Language of document : ECLI:EU:C:2015:350

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 21 de maio de 2015 (1)

Processo C‑194/14 P

AC‑Treuhand AG

contra

Comissão Europeia

«Recurso — Acordos — Mercados europeus dos estabilizadores térmicos — Fixação dos preços, repartição dos mercados e troca de informações comerciais sensíveis — Decisão que declara a existência de infrações ao artigo 81.° CE (atual artigo 101.° TFUE) e ao artigo 53.° do Acordo relativo ao EEE — Decisão que visa uma empresa de consultoria não constitutiva de uma restrição da concorrência nos mercados relevantes»





1.        As regras aplicáveis às empresas em virtude dos artigos 81.° CE e 82.° CE (atuais artigos 101.° TFUE e 102.° TFUE) visam proibir as restrições ao livre jogo da concorrência. A identificação de uma restrição da concorrência pressupõe que se tenha verificado que, após uma análise económica, a empresa visada renunciou, total ou parcialmente, pelo seu comportamento, a constituir uma restrição, caraterística de uma concorrência efetiva, para os outros operadores do mercado ou mercados em questão — e isto definitivamente em detrimento da eficácia económica e do bem estar dos consumidores. Um comportamento não restritivo da concorrência, na aceção anteriormente recordada, ainda que seja moral ou eticamente repreensível, não pode, no entanto, entrar no âmbito das proibições consagradas pelo direito da União Europeia e, em especial, no âmbito da proibição dos acordos visada no artigo 81.°, n.° 1, CE.

2.        O presente processo constitui, em minha opinião, uma oportunidade especial para recordar esta regra fundamental.

3.        No seu recurso, a AC‑Treuhand AG (a seguir «AC‑Treuhand») pede a anulação do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia AC‑Treuhand/Comissão (2), no qual este negou provimento ao seu recurso em que pede a anulação da Decisão C (2009) 8682 final da Comissão, de 11 de novembro de 2009, relativa a um processo de aplicação do artigo 81.° CE e do artigo 53.° do Acordo EEE (processo COMP/38589 — Estabilizadores térmicos) (a seguir «decisão controvertida») (3) e, a título subsidiário, a redução do montante das coimas que lhe foram aplicadas.

4.        Entre as questões suscitadas no presente processo, uma questão inédita é digna de atenção. Com efeito, o Tribunal de Justiça é chamado pela primeira vez (4) a determinar se uma empresa de consultoria que não opera nos mercados em causa ou nos mercados relacionados pode ser processada por infração às regras em matéria de concorrência por ter facilitado a execução do acordo. O processo suscita assim uma problemática importante, sempre atual (5), que convida o Tribunal de Justiça a pronunciar‑se sobre o alcance da proibição dos acordos consagrada pelas regras dos Tratados em matéria de concorrência e, assim, sobre a natureza dos comportamentos suscetíveis de serem abrangidos por essa proibição.

I –    Antecedentes do litígio

5.        Os antecedentes do litígio, tal como foram expostos nos n.os 1 a 24 do acórdão impugnado, podem resumir‑se da seguinte forma:

«2      Pela decisão [controvertida], uma vez que a Comissão […] considerou que um certo número de empresas tinha infringido o artigo 81.° CE e o artigo 53.° do Acordo [EEE] ao participar em dois conjuntos de acordos e de práticas concertadas anticoncorrenciais que abrangem o território do EEE e respeitantes, por um lado, ao setor dos estabilizadores de estanho e, por outro, ao setor do óleo de soja epoxidada e dos ésteres (a seguir «setor ESBO/ésteres»).

[…]

4      Nos termos do artigo 1.° da decisão [controvertida], cada uma dessas infrações consistiu em fixar os preços, repartir os mercados através de quotas de vendas, repartir os clientes, e na troca de informações comerciais sensíveis, em especial sobre os clientes, a produção e as vendas.

5      A decisão [controvertida] enuncia que as empresas em causa participaram nessas infrações ao longo de diferentes períodos compreendidos entre 24 de fevereiro de 1987 e 21 de março de 2000, para os estabilizadores de estanho, e entre 11 de setembro de 1991 e 26 de setembro de 2000, para o setor ESBO/ésteres.

6      A recorrente, AC‑Treuhand […], cuja sede principal se situa em Zurique (Suíça), é uma sociedade de consultoria que oferece um «leque completo de serviços por medida às associações nacionais e internacionais e aos grupos de interesses», esclarecendo‑se que resulta da decisão [controvertida] que essa sociedade descreve os seus serviços nos seguintes termos: «gestão e administração de associações profissionais suíças e internacionais, bem como de federações, organizações sem fins lucrativos; recolha, tratamento e exploração dos dados do mercado; apresentação das estatísticas de mercado; controlo, nos participantes, dos números comunicados» […]

[…]

10      A decisão [controvertida] imputa a responsabilidade à recorrente na medida em que esta desempenhou um papel essencial e semelhante nas duas infrações em causa, ao organizar reuniões para os participantes no acordo a que assistiu e nas quais participou ativamente, recolhendo e fornecendo aos participantes dados sobre as vendas dos mercados em causa, propondo‑se a atuar enquanto moderadora em caso de tensão entre as empresas em causa e incentivando as partes a chegarem a compromissos, e isto em troca de remuneração […]

[…]

20      O artigo 1.° da decisão [controvertida] considera a recorrente responsável pela sua participação na infração respeitante aos estabilizadores de estanho, entre 1 de dezembro de 1993 e 21 de março de 2000, e na infração respeitante ao setor ESBO/ésteres entre 1 de dezembro de 1993 e 26 de setembro de 2000.

[…]

24      O artigo 2.° da decisão [controvertida] enuncia o seguinte:

«Pela(as) infração (infrações) no setor dos estabilizadores de estanho […], são aplicadas as seguintes coimas:

[…]

17)      A AC‑Treuhand é responsável pelo pagamento de 174°000 euros;

[…]

Pela(as) infração (infrações) no setor ESBO/ésteres […], são aplicadas as seguintes coimas:

[…]

38)      A AC‑Treuhand é responsável pelo pagamento de 174 000 euros;

[…]’»

II – Tramitação processual no Tribunal Geral e acórdão impugnado

6.        Por requerimento que deu entrada na secretaria do Tribunal Geral em 27 de janeiro de 2010, a recorrente pediu a anulação da decisão controvertida ou, a título subsidiário, a redução do montante das coimas aplicadas.

