Language of document : ECLI:EU:C:2022:476

Edição provisória

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 16 de junho de 2022 (1)

Processo C265/21

AB,

ABCD

contra

Z EF

[Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour d’Appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas) (Bélgica)]

«Reenvio prejudicial – Espaço de liberdade, segurança e justiça – Competência judiciária e reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial – Regulamento (CE) n.° 44/2001 – Artigo 5.°, n.° 1 – Competência em matéria contratual – Conceito de “matéria contratual” – Ação de reconhecimento do direito de propriedade baseado em dois contratos sucessivos – Contrato a considerar para determinar o lugar da obrigação que serve de base à ação – Lei aplicável às obrigações contratuais – Regulamento (CE) n.° 593/2008»






I.      Introdução

1.        As questões submetidas pela Cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica) têm por objeto, em substância, à interpretação do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 (2) e do artigo 4.° do Regulamento (CE) n.° 593/2008 (3).

2.        A primeira destas disposições, cuja interpretação está no cerne do presente pedido de decisão prejudicial, estabelece as regras de competências especiais em matéria contratual que, em determinadas situações, permitem que uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro seja demandada perante os órgãos jurisdicionais de um outro Estado‑Membro, afastando a regra geral do artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001.

3.        No presente processo, trata‑se de determinar se esta disposição é aplicável a uma ação de reconhecimento do direito de propriedade sobre 20 obras de arte, com base em dois contratos, apesar da inexistência de um vínculo contratual direto entre as partes no litígio, que são descendentes das partes no primeiro contrato.

4.        Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça, em substância, a respeito do alcance da evolução da sua jurisprudência nesta matéria. Por conseguinte, o presente reenvio prejudicial levará o Tribunal de Justiça a debruçar‑se novamente sobre o conceito de «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001. No caso em apreço, importa fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio os elementos que lhe permitirão apreciar se os recentes acórdãos do Tribunal de Justiça (4) operam uma mudança em relação à jurisprudência anterior relativa à interpretação desta disposição.

5.        Como irei expor em pormenor, considero que o n.° 1 do artigo 5.° do Regulamento n.° 44/2001 é aplicável a uma situação como a que está em causa no processo principal.

II.    Quadro jurídico

A.      Regulamento n.° 44/2001

6.        Na secção 1 do capítulo II do Regulamento n.° 44/2001, intitulada «Disposições gerais», o artigo 2.°, n.° 1, dispõe:

«Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado‑Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.»

7.        Na Secção 2 do Capítulo II do Regulamento, intitulada «Competências especiais», o artigo 5.°, n.° 1, do referido Regulamento prevê:

«Uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro:

1.      a)      Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b)      Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

–        no caso da venda de bens, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

–        no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado‑Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

[...]

c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a);»

B.      Regulamento n.° 593/2008

8.        O artigo 4.° do Regulamento n.° 593/2008, relativo à lei aplicável na falta de escolha pelas partes, dispõe:

«1.      Na falta de escolha nos termos do artigo 3.° e sem prejuízo dos artigos 5.° a 8.°, a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo:

a)      O contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual;

b)      O contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual;

[...]

2.      Caso os contratos não sejam abrangidos pelo n.° 1, ou se partes dos contratos forem abrangidas por mais do que uma das alíneas a) a h) do n.° 1, esses contratos são regulados pela lei do país em que o contraente que deve efetuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual.

3.      Caso resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que o contrato apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos n.os 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país.

4.      Caso a lei aplicável não possa ser determinada nem em aplicação do n.° 1 nem do n.° 2, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita.»

III. Factos na origem do litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

9.        Os cônjuges X EF e Y EF, progenitores de Z EF, demandado no processo principal, eram artistas alemães que realizaram, nomeadamente, 20 painéis fotográficos de tipologias (a seguir «obras de arte») que integraram uma exposição internacional realizada em 1977.

10.      CD, sogra de AB e mãe de AB‑CD, os recorrentes no processo principal, explorava uma galeria de arte em Liège (Bélgica). No final do ano de 1980, ou no início do ano de 1981, as obras de arte foram entregues a CD, bem como, posteriormente, os respetivos certificados de autenticidade.

11.      Por acordo de 26 de janeiro de 2007, os recorrentes no processo principal adquiriram as obras de arte a CD. CD faleceu a 24 de novembro de 2007, sendo que Y EF também faleceu no mesmo ano.

12.      Em agosto de 2013, AB entregou as obras de arte à empresa Christie's para serem vendidas em leilão. No decurso do ano de 2014, esta empresa contactou X EF, que alegou ser a proprietária dessas obras. A venda em leilão das obras de artes foi suspensa.

13.      Os recorrentes no processo principal afirmam que as obras foram adquiridas por CD, ao passo que o demandado no processo principal alega que foram depositadas, em regime de consignação, na galeria de CD a fim de serem exibidas ao público com vista à sua venda.

14.      Em 20 de junho de 2014, os recorrentes no processo principal intentaram uma ação para obter a declaração de que são os únicos proprietários das obras de arte, bem como a proibição de X EF reivindicar a propriedade dessas obras.

15.      X EF citada pelo tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de língua francesa de Bruxelas, Bélgica) alegou, a título principal e com base no Regulamento n.° 44/2001, a incompetência do tribunal com o fundamento de que o seu domicílio se situava na Alemanha. A título subsidiário, pediu que fosse declarada a inadmissibilidade ou a improcedência da ação intentada contra ela, ao mesmo tempo que exigia a devolução das obras de arte. Em 10 de outubro de 2015, X EF faleceu e o demandado no processo principal sucedeu‑lhe na instância.

16.      Por Sentença de 22 de novembro de 2016, o tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de língua francesa de Bruxelas, Bélgica) declarou‑se territorialmente incompetente. A este respeito, considerou que a sua competência não podia resultar da aplicação do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, uma vez que não existia qualquer vínculo contratual entre as partes no processo.

17.      Os recorrentes no processo principal interpuseram recurso dessa sentença na Cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas). Alegam que CD adquiriu as obras de arte através de um contrato de compra e venda, que a ação deve ser qualificada de «contratual», e que, uma vez que o local do cumprimento se situa na Bélgica, os órgãos jurisdicionais belgas são competentes. Em contrapartida, o demandado no processo principal afirma que as obras de arte foram objeto de um contrato de depósito e que, em seu entender, tratando‑se de uma ação de «reivindicação» da propriedade, a determinação do órgão jurisdicional competente é regida pelo artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, que atribui a competência aos tribunais alemães.

18.      No que respeita à questão de saber se a ação dos recorrentes no processo principal se subsume à «matéria contratual» na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, o órgão jurisdicional de reenvio observa que não existe um vínculo contratual direto entre as duas partes no litígio. Todavia, tendo em conta os recentes acórdãos do Tribunal de Justiça na matéria (5), esse órgão jurisdicional considera que é possível que a necessidade de demonstrar uma obrigação livremente assumida já não implique, como era o caso desde o Acórdão Handte (6), que essa obrigação tenha sido assumida entre as partes no litígio, mas unicamente que o demandante deve fundamentar a sua ação contra o demandado numa obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra (7). Com efeito, segundo o referido órgão jurisdicional, o Tribunal de Justiça não só especificou que a matéria contratual inclui todas as obrigações que têm por fonte o contrato cuja inexecução é invocada em apoio da ação do demandante(8), mas também considerou que, tal como uma ação pauliana, uma ação de indemnização (9) está abrangida pelo conceito de «matéria contratual», desde que a causa de pedir seja, ela própria, um compromisso livremente assumido (10).

19.      Esse mesmo órgão jurisdicional entende que, ainda que se trate de situações pontuais, para além das quais tal interpretação não deve proceder, o Tribunal de Justiça afirmou, no entanto, que a regra de competência especial em matéria contratual, prevista no artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, baseia‑se na causa de pedir e não na identidade das partes(11).

20.      Nestas condições, a Cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica), por decisão de 1 de abril de 2021, recebida na Secretaria do Tribunal de Justiça em 26 de abril de 2021, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:      

«1)        O conceito de “matéria contratual” na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do [Regulamento n.° 44/2001]:

deve ser interpretado no sentido de que impõe o estabelecimento de uma obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra e na qual se baseia a ação do demandante, e isto mesmo que a obrigação não tenha sido livremente consentida pelo demandado e/ou para com o demandante?

em caso afirmativo, qual deve ser o grau de ligação entre a obrigação jurídica livremente assumida e o demandante e/ou o demandado?

2)      O conceito de “ação” na qual o demandante “se baseia” implica, à semelhança do critério utilizado para distinguir se uma ação está abrangida pela matéria contratual na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do [Regulamento n.° 44/2001] ou pela “matéria extracontratual” na aceção do artigo 5.°, n.°3, do mesmo regulamento ([Acórdão de 24 de novembro de 2020, Wikingerhof, C‑59/19, a seguir designado “Acórdão Wikingerhof”, ECLI:EU:C:2020:950,] n.° 32), que se verifique se a interpretação da obrigação jurídica livremente assumida é indispensável para apreciar o fundamento da ação?

3)      A ação judicial em que um demandante procura obter a declaração de que é o proprietário de um bem que está na sua posse, com base num duplo contrato de venda, o primeiro dos quais foi celebrado entre o coproprietário original desse bem (cônjuge do demandado, que é também coproprietário original) e o vendedor do demandante, e o segundo foi celebrado entre estes dois últimos, está abrangida pela matéria contratual na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do [Regulamento n.° 44/2001]?

a)      A resposta é diferente se o demandado invocar o facto de que o primeiro contrato não foi um contrato de venda, mas um contrato de [depósito]?

b)       Se uma destas situações for matéria contratual, qual dos contratos deve ser tido em conta para determinar o lugar da obrigação que serve de base à ação?

4)      O artigo 4.° do [Regulamento n.° 593/2008] deve ser interpretado no sentido de que se aplica à situação referida na terceira questão prejudicial, e, nesse caso, que contrato deve ser tomado em consideração?»

