Language of document : ECLI:EU:C:2022:356

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

5 de maio de 2022 (*)

«Reenvio prejudicial — Política social — Diretiva 2008/94/CE — Proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador — Artigo 2.o, n.o 2 — Conceito de “trabalhador assalariado” — Artigo 12.o, alíneas a) e c) — Limites à responsabilidade das instituições de garantia — Pessoa que exerce, com base num contrato de trabalho celebrado com uma sociedade comercial, as funções de membro do conselho de administração e de diretor dessa sociedade — Acumulação de funções — Jurisprudência nacional que recusa a essa pessoa as garantias previstas nessa diretiva»

No processo C‑101/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Nejvyšší správní soud (Supremo Tribunal Administrativo, República Checa), por Decisão de 11 de fevereiro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de fevereiro de 2021, no processo

HJ

contra

Ministerstvo práce a sociálních věcí,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: J. Passer, presidente de secção, F. Biltgen (relator) e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo checo, por M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo espanhol, por M. J. Ruiz Sánchez, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Hradil e B.‑R. Killmann, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, n.o 2, e do artigo 12.o, alíneas a) e c), da Diretiva 2008/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador (JO 2008, L 283, p. 36), conforme alterada pela Diretiva (UE) 2015/1794 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de outubro de 2015 (JO 2015, L 263, p. 1) (a seguir «Diretiva 2008/94»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o recorrente no processo principal, HJ, ao Ministerstvo práce a sociálních věcí (Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais, República Checa) a respeito de um pedido de pagamento de remunerações não pagas por uma sociedade em estado de insolvência.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Em conformidade com o considerando 7 da Diretiva 2008/94, os Estados‑Membros podem estabelecer limites à responsabilidade das instituições de garantia, que devem ser compatíveis com o objetivo social desta diretiva e podem tomar em consideração os diferentes valores dos créditos.

4        O artigo 1.o da referida diretiva enuncia:

«1.      A presente diretiva aplica‑se aos créditos dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho existentes em relação a empregadores que se encontrem em estado de insolvência, na aceção do n.o 1 do artigo 2.o

2.      Os Estados‑Membros podem, a título excecional, excluir do âmbito de aplicação da presente diretiva os créditos de certas categorias de trabalhadores assalariados devido à existência de outras formas de garantia, se for determinado que estas asseguram aos interessados uma proteção equivalente à que resulta da presente diretiva.

3.      Caso tal disposição seja já aplicável na sua legislação nacional, os Estados‑Membros podem continuar a excluir do âmbito de aplicação da presente diretiva os trabalhadores domésticos contratados por uma pessoa singular.»

5        O artigo 2.o, n.o 2, da mesma diretiva prevê:

«A presente diretiva não prejudica o direito nacional no que se refere à definição dos termos “trabalhador assalariado”, “empregador”, “remuneração”, “direito adquirido” e “direito em vias de aquisição”.

Todavia, os Estados‑Membros não podem excluir do âmbito de aplicação da presente diretiva:

a)      Os trabalhadores a tempo parcial, na aceção da Diretiva 97/81/CE [do Conselho, de 15 de dezembro de 1997, respeitante ao acordo‑quadro relativo ao trabalho a tempo parcial celebrado pela UNICE, pelo CEEP e pela CES (JO 1998, L 14, p. 9)];

b)      Os trabalhadores com contrato [de trabalho] a termo, na aceção da Diretiva 1999/70/CE [do Conselho, de 28 de junho de 1999, respeitante ao acordo‑quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo (JO 1999, L 175, p. 43)];

c)      Os trabalhadores que têm uma relação de trabalho temporário, na aceção do ponto 2 do artigo 1.o da Diretiva 91/383/CEE [do Conselho, de 25 de junho de 1991, que completa a aplicação de medidas tendentes a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores que têm uma relação de trabalho a termo ou uma relação de trabalho temporário (JO 1991, L 206, p. 19)].»

6        O artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/94 enuncia:

«Os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para que as instituições de garantia assegurem, sob reserva do artigo 4.o, o pagamento dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho, incluindo, sempre que o direito nacional o estabeleça, as indemnizações pela cessação da relação de trabalho.»

7        O artigo 12.o da Diretiva 2008/94 tem a seguinte redação:

«A presente diretiva não prejudicará a faculdade de os Estados‑Membros:

a)      Tomarem as medidas necessárias para evitar abusos;

[…]

c)      Recusarem ou reduzirem a obrigação de pagamento a que se refere o artigo 3.o ou a obrigação de garantia a que se refere o artigo 7.o nos casos em que o trabalhador assalariado possuísse, individual ou conjuntamente com os seus familiares próximos, uma parte essencial da empresa ou do estabelecimento do empregador e exercesse uma influência considerável sobre as suas atividades.»