7.        Em apoio do seu recurso, a recorrente apresentou nove fundamentos, que o Tribunal Geral, depois de ter registado a desistência da recorrente quanto ao nono fundamento, resumiu do seguinte modo nos n.os 36 e 268 do acórdão impugnado:

«36      Para efeitos da anulação da decisão impugnada, a recorrente invoca quatro fundamentos, bem como a primeira parte do quinto fundamento, relativos, em primeiro lugar, à violação do artigo 81.° CE e do princípio da legalidade dos delitos e das penas (terceiro fundamento); em segundo lugar, à prescrição dos poderes da Comissão de aplicar coimas, nos termos do artigo 25.°, n.° 5, do Regulamento n.° 1/2003 (segundo fundamento); em terceiro lugar, à violação dos direitos de defesa em razão de uma informação tardia do processo de instrução promovido contra ele (oitavo fundamento); em quarto lugar, à violação do princípio do prazo razoável devido à duração do procedimento administrativo (sétimo fundamento); e, em quinto lugar, à violação do artigo 23.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003 (primeira parte do sexto fundamento).

[…]

268      Em apoio dos seus pedidos subsidiários de reforma da decisão impugnada no que respeita ao montante das coimas que lhe foram aplicadas, a recorrente invoca quatro fundamentos, bem como a segunda parte do quinto fundamento, relativos, primeiramente, a um erro de apreciação quanto à duração das infrações (primeiro fundamento); em segundo lugar, à duração do procedimento administrativo (sétimo fundamento); em terceiro lugar, a uma obrigação que incumbe à Comissão de, nas circunstâncias do presente processo, aplicar apenas uma coima simbólica (quarto fundamento); em quarto lugar, à violação das orientações de 2006, a título do cálculo do montante de base da coima (quinto fundamento); e, em quinto lugar, à violação das referidas orientações a título do cálculo da sua capacidade contributiva (segunda parte do sexto fundamento).»

8.        Tendo afastado o conjunto dos fundamentos invocados, o Tribunal Geral negou provimento ao recurso na sua totalidade.

III – Pedidos das partes e tramitação processual no Tribunal de Justiça

9.        Com o seu recurso, a recorrente conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o acórdão impugnado;

–        anular a decisão controvertida, na parte em que diz respeito à recorrente, ou a título subsidiário, reduzir o montante das coimas aplicadas à recorrente;

–        a título ainda mais subsidiário, remeter o processo ao Tribunal Geral;

–        condenar a Comissão no pagamento das despesas efetuadas pela recorrente nos processos no Tribunal Geral e no Tribunal de Justiça.

10.      A Comissão conclui pedindo que seja negado provimento ao recurso e que a recorrente seja condenada nas despesas.

11.      As partes expuseram as suas posições por escrito e oralmente na audiência de 4 de março de 2015.

IV – Análise do recurso

12.      Em apoio do seu recurso, a recorrente suscita quatro fundamentos relativos, respetivamente (I) a uma violação do artigo 81.° TCE e do princípio da legalidade dos delitos e das penas consagrado no artigo 49.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»), por ter considerado que os atos que praticou constituíam um acordo anticoncorrencial, (II) a uma violação deste último princípio, bem como do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de fundamentação na imposição das coimas, (III) a uma violação do artigo 23.°, n.os 2 e 3, do artigo 23.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002 (6) e das orientações para o cálculo das coimas em aplicação do 23.°, n.° 2, alínea a) do artigo 23.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 (7) e (IV) a uma violação do artigo 261.° TFUE e dos artigos 23.°, n.° 3 e 31.°, do Regulamento (CE) n.° 1/2003 por exercício insuficiente e ilegal pelo Tribunal Geral da sua competência de plena jurisdição.

13.      Tal como anunciei na introdução das presentes conclusões, o primeiro fundamento de recurso coloca uma questão de princípio na qual concentrarei a minha análise, depois de expor brevemente a argumentação avançada especificamente por cada uma das partes relativa a este fundamento. Com efeito, coloca‑se a questão de saber se uma empresa que não opera no mercado que constitui objeto de um cartel pode constituir, em relação a esse cartel, uma empresa que tenha participado num acordo anticoncorrencial na aceção do artigo 81.° CE podendo, portanto, ser‑lhe imputada uma infração à referida disposição e, se for esse o caso, ser condenada no pagamento de uma coima a esse título.

1.      Argumentação das partes

14.       O primeiro fundamento de recurso visa os n.os 43 a 45 do acórdão impugnado, em que o Tribunal Geral rejeitou o terceiro fundamento suscitado pela recorrente em primeira instância, bem como diversos pontos do acórdão AC‑Treuhand I, para os quais remete o acórdão impugnado.

15.      A recorrente censura o Tribunal Geral por ter considerado, por um lado, que o artigo 81.° CE era aplicável ao seu comportamento e, por outro, que essa interpretação extensiva era razoavelmente previsível no momento dos factos constitutivos da infração. Portanto, o Tribunal Geral violou, por um lado, o artigo 81.° CE e, por outro, as exigências de precisão e de previsibilidade decorrentes do princípio da legalidade dos delitos e das penas (nullum crimen, nulla poena sine lege), consagrado no artigo 49.°, n.° 1, da Carta.

16.      Nesse contexto, a recorrente sustenta antes de mais que o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem A. Menarini Diagnostics S.r.l. c. Itália, de 27 de setembro de 2011, estabeleceu claramente a natureza penal dos processos de coimas a título da legislação relativa aos acordos. Portanto, há que aplicar o nível elevado de proteção do princípio da legalidade dos delitos e das penas previsto no direito penal. A recorrente sustenta igualmente que a exigência de clareza jurídica seria, na opinião do próprio Tribunal de Justiça (8), particularmente imperiosa num domínio em que, como no caso em apreço, pode estar em causa a aplicação de sanções particularmente importantes.

17.      Em seguida, a recorrente adianta que ela própria não é parte num acordo ou numa prática concertada na aceção do artigo 81.° CE.

18.      A recorrente sustenta que resulta claramente da redação desse artigo que a simples ajuda a um acordo não entra no seu âmbito de aplicação, porque essa disposição visa apenas as próprias partes no acordo ou na prática concertada. No caso vertente, o acordo restritivo da concorrência consistia num entendimento entre produtores na fixação dos preços, bem como na repartição e na atribuição de quotas de entrega e de clientes. O comportamento da recorrente não é suscetível de ser qualificado como participação nessa convergência de vontades, porque se centrava apenas no fornecimento de serviços ao referido acordo. Ora, em conformidade com jurisprudência do Tribunal de Justiça, a existência de um acordo pressupõe a vontade concordante de pelo menos duas partes (9).

19.      A recorrente alega igualmente que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a existência de um acordo requer uma vontade comum de se comportar no mercado de uma maneira determinada. Todavia, no caso vertente, os contratos de serviços concluídos entre a recorrente e cada um dos produtores não tinham com o mercado a relação exigida pelo Tribunal de Justiça. Não há nenhuma relação direta entre os referidos contratos e a restrição da concorrência identificada, que era apenas o resultado do acordo entre os produtores. Acresce que a recorrente não exercia atividade nos mercados situados a montante ou a jusante ou vizinhos dos mercados afetados pelo acordo.

