/01, EU:C:2003:571, n.os 74 e 75 e jurisprudência referida).

91      É à luz destes princípios que há que examinar os quintos fundamentos.

92      A título preliminar, há que salientar que a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida, segundo a qual o Reino de Espanha deve recuperar o auxílio junto dos beneficiários «sem a possibilidade de [estes] transferirem o ónus da recuperação para as outras pessoas», está redigida em termos amplos e não se limita expressamente, na sua redação, às cláusulas de indemnização analisadas pela Comissão nos considerandos 270 a 276 da referida decisão.

93      Todavia, segundo jurisprudência constante, o dispositivo de um ato é indissociável da sua fundamentação, pelo que deve ser interpretado, se necessário, tendo em conta os motivos que levaram à sua adoção (v. Acórdãos de 26 de março de 2020, Hungeod e o., C‑496/18 e C‑497/18, EU:C:2020:240, n.o 69 e jurisprudência referida, e de 17 de setembro de 2007, Microsoft/Comissão, T‑201/04, EU:T:2007:289, n.o 1258 e jurisprudência referida).

94      Além disso, segundo um princípio geral de interpretação, um ato da União deve ser interpretado, na medida do possível, de forma que não ponha em causa a sua validade e em conformidade com o direito primário (v. Acórdão de 31 de janeiro de 2013, McDonagh, C‑12/11, EU:C:2013:43, n.o 44 e jurisprudência referida).

95      Daqui resulta que, no caso em apreço, o artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida deve ser lido à luz dos considerandos 270 a 276 dessa decisão.

96      A este respeito, é verdade que, no considerando 270 da decisão recorrida, a Comissão faz referência, de forma geral, a «algumas cláusulas de alguns contratos entre os investidores, as companhias de navegação e os estaleiros», segundo as quais «os estaleiros navais ver‑se‑iam obrigados a indemnizar as outras partes se não for possível obter os benefícios fiscais previstos». Ora, há que salientar que, na referida decisão, a Comissão não identificou concretamente essas cláusulas e não citou a sua redação. Além disso, como admitiu, em substância, na audiência, importa salientar que as referidas cláusulas não visam especificamente a hipótese da recuperação de um auxílio de Estado ilegal ou incompatível com o mercado interno, mas, de forma mais geral, as consequências da possibilidade de as autoridades competentes não aprovarem as vantagens fiscais decorrentes do SAF, ou de, na sequência da sua aprovação, a sua validade ser posta em causa.

97      No entanto, nos considerandos 271 e seguintes da decisão recorrida, a Comissão procede, de forma mais concreta, à identificação dos aspetos específicos das cláusulas de indemnização que se revelam, em seu entender, problemáticas no contexto da recuperação dos auxílios ilegais e incompatíveis com o mercado interno. Assim, nos considerandos 272 a 274 da referida decisão, especifica que o objetivo da recuperação, que visa restabelecer a situação anterior, e nomeadamente eliminar o falseamento da concorrência provocado pela vantagem competitiva conferida pelo auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno, estaria irremediavelmente comprometido se as partes privadas pudessem, mediante cláusulas contratuais, alterar os efeitos das decisões de recuperação adotadas pela Comissão. A Comissão considera, no considerando 275 desta decisão, que as cláusulas contratuais destinadas a proteger os beneficiários dos auxílios contra a recuperação dos auxílios ilegais e incompatíveis transferindo para outras pessoas os riscos jurídicos e económicos da recuperação são contrárias à própria essência do sistema de controlo dos auxílios de Estado, que constitui um conjunto de regras de ordem pública.

98      Por conseguinte, e não obstante a sua formulação ampla, a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida deve ser entendida como referindo‑se apenas às cláusulas de indemnização na medida em que podem ser interpretadas no sentido de que protegem os beneficiários de um auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno contra a recuperação deste.

99      Em seguida, há que salientar que, contrariamente ao que alegam as recorrentes, a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida não implica que a Comissão tenha declarado a nulidade das cláusulas de indemnização, uma vez que essa competência cabe, sendo caso disso, aos órgãos jurisdicionais nacionais.

100    Com efeito, a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida deve ser entendida no sentido de que se destina apenas a clarificar o alcance da obrigação de recuperação que incumbe, em conformidade com a jurisprudência acima referida nos n.os 87 e 88, ao Reino de Espanha.

