Language of document : ECLI:EU:C:2013:122

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

28 de fevereiro de 2013 (*)

«Artigo 141.° CE — Diretiva 75/117/CEE — Igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos — Discriminação indireta — Justificação objetiva — Requisitos»

No processo C‑427/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pela High Court (Irlanda), por decisão de 27 de julho de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 16 de agosto de 2011, no processo

Margaret Kenny,

Patricia Quinn,

Nuala Condon,

Eileen Norton,

Ursula Ennis,

Loretta Barrett,

Joan Healy,

Kathleen Coyne,

Sharon Fitzpatrick,

Breda Fitzpatrick,

Sandra Hennelly,

Marian Troy,

Antoinette Fitzpatrick,

Helena Gatley

contra

Minister for Justice, Equality and Law Reform,

Minister for Finance,

Commissioner of An Garda Síochána,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta (relatora), exercendo funções de presidente da Terceira Secção, K. Lenaerts, E. Juhász, T. von Danwitz e D. Šváby, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 12 de julho de 2012,

vistas as observações apresentadas:

¾        em representação de M. Kenny e o., por G. Durkan, SC, A. Murphy, solicitor, e M. Honan, BL,

¾        em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por M. Bolger, SC, e A. Kerr, barrister,

¾        em representação do Governo espanhol, por A. Rubio González, na qualidade de agente,

¾        em representação da Comissão Europeia, por J. Enegren e C. Gheorghiu, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de novembro de 2012,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 141.° CE e da Diretiva 75/117/CEE do Conselho, de 10 de fevereiro de 1975, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros no que se refere à aplicação do princípio da igualdade de remuneração entre os trabalhadores masculinos e femininos (JO L 45, p. 19; EE 05 F2 p. 52).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M. Kenny e treze outras funcionárias ao Minister for Justice, Equality and Law Reform (Ministério da Justiça, da Igualdade e das Reformas Legislativas, a seguir «Minister»), ao Minister for Finance e ao Commissioner of An Garda Síochána, a respeito de uma diferença de remuneração entre as recorrentes no processo principal e outro grupo de funcionários.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 1.° da Diretiva 75/117 dispõe:

«O princípio da igualdade de remuneração entre os trabalhadores masculinos e os trabalhadores femininos, que consta do artigo 119.° do Tratado e a seguir denominado por ‘princípio da igualdade de remuneração’, implica, para um mesmo trabalho ou para um trabalho a que for atribuído um valor igual, a eliminação, no conjunto dos elementos e condições de remuneração, de qualquer discriminação em razão do sexo.

Em especial, quando for utilizado um sistema de classificação profissional para a determinação das remunerações, este sistema deve basear‑se em critérios comuns aos trabalhadores masculinos e femininos e ser estabelecido de modo a excluir as discriminações em razão do sexo.»

4        Nos termos do artigo 3.° desta diretiva:

«Os Estados‑Membros devem suprimir as discriminações entre homens e mulheres que decorram de disposições legislativas, regulamentares ou administrativas e que sejam contrárias ao princípio da igualdade de remuneração.»

5        O artigo 4.° da mesma diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros devem tomar as medidas necessárias para que as disposições contrárias ao princípio da igualdade de remuneração que figurem em convenções coletivas, tabelas ou acordos salariais ou em contratos individuais de trabalho sejam nulas, anuláveis ou possam ser alteradas.»

 Direito irlandês

6        A Lei de 1998 relativa à igualdade no trabalho (Employment Equality Act of 1998) revogou e substituiu a legislação anterior, transpondo para o direito irlandês a Diretiva 75/117.

7        O artigo 18.°, n.° 1, alínea a), desta lei, na sua versão aplicável aos factos no processo principal, enuncia:

«Sem prejuízo do disposto na alínea b), para efeitos do presente capítulo, ‘A’ e ‘B’ representam duas pessoas de sexo oposto em que, quando A é mulher, B é homem, e vice‑versa.»

8        O artigo 19.°, n.os 1, 4 e 5, da referida lei, na mesma versão, dispõe:

«1.      O contrato de trabalho da pessoa A deve conter uma cláusula segundo a qual, por força da presente lei, a pessoa A tem, a todo o momento, direito a auferir, pelo trabalho para o qual foi contratada, a mesma remuneração que, naquele ou noutro momento relevante, a pessoa B receba do mesmo empregador ou de um empregador associado a este para executar trabalho idêntico [‘like work’].