20.      A recorrente entende que também não pode ser censurada por ter participado numa «prática concertada». Com efeito, a recorrente não abandonou nem restringiu a sua autonomia de comportamento no mercado na sequência de uma coordenação ou cooperação com os produtores, como exige a jurisprudência.

21.      Além disso, a recorrente sustenta que os seus atos «de cumplicidade» poderiam em rigor ser punidos em conformidade com as exigências do princípio da legalidade se, no momento do acordo, existisse uma jurisprudência constante da qual se pudesse deduzir uma incriminação de maneira suficientemente clara (10). Ora, a recorrente salienta que antes do acórdão AC‑Treuhand I não existia nenhuma jurisprudência a este respeito. Além disso, decorre quer desse acórdão quer da decisão da Comissão que está na origem do referido acórdão (11) que a escolha da Comissão de acusar uma empresa de consultoria constituía uma reorientação da sua prática decisória anterior.

22.      Enfim, a recorrente entende que as considerações de oportunidade em matéria de concorrência não podem conduzir à violação do princípio da legalidade através de uma interpretação extensiva do artigo 81.°, n.° 1, CE. Apenas se coloca no caso vertente a questão de saber se os serviços de assistência prestados pela recorrente são puníveis em virtude do artigo 81.°, n.° 1, CE, e não se merecem ser punidos.

23.      A Comissão entende que o primeiro fundamento deve ser julgado improcedente por infundado.

24.      A Comissão salienta, antes de mais, que o princípio da legalidade consagrado no artigo 49.°, n.° 1, da Carta engloba o princípio da precisão, a proibição do raciocínio por analogia e o princípio da não retroatividade. As disposições conjugadas do artigo 23.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1/2003 e do artigo 81.° CE, no entanto, não fazem parte do «núcleo duro» do direito penal, de modo que os princípios que regem o direito penal não devem necessariamente aplicar‑se aqui com todo o rigor. Isso não está em contradição com o acórdão A. Menarini Diagnostics S.r.l. c. Itália, já referido, tendo esta qualificado o processo de aplicação de coima a título da legislação relativa aos acordos como sendo de natureza administrativa, antes de observar que as sanções aplicadas podem ser de caráter penal.

25.      Em qualquer caso, os princípios da precisão e da proibição do raciocínio por analogia não se opõem a uma clarificação gradual do conteúdo exato das normas penais pela jurisprudência. Além disso, se o princípio da retroatividade pudesse opor‑se à aplicação retroativa de uma nova interpretação, não razoavelmente previsível, de uma norma penal, essa previsibilidade dependeria nomeadamente do conteúdo e do âmbito de aplicação da norma em questão, bem como dos sujeitos aos quais se dirige. Por outro lado, quando uma norma penal já satisfaz o princípio da precisão pela clareza da sua redação, deixa de ser necessário recorrer a uma jurisprudência interpretativa para que o princípio da precisão seja respeitado (12).

26.      Em seguida, a Comissão sustenta que os argumentos da recorrente, que visam obter uma interpretação excessivamente restritiva do critério de «acordo entre empresas» previsto no artigo 81.° CE, não podem ser admitidos, sendo a transferência propositada de funções de um acordo para uma empresa prestadora de serviços para efeitos da execução efetiva do acordo certamente abrangida pela proibição visada nessa disposição.

27.      A este respeito, a Comissão sustenta, em primeiro lugar, que a redação do artigo 81.° CE é muito ampla e pode englobar qualquer vontade comum concordante ou qualquer comportamento coordenado ou colusório de pelo menos duas empresas (13). Uma vez que os serviços prestados pela recorrente se destinavam objetiva e subjetivamente a apoiar os dois acordos sobre os mercados dos estabilizadores térmicos, existe entre a recorrente e os outros participantes nos acordos a vontade concordante exigida para a existência de um acordo.

28.      Em segundo lugar, pouco importa saber se a restrição da concorrência nos mercados dos estabilizadores térmicos constitui o principal objetivo ou um alvo acessório do comportamento da recorrente ou se existe ou não uma relação direta entre esse comportamento e essa restrição da concorrência. Se um «acordo» é regularmente descrito pela jurisprudência como a «vontade comum de se comportar no mercado de uma determinada maneira», isso não significa no entanto que a necessária concordância de vontades deva imperativamente apresentar para todas as partes uma finalidade ligada ao mercado ou visar uma restrição da liberdade de ação de todas as partes. Do mesmo modo, também é indiferente que a recorrente não tenha operado nos mercados visados pelo acordo, nem nos mercados vizinhos ou emergentes, uma vez que os serviços colusórios da recorrente se destinam objetiva e subjetivamente a restringir a concorrência por meio dos acordos relativos aos estabilizadores térmicos.

29.      Em terceiro lugar, quanto à questão de saber se a interpretação adotada era razoavelmente previsível para a recorrente no momento do acordo, a Comissão alega que já numa decisão adotada em 1980 (14), ou seja, antes do início das infrações em causa no presente processo, tinha declarado que os serviços colusórios prestados por uma sociedade de gestão administrativa violavam o artigo 81.° CE.

30.      Em quarto lugar, a Comissão sustenta que o Tribunal Geral, longe de estender a aplicação do artigo 81.° CE para além dos limites da sua redação, pelo contrário, ao invocar a finalidade e a intenção protetora do direito da concorrência, pronunciou‑se contra uma restrição teleológica dessa norma e não cometeu nenhum erro de direito nas suas considerações relativas ao efeito útil do artigo 81.° CE.

2.      Apreciação

31.      Na análise do primeiro fundamento, colocam‑se duas questões.

32.      A primeira é a de saber se o artigo 81.°, n.° 1, CE é aplicável a uma empresa que, como a recorrente, não exerce atividade no mercado em causa ou nos mercados relacionados e que, stricto sensu, não concluiu um acordo restritivo da concorrência nem se prestou a práticas concertadas nos referidos mercados.

33.      A segunda, que é acessória da primeira e que só tem sentido na hipótese de se concluir que o comportamento da recorrente é abrangido pela proibição enunciada no artigo 81.°, n.° 1, CE, visa determinar se, no caso vertente, a recorrente podia razoavelmente prever que a proibição do artigo 81.°, n.° 1, CE lhe era em princípio aplicável.