101    Em especial, as cláusulas de indemnização, na medida em que podem ser interpretadas no sentido indicado no n.o 98, supra, podem obstar a que o Estado‑Membro em causa cumpra a sua obrigação de recuperação dos auxílios ilegais e incompatíveis com o mercado interno junto dos beneficiários que deles beneficiaram efetivamente. Com efeito, devido a essas cláusulas, estes últimos evitariam o ónus da recuperação, o que não permitiria o restabelecimento da situação anterior à concessão do auxílio. Como alega, com razão, a Comissão, tal situação seria suscetível de comprometer o efeito útil do sistema de controlo dos auxílios de Estado instituído pelo Tratado. Incumbe, por isso, ao Reino de Espanha, incluindo aos órgãos jurisdicionais nacionais, agir de forma que a obrigação de recuperação do auxílio junto dos beneficiários ou, por outras palavras, das empresas que dele beneficiaram efetivamente, em conformidade com a jurisprudência referida no n.o 88, supra, seja plenamente respeitada.

102    Assim, a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida não implica que a Comissão tenha excedido a competência que lhe é atribuída pelo artigo 14.o, n.o 1, do Regulamento n.o 659/1999. Com efeito, embora seja verdade que a recuperação é efetuada de acordo com as formalidades do direito nacional do Estado‑Membro em causa, em conformidade com o artigo 14.o, n.o 3, do mesmo regulamento, não é menos verdade que esta última disposição exige que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão. Por conseguinte, nada se opõe a que a Comissão especifique, na referida decisão, que o Reino de Espanha deve proceder de modo que os beneficiários reembolsem os montantes dos auxílios de que beneficiaram efetivamente, sem poder transferir o encargo da recuperação desses montantes para outra parte no contrato.

103    No caso em apreço, esta conclusão é tanto mais justificada quanto, como a Comissão confirmou na audiência, as cláusulas de indemnização estavam previstas em contratos‑quadro celebrados entre os diversos participantes do SAF. Ora, estes contratos‑quadro faziam parte do conjunto dos contratos juridicamente vinculativos que, como o Tribunal de Justiça sublinhou no seu Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60, n.o 138), estavam submetidos à Administração Fiscal e que esta tinha em conta para autorizar a amortização antecipada. No n.o 137 desse acórdão, o Tribunal de Justiça confirmou que havia que apreciar o SAF no seu conjunto que incluía não só a legislação fiscal espanhola pertinente mas também as autorizações concedidas pela Administração Fiscal espanhola e, assim, os referidos contratos juridicamente vinculativos.

104    Nestas circunstâncias, uma vez que, ao apreciar a compatibilidade do SAF com as regras de auxílio de Estado, a Comissão foi informada da existência das cláusulas de indemnização previstas nos contratos que estavam submetidos à Administração Fiscal e que esta tinha em conta para autorizar a amortização antecipada, esta instituição não excedeu as suas competências ao recordar, em substância, que o Reino de Espanha devia recuperar o auxílio junto dos seus beneficiários, sem que estes últimos pudessem, com base nas cláusulas de indemnização, transferir o ónus da recuperação para outra parte no contrato, em conformidade com a jurisprudência acima referida no n.o 88.

105    Atendendo a todas as considerações precedentes, os argumentos das recorrentes segundo os quais a Comissão excedeu as suas competências ao incluir a precisão no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida devem ser julgados improcedentes.

106    Nenhum dos outros argumentos das recorrentes pode pôr em causa a legalidade da referida precisão.

107    Primeiro, as recorrentes invocam falta de coerência devido ao facto de, na decisão recorrida, a Comissão ter interferido nos contratos privados ao proibir fluxos económicos decorrentes de cláusulas de indemnização celebradas entre particulares, isentando os estaleiros navais e as companhias de navegação de qualquer obrigação de reembolso, pelo facto de as vantagens obtidas resultarem de uma relação de direito privado entre essas entidades.

108    A este respeito, há que salientar que, na sequência do Acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60, n.os 137 e 138), essa eventual contradição desapareceu, uma vez que, no referido acórdão e como mencionado no n.o 103, supra, o Tribunal de Justiça confirmou que a Comissão devia, ao apreciar o SAF no seu conjunto, tomar em consideração os contratos submetidos à Administração Fiscal e que esta tinha em conta para autorizar a amortização antecipada. Por conseguinte, na sequência desse acórdão, este argumento não pode proceder.

109    Segundo, de acordo com as recorrentes, ao proibir as cláusulas de indemnização, a decisão recorrida contradiz a jurisprudência do Tribunal de Justiça e a prática decisória da Comissão, que não levantou nenhuma objeção relativamente a convenções entre vendedores e compradores que regulem as consequências, entre partes privadas, da eventual recuperação de auxílios ilegais.