[…]

4.      a)      Verifica‑se uma discriminação indireta quando uma disposição aparentemente neutra coloca pessoas de determinado sexo (A ou B) em particular desvantagem em matéria remuneratória comparativamente com outros trabalhadores do mesmo empregador.

b)      Quando a alínea a) seja aplicável, a situação de cada uma das pessoas aí referidas, para efeitos do n.° 1, é conforme ou não conforme com a disposição em causa, consoante dela resulte ou não uma remuneração superior, salvo se a disposição for objetivamente justificada por um objetivo legítimo e os meios para alcançar esse objetivo forem apropriados e necessários.

c)      Em qualquer processo, as estatísticas são admissíveis a fim de determinar se este número é aplicável a A ou a B.

5.      Sem prejuízo do n.° 4, o disposto neste capítulo não impede um empregador de pagar, por outras razões que não seja o sexo, remunerações diferentes a trabalhadores distintos.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9        As recorrentes no processo principal são funcionárias ao serviço do Minister e afetadas a funções administrativas na An Garda Síochána (polícia nacional). Segundo as recorrentes, efetuam um trabalho equivalente ao de outros funcionários do sexo masculino da An Garda Síochána também afetados a funções administrativas em lugares específicos reservados a membros daquela, denominados «lugares designados» ou «lugares reservados».

10      Entre 2000 e 2005, as recorrentes no processo principal interpuseram, por intermédio do seu sindicato, pedidos no Equality Tribunal. Esse órgão jurisdicional, por decisão de 22 de novembro de 2005, julgou procedentes os pedidos de sete destas recorrentes e improcedentes os pedidos de outras sete. Todas as partes no processo recorreram da decisão do Equality Tribunal para a Labour Court.

11      A Labour Court concluiu que a proporção de homens e mulheres nos grupos em questão revelava, à primeira vista, uma discriminação salarial indireta, visto que, quando da apresentação dos oito pedidos iniciais, no mês de julho de 2000, havia, por um lado, 353 lugares designados ocupados por polícias, de entre os quais 279 agentes do sexo masculino e 74 agentes do sexo feminino, e, por outro, 761 funcionários, principalmente do sexo feminino. A Labour Court concluiu igualmente que, à data da audiência, em maio de 2007, existiam 298 lugares designados e que a política dos recorridos era reduzir esse número para 219.

12      Com o acordo das partes no processo principal, a Labour Court decidiu conhecer preliminarmente da questão da justificação objetiva da aparente discriminação salarial indireta detetada e, para esse efeito, presumiu que as recorrentes no processo principal e os trabalhadores comparáveis por elas escolhidos realizam um trabalho idêntico («like work»), na aceção do artigo 7.°, n.° 1, da Lei de 1998 relativa à igualdade no trabalho, na sua versão aplicável aos factos no processo principal. O referido órgão jurisdicional pediu então ao Minister que provasse a existência dessa justificação objetiva.

13      Segundo o Minister, a mutação de membros da An Garda Síochána para lugares administrativos reservados, ou seja, os lugares designados, justificava‑se para responder às necessidades operacionais e era apropriada e necessária para satisfazer as referidas necessidades de pagar aos membros da An Garda Síochána afetados a tais funções a remuneração aplicável à sua categoria enquanto membros da An Garda Síochána.

14      Por outro lado, o número de lugares designados foi determinado por um acordo laboral entre a direção e os órgãos representativos do pessoal da An Garda Síochána no quadro de um processo de redução desses lugares, conhecido como «civilianisation». Ora, embora o Minister tenha admitido a existência de um pequeno número de lugares designados para os quais não havia uma verdadeira necessidade operacional, alegou contudo que esses lugares não eram representativos da generalidade dos lugares designados, para os quais se exige experiência e conhecimentos policiais.