34.      Pelas razões que passo a expor, estou firmemente convencido de que há que responder negativamente à primeira questão — e que, portanto, não há que responder à segunda questão. Num primeiro momento, vou concentrar‑me no alcance que deve ser dado ao artigo 81.°, n.° 1, CE para abordar, num segundo momento, a situação particular da recorrente.

a)      Alcance da proibição dos acordos consagrada pelos Tratados: proibição de comportamentos colusórios que, após análise económica, têm um impacto restritivo na concorrência

35.      Parece‑me útil recordar que a possibilidade de aplicar sanções a uma empresa na situação da recorrente é fundamentada pelo Tribunal Geral nos n.os 43 e 44 do acórdão impugnado por remissão para as considerações expostas pelo Tribunal de Primeira Instância no processo em que foi proferido o acórdão AC‑Treuhand I.

36.      Nesse acórdão, o Tribunal Geral corroborou o princípio da responsabilidade da AC‑Treuhand pela violação do artigo 81.°, n.° 1, CE. Os comportamentos censurados à recorrente eram comparáveis aos visados no caso em apreço. Assim, a recorrente era censurada por ter tido um papel determinante no acordo relativo aos peróxidos orgânicos, ao organizar reuniões entre os produtores, ao arquivar certos documentos secretos relativos ao acordo, ao coligir ao tratar certos dados quantitativos e ao realizar certas tarefas logísticas e de secretariado associadas à organização das reuniões.

37.      Os fundamentos acolhidos pelo Tribunal Geral no acórdão AC‑Treuhand I, são, em substância, os seguintes.

38.      Em primeiro lugar, o termo «acordo» visado no artigo 81.° CE deve ser entendido em sentido amplo. A presença de uma «vontade comum» de se comportarem no mercado de uma forma determinada é suficiente e não se exige uma perfeita coincidência entre o mercado pertinente em que a empresa «autora» da restrição da concorrência exerce a sua atividade e aquele em que essa restrição deverá materializar‑se. Qualquer comportamento coordenado com o de outras empresas, que tenha por objetivo restringir a concorrência num mercado pertinente, é assim suscetível de violar a proibição prevista no artigo 81.°, n.° 1, CE (v. n.os 117 a 122 do acórdão AC‑Treuhand I).

39.      Em segundo lugar, não está excluído que uma empresa possa participar na aplicação de uma restrição da concorrência mesmo que não limite a sua própria liberdade de ação no mercado em que exerce maioritariamente a sua atividade. Qualquer outra interpretação seria suscetível de reduzir o alcance da proibição enunciada no artigo 81.°, n.° 1, CE numa medida contrária ao seu efeito útil, uma vez que não permitiria reagir contra a contribuição ativa de uma empresa para uma restrição da concorrência (v. n.os 124 a 128 do acórdão AC‑Treuhand I).

40.      Em terceiro lugar, a fim de demonstrar a participação de uma empresa num cartel e de a chamar à responsabilidade a esse título, basta que a Comissão prove que a referida empresa pretendeu contribuir, através do seu próprio comportamento — ainda que de modo subordinado, acessório ou passivo —, para os objetivos comuns prosseguidos e que tinha conhecimento dos comportamentos materiais perspetivados ou postos em prática por outras empresas, ou que, razoavelmente, os podia prever e estava pronta a aceitar o risco inerente. Esses princípios são aplicáveis, mutatis mutandis, à participação de uma empresa cuja atividade económica e experiência profissional lhe permitem não poder ignorar o caráter anticoncorrencial dos comportamentos em causa e dar, assim, um apoio não negligenciável ao cometimento da infração (v. n.os 129 a 136 do acórdão AC‑Treuhand I).

41.      Em quarto e último lugar, o Tribunal Geral considerou, no n.° 164 do referido acórdão AC‑Treuhand I, que uma prática decisória que a Comissão seguiu durante mais de vinte anos, que se limitava a não condenar nem punir as empresas de consultoria envolvidas nos cartéis sem afastar a ideia de que elas podiam ser consideradas responsáveis pela infração, não podia criar na recorrente uma expetativa fundada de que a Comissão se iria abster, no futuro, de processar as empresas de consultoria quando estas participam num cartel. O facto de o montante da coima imposta nesse caso ser muito limitado não é determinante no caso vertente, porque, como a Comissão sustentou com razão, tratava‑se de punir entidades, designadamente empresas de consultoria, relativamente às quais tinha sido decidido, no passado, não punir o seu eventual envolvimento em atividades de cartel.

42.      Estas considerações, que tendem todas a sustentar que o artigo 81.° CE fixa afinal poucos limites quanto à natureza dos comportamentos colusórios suscetíveis de serem abrangidos pela proibição do seu n.° 1, ignoram totalmente, em minha opinião, o alcance dessa proibição e o objetivo que esta visa atingir.

43.      Nos termos do artigo 81.°, n.° 1, CE «[são] incompatíveis com o mercado comum e proibidos todos os acordos entre empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam suscetíveis de afetar o comércio entre Estados‑Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum» (15).

44.      Correndo o risco de recordar aquilo que, sob vários aspetos, pode parecer evidente, o artigo 81.° CE, tal como o artigo 82.° CE, prevê um certo número de regras dirigidas às empresas a fim de proibir os comportamentos que se verificou que afetam a concorrência ou relativamente aos quais se pode presumir legitimamente, após uma análise económica, que a afetam.

45.      O objetivo das regras em matéria de concorrência consiste globalmente em garantir que os efeitos da livre concorrência, que seguem a par da abertura dos mercados, não sejam falseados por medidas, em sentido amplo, que conduzam a favorecer ou desfavorecer certas empresas e que, afinal, se revelem ser em detrimento dos consumidores.

46.      Quer se considere que os referidos comportamentos têm um objeto anticoncorrencial ou antes um efeito anticoncorrencial, a proibição dos comportamentos visados pelas regras dos Tratados que se destinam às empresas baseia‑se na ideia de que aqueles comportamentos implicam efeitos prejudiciais ao bom funcionamento do jogo normal da concorrência.

47.      A fim de uma empresa ser julgada responsável por uma infração ao artigo 81.°, n.° 1, CE, há que determinar em que medida se concertou com outras empresas com vista a renunciar a constituir uma restrição da concorrência para estas últimas.

48.      Nesse sentido, o Tribunal de Justiça recordou muito cedo a necessidade de recorrer à análise económica tendo em conta, em especial, a posição e a importância das partes no mercado dos produtos ou dos serviços em questão (16). O Tribunal de Justiça recordou ainda muito recentemente, no que se refere à metodologia de identificação dos comportamentos colusórios com um objeto anticoncorrencial, a importância que deve ser dada à análise económica e à experiência (17) a fim de identificar as pressões da concorrência exercidas sobre as empresas.

49.      Do mesmo modo, a Comissão (18) e o Tribunal de Justiça sublinharam reiteradamente que a aplicabilidade das disposições do Tratado que proíbem os acordos anticoncorrenciais pressupõe que a situação dos terceiros «no mercado» seja alterada de modo sensível.