21.      Foram apresentadas observações pelas partes no processo principal, pelo Governo belga e pela Comissão Europeia. Não foi realizada audiência.

IV.    Análise

A.      Quanto à admissibilidade da quarta questão prejudicial

22.      Sem arguir formalmente a inadmissibilidade da quarta questão prejudicial, a Comissão Europeia alega que o órgão jurisdicional de reenvio não indicou as razões que o levaram a questionar a aplicação do artigo 4.°, n.° 1, do Regulamento n.° 593/2008 aos contratos em causa no processo principal.

23.       Importa recordar que, segundo jurisprudência constante, que se encontra atualmente refletida no artigo 94.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a necessidade de obter uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que submete ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que essas questões assentam. Além disso, a decisão de reenvio deve indicar as razões precisas que levaram o juiz nacional a interrogar‑se sobre a interpretação do direito da União e a considerar necessário submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça (12).

24.      No caso em apreço, há que concluir que o órgão jurisdicional de reenvio não expôs as razões que o levaram a submeter a sua quarta questão e que, por conseguinte, não cumpriu a exigência prevista no artigo 94.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

25.      Proponho que a quarta pergunta seja declarada inadmissível.

B.      Quanto ao mérito

26.      As três primeiras questões prejudiciais visam, em substância, a interpretação do conceito de «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, tal como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

27.      As dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio, que dizem respeito, no essencial, ao alcance da evolução da extensa jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça nos últimos 30 anos, prendem‑se, por um lado, com o facto de a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça do conceito de «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, não poder ser considerada uniforme e, por outro, com a mudança da jurisprudência do Tribunal de Justiça quando abandonou a interpretação restritiva deste conceito.

28.      Nestas conclusões, apresentarei brevemente, antes de mais, algumas observações preliminares relativas, nomeadamente, ao sistema, objetivos e génese do Regulamento n.° 44/2001 (Título 1). Em seguida, analisarei a jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça relativa ao conceito autónomo de «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, deste regulamento, a fim de clarificar o alcance da sua evolução e de propor uma resposta à primeira questão prejudicial (título 2) e, por último, analisarei a segunda e terceira questões prejudiciais (títulos 3 e 4).

1.      Observações preliminares

29.      Em primeiro lugar, importa recordar que o Regulamento n.° 44/2001, que substituiu a Convenção de 27 de setembro de 1968 (13), inspira‑se nesta Convenção e insere‑se na sua continuidade (14). Por conseguinte e como resulta de jurisprudência constante, a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça às disposições dessa Convenção é igualmente válida para as deste regulamento, quando as disposições desses instrumentos possam ser qualificadas de «equivalentes» (15). É o que acontece com o artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas e o artigo 5.°, n.° 1 do Regulamento n.° 44/2001, que têm uma redação quase idêntica. Também é esse o caso do conceito de «matéria contratual» na aceção do artigo 5.°, n.° 1, deste regulamento, uma vez que as modificações a esta disposição apenas estão relacionadas com o critério de conexão acolhido para determinar o tribunal competente em relação aos contratos de venda de mercadorias e de prestação de serviços, mantendo inalterado o essencial da disposição correspondente da Convenção de Bruxelas (16). Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça quanto à evolução da sua jurisprudência recente relativa a este conceito, aludirei igualmente, nas presentes conclusões, à jurisprudência pertinente relativa ao artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, que substituiu o Regulamento n.° 44/2001.

30.      Em segundo lugar, importa sublinhar que, segundo jurisprudência constante, há que interpretar o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 à luz da génese, dos objetivos e da sistemática deste regulamento (17). Mais precisamente, no que respeita ao conceito de «matéria contratual», na aceção desta disposição, importa recordar que, desde o Acórdão Peters Bauunternehmung (18), relativo à interpretação da Convenção de Bruxelas, o Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que este conceito não pode ser entendido no sentido de remeter para a qualificação que a lei nacional aplicável dá da relação jurídica em causa perante o órgão jurisdicional nacional. Pelo contrário, este conceito deve ser interpretado de maneira autónoma, por referência ao sistema e aos objetivos do Regulamento n.° 44/2001, com vista a assegurar a aplicação uniforme do tal conceito em todos os Estados‑Membros(19). Assim, embora o Tribunal de Justiça não forneça uma definição geral e abstrata do conceito de «matéria contratual», definiu, no entanto, os contornos deste conceito caso a caso, tendo em conta as alterações legislativas e indicando se existia ou não uma obrigação contratual.

31.      A este respeito, o Tribunal de Justiça procura, ainda hoje, definir o regime e os objetivos do Regulamento n.° 44/2001, desde o «nascimento» deste regulamento sob a forma da Convenção de Bruxelas. Parece‑me importante recordar brevemente, por um lado, o alcance dos requisitos de aplicação do artigo 5.°, n.° 1, do referido regulamento e, por outro, as dificuldades suscitadas por esta disposição no contexto de uma jurisprudência particularmente extensa(20).

32.      Antes de mais, no que respeita ao regime do Regulamento n.° 44/2001, há que recordar que foi no Acórdão Peters Bauunternehmung (21) que o Tribunal de Justiça se pronunciou pela primeira vez sobre a articulação entre a regra geral da competência dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro do domicílio do demandado, prevista no artigo 2.°, n.° 1, deste regulamento, e a competência especial em «matéria contratual», prevista no artigo 5.°, n.° 1, do referido regulamento. Nesse Acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que «o artigo 5.° da Convenção de Bruxelas prevê atribuições de competência especiais cuja escolha depende de uma opção do autor, por derrogação à regra geral da competência prevista no artigo 2.°, n.° 1, desta Convenção» (22). Esta apreciação foi reiteradamente recordada pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência (23).

33.       No que respeita, em seguida, aos objetivos do Regulamento n.°44/2001, importa salientar que, de acordo com o considerando 11 desse regulamento, as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular‑se em torno do princípio de que, em geral, a competência tem por base o domicílio do requerido e que tal competência deve estar sempre disponível, exceto em determinados casos bem delimitados em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam outro elemento de conexão. A isso acresce que o considerando 12 do Regulamento n.° 44/2001 enuncia que o foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça.

34.      Finalmente, devo também recordar que a génese do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 evidencia que as regras de competências especiais se baseiam na consideração de que «existe um elemento de conexão estreita entre a contestação e o tribunal que é chamado a conhecê‑la» (24). Por conseguinte, as opções dadas ao requerente por esta disposição correspondem às exigências do princípio da proximidade (25).

35.      É à luz destas observações preliminares que irei analisar as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

2.      Sobre a primeira questão prejudicial

36.       Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça, em substância, se o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que a sua aplicação pressupõe a determinação de uma obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra e na qual se baseia a ação do demandante, mesmo quando esta obrigação não vincule diretamente as partes no processo. Em caso afirmativo, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta qual deve ser o grau de conexão entre a obrigação contratual e as partes no processo. Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que confirme a interpretação do conceito de «matéria contratual», tal como resulta da jurisprudência recente do Tribunal de Justiça.

37.      Em primeiro lugar, no que respeita às particularidades do presente processo, os recorrentes no processo principal baseiam a sua ação de reconhecimento do direito de propriedade num contrato de compra e venda celebrado entre a mãe de um deles, uma galerista que adquiriu as obras de arte a um casal de artistas, progenitores do demandado no processo principal. O demandado afirma que o contrato em causa não era um contrato de compra e venda, mas um contrato de depósito.

38.      Como afirma o órgão jurisdicional de reenvio, o contrato em causa não foi celebrado pelas partes no processo principal, que não estão, portanto, diretamente vinculadas por via contratual.

39.      Em segundo lugar, no que respeita às observações escritas apresentadas pelas partes, os recorrentes no processo principal e o Governo belga consideram que o conceito de «matéria contratual» deve ser objeto de uma interpretação ampla que permita que terceiros possam invocar o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.°44/2001. Todavia, o Governo belga alega que o critério enunciado no Acórdão Flightright não deve ser aplicado às situações em que se coloca a questão de saber quem é o proprietário de um bem, como sucede no caso em apreço, mas apenas às situações em que a ação se baseia na própria obrigação contratual. Segundo este governo, a jurisprudência recente do Tribunal de Justiça pode conduzir a um «forum shopping», em prejuízo da segurança jurídica.

40.      O demandado no processo principal e a Comissão alegam, nomeadamente, que, para qualificar a ação de «contratual», deve existir um vínculo contratual entre as partes no processo. A este respeito, o demandado no processo principal salienta que as competências especiais são de interpretação restritiva a fim de preservar o objetivo de previsibilidade e de segurança jurídica do Regulamento n.° 44/2001. Por sua vez a Comissão alega que, considerando a jurisprudência estabelecida pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Handte (26), numa situação em que o demandante baseia a sua ação em vários contratos sucessivos, a competência especial em matéria contratual não se aplica, uma vez que o demandante e o demandado não são partes no mesmo contrato. Por conseguinte, considera que deve ser aplicada a regra geral de competência dos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro do domicílio do demandado.

41.      Tendo em conta a formulação da primeira questão prejudicial e as observações das partes, considero necessário analisar a jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça

a)      A jurisprudência relevante do Tribunal de Justiça sobre o conceito de «matéria contratual» na aceção do artigo 5, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001

42.      O artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 44/2001 prevê que uma pessoa com domicílio no território de um Estado‑Membro pode ser demandada noutro Estado‑Membro, em matéria contratual, perante o órgão jurisdicional «do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão». Para determinar a competência judiciária ao abrigo desta disposição e responder à questão de saber se um litígio pode ser qualificado de litígio «em matéria contratual», o Tribunal de Justiça fez uma interpretação autónoma do conceito de «matéria contratual» adotando, num primeiro tempo, uma interpretação restritiva deste conceito e, depois, num segundo momento, uma interpretação mais lata do mesmo. Estas duas abordagens determinam de forma distinta a obrigação que serve de base à ação e, portanto, o lugar de cumprimento dessa obrigação. É certo que o Tribunal decidiu que «a obrigação cujo lugar de cumprimento determina a competência judiciária ao abrigo do artigo 5.°, n.° 1, [do Regulamento n.° 44/2001] é a que decorre do contrato e cuja não execução é invocada para justificar a ação judicial» (27). Apesar da clareza desta afirmação, a identificação desta obrigação nem sempre é evidente, como demonstram as dificuldades encontradas na interpretação do conceito de «matéria contratual»(28).