15      Por decisão de 27 de julho de 2007, a Labour Court deu provimento ao recurso do Minister e negou provimento ao das outras partes. Segundo a mesma decisão, a afetação de agentes da An Garda Síochána a tarefas burocráticas visa satisfazer necessidades operacionais da força policial ou a necessidade de efetuar o processo de «civilianisation» de uma forma e a um ritmo que garantam a adesão dos órgãos representativos do pessoal da An Garda Síochána. Por outro lado, na referida decisão, a Labour Court constatou que a atribuição aos titulares desses lugares de remunerações correspondentes às pagas aos membros da An Garda Síochána faz parte do objetivo prosseguido, na medida em que seria manifestamente injusto e impraticável reduzir o salário dos membros da An Garda Síochána que ocupam os referidos lugares. Segundo a mesma decisão, decorre do número reduzido de lugares designados que a manutenção dos acordos atuais durante o processo de «civilianisation» é proporcional às necessidades operacionais.

16      A decisão da Labour Court foi objeto de recurso das recorrentes no processo principal para o órgão jurisdicional de reenvio.

17      Nestas circunstâncias, a High Court decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Em circunstâncias em que, prima facie, há uma discriminação indireta em razão do sexo quanto ao salário, em violação do artigo 141.° CE […] e da Diretiva 75/117[…], para fazer prova da existência de uma justificação objetiva, o empregador está obrigado a apresentar:

a)      justificação da colocação dos trabalhadores comparáveis nos lugares por eles ocupados;

b)      justificação do pagamento de salários mais elevados aos trabalhadores comparáveis; ou

c)      justificação do pagamento de salários mais baixos [às recorrentes no processo principal]?

2)      Em circunstâncias em que, prima facie, há uma discriminação indireta em razão do sexo quanto ao salário, para fazer prova da existência de uma justificação objetiva, está o empregador obrigado a apresentar a justificação:

a)      em relação aos trabalhadores comparáveis específicos [mencionados pelas recorrentes no processo principal] e/ou

b)      em relação à generalidade dos trabalhadores comparáveis?

3)      Se a resposta à [segunda questão, alínea b,] for afirmativa, pode essa justificação objetiva considerar‑se realizada mesmo que não se aplique aos trabalhadores comparáveis escolhidos?

4)      A Labour Court cometeu um erro de direito, à luz do direito da União, ao aceitar que o ‘interesse das boas relações laborais’ possa ser tomado em conta para determinar se o empregador podia justificar objetivamente as diferenças salariais?

5)      Em circunstâncias em que, prima facie, há uma discriminação indireta em razão do sexo quanto ao salário, pode considerar‑se justificação objetiva a que se prende com o interesse em manter boas relações laborais? Deve atribuir‑se alguma relevância a interesses dessa natureza para apreciar a existência de uma justificação?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Observações preliminares relativamente ao ónus da prova e ao conceito de trabalho igual ou de trabalho ao qual é atribuído um valor igual

18      A título preliminar, há que recordar que, segundo as regras normais em matéria de ónus da prova, incumbe, em princípio, ao trabalhador que se considera vítima de uma discriminação em matéria de remuneração baseada no sexo provar no órgão jurisdicional nacional que as condições que permitem presumir a existência de uma desigualdade de remuneração proibida pelo artigo 141.° CE e pela Diretiva 75/117 se encontram reunidas (v., neste sentido, acórdão de 26 de junho de 2001, Brunnhofer, C‑381/99, Colet., p. I‑4961, n.os 52, 53 e 57).

19      Compete, pois, ao referido trabalhador provar por qualquer meio legalmente admitido que recebe uma remuneração inferior à paga pelo empregador aos seus colegas de referência e que exerce, na realidade, o mesmo trabalho ou um trabalho de igual valor, comparável ao efetuado por estes últimos, de modo que é, à primeira vista, vítima de uma discriminação que só se explica pela diferença de sexo (v. acórdão Brunnhofer, já referido, n.° 58).

20      Caso o trabalhador faça prova de que os critérios relativos à existência de uma diferença de remuneração entre um trabalhador feminino e um trabalhador masculino, bem como de um trabalho comparável, se encontram satisfeitos no presente caso, haverá uma aparência de discriminação. Incumbirá, nesse caso, ao empregador provar que não houve violação do princípio da igualdade de remuneração, provando por qualquer meio legalmente admitido, designadamente, que as atividades realmente exercidas pelos dois trabalhadores em causa não são de facto comparáveis ou justificar a diferença de remuneração verificada por fatores objetivos e alheios a qualquer discriminação baseada no sexo (v., neste sentido, acórdão Brunnhofer, já referido, n.os 59 a 62).