50.      Para poderem ser abrangidos pela proibição prevista pelos Tratados a este respeito, os comportamentos das empresas visados pelos Tratados devem ser pelo menos suscetíveis de eliminar uma restrição ou um entrave existente em princípio no mercado. A natureza dos meios empregues pelas empresas pouco importa (19), no entanto, é necessário que deles resulte uma pressão económica suscetível de restringir a concorrência (20).

51.      Por outras palavras, para ser parte num acordo que tenha um objeto ou efeitos restritivos da concorrência, é necessário ainda que a empresa visada constitua, no jogo normal do mercado, uma pressão competitiva (‘competitive constraint’) para os outros participantes no acordo. Só no caso de a empresa visada representar uma pressão competitiva que valha a pena restringir é que esta pode constituir essa pressão.

52.      É nesse sentido que a definição do mercado pertinente reveste uma importância central quer no quadro da aplicação do artigo 82.° CE quer do artigo 81.°, n.° 1, CE. Se a definição do mercado pertinente é raramente controvertida no quadro da aplicação do artigo 81.° CE, tem sempre por objeto identificar de maneira sistemática as pressões que a concorrência exerce sobre as empresas em causa (21).

53.      A este respeito, é certo que o direito europeu da concorrência não exige que todos os participantes num acordo exerçam uma atividade económica no mercado afetado pelo acordo, mas em contrapartida impõe que se determine se a conclusão do acordo controvertido tem um objeto ou efeitos restritivos da concorrência num dado mercado pertinente.

54.      A questão não consiste apenas em saber se as empresas que podem concluir um acordo proibido na aceção do artigo 81.° CE podem operar em mercados distintos, mas em saber se podem constituir, umas para as outras, pressões concorrenciais. Sendo certo que a concorrência visada no artigo 81.°, n.° 1, CE não é apenas a que as partes de um acordo podem fazer entre si, mas também a que se poderia exercer entre uma delas e terceiros (22), é ainda necessário que a entidade visada possa assumir compromissos de natureza anticoncorrencial.

55.      Esta exigência parece‑me decorrer não apenas de uma interpretação teleológica do artigo 81.°, n.° 1, CE, mas igualmente da jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria no que respeita em especial às restrições de natureza vertical desde o acórdão Consten e Grundig/Comissão (23). O Tribunal de Justiça, recordando que o artigo 85.° do Tratado (atual artigo 81.° CE), referindo‑se de modo geral a todos os acordos que falseiam a concorrência no interior do mercado comum, não estabelecia nenhuma distinção entre esses acordos, consoante sejam concluídos entre operadores concorrentes no mesmo estádio ou entre operadores não concorrentes situados em estádios diferentes, precisou, na sequência do seu raciocínio, em que medida os comportamentos visados no caso em apreço, a saber, os acordos de concessão exclusiva concluídos entre um concedente e o seu concessionário, podiam ter o efeito de restringir a concorrência sobre os produtos visados que se exerce entre os concessionários e os terceiros concorrentes destes. A situação criada pelos referidos acordos tinha nomeadamente o efeito de repartir os mercados nacionais dos produtos visados e permitia praticar para esses produtos preços subtraídos a uma concorrência eficaz.

56.      É à luz destas considerações que analisarei o caso em apreço.

b)      A aplicação ao caso vertente

57.      No presente processo, o Tribunal de Justiça é convidado a decidir a questão de saber se o artigo 81.° CE se pode aplicar ao comportamento dos «cartels facilitators», a saber, aos operadores que ajudam a aplicar um acordo restritivo da concorrência, nomeadamente organizando encontros entre concorrentes e prestando serviços no âmbito dos acordos anticoncorrenciais.

58.      No n.° 381 da decisão controvertida, a Comissão descreveu o papel da recorrente da seguinte maneira:

«Resulta dos factos mencionados nos considerandos 356 a 359 que a AC‑Treuhand desempenhou um papel significativo na organização e na condução das reuniões. A AC‑Treuhand conhecia em pormenor o conteúdo dos acordos anticoncorrenciais e, de facto, redigiu e difundiu de forma muito profissional todas as informações relativas aos preços, às quotas e aos clientes. Tinha o poder de efetuar auditorias nas instalações das empresas participantes nos acordos. Só os dados finais aprovados pela AC‑Treuhand eram suscetíveis de servir de base às negociações e aos acordos. A AC‑Treuhand colocou à disposição as suas instalações a fim de permitir a dissimulação dos acordos. Nos dois acordos, o seu papel consistia em impedir a descoberta das duas infrações. Na qualidade de moderadora, o seu papel consistia em encorajar os compromissos com vista a permitir a conclusão dos acordos anticoncorrenciais. A AC‑Treuhand colocou os seus serviços, o seu «know‑how» profissional e a sua infraestrutura à disposição dos dois acordos, a fim de que deles pudessem beneficiar […]».

59.      Há que concluir que os factos censurados à recorrente consistem num conjunto de comportamentos, sem que o papel desta tenha sido esclarecido juridicamente de forma clara como sendo o de um autor (participante) ou ainda o de um cúmplice (ou facilitador) (24).

60.      Assim descrita, a situação da recorrente conduz portanto a interrogarmo‑nos, antes de mais e no prolongamento do que foi mencionado acima, sobre a questão de saber se uma empresa não presente no mercado ou num mercado adjacente pode ser processada na qualidade de autora de uma infração ao artigo 81.°, n.° 1, CE e, em seguida, se essa entidade é suscetível de ser processada por cumplicidade em comportamentos anticoncorrenciais.

i)      Uma empresa que não opera no mercado em questão ou nos mercados relacionados pode ser autora de uma infração à proibição dos acordos ?

61.      Tal como já mencionei anteriormente, o artigo 81.°, n.° 1, CE proíbe unicamente os acordos e práticas concertadas que tenham por objeto ou efeito restringir a concorrência.

62.      Ora, para poder restringir a concorrência, a pessoa ou entidade processada deve ser capaz de constituir, em circunstâncias normais, uma restrição concorrencial («competitive constraint») para os operadores presentes no mercado, restrição essa que pode ser eliminada ou reduzida por atos colusórios.

63.      Independentemente da questão de saber se a empresa visada opera no mesmo mercado ou no mesmo estádio que as empresas que fazem parte do acordo, convém determinar também, portanto, em que medida a concorrência que se exerce no mercado dos produtos em questão foi potencialmente restringida ou eliminada devido à participação daquela empresa.

64.      No caso vertente, não há dúvida que a AC‑Treuhand pode, de maneira geral, ser qualificada como empresa, no sentido de que constitui uma entidade económica que consiste numa organização unitária de elementos pessoais, materiais e imateriais que visam de modo duradouro um determinado objetivo económico. Com efeito, tal como resulta do n.° 6 do acórdão impugnado, trata‑se de facto de uma empresa que exerce uma atividade económica, que consiste nomeadamente em prestar serviços no mercado da consultoria (25).