 Direito checo

 Lei n.o 118/2000

8        A zákon č. 118/2000 Sb., o ochraně zaměstnanců při platební neschopnosti zaměstnavatele a o změně některých zákonů (Lei n.o 118/2000, Relativa à Proteção dos Trabalhadores por Conta de Outrem em Caso de Insolvência do Empregador e que Altera Determinadas Leis) transpõe a Diretiva 2008/94 para a ordem jurídica checa.

9        Em conformidade com o artigo 2.o, n.o 3, da Lei n.o 118/2000, esta não se aplica a um trabalhador que, durante um determinado período, era assalariado de um empregador insolvente e que, durante esse período, era o seu órgão estatuário ou membro desse órgão estatutário e detinha, pelo menos, metade da participação no capital desse empregador.

10      Nos termos do artigo 3.o, alínea a), da Lei n.o 118/2000, entende‑se por «trabalhador assalariado», para efeitos desta lei, «qualquer pessoa singular com quem o empregador tenha celebrado um contrato de trabalho, um contrato de mandato […] ou um contrato de prestação de serviços, com base no qual essa pessoa obteve, durante o período em causa, créditos salariais que não foram pagos pelo empregador».

 Código do Trabalho

11      Nos termos do artigo 2.o da zákon č. 262/2006 Sb., zákoník práce (Lei n.o 262/2006 que Aprova o Código do Trabalho) (a seguir «Código do Trabalho»):

«(1)      Entende‑se por trabalho por conta de outrem a trabalho que é realizado numa relação hierárquica de superioridade do empregador e subordinação do trabalhador, em nome e por conta do empregador, de acordo com as instruções do empregador, e que o trabalhador realiza pessoalmente para o empregador.

(2)      O trabalho por conta de outrem deve ser realizado como contrapartida de um salário, de um pagamento ou de uma remuneração pelo trabalho realizado, a expensas e sob a responsabilidade do empregador, num horário definido e num local de trabalho do empregador ou eventualmente noutro local acordado.»

12      O artigo 4.o deste código tem a seguinte redação:

«A relação laboral é regulada pela presente lei. Quando esta lei não possa ser aplicada, essa relação é regida pelo Código Civil, sempre em conformidade com os princípios fundamentais que regem as relações laborais.»

13      O artigo 6.o do referido código enuncia:

«Um trabalhador por conta de outrem é uma pessoa singular que se comprometeu a prestar trabalho com base numa relação laboral.»

 Lei Relativa às Sociedades Comerciais e às Cooperativas

14      O artigo 59, n.os 1 e 2, do zákon č. 90/2012 Sb., o obchodních společnostech a družstvech (Lei n.o 90/2012, Relativa às Sociedades Comerciais e às Cooperativas) prevê:

«(1)      Os direitos e obrigações entre uma sociedade comercial e o membro do seu órgão eleito regem‑se, com as devidas adaptações, pelas disposições do Código Civil relativas ao mandato, salvo disposição em contrário da lei ou de um contrato relativo ao exercício de funções, quando este tenha sido celebrado. As disposições do Código Civil relativas à gestão de bens de terceiros não são aplicáveis.

(2)      Numa sociedade de capitais, o contrato relativo ao exercício de funções é celebrado por escrito e deve ser aprovado, incluindo as suas alterações, pelo órgão supremo da sociedade. Na falta de tal adoção, o contrato não produz efeitos. […]»

15      O artigo 60.o desta lei enuncia:

«Numa sociedade de capitais, o contrato relativo ao exercício de funções deve igualmente conter os seguintes dados:

a)      a definição de todas as componentes da remuneração que revertem ou possam reverter a favor de um membro de um órgão eleito, incluindo qualquer eventual prestação em espécie, o pagamento de quotizações para o sistema de pensões ou de outras prestações;

[…]»

16      O artigo 435.o, n.o 3, da referida lei prevê:

«O conselho de administração de uma sociedade anónima rege‑se pelos princípios e instruções aprovadas pela assembleia geral, desde que estejam em conformidade com a lei e os estatutos. Todavia, ninguém está autorizado a dar instruções ao conselho de administração relativamente à gestão dos negócios; […]»

 Matéria de facto no processo principal e questão prejudicial

17      Enquanto trabalhava para AA, sociedade comercial, desde 2010 como arquiteto com base num contrato de trabalho, o recorrente no processo principal foi eleito, durante o mês de setembro de 2017, presidente do conselho de administração desta sociedade e, para o efeito, celebrou com a referida sociedade um contrato no qual se precisava que não tinha direito a remuneração pelo exercício dessa função.