21      Neste caso, as questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio partem da premissa de que, no quadro do litígio no processo principal, existe, à primeira vista, uma discriminação indireta em razão do sexo.

22      Ora, resulta dos autos no Tribunal de Justiça que, entre os pressupostos que permitem presumir a existência de uma discriminação salarial indireta em razão do sexo, apenas a diferença de remuneração parece ter sido provada no litígio no processo principal. Quanto à condição do trabalho comparável, como decorre do n.° 12 do presente acórdão, a Labour Court decidiu, com o acordo das partes no processo principal, examinar preliminarmente a eventual existência de uma justificação objetiva dessa diferença de remuneração, partindo da hipótese de que as recorrentes no processo principal e as pessoas de referência escolhidas efetuam o mesmo trabalho.

23      A este respeito, na verdade, o Tribunal de Justiça já decidiu que, numa tal hipótese, pode examinar as questões prejudiciais relativas à justificação da diferença de remuneração sem determinar previamente a equivalência das funções em causa (v., neste sentido, relativamente à legislação britânica, acórdão de 27 de outubro de 1993, Enderby, C‑127/92, Colet., p. I‑5535, n.° 11).

24      Contudo, como o princípio da igualdade de remuneração na aceção dos artigos 141.° CE e 1.° da Diretiva 75/117 pressupõe que os trabalhadores masculinos e os trabalhadores femininos que dele beneficiam se encontrem em situações idênticas ou comparáveis, tem de se verificar se os trabalhadores em causa exercem o mesmo trabalho ou um trabalho ao qual pode ser atribuído um valor igual (v. acórdão Brunnhofer, já referido, n.° 39).

25      Como foi salientado na audiência, tal verificação seria necessária no âmbito do litígio no processo principal no caso de o órgão jurisdicional de reenvio considerar que a Labour Court cometeu um erro de direito ao considerar que a diferença de remuneração era objetivamente justificada.

26      Em tais circunstâncias, a necessária verificação da questão de saber se os trabalhadores em causa exercem o mesmo trabalho ou um trabalho ao qual pode ser atribuído um valor igual compete ao órgão jurisdicional nacional, o único competente para apreciar os factos, tendo em conta a natureza das atividades concretamente exercidas pelos interessados (v., neste sentido, acórdãos de 30 de março de 2000, JämO, C‑236/98, Colet., p. I‑2189, n.° 48, e Brunnhofer, já referido, n.° 49). Todavia, no quadro de um reenvio prejudicial, o Tribunal de Justiça, chamado a dar respostas úteis ao juiz nacional, tem competência para fornecer indicações baseadas nos autos principais e nas observações escritas e orais que lhe foram apresentadas, suscetíveis de permitir ao órgão jurisdicional de reenvio decidir (v. acórdão de 9 de fevereiro de 1999, Seymour‑Smith e Perez, C‑167/97, Colet., p. I‑623, n.os 67 e 68).

27      A este respeito, o Tribunal de Justiça também já declarou reiteradamente que, a fim de apreciar se certos trabalhadores exercem um mesmo trabalho ou um trabalho a que pode ser atribuído um valor igual, há que indagar se se pode considerar que esses trabalhadores, tendo em conta um conjunto de fatores, como a natureza do trabalho, as condições de formação e as condições de trabalho, se encontram numa situação comparável (v. acórdãos de 11 de maio de 1999, Angestelltenbetriebsrat der Wiener Gebietskrankenkasse, C‑309/97, Colet., p. I‑2865, n.° 17, e Brunnhofer, já referido, n.° 43).

28      Assim, quando uma atividade aparentemente idêntica é exercida por diferentes grupos de trabalhadores que não dispõem das mesmas habilitações ou qualificações profissionais para exercer a sua profissão, é necessário verificar, tendo em conta os elementos relativos à natureza das tarefas suscetíveis de serem confiadas respetivamente a cada um destes grupos de trabalhadores, às condições de formação exigidas para o seu exercício e às condições de trabalho em que as mesmas são efetuadas, se estes diferentes grupos de trabalhadores efetuam um trabalho igual, na aceção do artigo 141.° CE (acórdão Angestelltenbetriebsrat der Wiener Gebietskrankenkasse, já referido, n.° 18).