43.      Neste contexto, a questão que se coloca é a de saber se o Tribunal de Justiça abandonou a interpretação restritiva a favor de uma interpretação mais ampla, operando assim uma mudança em relação à sua jurisprudência anterior. Esta questão encontra‑se no cerne das dúvidas que deram origem às presentes questões prejudiciais. Para compreender melhor o alcance desta jurisprudência e estar em condições de propor uma resposta útil, parece‑me necessário identificar, na referida jurisprudência, estas duas linhas de interpretação e a sua evolução, bem como os objetivos de previsibilidade e/ou de proximidade do Regulamento n.° 44/2001 em que o Tribunal de Justiça se baseou para adotar uma ou outra interpretação.

1)      Quanto à interpretação restritiva do conceito de «matéria contratual»: a exigência da existência de um contrato entre as partes no processo

44.      O conceito de «matéria contratual» na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 constitui um conceito autónomo do direito da União, que serve para delimitar o âmbito de aplicação daquela disposição (29).

45.      Para definir os contornos deste conceito autónomo, o Tribunal de Justiça adotou, no início dos anos 80, uma interpretação restritiva da regra especial de competência conferida ao demandante em matéria contratual (a seguir «interpretação restritiva»). Os Acórdãos Peters Bauunternehmung e Handte estão na origem desta linha jurisprudencial.

46.      No Acórdão Peters Bauunternehmung (30), o Tribunal de justiça pronunciou‑se sobre a articulação entre as regras especiais e a regra geral de competência (31). A doutrina considerou que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça se tinha pronunciado «a favor de uma interpretação restritiva de tudo o que aparente ser uma exceção ao artigo 2.° da Convenção de Bruxelas» (32).

47.      Em seguida, o Tribunal de Justiça afirmou, no Acórdão Kalfelis (33), que, as regras de competência especial, enquanto derrogações ao princípio geral, são de interpretação estrita (34), precisando ulteriormente que «não podem dar lugar a uma interpretação que extravase das hipóteses previstas pela Convenção [de Bruxelas]»(35). Embora esta abordagem não visasse, na minha opinião, limitar o âmbito de aplicação da «matéria contratual» (36) ao adotar uma interpretação estrita do conceito de «obrigação contratual», o Tribunal de Justiça adotou, no entanto, em acórdãos posteriores, uma interpretação restritiva deste conceito, com fundamento no facto de ser uma das exceções à regra geral de competência.

48.      No acórdão Handte (37), o Tribunal de Justiça pronunciou‑se, pela primeira vez, sobre o conceito de «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas, afirmando que este conceito «não pode ser entendido como abrangendo uma situação em que não existe nenhum compromisso livremente assumido por uma parte relativamente à outra». Assim, baseando‑se no princípio da previsibilidade do foro no qual o demandante deve apresentar o seu pedido (38), o Tribunal de Justiça declarou que «o artigo 5.°, n.° 1, da Convenção deve ser interpretado no sentido de não ser aplicável ao litígio que opõe o subadquirente de uma coisa ao fabricante, que não é o vendedor, em razão dos defeitos da coisa ou da sua inadequação à utilização a que se destina» (39).

49.      A partir desse acórdão, ficou claro que a interpretação restritiva adotada pelo Tribunal de Justiça limitava o conceito de «matéria contratual» no sentido de que essa disposição apenas era aplicável às relações entre as partes contratantes do contrato em causa, ou seja, apenas aos litígios entre as partes nos contratos. Com efeito, para qualificar a ação, o elemento decisivo tido em conta pelo Tribunal de Justiça era a relação contratual entre as partes no processo.

50.      A este respeito, parece‑me importante salientar que, nesta linha jurisprudencial (40), o Tribunal de Justiça, ao interpretar o artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas ou do Regulamento n.° 44/2001 à luz dos objetivos e do sistema dessa Convenção ou desse Regulamento, baseou o conceito autónomo de «matéria contratual» essencialmente no objetivo da previsibilidade (41).

51.      Embora esta interpretação restritiva do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 e, portanto, do conceito de «matéria contratual», reproduzida longamente na jurisprudência (42), tivesse sido bem acolhida por uma parte da doutrina (43), foi também alvo das críticas de alguns autores no que respeita não apenas à abordagem estrita da articulação entre a regra geral e as regras especiais, como também à definição restritiva dada pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência do conceito de «matéria contratual» e, por conseguinte, de «obrigação contratual».

52.      Em primeiro lugar, no que respeita ao regime do Regulamento n.° 44/2001, os autores que se opõem a esta abordagem consideram que a mera existência da regra geral do artigo 2.° deste regulamento não deve privilegiar uma interpretação estrita, ou mesmo restritiva, do artigo 5.° do mesmo, e que tal interpretação não pode ser imperar em prejuízo da coerência global do referido regulamento (44), a saber, assegurar, na medida do possível, a igualdade e a uniformidade dos direitos e das obrigações que dele decorrem (45). Em particular, alguns autores sublinham que se trata apenas de evitar, como o Tribunal afirmou, «uma interpretação que extravase as hipóteses previstas» pelo sistema do Regulamento n.° 44/2001 (46) e que, por conseguinte, é errado deduzir da redação do artigo 5.°, n.° 1, deste regulamento que esta disposição é uma exceção que deva ser aplicada menos frequentemente que o artigo 2.° do referido regulamento (47). Com efeito, a mera existência de regras especiais de competência, enquanto tais, reforça a possibilidade de o recorrido com domicílio no território de um Estado‑Membro ser demandado nos órgãos jurisdicionais de outro Estado‑Membro. Esta possibilidade permite garantir um equilíbrio entre os interesses do demandante e os do demandado (48).

53.      Tenho a mesma opinião. Esta abordagem resulta claramente do Acórdão Peters Bauunternehmung, no qual o Tribunal de Justiça já tinha precisado que «se o artigo 5.° da Convenção de Bruxelas prevê atribuições de competência especiais cuja escolha depende do autor, tal deve‑se à existência, em determinadas hipóteses bem determinadas, de um elemento de conexão particularmente forte entre um litígio e o órgão jurisdicional que pode ser chamado a conhecer dele, tendo em vista uma útil organização do processo» (49). Daqui resulta claramente que o Tribunal de Justiça interpreta esta disposição com referência, em particular, ao objetivo de proximidade.

54.      Tal leva‑me a recordar, em segundo lugar, que a definição do conceito de «matéria contratual» na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, tal como delineado pelo Tribunal no Acórdão Handte (50), também foi alvo de críticas. Com efeito, vários autores consideraram que esta abordagem restritiva atribuía ao foro contratual um papel demasiado reduzido em prejuízo, nomeadamente, do princípio da proximidade (51) e que havia que dar "uma interpretação mais ampla adaptada aos desafios económicos subjacentes" (52).

55.      Por conseguinte, tendo em conta o exposto nos números anteriores (53), considero que a interpretação estrita da articulação entre a regra geral e as regras especiais não deve levar à uma interpretação restritiva do conceito de «matéria contratual» nem, consequentemente, do conceito de «obrigação contratual» (54). Uma interpretação mais ampla do conceito de «matéria contratual» permite ter em consideração o objetivo de proximidade e da boa administração da justiça (55). Assim como a doutrina demonstrou recentemente, uma interpretação demasiado dogmática e que privilegie de forma excessiva a segurança jurídica e, por conseguinte, o objetivo de previsibilidade em relação ao objetivo da boa administração da justiça e ao objetivo de proximidade pode causar um disfuncionamento do sistema (56). Com efeito, no meu entender, a coerência global do Regulamento n.° 44/2001 implica que, na interpretação do artigo 5.°, n.°1, deste regulamento, seja considerado o equilíbrio entre o objetivo de proximidade e de boa administração da justiça e o objetivo de previsibilidade e de segurança jurídica (57). Este equilíbrio entre os objetivos do referido regulamento permite garantir um equilíbrio entre os interesses do demandante e os do demandado. A este respeito, basta recordar que resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o conceito autónomo de «matéria contratual» deve fazer referência ao sistema e aos objetivos do mesmo regulamento, com vista a assegurar‑lhe uma aplicação uniforme em todos os Estados‑Membros (58). De qualquer modo, a interpretação do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 não deve esvaziar de conteúdo esta disposição e deve permitir que a regra de competência especial aí enunciada produza o seu efeito útil (59). Na presente fase, a questão que se coloca é a de saber se a orientação da jurisprudência do Tribunal de Justiça no sentido de uma interpretação mais ampla desta disposição o permite. Penso que sim.

2)      Quanto à evolução da jurisprudência do Tribunal de Justiça no sentido de uma interpretação mais ampla: a exigência de identificação de obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra e na qual se baseia a ação do requerente

56.      Importa recordar que, nos primeiros acórdãos relativos à interpretação do artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas, o Tribunal de Justiça decidiu que essa disposição era aplicável «mesmo que a formação do contrato que está na origem do recurso esteja controvertida entre as partes» (60). Resulta desta consideração, como o Advogado‑Geral Jacobs(61) o assinalará mais tarde, que o Tribunal de Justiça não considerou que o âmbito da disposição devia ser definido estritamente. Nas suas conclusões, o Advogado‑Geral recordou que o Tribunal de Justiça já tinha declarado que o âmbito de aplicação da referida disposição abrangia os «nexos estreitos do mesmo tipo dos que se criam entre as partes num contrato», incluindo a relação entre uma associação e os seus membros (62). Em seu entender, esta abordagem parece refletir a intenção implícita que decorre da redação utilizada nas diversas versões linguísticas da disposição(63).