18      Posteriormente, foi feito um aditamento ao seu contrato de trabalho inicial, indicando que, enquanto trabalhador por conta de outrem, tinha direito a um salário. Este aditamento precisou que desempenhava, desde outubro de 2017, a função de diretor da AA.

19      Dado que a AA ficou insolvente em 2018, o recorrente no processo principal apresentou no Úřad práce České republiky — krajská pobočka pro hl. m. Prahu (Serviço de Emprego da República Checa — serviço regional para a capital Praga, República Checa) um pedido destinado a obter, com base na Lei n.o 118/2000, o pagamento das remunerações que lhe são devidas relativamente aos meses de julho a setembro de 2018 (a seguir «período em causa»).

20      Este pedido foi indeferido com o fundamento de que o recorrente no processo principal não podia ser qualificado de trabalhador assalariado, na aceção do artigo 3.o, alínea a), da Lei n.o 118/2000.

21      A reclamação apresentada pelo recorrente no processo principal foi indeferida pelo Ministério do Trabalho e dos Assuntos Sociais. Com efeito, este considerou que, durante o período em causa, o recorrente no processo principal tinha exercido, no âmbito das suas funções como presidente do conselho de administração e de diretor da AA, uma única atividade, a saber, a direção comercial desta sociedade, não podendo, portanto, ser considerado vinculado por uma relação laboral com a referida sociedade.

22      Por Sentença de 11 de junho de 2020, foi igualmente negado provimento ao recurso interposto no Městský soud v Praze (Tribunal Municipal de Praga, República Checa). Este órgão jurisdicional considerou, em aplicação da jurisprudência nacional relativa à «acumulação de funções», que, na medida em que, durante o período em causa, o recorrente no processo principal tinha acumulado as funções de diretor e de presidente do conselho de administração desta sociedade, não existia um vínculo de hierarquia nem de subordinação com esta última, pelo que não podia ser qualificado de trabalhador assalariado, na aceção da Lei n.o 118/2000.

23      Além disso, o referido órgão jurisdicional rejeitou os argumentos do recorrente no processo principal relativos ao facto de, durante o período em causa, não ter exercido apenas atividades ligadas à direção comercial da AA, mas ter trabalhado também como encarregado da obra e gestor de projetos. O órgão jurisdicional declarou que o recorrente no processo principal tinha sido eleito presidente do conselho de administração para evitar uma situação económica desfavorável à sociedade, como uma insolvência. Ora, a Lei n.o 118/2000 não tem por finalidade reparar o prejuízo que os membros do órgão estatutário de uma sociedade em estado de insolvência sofrem em consequência da sua direção comercial infrutífera.

24      O recorrente no processo principal interpôs no órgão jurisdicional de reenvio um recurso de cassação dessa sentença.

25      Esse órgão jurisdicional salienta que, segundo a jurisprudência nacional relativa à acumulação de funções, a qual é objeto de debate entre os órgãos jurisdicionais checos, nomeadamente entre o Nejvyšší soud (Supremo Tribunal, República Checa) e o Ústavní soud (Tribunal Constitucional, República Checa), um contrato de trabalho celebrado entre uma sociedade comercial e uma pessoa que prevê que esta acumula as funções de membro do órgão estatutário e de diretor dessa sociedade é válido à luz do Código do Trabalho. Todavia, uma pessoa que se encontre nessa situação não pode ser qualificada de trabalhador assalariado, na aceção da Lei n.o 118/2000. Com efeito, mesmo que exista um contrato de trabalho, um membro do órgão estatutário que dirige a atividade da sociedade comercial não pode exercer as suas funções no âmbito de um vínculo de subordinação, de modo que não existe uma relação laboral entre esse membro e a referida sociedade.

26      O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o artigo 2.o, n.o 2, e o artigo 12.o, alíneas a) e c), da Diretiva 2008/94 se opõem a essa jurisprudência nacional.