110    No entanto, contrariamente ao que alegam as recorrentes, nada na jurisprudência do Tribunal de Justiça se opõe a que, ao ordenar a recuperação de um auxílio ilegal e incompatível com o mercado interno, a Comissão especifique que o Estado‑Membro em causa o deve recuperar junto dos seus beneficiários, sem que estes últimos possam, com base em cláusulas de indemnização como as do caso em apreço, transferir o encargo da recuperação para outra parte num contrato, e isto apesar das eventuais consequências dessa precisão para os contratos celebrados entre partes privadas.

111    Pelo contrário, no Acórdão de 8 de dezembro de 2011, Residex Capital IV (C‑275/10, EU:C:2011:814), referido no considerando 274 da decisão recorrida, o Tribunal de Justiça sublinhou que a obrigação de recuperação de um auxílio de Estado pago ilegalmente exigia que o beneficiário perdesse a vantagem de que dispunha no mercado face aos seus concorrentes e que a situação anterior à concessão do auxílio fosse reposta (v. n.o 34 do referido acórdão). Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que, para corrigir os efeitos de distorção do auxílio, os tribunais nacionais podem intervir e declarar a nulidade dos contratos, inclusive em detrimento de partes que não são beneficiárias do auxílio. Ora, no caso em apreço, a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida limita‑se a recordar ao Reino de Espanha a obrigação de recuperar o auxílio junto dos beneficiários do mesmo para que a situação anterior ao pagamento do referido auxílio seja restabelecida. Contrariamente ao que alegam as recorrentes, o facto de, ao contrário do processo em apreço, o processo que deu origem ao referido acórdão dizer respeito a um auxílio sob a forma de uma garantia do Estado e às competências dos órgãos jurisdicionais nacionais para declarar a nulidade de contratos privados não é relevante a este respeito. Com efeito, como foi salientado no n.o 99, supra, a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida não implica que a Comissão tenha previsto que as cláusulas de indemnização seriam nulas.

112    Por outro lado, uma vez que as recorrentes alegam que a decisão recorrida contradiz determinadas decisões anteriores da Comissão, ainda admitindo que seja esse o caso, deve recordar‑se que, segundo jurisprudência constante, a prática decisória da Comissão relativamente a outros processos não pode afetar a legalidade de uma decisão, que só pode ser apreciada à luz das regras objetivas do Tratado (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2022, Ighoga Region 10 e o./Comissão, T‑582/20, não publicado, EU:T:2022:648, n.o 215 e jurisprudência referida).

113    Terceiro, segundo as recorrentes, a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida viola igualmente a liberdade de empresa, consagrada no artigo 16.o da Carta. Afirmam, além disso, que essa precisão priva injustamente os investidores dos AIE do direito de indemnização de que dispõem nomeadamente em relação aos estaleiros navais, criando assim uma expropriação dos seus direitos privados, em violação do direito de propriedade consagrado no artigo 17.o da Carta.

114    A este respeito, importa salientar que, nos termos do artigo 16.o da Carta é reconhecida a liberdade de empresa, de acordo com o direito da União e as legislações e práticas nacionais.

115    A proteção conferida por este artigo abrange a liberdade de exercer uma atividade económica ou comercial, a liberdade contratual e a livre concorrência (v. Acórdão de 16 de julho de 2020, Adusbef e o., C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 82 e jurisprudência referida).

116    Segundo jurisprudência constante, a liberdade de empresa não constitui uma prerrogativa absoluta. Pode ser sujeita a um amplo leque de intervenções do poder público, suscetíveis de estabelecer, no interesse geral, limitações ao exercício da atividade económica (v. Acórdão de 16 de julho de 2020, Adusbef e o., C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 83 e jurisprudência referida).

117    Em conformidade com o artigo 17.o, n.o 1, da Carta, todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte, e ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral (Acórdão de 16 de julho de 2020, Adusbef e o., C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 84).

118    A este respeito, importa recordar que o direito de propriedade garantido por esta disposição não é uma prerrogativa absoluta e que o seu exercício pode ser objeto de restrições na condição de essas restrições corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral prosseguidos pela União e não constituírem, relativamente à finalidade prosseguida, uma intervenção excessiva e intolerável que atente contra a própria substância do direito assim garantido (v. Acórdão de 16 de julho de 2020, Adusbef e o., C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 85 e jurisprudência referida).