57.      Alguns anos mais tarde, no Acórdão Tacconi (64), o Tribunal de Justiça declarou claramente que «o artigo 5.°, n.° 1 do Regulamento n.° 44/2001 não exige a celebração de um contrato» (65), referindo que «é, contudo, indispensável a identificação de uma obrigação para a aplicação desta disposição, dado que a competência do órgão jurisdicional nacional é fixada, em matéria contratual, em função do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deva ser cumprida» (66). Contudo, este acórdão parece ainda limitar a aplicabilidade do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 às situações em que existe um compromisso livremente assumido por uma das partes relativamente à outra, ou seja, uma obrigação vinculativa para as partes no processo.

58.      Tal limitação foi abandonada no Acórdão Engler (67), no qual o Tribunal de Justiça confirmou que o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 não exige a celebração de um contrato (68). O Tribunal de Justiça indicou claramente, tendo em conta a sua jurisprudência anterior (69), que a aplicação da regra de competência especial prevista em matéria contratual à esta disposição «não é interpretada de forma estrita pelo Tribunal de Justiça» (70). O Tribunal de Justiça considerou que a aplicação desta disposição «pressupõe a determinação de uma obrigação jurídica livremente assumida por uma pessoa para com outra e que está na origem da ação do demandante» (71). Esta definição mais ampla do conceito de «matéria contratual» é agora constante na jurisprudência do Tribunal de Justiça (72). A referida definição impõe a verificação de duas condições cumulativas para que uma ação se integra nesta matéria: deve, por um lado, dizer respeito a uma obrigação jurídica livremente assumida por uma pessoa para com outra e, por outro, basear‑se nessa obrigação.

i)      Quanto à primeira condição: a ação deve dizer respeito a uma obrigação jurídica livremente assumida por uma pessoa para com outra

59.      Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta primeira condição é relativa a vários tipos de obrigações jurídicas (73). Desde logo, no Acórdão Kareda (74), o Tribunal de Justiça precisou esta primeira condição à luz da sua jurisprudência anterior (75). No âmbito de uma interpretação mais ampla do conceito de «matéria contratual», o Tribunal de Justiça sustentou que as obrigações contratuais incluem todas as obrigações que têm por fonte um contrato (76).

60.      Em seguida, o Tribunal de Justiça incluiu ainda as obrigações que têm fundamento nos “nexos estreitos do mesmo tipo dos que se criam entre as partes num contrato” (77).

61.      Por último, uma vez que, para que uma ação seja abrangida pela matéria contratual sem que seja exigida a existência de um contrato (78)é necessário identificar a obrigação que é a causa de pedir da ação, o Tribunal de Justiça considerou, nomeadamente, que as obrigações que não resultam de um acordo de vontade, mas de um compromisso unilateral voluntário de uma pessoa para com outra(79), bem como as relações contratuais tácitas (80), estão abrangidas pela «matéria contratual».

62.      Todavia, uma vez que as duas condições em causa são cumulativas, a aplicação do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 não depende apenas da identificação de uma obrigação. É ainda necessário que a ação se baseie nesta obrigação.

ii)    Quanto à segunda condição: a ação deve basearse nesta obrigação

63.      No Acórdão flightright (81), o Tribunal de Justiça esclareceu que a regra de competência especial em matéria contratual prevista no artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 44/2001 e no artigo 7.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1215/2012, baseia‑se na causa de pedir e não na identidade das partes (82).

64.      A este respeito, como afirmou o Advogado‑Geral Saugmandsgaard Øe, «através dessa condição, o Tribunal de Justiça reserva os pedidos que são de natureza contratual, ou seja [...] aqueles que, quanto ao mérito, suscitam principalmente questões de direito dos contratos ou, dito de outra forma, questões abrangidas pelo domínio da lei do contrato (dita «lex contractus»), na aceção do Regulamento [n.° 593/2008]. O Tribunal de Justiça garante assim, em harmonia com o objetivo de proximidade subjacente a esta disposição, que o juiz que aprecia o contrato se pronuncia essencialmente sobre tais questões» (83). Sublinhou que, uma vez que estas disposições relativas à regra da competência especial em matéria contratual não se aplicam apenas aos contratos, ele tinha em vista «todas as regras de direito que impõem obrigações em razão de um compromisso assumido voluntariamente por uma pessoa em relação a outra» (84).

b)      Conclusão intercalar

65.      Atendendo às considerações que precedem, há que concluir, em primeiro lugar, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à interpretação do conceito de «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, não pode ser considerada uniforme, o que explica as dificuldades encontradas pelos órgãos jurisdicionais nacionais para, ainda hoje, determinar se os litígios se enquadram ou não nesta matéria (85).

66.      Com efeito, inicialmente, o Tribunal de Justiça orientou‑se para uma interpretação restritiva do conceito de «matéria contratual», considerando que apenas estavam abrangidos por esta matéria os litígios baseados num contrato entre as partes no processo (86). No âmbito desta interpretação, o Tribunal de Justiça referiu‑se, essencialmente, ao objetivo de previsibilidade e de segurança jurídica da Convenção de Bruxelas ou do Regulamento n.° 44/2001 (87).

67.      Em seguida, o Tribunal de Justiça orientou‑se para uma interpretação mais ampla do conceito de «matéria contratual», ao considerar que estavam abrangidas as situações em que o demandante baseia a sua ação contra o demandado numa obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra. Foi no acórdão Engler (88) que o Tribunal de Justiça indicou claramente, pela primeira vez, que «não interpreta [o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001] de forma estrita». Em seguida, foi nos Acórdãos Kareda (89) e flightright (90), confirmados pela jurisprudência posterior (91), que o Tribunal de Justiça abandonou definitivamente a interpretação restritiva desta disposição baseada na abordagem «personalizada» da matéria contratual (92), resultante do Acórdão Handte (93), para adotar uma interpretação mais ampla.

68.      Em segundo lugar, resulta desta interpretação mais ampla que a ação de um demandante, ainda que intentada contra um terceiro, que se baseia numa obrigação jurídica consentida por uma pessoa para com outra, deve ser qualificada como sendo «contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 (94). Por conseguinte, a circunstância de, no caso em apreço, as duas partes no processo não estarem diretamente vinculadas por um contrato não pode pôr em causa a qualificação desta ação como relevando de «matéria contratual». Com efeito, só importa o facto de a obrigação jurídica invocada pelos recorrentes no processo principal ter nascido de um contrato, entendido como um acordo entre duas pessoas, ou de uma relação jurídica que pode ser equiparada a um contrato na medida em que cria “nexos estreitos do mesmo tipo dos que se criam entre as partes num contrato” (95).

69.      No âmbito desta interpretação mais ampla, resulta dos acórdãos Kareda e flightright que o Tribunal de Justiça se referiu não apenas ao objetivo de previsibilidade e de segurança jurídica mas também ao objetivo de proximidade e de boa administração da justiça (96).

70.      Assim, quando a obrigação contratual em que se baseia a ação do demandante for identificada, há que determinar se existe um elemento de conexão particularmente estreita entre a ação e o tribunal que é chamado a conhecê‑la, ou se a aplicação do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 permite facilitar a boa administração da justiça (97). Na minha opinião, há, pois, que zelar pelo respeito do equilíbrio entre o objetivo de previsibilidade e de segurança jurídica e o objetivo de proximidade e de boa administração da justiça deste regulamento (98).

71.      A este respeito, recordo que o Tribunal decidiu, por um lado, que é essencial evitar, na medida do possível, a multiplicação dos órgãos jurisdicionais competentes relativamente ao mesmo contrato, a fim de prevenir o risco de decisões contraditórias e de facilitar, assim, o reconhecimento e a execução das decisões judiciais fora do Estado onde foram proferidas (99). Com efeito, foram razões decorrentes da boa administração da justiça e da organização útil do processo que levaram à adoção do critério de competência do artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas, pois o órgão jurisdicional do lugar em que a obrigação estipulada no contrato deve ser cumprida e que serve de base à ação judicial é normalmente o que está em melhores condições para se pronunciar, designadamente por razões de proximidade do litígio e de facilidade de produção da prova (100).

72.      Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o princípio da segurança jurídica exige que as regras de competência que derrogam o princípio geral enunciado no artigo 2.° do Regulamento n.° 44/2001, como as do artigo 5.°, n.° 1, deste regulamento, sejam interpretadas de modo a permitir que um requerido normalmente prudente preveja razoavelmente em que órgão jurisdicional, para além dos do Estado do seu domicílio, pode ser demandado (101).

73.      No caso em apreço, o argumento do demandado no processo principal segundo o qual não podia prever ser demandado no órgão jurisdicional de reenvio, que é o órgão jurisdicional do lugar de cumprimento das obrigações onde as obras de artes estiveram durante mais de 30 anos, não pode proceder.

74.      Esta apreciação está em conformidade com o princípio da proximidade e da segurança jurídica e garante o equilíbrio entre os interesses do demandante e os do demandado. Além disso, tal solução permite que a regra de competência enunciada no artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, produza o seu efeito útil.

75.      Tendo em conta as considerações precedentes, proponho que se responda à primeira questão prejudicial que o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, deve ser interpretado no sentido de que a sua aplicação pressupõe a determinação de uma obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra e na qual se baseia a ação do demandante, mesmo quando esta obrigação não seja diretamente vinculativa para as partes no processo. Na interpretação desta disposição, o órgão jurisdicional nacional deve acautelar o respeito do equilíbrio entre objetivo de previsibilidade e de segurança jurídica e o objetivo de proximidade e de boa administração da justiça.

3.      Quanto à segunda questão prejudicial

76.      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se uma ação está abrangida pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, quando se afigura indispensável analisar a obrigação contratual ou, se for caso disso, o conteúdo do contrato ou dos contratos em causa, a fim de apreciar o fundamento da ação do demandante para estabelecer a natureza jurídica dessa obrigação. Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que confirme se o critério enunciado pelo Tribunal de Justiça no n.° 32 do Acórdão Wikingerhof é aplicável, por analogia, para apreciar o fundamento de uma ação de reconhecimento de um direito de propriedade, como a que está em causa no processo principal. Todavia, tendo em conta que no processo que deu origem a esse acórdão, o recorrente invocou na sua petição a violação de uma obrigação resultante de uma lei, mais precisamente do direito da concorrência(102), considero que este critério não é aplicável no caso em apreço. Por estas razões, considero que é necessário reformular a referida questão para permitir ao Tribunal de Justiça dar‑lhe uma resposta útil.