65.      Todavia, há que concluir que, no presente processo, ela não pode ser considerada como uma empresa ativa no mercado pertinente ou num mercado com ele relacionado. No caso em apreço, agiu na sua qualidade de consultora, mas não assumiu qualquer compromisso anticoncorrencial. Não exerce atividades, nem sequer potencialmente, nos mercados em causa, que são mercados de produtos específicos, a saber, os estabilizadores térmicos de um determinado tipo, sendo‑o unicamente no seu domínio de, a saber, a prestação de serviços de consultoria.

66.      Afigura‑se que os únicos acordos dos quais AC‑Treuhand é eventualmente membro são os acordos de prestações de serviços que concluiu com as empresas participantes no cartel relativo aos estabilizadores térmicos. A AC‑Treuhand não pode, em contrapartida, ser considerada como membro de parte inteira do acordo identificado no artigo 1.° da decisão controvertida, a saber, um conjunto de acordos e de práticas concertadas, relativo a determinados estabilizadores térmicos especiais, e que consiste, em substância, em fixar os preços, repartir os mercados e os clientes e trocar informações comerciais sensíveis.

67.      O objeto dos acordos concluídos entre a AC‑Treuhand e as empresas que operam no mercado era unicamente a prestação de serviços, que apesar de estarem relacionados com a aplicação do acordo, se distinguem, enquanto tais, dos comportamentos censurados aos membros do acordo.

68.      Além disso, a Comissão não alegou, nem provou, que a AC‑Treuhand constituía uma pressão que a concorrência em princípio exerce sobre as empresas participantes no cartel. Não constituindo a AC‑Treuhand uma tal pressão para os membros do cartel identificado no setor dos estabilizadores térmicos, os comportamentos da AC‑Treuhand não podiam, enquanto tais, ser restritivos da concorrência e, portanto, entrar no âmbito da proibição dos acordos visada no artigo 81.°, n.° 1, CE.

69.      Mesmo pressupondo que se tenha verificado que as operações conduzidas pela AC‑Treuhand tiveram um efeito positivo sobre o funcionamento do cartel, tornando‑o mais eficaz e dissimulando‑o, os efeitos sobre a concorrência das operações visadas decorrem exclusivamente dos comportamentos dos membros do cartel. Ainda quanto a esse ponto, apesar de a AC‑Treuhand não constituir, em circunstâncias normais, uma pressão que a concorrência exerce sobre as empresas em causa, as operações que levou a cabo não são suscetíveis de restringir a concorrência.

70.      Portanto, por muito gerais que sejam os termos empregues no Tratado, não podem, de qualquer modo, ser compreendidos na perspetiva da proibição do artigo 81.°, n.° 1, CE os acordos que não têm em si mesmos por objeto ou efeito restringir a concorrência, mas que dizem respeito a serviços que visam facilitar às partes de um acordo restritivo de concorrência a prossecução de comportamentos ilegais (26). A simples intenção de uma empresa de restringir a concorrência não pode bastar, na falta de capacidade efetiva para efetuar semelhante restrição.

71.      Se o Tribunal de Justiça concordar com a abordagem preconizada no presente processo pela Comissão e corroborada pelo Tribunal Geral, a metodologia de identificação dos comportamentos anticoncorrenciais visados pelos Tratados seria profundamente perturbada. Daí resultaria, em minha opinião, uma desconexão entre os comportamentos visados e a necessidade de identificar uma restrição de concorrência, na aceção económica do termo, desconexão que tornaria totalmente supérflua a delimitação do mercado pertinente e a identificação das restrições que em princípio afetam o referido mercado.

72.      Esta desconexão poderia revelar‑se problemática não apenas no quadro da deteção dos comportamentos colusórios que entram no âmbito do artigo 81.° CE, mas igualmente, por analogia, quando se trate de abusos de posição dominante que entram no âmbito da proibição prevista no artigo 82.° CE. Em fim de contas, nada permite excluir que um comportamento de facilitador, que consista por exemplo em conselhos de ordem estratégica ou em peritagens económicas, seja igualmente punido no quadro da aplicação do artigo 82.° CE.

73.      A título de exemplo, no quadro da aplicação do artigo 81.° CE, poderia ser suficiente demonstrar que uma empresa facilitou ou assistiu, de perto ou de longe, empresas que adotaram comportamentos colusórios num dado mercado, sem no entanto se exigir que, independentemente da sua presença nesse mercado, tenha efetivamente estado em posição de exercer uma pressão concorrencial sobre as empresas que operam ou desejam operar no referido mercado, ou seja, sem apreciação do poder económico do acordo (27). No mesmo sentido, um ou mais parceiros comerciais podem ser acusados de ter participado num abuso de posição dominante independentemente do exame da questão de saber se esta detém efetivamente essa posição num mercado bem delimitado e se podia restringir efetivamente a concorrência que se exerce num dado mercado.

74.      Ao corroborar a conclusão da Comissão a este respeito, o Tribunal Geral violou, em minha opinião, os termos do artigo 81.°, n.° 1, CE interpretado à luz do princípio da legalidade.

75.      Nestas circunstâncias, não há que determinar, em princípio, se a recorrente podia razoavelmente prever, como sustenta a Comissão, que a proibição do artigo 81.°, n.° 1, CE lhe era em princípio aplicável.

76.      À luz das considerações precedentes, entendo que a Comissão não podia considerar a AC‑Treuhand diretamente responsável por uma infração ao artigo 81.°, n.° 1, CE.

77.      Mas podia sê‑lo a outro título? É o que me proponho analisar nos desenvolvimentos que se seguem.

ii)    Uma empresa que não constitui uma restrição concorrencial para os membros de um acordo pode ser cúmplice de uma infração à proibição dos acordos?

78.      Se a responsabilidade de uma empresa como a AC‑Treuhand deve, em minha opinião, ser excluída na sua qualidade de autora principal, não exercendo esta atividade no mercado pertinente ou em mercados ligados ao acordo, coloca‑se a questão de saber se é possível considerá‑la responsável por cumplicidade, precisando‑se que, ao contrário do acórdão AC‑Treuhand I (v. nomeadamente n.° 133), não se recorreu expressamente a esta noção na decisão controvertida nem no acórdão impugnado.

79.      A priori, a ideia tem tudo para seduzir. Com efeito, a cumplicidade entende‑se geralmente como qualquer contribuição para a realização de uma infração, nomeadamente uma ajuda ou uma assistência ao autor da infração. Nisso, o cúmplice visa, no direito penal de vários Estados‑Membros, qualquer pessoa que, sem reunir os elementos constitutivos da infração, auxiliou ou facilitou a sua realização, por meio de um comportamento positivo e, com mais frequência, intencional.