27      Recorda, a este respeito, que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a Diretiva 2008/94 prossegue uma finalidade social que visa garantir um nível mínimo de proteção a todos os trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de fevereiro de 2011, Andersson, C‑30/10, EU:C:2011:66, n.o 25, e de 5 de novembro de 2014, Tümer, C‑311/13, EU:C:2014:2337, n.o 37), e que os Estados‑Membros só podem portanto excluir certas pessoas dessa proteção nos casos específicos determinados por esta diretiva (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 1993, Wagner Miret, C‑334/92, EU:C:1993:945, n.o 14; de 17 de novembro de 2011, van Ardennen, C‑435/10, EU:C:2011:751, n.o 39; e de 5 de novembro de 2014, Tümer, C‑311/13, EU:C:2014:2337, n.o 37). Além disso, a eventual exclusão de um direito deve ser objetivamente justificada e constituir uma medida necessária para evitar abusos (Acórdão de 21 de fevereiro de 2008, Robledillo Núñez, C‑498/06, EU:C:2008:109, n.o 44).

28      Nestas circunstâncias, o Nejvyšší správní soud (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 2.o, em conjugação com o artigo 12.o, alíneas a) e c), da Diretiva [2008/94] opõe‑se a uma jurisprudência dos tribunais nacionais segundo a qual o diretor de uma sociedade comercial não é considerado “trabalhador assalariado” para efeitos de pagamento de créditos salariais em dívida [ao abrigo dessa diretiva], apenas porque esse diretor, além de trabalhador assalariado [na aceção dessa diretiva], é simultaneamente membro do órgão estatutário dessa sociedade comercial?»

 Quanto à questão prejudicial

29      Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, n.o 2, e o artigo 12.o, alíneas a) e c), da Diretiva 2008/94 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma jurisprudência nacional segundo a qual uma pessoa que, com base num contrato de trabalho, exerce cumulativamente as funções de diretor e de membro do órgão estatutário de uma sociedade não pode ser qualificada de trabalhador assalariado e, por conseguinte, beneficiar das garantias previstas na referida diretiva.

30      A título preliminar, importa recordar que, nos termos do seu artigo 1.o, n.o 1, Diretiva 2008/94, esta se aplica aos créditos dos trabalhadores assalariados emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho existentes em relação aos empregadores que se encontrem em estado de insolvência, na aceção do n.o 1 do artigo 2.o desta diretiva. Por outro lado, o artigo 3.o da referida diretiva estabelece uma obrigação de pagamento dos créditos em dívida dos trabalhadores assalariados. Daqui resulta que os trabalhadores assalariados, na aceção desta diretiva, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/94.

31      Importa acrescentar que as situações que a jurisprudência nacional em causa no processo principal exclui da aplicação da Lei n.o 118/2000 não estão abrangidas pelas exceções previstas no artigo 1.o, n.os 2 e 3, da referida diretiva. Com efeito, por um lado, embora o artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2008/94 autorize os Estados‑Membros, a título excecional, a excluir do âmbito de aplicação desta diretiva os créditos de certas categorias de trabalhadores assalariados, esta autorização tem subjacente a condição de existirem outras formas de garantia que assegurem aos interessados uma proteção equivalente à que resulta da referida diretiva. Ora, no caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a jurisprudência nacional em causa no processo principal não concede tal proteção equivalente às pessoas membros do órgão estatutário de uma sociedade e que exercem, além disso, com base num contrato de trabalho, as funções de diretor dessa sociedade. Por outro lado, o artigo 1.o, n.o 3, da Diretiva 2008/94 diz respeito aos trabalhadores domésticos contratados por uma pessoa singular, o que não é o caso das pessoas visadas pela jurisprudência nacional em causa no processo principal.

32      A fim de dar ao órgão jurisdicional de reenvio uma resposta útil, importa, em primeiro lugar, analisar a compatibilidade de uma jurisprudência nacional como a que está em causa no processo principal com o artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2008/94.

33      A este respeito, importa sublinhar que a própria Diretiva 2008/94 não define o conceito de «trabalhador assalariado» e, no seu artigo 2.o, n.o 2, primeiro parágrafo, prevê que não prejudica o direito nacional no que se refere à definição deste termo, desde que certas categorias de trabalhadores, especificadas no seu artigo 2.o, n.o 2, segundo parágrafo, que não sejam pertinentes para efeitos do presente processo, não sejam excluídas.