77.      Por conseguinte, considero que a primeira questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio deve ser reformulada no sentido de que, com a sua segunda questão, esse órgão jurisdicional pretende saber se, na fase da verificação da competência, para apreciar o fundamento de uma ação do demandante com vista a determinar se essa ação respeita a «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, o órgão jurisdicional chamado a decidir é obrigado a examinar a obrigação contratual ou, se for caso disso, o conteúdo do contrato ou dos contratos em causa.

78.      Parece‑me que a jurisprudência dá resposta a esta questão. Com efeito, o Tribunal de Justiça declarou que o objetivo de segurança jurídica exige que o juiz nacional a quem foi submetida a questão possa facilmente pronunciar se sobre a sua própria competência, sem ser obrigado a proceder a um exame do processo quanto ao mérito (103). No que respeita à aplicação desta exigência no âmbito da competência especial tal como a que está em causa no processo principal, o Tribunal de Justiça considerou, por um lado, que o juiz chamado a dirimir um litígio decorrente de um contrato pode verificar, mesmo oficiosamente, as condições essenciais da sua competência, com base em elementos conclusivos e pertinentes, apresentados pela parte interessada, que determinam a existência ou a inexistência do contrato (104). Por outro lado, o Tribunal de Justiça esclareceu que, na fase da verificação da competência, o órgão jurisdicional onde foi intentada a ação não aprecia a admissibilidade nem a procedência da ação segundo as regras do direito nacional, mas identifica unicamente os elementos de conexão com o Estado do foro que justificam a sua competência por força do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001. Assim, esse órgão jurisdicional pode considerar assentes, meramente para efeitos de verificação da sua competência nos termos desta disposição, as alegações pertinentes do demandante quanto à natureza jurídica das obrigações nas quais baseia a sua ação (105). O Tribunal de Justiça esclareceu ainda que, no âmbito da verificação da competência nos termos do Regulamento n.° 44/2001, o órgão jurisdicional onde foi intentada a ação deve apreciar todos os elementos de que dispõe, incluindo, se for caso disso, as contestações apresentadas pelo demandado (106).

79.      A circunstância de a ação em causa no processo principal ser uma ação de reconhecimento de um direito de propriedade é irrelevante para determinar se esta ação está abrangida pela «matéria contratual» e, portanto, se é aplicável o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001. Com efeito, apenas importa o facto de a obrigação jurídica em que se baseia a ação dos recorrentes no processo principal ter origem num contrato original, como indiquei no n.° 68 das presentes conclusões. Saliento igualmente que a ação intentada pelos recorrentes no processo principal se baseia na alegação de que a CD adquiriu, através desse primeiro contrato, o direito de propriedade sobre as obras de artes.

80.      Por conseguinte, proponho responder a esta pergunta dizendo que, para apreciar o fundamento de uma ação do demandante com vista a determinar se essa ação releva da «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, o órgão jurisdicional onde foi intentada a ação não é obrigado a examinar a obrigação contratual ou, se for caso disso, o conteúdo do contrato ou dos contratos em causa. Para verificar se os pressupostos essenciais da sua competência estão preenchidos, esse órgão jurisdicional identifica unicamente os elementos de conexão com o Estado do foro que justificam a sua competência por força desta disposição e aprecia todos os elementos de que dispõe, nomeadamente as alegações pertinentes do demandante quanto à natureza das obrigações nas quais baseia a sua ação incluindo, se for caso disso, as contestações apresentadas pelo demandado. A circunstância de a ação em causa no processo principal ser uma ação de reconhecimento de um direito de propriedade é irrelevante para determinar se esta ação está abrangida pela «matéria contratual».

4.      Quanto à terceira questão prejudicial

81.      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 deve ser interpretado no sentido de que uma ação de reconhecimento de um direito de propriedade sobre um bem móvel, quando se baseia em dois contratos que não vinculam, nem um nem o outro, as partes no litígio, está abrangida pela «matéria contratual», na aceção desta disposição, e, sendo caso disso, qual desses contratos deve ser tido em conta para determinar o lugar da obrigação que serve de base à ação.

82.      No caso em apreço, com a sua ação, os recorrentes no processo principal procuram obter o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre as obras de artes. Como já referi, as particularidades deste processo prendem‑se com o facto de a sua ação de reconhecimento do seu direito de propriedade se basear em dois contratos, apesar da inexistência de vínculo contratual direto entre os recorrentes e o demandado no processo principal.

83.      No que respeita, em primeiro lugar, à questão de saber se uma situação como a que está em causa no processo principal, em que os contratos em que se baseia a ação do demandante não vinculam as partes no litígio, se enquadra na «matéria contratual», considero, como resulta da minha proposta de resposta à primeira questão, que é esse o caso. Além disso, resulta da argumentação desenvolvida pelo órgão jurisdicional de reenvio que é possível identificar uma obrigação jurídica livremente consentida entre duas pessoas, a saber, CD e o casal de artistas, em que se baseia a ação dos recorrentes no processo principal. Esta obrigação existe independentemente do tipo de contrato (contrato de compra e venda ou contrato de depósito) celebrado entre CD (107) e o casal de artistas.  Assim, a natureza jurídica do contrato original celebrado entre estas duas partes não tem importância quando se deve determinar se o órgão jurisdicional de reenvio pode identificar uma obrigação contratual, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

84.      Em segundo lugar, quanto à questão de saber qual o contrato que deve ser tido em conta para determinar o lugar da obrigação que serve de base ao pedido, importa recordar que o litígio no processo principal tem origem no primeiro contrato, cuja qualificação está no cerne do litígio. Por outras palavras, o primeiro contrato é a fonte original dos direitos e das obrigações controvertidos. Se a qualificação do referido contrato, de «contrato de compra e venda» ou de «contrato de depósito», é essencial para determinar se a propriedade das obras de artes foi transferida para CD, não compete ao Tribunal de Justiça, mas ao órgão jurisdicional de reenvio proceder a esta apreciação. Com efeito, a análise desse mesmo contrato para determinar a sua natureza jurídica enquadra‑se no mérito da causa.

85.      É certo que não é necessário determinar se o primeiro contrato é um contrato de compra e venda ou um contrato de depósito para responder à questão de saber se o litígio no processo principal está abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001. No entanto, a qualificação desse contrato revela‑se indispensável para determinar qual a disposição aplicável no caso em apreço, o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), ou o artigo 5.°, n.° 1, alínea b), deste regulamento, uma vez que esta última disposição diz unicamente respeito à venda de bens e à prestação de serviços. Além disso, a distinção entre estas duas disposições não é irrelevante para a determinação dos órgãos jurisdicionais competentes em matéria contratual (108).

86.      O órgão jurisdicional de reenvio não abordou especificamente a questão da aplicabilidade, no caso em apreço, das referidas disposições, tal como não pediu ao Tribunal de Justiça que o esclarecesse sobre esta matéria. As partes também não abordaram esta questão, que não foi objeto de discussão entre elas. Por conseguinte, limitar‑me‑ei a formular as seguintes observações.

87.      Começo por referir que, para determinar se o artigo 5.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 44/2001 é aplicável ao litígio no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio deve apreciar se, no caso em apreço, este primeiro contrato pode ser qualificado de «contrato de venda de bens» ou de «contrato de prestação de serviços». Em caso afirmativo, o órgão jurisdicional deve determinar o lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues(109), ou, sendo caso disso, onde os serviços foram ou devam ser prestados (110). A este respeito, recordo que esta disposição define de forma autónoma os critérios de conexão para os contratos de venda de bens e de prestação de serviços (111).

88.      Se o órgão jurisdicional de reenvio considerar que o artigo 5.°, n.° 1, alínea b), do Regulamento n.° 44/2001 não é aplicável ao litígio no processo principal (112), deverá então aplicar o artigo 5.°, n.° 1, alínea a), deste regulamento, que diz respeito a todos os tipos de contratos, com ressalva dos enunciados no artigo 5.°, n.° 1, alínea b), do regulamento. Neste caso, para determinar o lugar de cumprimento da obrigação em causa, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, alínea a), do regulamento, esse órgão jurisdicional deverá aplicar o princípio decorrente do Acórdão Industrie Tessili Italiana Como (113), segundo o qual, por um lado, pode ser intentada uma ação no tribunal do lugar de cumprimento da obrigação em que se baseia essa ação e, por outro, esse lugar deve ser determinado em conformidade com a lei que rege essa obrigação contratual controvertida, segundo as regras de conflito do órgão jurisdicional chamado a decidir (114).

89.      Com base nas considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à terceira questão prejudicial que uma ação de reconhecimento de um direito de propriedade sobre um bem móvel, quando se baseia em dois contratos que não vinculam diretamente as partes no processo, está abrangida pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001. O contrato a considerar para determinar o lugar da obrigação em que se baseia a ação é o contrato que está na origem do litígio.

V.      Conclusão

90.      Tendo em conta todas as considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pela Cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica):

1.      O artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que a sua aplicação pressupõe a determinação de uma obrigação jurídica livremente consentida por uma pessoa para com outra e na qual se baseia a ação do demandante, mesmo quando esta obrigação não seja diretamente vinculativa para as partes no processo. No âmbito da interpretação desta disposição, o órgão jurisdicional nacional deve acautelar o respeito do equilíbrio entre objetivo de previsibilidade e de segurança jurídica e o objetivo de proximidade e de boa administração da justiça.