80.      Os factos censurados à AC‑Treuhand (organização de reuniões, distribuição e arquivo de documentação, assistência e ações diversas para manter o acordo secreto) poderiam, a priori, ser abrangidos nesta qualificação, porque o comportamento da referida empresa consistiu manifestamente em assistir os membros do cartel na elaboração e na realização deste último.

81.      No entanto, na falta de identificação e de qualificação exatas dos comportamentos julgados repreensíveis no caso vertente, parece que dificilmente se pode chegar a tal conclusão. A este respeito, aliás, não foi avançado que o papel desempenhado pela AC‑Treuhand tenha sido secundário ou acessório relativamente ao papel das empresas membros do cartel visadas na decisão controvertida.

82.      Além disso e sobretudo, tanto quanto é do meu conhecimento, se é quase unanimemente admitida a distinção entre «autor» e «cúmplice» de uma infração no domínio da repressão penal, essa distinção parece‑me em geral desconhecida na esfera administrativa. Ora, tal como o Tribunal de Justiça confirmou em várias ocasiões, e apesar da polémica, o direito da concorrência da União Europeia é de natureza administrativa. Por conseguinte, o recurso ao conceito de cumplicidade, em princípio, não tem sentido neste contexto. No direito dos Estados‑Membros, embora existam situações em que se pretende punir pessoas ou entidades que deram assistência à realização de uma infração às regras da concorrência, os casos que pude identificar são raros, referem‑se a disposições nacionais específicas (28) ou são consequência direta do acórdão AC‑Treuhand I (29).

83.      Em qualquer caso, tal incriminação não resulta do texto do artigo 81.° CE ou das regras adotadas em sua execução.

84.      À luz das considerações precedentes, entendo que, no estado atual do direito da União, processar a AC‑Treuhand a título do artigo 81.°, n.° 1, CE carece de fundamento jurídico.

85.      Isso não exclui que os atos de cumplicidade censurados à AC‑Treuhand possam ser punidos, no futuro, com base numa disposição específica.

86.      A este respeito, parece‑me interessante salientar que, em certos Estados‑Membros, o legislador optou pela adoção de regras específicas que visam punir os comportamentos de «facilitador», regras essas que entram com mais frequência na esfera penal. O caso do Reino Unido parece‑me exemplificativo dos limites intrínsecos das regras da concorrência para abranger ações de apoio a comportamentos anticoncorrenciais, porque com a introdução de uma incriminação específica («criminal cartel offence») prevista pela section 188 do Enterprise Act de 2002 (30), que entrou em vigor em junho de 2003, é que foi decidido punir um facilitador no processo chamado «cartel das mangueiras marinhas» (31).

87.      Em minha opinião, compete unicamente ao legislador da União prever uma infração que vise os cúmplices das infrações ao direito da concorrência. A este respeito, faço questão de sublinhar que o desejo das instituições de assegurar a efetividade das políticas que entendem conduzir deve conciliar‑se com os imperativos de legalidade e de segurança jurídica. Como sublinhava um autor, a doutrina do efeito útil não deve conduzir o Tribunal de Justiça a interpretar as disposições do Tratado no sentido de uma extensão máxima das competências das instituições, mas deve permitir interpretar as regras pertinentes em conformidade com o seu objetivo e a sua finalidade (32).

88.      Por todas estas razões, parece‑me que o primeiro fundamento suscitado deve ser considerado procedente e que o acórdão impugnado deve ser anulado, sem que seja necessário pronunciar‑se sobre os outros fundamentos do recurso.

89.      Parecendo‑me que o processo se encontra em estado de ser julgado, proponho além disso que o Tribunal de Justiça anule a decisão controvertida na medida em que visa a AC‑Treuhand.

V –    Conclusão

90.      À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça decida do seguinte modo:

1)         O acórdão do Tribunal da União Europeia de 6 de fevereiro de 2014, AC‑Treuhand/Comissão (T‑27/10, EU:T:2014:59), é anulado.

2)         A Decisão C (2009) 8682 final da Comissão, de 11 de novembro de 2009, relativa a um processo de aplicação do artigo 81.° CE e do artigo 53.° do Acordo EEE (processo COMP/38589 — Estabilizadores térmicos) é anulada na parte em que visa a AC‑Treuhand AG.

3)         A Comissão Europeia é condenada nas despesas incorridas quer na primeira instância quer no processo de recurso.


1 —      Língua original: francês.


2 —      T‑27/10, EU:T:2014:59, a seguir «acórdão impugnado».


3 —      Resumo no Jornal Oficial da União Europeia, 2010, C 307, p. 9.


4 —      Há que salientar que, com efeito, não foi interposto recurso do acórdão do Tribunal Geral de 8 de julho de 2008, AC‑Treuhand/Comissão (T‑99/04, EU:T:2008:256) (a seguir «acórdão AC‑Treuhand I»), no qual o Tribunal Geral se pronunciou pela primeira vez sobre a aplicação do artigo 81.° CE a uma empresa de consultoria que contribui para a realização de uma infração. A este respeito, há que observar que, no processo em que foi proferido esse acórdão, apesar de a AC‑Treuhand ter sido julgada responsável por uma infração ao artigo 81.° CE, apenas lhe foi aplicada uma coima de 1 000 euros — montante meramente simbólico em comparação com o das coimas aplicadas às empresas visadas pela decisão impugnada nesse processo [Decisão 2005/349/CE da Comissão, de 10 de dezembro de 2003, relativa a um processo de aplicação do artigo 81.° [CE] e do artigo 53.° do Acordo EEE (Processo COMP/E‑2/37.857 — Peróxidos orgânicos) (JO 2005, L 110, p. 44)].


5 —      Numa recente decisão de 4 de fevereiro de 2015, a Comissão Europeia aplicou ao ICAP, uma corretora do setor financeiro baseada no Reino Unido, uma coima do montante de 14,96 milhões de euros por ter facilitado seis dos sete acordos detetados no setor dos produtos derivados de taxas de juro denominados em ienes, por meio de diversas ações que contribuíram para os objetivos anticoncorrenciais prosseguidos pelos membros desses acordos. Foi interposto recurso dessa decisão no Tribunal Geral em 14 de abril de 2015 (processo T‑180/15, atualmente pendente).


6 —      Regulamento (CE) n.° 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° [CE] e 82.° [CE] (JO 2003, L 1, p. 1).


7 —      JO 2006, C 210, p. 2, a seguir «orientações de 2006».


8 —      Acórdão Comissão/Reino Unido, 32/79, EU:C:1980:189, n.° 46.


9 —      Acórdãos Comissão/Anic Partecipazioni (C‑49/92 P, EU:C:1999:356, n.° 79) e Comissão/Volkswagen (C‑74/04 P, EU:C:2006:460, n.° 37).