34      Todavia, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a margem de apreciação de que dispõem os Estados‑Membros para definir este conceito não é ilimitada. Assim, segundo essa jurisprudência, o artigo 2.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/94 deve ser interpretado à luz da finalidade social da referida diretiva, que consiste em garantir, em caso de insolvência do empregador, um mínimo de proteção a todos os trabalhadores assalariados ao nível da União Europeia, através do pagamento de créditos não pagos emergentes de contratos ou de relações de trabalho e relativos à remuneração respeitante a um período determinado. Os Estados‑Membros não podem, consequentemente, definir livremente o termo «trabalhador assalariado» de modo a pôr em perigo a finalidade social da referida diretiva (v., por analogia, Acórdão de 5 de novembro de 2014, Tümer, C‑311/13, EU:C:2014:2337, n.o 42).

35      Além disso, o Tribunal de Justiça já declarou que, tendo em conta essa finalidade social da Diretiva 2008/94, bem como os termos do seu artigo 1.o, n.o 1, a definição do termo «trabalhador assalariado» respeita necessariamente a uma relação de trabalho que dá origem a um direito, face ao empregador, de pedir uma remuneração pelo trabalho efetuado (v., por analogia, Acórdão de 5 de novembro de 2014, Tümer, C‑311/13, EU:C:2014:2337, n.o 44). Assim, é contrário à mencionada finalidade social privar pessoas a quem a regulamentação nacional reconhece geralmente a qualidade de trabalhadores assalariados e que dispõem, por força dessa regulamentação, de créditos salariais emergentes de contratos de trabalho ou de relações de trabalho face ao seu empregador, visados nos artigos 1.o, n.o 1, e 3.o, primeiro parágrafo, desta diretiva, da proteção que a referida diretiva prevê em caso de insolvência do empregador (v., por analogia, Acórdão de 5 de novembro de 2014, Tümer, C‑311/13, EU:C:2014:2337, n.o 45).

36      Daqui resulta que a circunstância de a pessoa que exerce a função de diretor de uma sociedade comercial ser igualmente membro do órgão estatutário desta última não permite, por si só, presumir ou excluir a existência de uma relação de trabalho nem a qualificação dessa pessoa de trabalhador assalariado, na aceção da Diretiva 2008/94.

37      Por conseguinte, o artigo 2.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/94 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma jurisprudência nacional como a que está em causa no processo principal, segundo a qual uma pessoa que, com base num contrato de trabalho, exerce cumulativamente as funções de diretor e de membro do órgão estatutário de uma sociedade comercial não pode ser qualificada de trabalhador assalariado, na aceção da referida diretiva.

38      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o recorrente no processo principal exercia cumulativamente as funções de diretor e de presidente do conselho de administração da AA com base num contrato de trabalho celebrado com esta sociedade e que recebia, a esse título, uma remuneração. Uma vez que, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, esse contrato de trabalho é válido à luz do Código do Trabalho, não está excluído que o recorrente no processo principal possa ser considerado um trabalhador assalariado, na aceção do artigo 2.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2008/94, o que cabe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

39      Em segundo lugar, no que respeita à conformidade de uma jurisprudência nacional como a que está em causa no processo principal com o artigo 12.o, alínea a), da Diretiva 2008/94, importa recordar que esta disposição permite aos Estados‑Membros tomarem as medidas necessárias para evitar abusos.

40      Na medida em que institui uma exceção a uma regra geral, a referida disposição deve ser interpretada de modo restritiva. Além disso, a sua interpretação deve ser conforme com a finalidade social da Diretiva 2008/94 (v., por analogia, Acórdão de 11 de setembro de 2003, Walcher, C‑201/01, EU:C:2003:450, n.o 38 e jurisprudência referida).

41      Importa igualmente recordar que os abusos a que se refere o artigo 12.o, alínea a), da Diretiva 2008/94 são as práticas abusivas que implicam um prejuízo em detrimento das instituições de garantia, criando artificialmente um crédito salarial e fazendo, assim, funcionar ilegalmente a obrigação de pagamento a cargo destas instituições. As medidas que os Estados‑Membros estão autorizados a tomar em conformidade com essa disposição são, portanto, as necessárias a fim de evitar tais práticas (v., por analogia, Acórdão de 11 de setembro de 2003,Walcher, C‑201/01, EU:C:2003:450, n.os 39 e 40).

42      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a jurisprudência nacional em causa no processo principal visa evitar que as pessoas que exercem cumulativamente as funções de diretor e de membro do conselho de administração de uma sociedade comercial possam obter o pagamento dos créditos salariais em dívida em razão da insolvência dessa sociedade, uma vez que são suscetíveis de ser, em parte, responsáveis pela referida insolvência. Por conseguinte, inscreve‑se na lógica do artigo 12.o, alínea a), da Diretiva 2008/94.