2)      Para apreciar o fundamento de uma ação com vista a determinar se releva da «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, o órgão jurisdicional onde foi intentada a ação não é obrigado a examinar a obrigação contratual ou, se for caso disso, o conteúdo do contrato ou dos contratos em causa. Para verificar se os pressupostos essenciais da sua competência estão preenchidos, esse órgão jurisdicional identifica unicamente os elementos de conexão com o Estado do foro que justificam a sua competência por força desta disposição e aprecia todos os elementos de que dispõe, nomeadamente as alegações pertinentes do demandante quanto à natureza das obrigações nas quais baseia a sua ação incluindo, se for caso disso, as contestações apresentadas pelo demandado. A circunstância de a ação em causa no processo principal ser uma ação de reconhecimento de um direito de propriedade é irrelevante para determinar se esta ação está abrangida pela «matéria contratual»

3)       A ação de reconhecimento de um direito de propriedade sobre um bem móvel, quando se baseia em dois contratos que não vinculam diretamente as partes no processo, está abrangida pela «matéria contratual», na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001. O contrato a considerar para determinar o lugar da obrigação em que se baseia a ação é o contrato que está na origem do litígio.


1      Língua original: francês.


2      Regulamento do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1). O Regulamento n.° 44/2001 foi revogado pelo Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1). Nos termos do artigo 81.°, com as ressalvadas exceções, o Regulamento n.° 1215/2012 é aplicável a partir de 10 de janeiro de 2015. Atenta a data de propositura da ação no processo principal, este rege‑se pelo disposto no Regulamento n.° 44/2001.


3      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO 2008 L 177, p. 6).


4      Acórdãos de 15 de junho de 2017, Kareda (C‑249/16, a seguir «Acórdão Kareda», EU:C:2017:472); de 7 de março de 2018, flightright e o. (C‑274/16, C‑447/16 e C‑448/16, a seguir «Acórdão flightright», EU:C:2018:160); de 4 de outubro de 2018, Feniks (C‑337/17, a seguir «Acórdão Feniks», EU:C:2018:8053), e de 26 de março de 2020, Primera Air Scandinavia (C‑215/18, a seguir «Acórdão Primera Air Scandinavia», EU:C:2020:235).


5      Acórdão de 8 de maio de 2019, Kerr (C‑25/18, EU:C:2019:376, n.° 24 e jurisprudência referida).


6      Acórdão de 17 de junho de 1992 (C‑26/91, a seguir “Acórdão Handte”, EU:C:1992:268), n.° 15).


7      Acórdão de 8 de maio de 2019, Kerr (C‑25/18, EU:C:2019:376, n.° 25 e jurisprudência referida).


8      Acórdão Kareda (n.os 30 e 31).


9      Acórdão flightright (n.os 57 a 63).


10      Acórdão Feniks (n.os 42 e 43).


11      Acórdãos flightright (n.° 61) e Primera Air Scandinavia (n.° 44).


12      V., nomeadamente, Acórdãos de 25 de março de 2021, Obala i lučice (C‑307/19, EU:C:2021:236, n.° 49), e de 24 de fevereiro de 2022, Suzlon Wind Energy Portugal (C‑605/20, EU:C:2022:116, n.° 31 e jurisprudência aí referida).


13      Convenção celebrada entre os Estados‑Membros, no âmbito do artigo 220.°, quarto travessão, do Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia (atual artigo 293.°, quarto travessão, CE), relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 1972, L 299, p. 32, que foi subsequentemente alterada pelas sucessivas convenções relativas à adesão de novos Estados‑Membros a esta convenção a seguir «Convenção de Bruxelas».


14      V. considerando 19 do Regulamento n.° 44/2001.


15      Acórdão de 14 de março de 2013, Česká spořitelna (C‑419/11, EU:C:2013:165, n.° 27).


16      Acórdão de 7 de fevereiro de 2013, Refcomp (C‑543/10, EU:C:2013:62, n.° 20 e jurisprudência referida).


17      V. nomeadamente, Acórdão de 3 de maio de 2007, Color Drack (C‑386/05, EU:C:2007:262, n.° 18).


18      Acórdão de 22 de março de 1983 (34/82, a seguir «Acórdão Peters Bauunternehmung », EU:C:1983:87, n.os 9 e 10).


19      V., nomeadamente, acórdãos Handte (n.° 10); de 14 de março de 2013, Česká spořitelna (C‑419/11, EU:C:2013:165, n.° 27), e Feniks (n.° 38 e jurisprudência referida).


20      A extensa jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao artigo 5.°, n.° 1, da Convenção de Bruxelas e do Regulamento n.° 44/2001 revela a complexidade desta disposição e as dificuldades relacionadas com a sua aplicação. V., nomeadamente, o Relatório explicativo do Professor Fausto Pocar sobre a Convenção relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em Lugano, em 30 de outubro de 2007 (JO 2009, C 319, p. 1, a seguir «relatório Pocar»), n.os 44 e seguintes e, em especial, o n.° 46 desse relatório, segundo o qual «[n]ão obstante a interpretação dada pela jurisprudência, que veio aplanar algumas das dificuldades, as regras acima descritas têm sido consideradas insatisfatórias em muitos quadrantes […]».


21      n.° 10 desse acórdão. O processo que deu origem ao referido acórdão tinha por objeto uma ação de cobrança de montantes imputados a uma empresa alemã, membro de uma associação neerlandesa, decorrente da aplicação de uma regra interna instituída pelos órgãos dessa associação e obrigatória pelos respetivos membros.


22      Acórdão Peters Bauunternehmung (n.° 7).


23      V., recentemente, Acórdão Wikingerhof (n.° 26).


24      V. Relatório de P. Jenard relativo à Convenção de Bruxelas de 1968 (JO 1979, C 59, p. 1), nomeadamente p. 22.


25      V., a este respeito, Gaudemet‑Tallon, H., Compétence et exécution des jugements en Europe. Règlement 44/2001. Convention de Bruxelles (1968) et de Lugano (1988 e 2007), 4ª ed., LGDJ, Paris, 2010, pp. 159‑160: «C’est donc la notion de proximité (territoriale ou procédurale selon les cas) qui explique les options ouvertes par le texte.» («É, portanto, o conceito de proximidade ( territorial ou processual, consoante os casos) que explica as opções abertas pelo texto».)


26      Acórdão Handte (n.° 15).


27      V., nomeadamente Acórdãos de 14 de dezembro de 1977, de Bloos (59/77, EU:C:1977:207, n.os 14 e 15), e de 19 de fevereiro de 2002, Besix (C‑256/00, EU:C:2002:99, n.° 44).


28      V., nomeadamente, relatório Pocar, p. 42.


29      V., nomeadamente, Acórdãos Peters Bauunternehmung (n.° 10); de 8 de março de 1988, Arcado (9/87, EU:C:1988:127, n.° 10), e, recentemente, Wikingerhof (n.° 25).


30      N.° 10: “Se o artigo 5.° da Convenção [de Bruxelas] prevê atribuições de competência especiais cuja escolha depende de uma opção do autor, tal deve‑se à existência, em determinadas hipóteses bem determinadas, de um elemento de conexão particularmente forte entre um litígio e o órgão jurisdicional que pode ser chamado a conhecer dele, tendo em vista uma organização do processo”.


31      V. n.° 32 das presentes conclusões.


32      V., nomeadamente, Gaudemet‑Tallon, H., op. cit., p. 161.


33      Acórdão de 27 de setembro de 1988 (189/87, EU:C:1988:459, n.° 19).


34      O referido Acórdão Kalfelis dizia respeito o conceito de «matéria extracontratual», mas o Tribunal de Justiça aplicou posteriormente, por analogia, esta afirmação em acórdãos relativos ao conceito de «matéria contratual». V., nomeadamente, Acórdão de 14 de julho de 2016, Granarolo (C‑196/15, EU:C:2016:559, n.° 18), e Acórdão Feniks (n.° 37).


35      Acórdãos Handte (n.° 14), de 27 de outubro de 1998, Réunion européenne e o. (C‑51/97, EU:C:1998:509, n.° 16), bem como de 5 de fevereiro de 2004, Frahuil (C‑265/02, EU:C:2004:77, n.° 23).


36      V., a este respeito, o Acórdão Peters Bauunternehmung (n.° 13): “Verifica‑se […] que a adesão a uma associação cria entre os associados nexos estreitos do mesmo tipo dos que se criam entre as partes num contrato, pelo que, por conseguinte, para a aplicação do artigo 5.°, n.° 1, da Convenção, é legítimo que as obrigações a que se refere o órgão jurisdicional de reenvio sejam consideradas obrigações contratuais”. O sublinhado é meu. V., a este respeito, n.os 52 a 55 das presentes conclusões.


37      N.° 15 desse acórdão.  O processo que deu origem a esse acórdão tinha por objeto uma ação intentada pelo subadquirente de uma mercadoria adquirida a um vendedor intermediário contra o fabricante, com vista a obter a reparação do prejuízo resultante da falta de conformidade da coisa. Estava, portanto, em causa uma cadeia de contratos internacionais de mercadoria na qual as obrigações contratuais das partes variavam de um contrato para o outro (n.° 17 do referido acórdão).


38      V. Considerando 11 do Regulamento n.° 44/2001.


39      Acórdão Handte (n.° 21).


40      O Tribunal de Justiça declarou que «“o objetivo da proteção jurídica das pessoas estabelecidas na Comunidade, que, entre outros, a Convenção [de Bruxelas] pretende realizar, exige que as regras de competência que estabelecem exceções ao princípio geral da Convenção sejam interpretadas de forma a que seja possível a um réu normalmente diligente prever em que tribunal, que não do Estado do seu domicílio, poderá ser demandado. Ora, convém observar que a aplicação da regra de competência especial [...] ao litígio que opõe o subadquirente de uma coisa ao seu fabricante, não é previsível por este último, sendo, portanto, incompatível com o princípio da segurança jurídica.» (Acórdão Handte, n.os 18 e 19). Sublinhado meu.