10 —      Acórdão Evonik Degussa/Comissão, C‑266/06 P, EU:C:2008:295.


11 —      Decisão 2005/349/CE, já referida.


12 —      Acórdão Dansk Rørindustri e o./Comissão, C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, EU:C:2005:408, n.os 217 e segs.


13 —      Acórdão Consten e Grundig/Comissão, 56/64 e 58/64, EU:C:1966:41.


14 —      Decisão 80/1334/CEE, de 17 de dezembro de 1980, relativa a um processo de aplicação do artigo [81.° CE] (IV/29.869 — Vidro em bruto em Itália) (JO L 383, p. 19).


15 —      Sublinhado nosso.


16 —      V. acórdão LTM, 56/65, EU:C:1966:38, que, ao indicar que o artigo 85.°, n.° 1, do Tratado CE (atual artigo 81.°, n.° 1, CE) não efetuava nenhuma distinção consoante as partes se encontrassem colocadas no mesmo estádio do processo económico (acordos ditos «horizontais»), ou em estádios diferentes (acordos ditos «verticais»), precisava que o jogo da concorrência cuja restrição se alegava deve ser entendido no contexto real em que se produziria na falta do acordo controvertido (v., designadamente, p. 358 e 360 do acórdão).


17 —      V. acórdão CB/Comissão (C‑67/13 P, EU:C:2014:2204, n.° 51).


18 —      V., designadamente, n.° I.2 da Comunicação da Comissão de 3 de setembro de 1986 relativa aos acordos de pequena importância que não são abrangidos pelo disposto no n.° 1 do artigo 85.° do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia (JO 1986, C 231, p. 2) nos termos do qual «[só] são proibidos os acordos que tenham efeitos sensíveis sobre as condições do mercado, ou seja, que modifiquem de modo sensível a posição no mercado das empresas terceiras e dos utilizadores, quer dizer, os seus mercados ou as suas fontes de abastecimento». A Comunicação da Comissão relativa aos acordos de pequena importância que não restringem sensivelmente a concorrência nos termos do n.° 1 do artigo 81.°, n.° 1, [CE] (de minimis) (JO 2001, C 368, p. 13) retoma considerações semelhantes no seu n.° I e precisa nomeadamente que «[o] Tribunal de Justiça […] estabeleceu que [o artigo 81.°, n.° 1, CE] só é aplicável quando o impacto do acordo sobre o comércio intracomunitário ou sobre a concorrência for sensível».


19 —      A este respeito, é ponto assente que o artigo 81.° CE visa formas muito diversas de colusões — que se materializem em acordos mais ou menos formais ou em práticas concertadas não contidas em convenções propriamente ditas. Com efeito, basta que os comportamentos anticoncorrenciais sejam a expressão da vontade concordante de pelo menos duas partes, não sendo a forma como se manifesta essa concordância, por si só, determinante (v., designadamente, acórdão Comissão/Volkswagen, C‑74/04 P, EU:C:2006:460, n.° 37).


20 —      Conclusões do advogado‑geral H. Mayras no processo Suiker Unie e o./Comissão (40/73 a 48/73, 50/73, 54/73 a 56/73, 111/73, 113/73 e 114/73, EU:C:1975:78).


21 —      V., a este respeito, acórdão Erste Group Bank e o./Comissão (C‑125/07 P, C‑133/07 P e C‑137/07 P, EU:C:2009:576, n.° 60).


22 —      Acórdão Itália/Conselho e Comissão (32/65, EU:C:1966:42).


23 —      56/64 e 58/64, EU:C:1966:41, p. 493.


24 —      O considerando 668 da decisão controvertida, relativo à determinação do montante das coimas, indica no entanto que a AC‑Treuhand era considerada responsável pela sua «participação direta» nos acordos no decurso desses períodos.


25 —      V., nesse sentido, nomeadamente acórdão Wouters e o. (C‑309/99, EU:C:2002:98, n.° 47 e jurisprudência citada).


26 —      Tal como o Tribunal de Justiça referiu desde muito cedo, apesar de a generalidade dos termos empregues no Tratado no âmbito da proibição dos acordos visar todas as categorias de acordos, o caráter restritivo do artigo 81.°, n.° 1, CE é incompatível com qualquer extensão da proibição para além das três categorias de acordos enumerados de modo exaustivo (v. acórdão Parke, Davis and Co., 24/67, EU:C:1968:11, p. 109).


27 —      Para uma exemplificação desse risco, v. nomeadamente, acórdãos Deltafina/Comissão (T‑29/05, EU:T:2010:355, n.os 45 e segs.) e Gütermann/Comissão (T‑456/05 e T‑457/05, EU:T:2010:168, n.° 53).


28 —      V., designadamente, um acórdão da Cour d’appel de Paris de 26 de setembro de 1991, que visava punir um advogado por uma consulta jurídica relativa a um mecanismo de práticas concertadas, julgando embora que essa consulta entrava no âmbito do sigilo profissional. Há que mencionar, por um lado, que o artigo L. 420.1 do Código de Comércio francês, que se refere aos acordos, não coloca como condição de aplicação a qualidade de empresa das partes e que por outro, o artigo L. 420‑6 do referido Código prevê a possibilidade de aplicar uma coima ou uma pena de prisão pelo facto de «uma pessoa singular tomar pessoalmente parte e de forma determinante e fraudulenta na conceção, na organização ou na execução das práticas [anticoncorrenciais] visadas nos artigos L. 420‑1 e L. 420‑2».


29 —      A Nederlandse Mededingingsautoriteit (autoridade da concorrência neerlandesa), atual Autoriteit Consument & Markt, em 12 de junho de 2009, condenou uma empresa de engenharia pelo seu papel de facilitadora no setor das pinturas (https://www.acm.nl/em/publications/publication/6366/NMa‑imposes‑fine‑on‑two‑cartels‑and‑cartel‑facilitator‑in‑Dutch‑painting‑industry/). Mais recentemente, condenou numa coima de 5 000 euros um facilitador no setor agrícola (https://www.acm.nl/em/publications/publication/6749/NMa‑fines‑two‑cartels‑in‑agricultural‑industry/).


30 —      Esta disposição prevê o seguinte: «An individual is guilty of an offence if he dishonestly agrees with one or more other persons to make or implement, or to cause to be made or implemented, arrangements of the following kind relating to at least two undertakings».


31 —      Nos termos da decisão adotada pelo UK Office of Fair Trading, foram condenadas pessoas singulares em duas penas de prisão até três anos por terem participado no referido cartel.


32 —      V. Pescatore, P., «Monisme e dualisme et ‘effet utile’ dans la jurisprudence de la Cour de Justice de la Communauté Européenne», in Une communauté de droit, 2003, p. 340.