119    Por outro lado, cabe recordar que, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 1, da Carta, podem ser introduzidas restrições ao exercício dos direitos reconhecidos pela Carta desde que estas restrições estejam previstas na lei, respeitem o conteúdo essencial desses direitos e liberdades e que, na observância do princípio da proporcionalidade, sejam necessárias e correspondam efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e das liberdades de terceiros (Acórdão de 16 de julho de 2020, Adusbef e o., C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 86).

120    No caso em apreço, mesmo admitindo que se considere que a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida limita a liberdade de empresa e o direito de propriedade, há que salientar, antes de mais, que esta limitação decorre, nomeadamente, da obrigação de recuperação, prevista no artigo 108.o, n.o 2, TFUE e no artigo 14.o, n.o 1, do Regulamento n.o 659/1999, pelo que está prevista na lei.

121    No que se refere à condição relativa ao respeito do conteúdo essencial da liberdade de empresa e do direito de propriedade, há que observar que as recorrentes não contestam que a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida não afeta esse conteúdo essencial.

122    Em seguida, esta precisão prossegue um objetivo de interesse geral. Com efeito, como acima exposto nos n.os 101 e 102, a precisão visa assegurar que as cláusulas de indemnização não comprometam a obrigação de recuperação que incumbe ao Reino de Espanha e, mais genericamente, garantir o efeito útil do sistema de controlo dos auxílios de Estado instituído pelo Tratado.

123    Além disso, as recorrentes não apresentaram ao Tribunal Geral nenhum elemento que permita concluir que, tendo em conta este objetivo, a precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida constitui uma intervenção desmedida ou intolerável que viola a própria essência da liberdade de empresa ou do direito de propriedade.

124    Por último, no que respeita ao caráter necessário da precisão feita no artigo 4.o, n.o 1, da decisão recorrida, as recorrentes não apresentam elementos que permitam considerar que, ao fazer essa precisão, a Comissão ultrapassou os limites do que é necessário para a realização dos objetivos prosseguidos que foram recordados no n.o 122, supra, tais como, nomeadamente, o restabelecimento da situação anterior à concessão do auxílio e a restituição dos auxílios em causa pelos beneficiários. De resto, como o Tribunal Geral considerou no n.o 102, supra, o artigo 4.o, n.o 1, da referida decisão limita‑se a especificar o alcance da obrigação de recuperação que incumbe ao Reino de Espanha.

125    Atendendo ao que precede, os quintos fundamentos devem ser julgados improcedentes.

126    Há que concluir que os recursos perderam parcialmente o seu objeto e que devem ser julgados improcedentes quanto ao restante.

 Quanto às despesas

127    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

128    Por outro lado, nos termos do artigo 137.o do Regulamento de Processo, se não houver lugar a decisão de mérito, o Tribunal decide livremente sobre as despesas.

129    No caso em apreço, verificou‑se que uma parte do litígio tinha perdido o seu objeto. Ora, o desaparecimento parcial do objeto do litígio é a consequência de um erro de direito cometido pela Comissão que foi igualmente suscitado pelas recorrentes no âmbito dos presentes recursos, que levou à anulação parcial da decisão recorrida proferida pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão (C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60).

130    Em contrapartida, as recorrentes foram vencidas no que respeita à parte do litígio relativamente à qual ainda há que conhecer do mérito.

131    Nestas circunstâncias, o Tribunal decide condenar cada uma das partes a suportar as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção alargada)

decide:

1)      Não há que conhecer dos recursos na medida em que têm por objeto o artigo 1.o da Decisão 2014/200/UE da Comissão, de 17 de julho de 2013, relativa ao auxílio estatal SA.21233 C/11 (ex NN/11, ex CP 137/06) concedido por Espanha — Regime fiscal aplicável a certos acordos de locação financeira também conhecido por «Sistema de arrendamento fiscal espanhol», na parte em que designa os agrupamentos de interesse económico e os respetivos investidores como únicos beneficiários do auxílio referido nessa decisão, e o artigo 4.o, n.o 1, da referida decisão, na parte em que ordena ao Reino de Espanha que recupere a totalidade do montante do auxílio referido nessa mesma decisão junto dos investidores dos agrupamentos de interesse económico que dele beneficiaram.

2)      É negado provimento aos recursos quanto ao restante.

3)      Cada parte suportará as suas próprias despesas.

Kornezov

De Baere

Petrlík

Kecsmár

 

      Kingston

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 21 de fevereiro de 2024.

Assinaturas


*      Língua do processo: espanhol.