41      V., nomeadamente, a este respeito, Acórdãos de 27 de outubro de 1998, Réunion européenne e o. (C‑51/97, EU:C:1998:509, n.os 34 e 36), bem como de 17 de setembro de 2002, Tacconi (C‑334/00, EU:C:2002:499), cujo n.° 20 remete para os n.os 25 e 26 do Acórdão de 19 de fevereiro de 2002, Besix (C‑256/00, EU:C:2002:99), que são relativos ao objetivo de previsibilidade mas não refere o n.° 27 que diz respeito ao objetivo de proximidade e de boa administração da justiça.


42      V., nomeadamente, Acórdãos de 27 de outubro de 1998, Réunion européenne e o. (C‑51/97, EU:C:1998:509, n.° 17); de 17 de setembro de 2002, Tacconi (C‑334/00, EU:C:2002:499, n.° 23); de 5 de fevereiro de 2004, Frahuil (C‑265/02, EU:C:2004:77, n.° 24). V., igualmente, as Conclusões do Advogado Geral Cosmas no processo Réunion européenne e o. (C‑51/97, EU:C:1998:45, n.° 24).


43      V., nomeadamente, Gaudemet‑Tallon, H., op. cit., p. 161 e 170.


44      V., a este respeito, Mankowski, P., in Brussels Ibis Regulation – Commentary, Magnus, U., e Mankowski, P. (eds.), Otto Schmidt, Colónia, 2016, p. 155, n.° 26.


45      V., nomeadamente, jurisprudência referida na nota 20 das presentes conclusões.


46      V., nomeadamente, Acórdão de 27 de outubro de 1998, Réunion européenne e o. (C‑51/97, EU:C:1998:509, n.° 16).


47      Lehmann, M., «Special jurisdiction», in The Brussels I Regulation Recast, Dickinson, A. e Lein, E. (eds.), Oxford University Press, 2015, p. 140, n.° 4.25.


48      V. Mankowski, P., in Brussels Ibis Regulation – Commentary, op. cit., p. 155, e em particular n.° 26.


49      N.° 10. O sublinhado é meu.


50      N.° 15.


51      V., recentemente, Pretelli, I., «La bonne foi dans la pondération de la proximité et la fonction résiduelle du for spécial en matière contractuelle dans le règlement Bruxelles I», Revue critique de droit international privé, n.° 1, Dalloz, 2020, pp. 80 a 82: «A importância atribuída à proximidade em relação à segurança jurídica absoluta [...] é revelada pela circunstância de que, no sistema Bruxelas I, o foro do domicílio do requerido e os foros especiais estão em pé de igualdade e visam, em conjunto, assegurar a boa administração da justiça no território europeu. [...] O órgão jurisdicional mais próximo é aquele em relação ao qual se pode presumir que fará melhor justiça. Esta inteligibilidade acrescida do contencioso constitui o fundamento axiológico de competências de proximidade.»


52      V., nomeadamente, Mankowski, P., in Brussels Ibis Regulation – Commentary, op. cit., p. 164, n.° 43. V., igualmente, as minhas conclusões no processo Kolassa (C‑375/13, EU:C:2014:2135, n.° 49).


53      V. n.os 52 e seguintes das presentes conclusões.


54      V., nomeadamente, por analogia, as Conclusões do Advogado Geral Jacobs no Processo Gabriel (C‑96/00, EU:C:2001:690, n.os 44 a 47): «uma exceção legal, tal como a qualquer outra disposição legislativa, o seu próprio significado, determinado à luz do seu objetivo e da sua letra, bem como da economia geral e do objetivo do instrumento de que faz parte».


55      A favor de ma interpretação flexível do conceito de «obrigação contratual», v. as Conclusões do Advogado Geral Saugmandsgaard Øe no processo Wikingerhof (C‑59/19, EU:C:2020:688, n.° 38): « É, portanto, possível e, a meu ver, justificado interpretar a categoria constituída pela «matéria contratual» de forma a nela incluir institutos próximos dos contratos, com uma preocupação de boa administração do contencioso internacional». V., igualmente, Minois, M., Recherche sur la qualification en droit international privé des obligations, LGDJ, Paris, 2020, p. 174 a 180.


56      V., neste sentido, Pretelli, I., op. cit., p. 80 a 82.


57      Voltarei a este aspeto posteriormente na minha análise para determinar a abordagem de interpretação pertinente para alcançar este equilíbrio entre os diferentes objetivos do Regulamento n.° 44/2001. V. n.os 73 e 74 das presentes conclusões. A este respeito a doutrina considerou recentemente que a ausência de hierarquia entre os diferentes objetivos do Regulamento n.° 1215/2012 não permite a prevalência de uma ou de outra interpretação. Resulta daí que cada interpretação, restritiva ou ampla, do conceito de «matéria contratual» pode refutar o ponto de vista da outra interpretação de forma dialética. V., a este respeito, Pousen, M., “From Mirages to Aspirations – The Periphery of Matters Relating to a Contract in Regulation (EU) n.° 1215/2012”, Yearbook of Private International Law, vol. 22, Otto Schmitt, 2021, p. 511 a 545, em especial p. 518 e doutrina referida nas notas 34 e 35.


58      V., nomeadamente acórdãos Handte (n.° 10); de 14 de março de 2013, Česká spořitelna (C‑419/11, EU:C:2013:165, n.° 27), e Feniks (n.° 38 e jurisprudência referida).


59      V., por analogia, nomeadamente, Acórdão de 16 de julho de 2009, Zuid‑Chemie (C‑189/08, EU:C:2009:475, n.° 31). V., a este respeito, Lehmann, M., «Special Jurisdiction», in The Brussels I Regulation Recast, op. cit., p. 140, n.° 4.25, bem como Mankowski, P., in Brussels I bis Regulation – Commentary, op. cit., p. 156, n.° 27.


60      Acórdão de 4 de março de 1982, Effer (38/81, EU:C:1982:79, n.os 7 e 8).


61      V. Conclusões do Advogado‑Geral Jacobs no processo Engler (C‑27/02, EU:C:2004:414, n.° 38).


62      Acórdão Peters Bauunternehmung (n.° 13). V., igualmente, n.° 58 das presentes conclusões. No que respeito às relações entre os acionistas e as relações entre estes e a sociedade, v., nomeadamente, Acórdão de 10 de março de 1992, Powell Duffryn (C‑214/89, EU:C:1992:115, n.° 16). No que respeita à relação entre um administrador e a sociedade por ele dirigida, conforme prevista no direito das sociedades, v. Acórdão de 10 de setembro de 2015, Holterman Ferho Exploitatie e o. (C‑47/14, EU:C:2015:574, n.os 53 e 54). No que respeita às obrigações dos condóminos, para com o condomínio, nos termos legais, v. Acórdão de 8 de maio de 2019, Kerr (C‑25/18, EU:C:2019:376, n.os 27 a 29).


63      V. Conclusões do Advogado‑Geral Jacobs no processo Engler (C‑27/02, EU:C:2004:414, n.° 38).


64      Acórdão do 17 de setembro de 2002 (C‑334/00, EU:C:2002:499, n.° 22). Recorde‑se que, o processo que deu origem a esse acórdão tinha por objeto uma ação em que se invocava a responsabilidade pré‑contratual do demandado. O Tribunal de Justiça declarou que esta ação não se integrava no conceito de «matéria contratual».


65      O sublinhado é meu.


66      Acórdão do 17 de setembro de 2002, Tacconi (C‑334/00, EU:C:2002:499, n.° 22). Nesta linha, no Acórdão de 5 de fevereiro de 2004, Frahuil (C‑265/02, EU:C:2004:77, n.° 26), o Tribunal de justiça confirmou de forma mais matizada a inexistência da exigência de um contrato que vincule as partes. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que «a noção de matéria contratual não compreende a obrigação cujo cumprimento o fiador, que, por força de um contrato de garantia celebrado com o transitário, pagou os direitos aduaneiros, pede em juízo, em sub‑rogação da administração fiscal e em via de regresso contra o terceiro devedor, proprietário da mercadoria importada, se este último, que não é parte no contrato de fiança, não tiver autorizado a celebração do referido contrato» (o sublinhado é meu). Com efeito, como notou a doutrina, se o proprietário tivesse dado a sua autorização à celebração do contrato de fiança, quando não era parte nesse contrato, a ação de regresso intentada pelo fiador contra ele teria relevado da noção de «matéria contratual». V. Gaudemet‑Tallon, H., op. cit., p. 170.


67      Acórdão de 20 de janeiro de 2005 (C‑27/02, a seguir «Acórdão Engler», EU:C:2005:33, n.os 45 e 50). O processo que deu origem a este acórdão tinha por objeto uma promessa de prémio feita por um profissional a um consumidor.


68      V., a este respeito, igualmente, Acórdão de 14 de Março de 2013, Česká spořitelna (C‑419/11, EU:C:2013:165, n.° 46).


69      Acórdãos Handte (n.° 15); de 27 de outubro de 1998, Réunion européenne e o. (C‑51/97, EU:C:1998:509, n.° 17); de 17 de setembro de 2002, Tacconi (C‑334/00, EU:C:2002:499, n.° 23), bem como de 5 de fevereiro de 2004, Frahuil (C‑265/02, EU:C:2004:77, n.° 24).


70      Acórdão Engler (n.° 48). V., igualmente, Conclusões do Advogado‑Geral Jacobs nesse processo (C‑27/02, EU:C:2004:414, n.° 38). V., igualmente, n.° 56 das presentes conclusões.


71      Acórdão Engler (n.° 51) (sublinhado meu). V., igualmente, Conclusões do Advogado‑Geral Jacobs nesse processo (C‑27/02, EU:C:2004:414, n.° 38). V., recentemente, acórdãos Feniks (n.° 48) e Primera Air Scandinavia (n.° 44).


72      V., nomeadamente Acórdãos de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37, n.° 39); flightright (n.° 60); Feniks (n.° 39), bem como Wikingerhof (n.° 23).


73      As obrigações jurídicas abrangidas por esta primeira condição, tais como resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça, foram sucintamente enunciadas pelo Advogado‑Geral Saugmandsgaard Øe nas suas conclusões no processo Wikingerhof (C‑59/19, EU:C:2020:688, n.° 37).