29      Com efeito, a formação profissional não constitui apenas um dos fatores suscetíveis de justificar objetivamente uma diferença nas remunerações atribuídas a trabalhadores que efetuam um trabalho igual. A mesma figura igualmente entre os critérios que permitem verificar se os trabalhadores efetuam ou não um trabalho igual (acórdão Angestelltenbetriebsrat der Wiener Gebietskrankenkasse, já referido, n.° 19).

30      No quadro do litígio no processo principal, resulta dos autos apresentados ao Tribunal de Justiça que a habilitação ou a qualificação profissional dos funcionários administrativos, por um lado, e dos membros da An Garda Síochána afetados aos lugares designados, por outro, apresenta diferenças.

31      Nestas condições, no caso de o órgão jurisdicional de reenvio ter constatado a inexistência de justificação objetiva da diferença de remuneração em causa, esse órgão jurisdicional ou a Labour Court deveria verificar, tendo em conta os elementos relativos à natureza das tarefas suscetíveis de serem confiadas respetivamente a cada um destes grupos de trabalhadores, às condições de formação exigidas para o seu exercício e às condições de trabalho em que as mesmas são efetuadas, se estes diferentes grupos de trabalhadores efetuam um trabalho igual na aceção do artigo 141.° CE e da Diretiva 75/117.

32      A este respeito, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe e das observações apresentadas pelas partes no processo principal que estas últimas não se encontram de acordo relativamente ao número de membros da An Garda Síochána afetados a lugares designados que se limitam a realizar tarefas administrativas e ao número daqueles que, além disso, devem realizar tarefas de natureza operacional, tais como a comunicação com o Serviço Europeu de Polícia (EUROPOL) ou Interpol, sendo estas últimas tarefas diferentes das que são exercidas pelos funcionários administrativos.

33      Todavia, refira‑se que, nas suas observações escritas e no decurso da audiência, a Irlanda alegou que todos os membros da An Garda Síochána afetados a lugares designados podem, em circunstâncias excecionais, ser chamados a trabalhar no terreno por necessidades operacionais.

34      Caberia, portanto, ao órgão jurisdicional de reenvio, se necessário, verificar, tendo em conta os elementos relativos às tarefas suscetíveis de serem confiadas, respetivamente, aos membros da An Garda Síochána afetados a lugares designados e às condições de trabalho desses membros, e tendo em conta os requisitos de formação exigidos aos diferentes grupos de trabalhadores em causa, se a atividade aparentemente idêntica efetuada pelos membros da An Garda Síochána afetados a lugares designados e pelos funcionários administrativos pode ser qualificada de «trabalho igual» na aceção do artigo 141.° CE.

 Quanto às questões prejudiciais

35      Com as suas questões, que há que abordar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, no essencial, à luz do artigo 141.° CE e da Diretiva 75/117, qual é o objeto sobre o qual deve incidir a justificação do empregador relativamente a uma aparente discriminação salarial indireta em razão do sexo, em relação a que trabalhadores deve ser apresentada essa justificação e se o interesse das boas relações laborais pode ser tido em conta para o exame desta justificação.

36      Em primeiro lugar, a respeito do objeto da referida justificação, importa recordar que uma diferença de remuneração entre trabalhadores femininos e trabalhadores masculinos relativamente a um mesmo trabalho ou a um trabalho de valor igual deve, em princípio, ser considerada contrária ao artigo 141.° CE e, por conseguinte, à Diretiva 75/117. Só assim não será se a diferença de tratamento se justificar por fatores objetivos e estranhos a qualquer discriminação fundada no sexo (v. acórdão Brunnhofer, já referido, n.° 66 e jurisprudência aí referida).

37      A justificação apresentada deve basear‑se num objetivo legítimo. Os meios escolhidos para atingir esse objetivo devem ser adequados e necessários para esse efeito (acórdão de 3 de outubro de 2006, Cadman, C‑17/05, Colet., p. I‑9583, n.° 32 e jurisprudência aí referida).

38      Contrariamente ao que o órgão jurisdicional de reenvio parece admitir, não se trata de justificar o nível de remuneração pago a cada um dos grupos de referência nem de justificar a mobilização de trabalhadores para um ou outro grupo, mas antes de justificar a própria diferença de remuneração.