43      No entanto, essa jurisprudência estabelece uma presunção inilidível segundo a qual essa pessoa não exerce as suas funções no contexto de um vínculo de subordinação mas dirige, na realidade, a sociedade comercial em causa e que, por conseguinte, o facto de lhe conceder as garantias previstas pela Diretiva 2008/94 constituiria um abuso, na aceção do artigo 12.o, alínea a), desta última. Ora, é inadmissível uma presunção geral da existência de um abuso, insuscetível de ser ilidida em face do conjunto de elementos característicos de cada caso particular (v., por analogia, Acórdãos de 4 de março de 2004, Comissão/França, C‑334/02, EU:C:2004:129, n.o 27, e de 25 de outubro de 2017, Polbud — Wykonawstwo, C‑106/16, EU:C:2017:804, n.o 64, bem como Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Grenville Hampshire, C‑17/17, EU:C:2018:287, n.o 65).

44      Por conseguinte, uma jurisprudência nacional como a que está em causa no processo principal não pode ser justificada com base no artigo 12.o, alínea a), da Diretiva 2008/94.

45      Em terceiro lugar, no que respeita à conformidade de uma jurisprudência nacional como a que está em causa no processo principal com o artigo 12.o, alínea c), da Diretiva 2008/94, esta disposição autoriza os Estados‑Membros a recusarem ou reduzirem a obrigação de pagamento a que se refere o artigo 3.o dessa diretiva ou a obrigação de garantia a que se refere o artigo 7.o desta, nos casos em que o trabalhador assalariado possuísse, individual ou conjuntamente com os seus familiares próximos, uma parte essencial da empresa ou do estabelecimento do empregador e exercesse uma influência considerável nas suas atividades, sendo estes dois requisitos cumulativos.

46      Esta disposição baseia‑se, entre outras coisas, na presunção tácita de que um trabalhador assalariado que, simultaneamente, detinha uma participação essencial na empresa em causa e exercia uma influência considerável sobre as atividades desta pode, consequentemente, ser em parte responsável pela insolvência desta empresa (Acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Andersson, C‑30/10, EU:C:2011:66, n.o 24).

47      No caso em apreço, embora a jurisprudência nacional em causa no processo principal possa, se for caso disso, justificar‑se pelo facto de uma pessoa que acumule as funções de diretor e de membro do conselho de administração de uma sociedade comercial ser suscetível de exercer uma influência considerável nas atividades dessa sociedade, não é menos verdade que essa jurisprudência não contém nenhuma referência ao primeiro requisito previsto no artigo 12.o, alínea c), da Diretiva 2008/94, a saber, que o trabalhador assalariado possua, individual ou conjuntamente com os seus familiares próximos, uma parte essencial da referida empresa.

48      Daqui resulta que o artigo 12.o, alíneas a) e c), da Diretiva 2008/94 se opõe a uma jurisprudência nacional, como a que está em causa no processo principal, que estabelece uma presunção inilidível segundo a qual uma pessoa que, mesmo com base num contrato de trabalho válido à luz do direito nacional, exerça cumulativamente as funções de diretor e de membro do órgão estatuário de uma sociedade comercial não pode ser qualificada de trabalhador assalariado, na aceção desta diretiva, e, portanto, não pode beneficiar das garantias nela previstas.

49      Por conseguinte, importa responder à questão prejudicial que o artigo 2.o, n.o 2, e o artigo 12.o, alíneas a) e c), da Diretiva 2008/94 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma jurisprudência nacional segundo a qual uma pessoa que, com base num contrato de trabalho válido à luz do direito nacional, exerce cumulativamente as funções de diretor e de membro do órgão estatutário de uma sociedade não pode ser qualificada de trabalhador assalariado, na aceção desta diretiva, e, por conseguinte, beneficiar das garantias nela previstas.

 Quanto às despesas

50      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

O artigo 2.o, n.o 2, e o artigo 12.o, alíneas a) e c), da Diretiva 2008/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador, conforme alterada pela Diretiva (UE) 2015/1794 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de outubro de 2015, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma jurisprudência nacional segundo a qual uma pessoa que, com base num contrato de trabalho válido à luz do direito nacional, exerce cumulativamente as funções de diretor e de membro do órgão estatutário de uma sociedade não pode ser qualificada de trabalhador assalariado, na aceção desta diretiva, e, por conseguinte, beneficiar das garantias nela previstas.

Assinaturas


*      Língua do processo: checo.