74      N.° 30. O processo que deu origem a esse acórdão tinha por objeto uma ação de regresso entre os codevedores solidários de um contrato de crédito.


75      No que respeita a uma ação para pagamento de uma indemnização na eventualidade da violação de um contrato de concessão exclusiva, v. Acórdão de 6 de outubro de 1976, De Bloos (14/76, EU:C:1976:134, n.os 16 e 17). No que respeita a um litígio relativo à rutura abusiva de um contrato de agência comercial autónomo e ao pagamento de comissões devidas em execução desse contrato, v. Acórdão de 8 de março de 1988, Arcado (9/87, EU:C:1988:127, n.° 13).


76      V., igualmente, Acórdão flightright e o. (n.° 59). A este respeito, há que recordar que o Tribunal de Justiça define um contrato, na aceção do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001, como um acordo de vontade celebrado entre duas pessoas. V., nomeadamente, jurisprudência referida no n.° 58 das presentes conclusões. V., igualmente, Acórdão de 11 de julho de 2002, Gabriel (C‑96/00, EU:C:2002:436, n.° 49).


77      Acórdão Engler (n.° 47). V. jurisprudência referida na nota 64 das presentes conclusões.


78      V. n.° 56 e seguintes das presentes conclusões.


79      No que respeita às obrigações de um avalista de uma livrança para com o beneficiário desta livrança, v. Acórdão de 14 de março de 2013, Česká spořitelna (C‑419/11, EU:C:2013:165, n.os 48 e 49).


80      V. Acórdão de 14 de julho de 2016, Granarolo (C‑196/15, EU:C:2016:559, n.os 24 a 27).


81      N.° 59. Recorda‑se que o processo que deu origem a esse acórdão tinha por objeto uma ação de indemnização dos passageiros aéreos pelo atraso considerável de um voo com correspondência contra uma transportadora aérea operadora que não era o cocontratante do passageiro em questão. V., igualmente, Conclusões do Advogado‑Geral Bobek nos processos apensos flightright e o. (C‑274/16, C‑447/16 e C‑448/16, EU:C:2017:787, n.° 54).


82      V., nomeadamente, Acórdão Feniks (n.° 44). V., igualmente, Acórdão de 14 de dezembro de 1977, de Bloos (59/77, EU:C:1977:207, n.os 11, 13, 15 e dispositivo).


83      Conclusões do Advogado‑Geral Saugmandsgaard Øe no processo Wikingerhof (C‑59/19, EU:C:2020:688, n.° 40). O sublinhado é meu. V. artigo 12.° do Regulamento n.° 593/2008.


84      Conclusões do Advogado‑Geral Saugmandsgaard Øe no processo Wikingerhof (C‑59/19, EU:C:2020:688, nota 52).


85      V. nota 21 das presentes conclusões.


86      V. jurisprudência referida nos n.os 48 e seguintes das presentes conclusões.


87      V. jurisprudência referida nos n.os 48 e 50 das presentes conclusões. Dito isto, em certos acórdãos, a vontade de garantir o equilíbrio entre os diferentes objetivos do Regulamento n.° 44/2001 parece orientar a interpretação deste conceito. V., a este respeito, o Acórdão de 19 de fevereiro de 2002, Besix (C‑256/00, EU:C:2002:99, n.os 26, 27, 31 e jurisprudência referida).


88      N.os 48 e 51 desse acórdão


89      N.os 31 e 33 desse acórdão


90      N.os 59 e 61 desse acórdão


91      V. acórdãos Feniks (n.os 39 e 48) e Primera Air Scandinavia (n.°44).


92      V., a este respeito, Haftel, B., «Revirement et extension du champ de la “matière contractuelle” dans les relations à trois personnes», Revue des contrats, vol. 5, n.° 115, 2019, p. 85: «Após duas decisões, qualquer critério personalista parece ter totalmente desaparecido».


93      N.° 15 desse acórdão.


94      Acórdão Engler (n.os 45 e 50). V., igualmente, n.° 58 das presentes conclusões.


95      V. Acórdão Peters Bauunternehmung (n.° 13).


96      No âmbito de uma interpretação do artigo 7.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1215/2012, v. acórdãos Kareda (n.° 44), flightright (n.os 74 e 75) e Feniks (n.os 34, 36, 44 et 47). Todavia, o Tribunal de Justiça por vezes referiu‑se apenas ao primeiro objetivo (Acórdão Primera Air Scandinavia, n.os 62 e 63), ou ao segundo (Acórdão Wikingerhof, n.os 28 e 37).


97      V., neste sentido, Acórdãos Feniks (n.° 36) e Wikingerhof (n.° 28). Recordo, a este respeito, que a aplicabilidade do artigo 5.°, n.° 1, do Regulamento n.° 44/2001 depende, por um lado, da opção do demandante de invocar esta regra de competência especial e, por outro, da análise, pelo órgão jurisdicional chamado a decidir, das condições específicas previstas nessas disposições, v. Acórdão Wikingerhof (n.° 29).


98      Com efeito, na minha opinião, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que este equilíbrio parece ter desempenhado, pelo menos num certo número de acórdãos, um papel determinante no âmbito da interpretação flexível para a qual o Tribunal de Justiça se orientou na sua jurisprudência. Alguns autores consideram, todavia, que o Tribunal de Justiça não indica claramente as razões que o levam a escolher uma interpretação em detrimento da outra. V., nomeadamente, Pousen, M., op. cit., p. 523 e doutrina referida em nota 64: «Revelou‑se impossível explicar por que razão [o Tribunal de Justiça] preferiu uma interpretação a outra.»


99      V., neste sentido, nomeadamente, Acórdão de 19 de fevereiro de 2002, Besix (C‑256/00, EU:C:2002:99, n.° 27 e jurisprudência referida).


100      V., neste sentido, nomeadamente, Acórdão de 19 de fevereiro de 2002, Besix (C‑256/00, EU:C:2002:99, n.° 31 e jurisprudência referida). V., igualmente, Acórdãos de 14 de julho de 2016, Granarolo (C‑196/15, EU:C:2016:559, n.°16), e Feniks (n.° 34). V., a este respeito, Pretelli, I., loc. cit., p. 61 a 82.


101      V., neste sentido, nomeadamente, Acórdão de 19 de fevereiro de 2002, Besix (C‑256/00, EU:C:2002:99, n.° 26 e jurisprudência referida).


102      V., a este respeito, Poesen, M., «Regressing into the right direction: Non‑contractual Claims in Proceedings between Contracting Parties under Article 7 of the Brussels Ia Regulation», Maastricht Journal of European and Comparative Law, 2021, vol. 28, n.° 3, p. 390 a 398, e em especial p. 394 a 395.


103      V. acórdãos de 3 de julho de 1997, Benincasa (C‑269/95, EU:C:1997:337, n.° 27), e de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37, n.° 61).


104      V. acórdãos de 4 de março de 1982 (38/81, EU:C:1982:79, n.os 7 e 8) e de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37, n.° 61), bem como as minhas conclusões neste processo (C‑375/13, EU:C:2014:2135, n.° 74). V., igualmente, n.° 56 das presentes conclusões.


105      V., por analogia, Acórdão de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37, n.° 62).


106      Acórdãos de 28 de janeiro de 2015, Kolassa (C‑375/13, EU:C:2015:37, n.os 64 e 65), e de 16 de junho de 2016, Universal Music International Holding (C‑12/15, EU:C:2016:449, n.os 45 e 46).


107      Quer a título individual quer como galerista.


108      V. as minhas conclusões no processo Ellmes Property Services (C‑433/19, EU:C:2020:482, n.° 74).


109      V., a este respeito, Acórdão de 25 de fevereiro de 2010, Car Trim (C‑381/08, EU:C:2010:90, n.os 54 a 60).


110      V., a este respeito, Acórdão de 8 de maio de 2019, Kerr (C‑25/18, EU:C:2019:376, n.° 39 e jurisprudência referida).


111      V. Acórdão de 23 de abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch (C‑533/07, EU:C:2009:257, n.° 54), segundo o qual: «Resulta tanto dos trabalhos preparatórios do Regulamento n.° 44/2001 como da estrutura do seu artigo 5.°, n.° 1, que foi apenas em relação aos contratos de venda de mercadorias e de prestação de serviços que o legislador da União pretendeu, por um lado, deixar de ter em conta a obrigação controvertida, atendo‑se à obrigação característica dos contratos, e, por outro, definir autonomamente o lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual.» (sublinhado meu)


112      Nomeadamente, se for difícil ou impossível para o órgão jurisdicional de reenvio determinar o lugar de entrega das obras de artes ou o lugar da prestação dos serviços pela galeria no âmbito do primeiro contrato celebrado. Recordo, por um lado, que o Tribunal de Justiça já declarou que «o lugar onde os bens foram ou devam ser entregues, por força do contrato, deve ser determinado com base nas disposições desse contrato. Se for impossível determinar o lugar de entrega nessa base, sem fazer referência ao direito material aplicável ao contrato, esse lugar é o da entrega material dos bens, através da qual o comprador adquiriu ou deva ter adquirido o poder de dispor efetivamente desses bens, no destino final da operação de venda» (Acórdão de 25 de fevereiro de 2010, Car Trim, C‑381/08, EU:C:2010:90, n.° 62 e dispositivo; o sublinhado é meu). Por outro lado, o conceito de «serviços» implica, de acordo com a jurisprudência estabelecida, que a parte que os presta efetue uma atividade determinada em contrapartida de uma remuneração: o elemento relativo à remuneração não deve faltar para poder aplicar o artigo 5.°, n.° 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento n.° 44/2001. Posto isto, confesso ter dúvidas quanto ao facto de o litígio no processo principal dizer respeito à venda de mercadorias ou à prestação de serviços.


113      Acórdão de 6 de outubro de 1976 (12/76, EU:C:1976:133).


114      Acórdão de 23 de abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch (C‑533/07, EU:C:2009:257, n.os 46 a 57).