39      Com efeito, nos termos da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, é a diferença de remuneração que deve ser justificada por fatores objetivos alheios a qualquer discriminação ligada à diferença de sexos (v., designadamente, acórdão Brunnhofer, já referido, n.° 30 e jurisprudência aí referida).

40      Todavia, há que salientar que, quando se trata de uma discriminação indireta, a origem da diferença de remuneração pode ser diferente e a justificação de tal diferença pode consequentemente ser também diferente e relacionar‑se assim com uma disposição nacional, uma convenção destinada a regular, de forma coletiva, o trabalho assalariado ou mesmo com uma prática ou ação unilateral de um empregador em relação ao pessoal que emprega.

41      Daqui decorre que, no âmbito de uma discriminação salarial indireta, cabe ao empregador apresentar uma justificação objetiva relativamente à diferença de remuneração verificada entre os trabalhadores que se consideram discriminados e as pessoas de referência.

42      Em segundo lugar, no que respeita ao grupo de trabalhadores relativamente ao qual a justificação deve ser apresentada, há que salientar que se a remuneração dos lugares de um grupo de trabalhadores for relativamente inferior à dos lugares de um outro grupo e se os primeiros forem quase exclusivamente ocupados por mulheres, ao passo que os segundos o são principalmente por homens, tal situação revela uma aparência de discriminação baseada no sexo, quando pelo menos as duas funções em causa forem de valor igual e os dados estatísticos que caracterizam esta situação forem válidos (v., neste sentido, acórdão Enderby, já referido, n.° 16).

43      Neste contexto, cabe ao juiz nacional apreciar se pode tomar em conta esses dados estatísticos, isto é, se dizem respeito a um número suficiente de indivíduos, se não são expressão de fenómenos puramente fortuitos ou conjunturais e, de um modo geral, se parecem ser significativos (v., neste sentido, acórdãos já referidos, Enderby, n.° 17, e Seymour‑Smith e Perez, n.° 62).

44      A este respeito, há que salientar que uma comparação não é pertinente quando incide sobre grupos compostos arbitrariamente de forma a abranger um essencialmente mulheres e o outro essencialmente homens, isto com vista a atingir, através de comparações sucessivas, o alinhamento das remunerações do grupo composto essencialmente por mulheres com as de outro grupo também ele composto arbitrariamente de forma a abranger essencialmente homens (v. acórdão de 31 de maio de 1995, Royal Copenhagen, C‑400/93, Colet., p. I‑1275, n.° 36).

45      Daqui decorre que a justificação por parte do empregador da diferença de remuneração que revele uma aparente discriminação em razão do sexo deve referir‑se às pessoas de referência que, por força do facto de a situação dessas pessoas ser caracterizada por dados estatísticos válidos sobre um número suficiente de pessoas, que não são expressão de fenómenos puramente fortuitos ou conjunturais e que, de uma forma geral, parecem ser significativos, foram tidos em consideração pelo órgão jurisdicional nacional para constatar a referida diferença.

46      Em terceiro lugar, quanto à questão saber se o interesse das boas relações laborais pode ser tido em conta para justificar objetivamente uma aparente discriminação salarial em razão do sexo, importa sublinhar que o motivo invocado para explicar a desigualdade deve corresponder a uma verdadeira necessidade do empregador, neste caso o Minister (v., neste sentido, acórdãos de 13 de maio de 1986, Bilka‑Kaufhaus, 170/84, Colet., p. 1607, n.os 36 e 37, e Brunnhofer, já referido, n.° 67).

47      Por outro lado, há que recordar que, como resulta com clareza do artigo 4.° da Diretiva 75/117, as convenções coletivas devem, tal como as disposições legislativas, regulamentares ou administrativas, respeitar o princípio consagrado no artigo 141.° CE (v. acórdão Enderby, já referido, n.° 21).

48      Portanto, como referiu o advogado‑geral nos n.os 59 a 68 das suas conclusões, está assente que, como nas convenções coletivas, o interesse das boas relações laborais está subordinado ao respeito pelo princípio da proibição da discriminação na remuneração de trabalhadores masculinos e femininos. Este interesse não pode constituir, enquanto tal, o único fundamento justificativo de tal discriminação.

49      Contudo, o Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de declarar que o facto de os elementos de remuneração terem sido fixados por negociações coletivas ou por negociações de âmbito local pode ser tomado em consideração pelo órgão jurisdicional nacional enquanto elemento que lhe permita apreciar se as diferenças entre as remunerações médias de dois grupos de trabalhadores são devidas a fatores objetivos e alheios a qualquer discriminação em razão do sexo (v. acórdão Royal Copenhagen, já referido, n.° 46).

50      Daqui decorre que o interesse das boas relações laborais pode ser tido em consideração pelo órgão jurisdicional nacional entre outros elementos que lhe permitam apreciar se as diferenças entre as remunerações de dois grupos de trabalhadores se devem a fatores objetivos e alheios a qualquer discriminação em razão do sexo e conformes com o princípio da proporcionalidade.

51      Em todo o caso, e como foi referido nos n.os 41 e 45 do presente acórdão, quanto às outras partes das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, cabe ao órgão jurisdicional nacional, o único competente para verificar e apreciar os factos, determinar em que medida o referido interesse pode ser tido em consideração no quadro do litígio no processo principal para justificar uma aparente discriminação salarial indireta em razão do sexo.

52      À luz do exposto, há que responder às questões submetidas que o artigo 141.° CE e a Diretiva 75/117 devem ser interpretados no sentido de que:

¾        os trabalhadores desempenham o mesmo trabalho ou um trabalho de igual valor se, tendo em conta um conjunto de fatores, como a natureza do trabalho, as condições de formação e as condições de trabalho, se puder considerar que se encontram numa situação comparável, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar;

¾        no âmbito de uma discriminação salarial indireta, cabe ao empregador apresentar uma justificação objetiva relativamente à diferença de remuneração verificada entre os trabalhadores que se consideram discriminados e as pessoas de referência;

¾        a justificação por parte do empregador da diferença de remuneração que revele uma aparente discriminação em razão do sexo deve referir‑se às pessoas de referência que, pelo facto de a situação dessas pessoas ser caracterizada por dados estatísticos válidos sobre um número suficiente de pessoas, que não sejam expressão de fenómenos puramente fortuitos ou conjunturais e que, de uma forma geral, parecem ser significativos, tenham sido tidos em consideração pelo órgão jurisdicional nacional para constatar a referida diferença; e

¾        o interesse das boas relações laborais pode ser tido em consideração pelo órgão jurisdicional nacional entre outros elementos que lhe permitam apreciar se as diferenças entre as remunerações de dois grupos de trabalhadores se devem a fatores objetivos e alheios a qualquer discriminação em razão do sexo e conformes com o princípio da proporcionalidade.

 Quanto às despesas

53      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

O artigo 141.° CE e a Diretiva 75/117/CEE do Conselho, de 10 de fevereiro de 1975, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros no que se refere à aplicação do princípio da igualdade de remuneração entre os trabalhadores masculinos e femininos, devem ser interpretados no sentido de que:

¾        os trabalhadores desempenham o mesmo trabalho ou um trabalho de igual valor se, tendo em conta um conjunto de fatores, como a natureza do trabalho, as condições de formação e as condições de trabalho, se puder considerar que se encontram numa situação comparável, o que cabe ao órgão jurisdicional nacional apreciar;

¾        no âmbito de uma discriminação salarial indireta, cabe ao empregador apresentar uma justificação objetiva relativamente à diferença de remuneração verificada entre os trabalhadores que se consideram discriminados e as pessoas de referência;

¾        a justificação por parte do empregador da diferença de remuneração que revele uma aparente discriminação em razão do sexo deve referir‑se às pessoas de referência que, pelo facto de a situação dessas pessoas ser caracterizada por dados estatísticos válidos sobre um número suficiente de pessoas, que não sejam expressão de fenómenos puramente fortuitos ou conjunturais e que, de uma forma geral, parecem ser significativos, tenham sido tidos em consideração pelo órgão jurisdicional nacional para constatar a referida diferença; e

¾        o interesse das boas relações laborais pode ser tido em consideração pelo órgão jurisdicional nacional entre outros elementos que lhe permitam apreciar se as diferenças entre as remunerações de dois grupos de trabalhadores se devem a fatores objetivos e alheios a qualquer discriminação em razão do sexo e conformes com o princípio da proporcionalidade.

Assinaturas


* Língua do processo: inglês.