Language of document : ECLI:EU:C:2022:711

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 22 de setembro de 2022 (1)

Processo C290/21

Staatlich genehmigte Gesellschaft der Autoren, Komponisten und Musikverleger Reg. Gen. mbH (AKM)

contra

Canal + Luxembourg Sàrl

intervenientes:

TELE 5 TMTV GmbH,

Österreichische Rundfunksender GmbH & Co KG,

Seven.One Entertainment Group GmbH,

ProSiebenSat.1 PULS 4 GmbH

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria)]

«Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Direito de autor e direitos conexos — Radiodifusão por satélite e retransmissão por cabo — Diretiva 93/83/CEE — Artigo 1.o, n.o 2 — Fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite — Radiodifusão de programas noutro Estado‑Membro — Lugar do ato de exploração — Fornecimento a título oneroso de programas pagos e em livre acesso em alta definição — Disponibilidade desses programas em definição padrão no Estado de receção igualmente por satélite»






 Introdução

1.        «Se tivesse de recomeçar, começaria pela cultura», teria alegadamente dito Jean Monnet a propósito do processo de integração europeia. No entanto, a cultura, pelo menos na sua dimensão económica, é em grande parte regulamentada pelo direito de autor. Ora, um elemento que se opõe ao avanço da integração nesta matéria e contribui para bloquear a fragmentação do mercado interno segundo as fronteiras nacionais: o imutável princípio da territorialidade (no sentido do território nacional) do direito de autor, bem como as práticas dos intervenientes no mercado, incluindo as das organizações de gestão coletiva que se estabeleceram com base neste princípio. Paradoxalmente, quanto mais a tecnologia, nomeadamente a radiodifusão por satélite — em causa no presente processo — e, mais recentemente, a Internet permitem intercâmbios culturais intraestatais, mais se faz sentir o obstáculo ao princípio da territorialidade do direito de autor.

2.        É verdade, evidentemente, que esta fragmentação do mercado tem também uma razão objetiva, a saber, a diversidade linguística, que é um aspeto fundamental em matéria de cultura. No entanto, o presente processo demonstra que, mesmo em situações em que a barreira linguística não existe, os interessados defendem unguibus et rostro o princípio da territorialidade definido segundo as fronteiras nacionais, embora abolidas no mercado interno. No presente processo, o Tribunal de Justiça terá a oportunidade de contribuir para promover a integração da Europa através da cultura, em conformidade com a vontade do legislador da União, já expressa há quase 30 anos.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3.        Nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) a c), da Diretiva 93/83/CEE do Conselho, de 27 de setembro de 1993, relativa à coordenação de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo (2):

«2.      a)      Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “comunicação ao público por satélite” o ato de introdução, sob o controlo e a responsabilidade do organismo de radiodifusão, de sinais portadores de programas que se destinam a ser captados pelo público numa cadeia ininterrupta de comunicação conducente ao satélite e deste para a terra.

b)      A comunicação ao público por satélite verifica‑se apenas no Estado‑Membro onde os sinais portadores do programa são introduzidos, sob o controlo e a responsabilidade do organismo de radiodifusão, numa cadeia ininterrupta de comunicação conducente ao satélite e deste para a terra.

c)      Se os sinais portadores de programas forem codificados, a comunicação ao público por satélite realizar‑se‑á na condição de os meios para descodificar a emissão serem postos à disposição do público pelo organismo de radiodifusão ou com o seu consentimento.»

4.        O artigo 2.o desta diretiva dispõe:

«Nos termos do disposto no presente capítulo, os Estados‑Membros garantirão aos autores o direito exclusivo de autorizar a comunicação ao público por satélite de obras protegidas pelo direito de autor.»

5.        O artigo 4.o da referida diretiva alarga à comunicação ao público por satélite a proteção concedida aos artistas‑intérpretes ou executantes, produtores de fonogramas e organismos de radiodifusão pela Diretiva 92/100/CEE (3).

6.        O artigo 1.o, n.o 2, alínea c), da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (4) tem a seguinte redação:

«Salvo nos casos referidos no artigo 11.o [(5)], a presente diretiva não afeta de modo algum as disposições [da União] existentes em matéria de:

[...]

c)      Direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo»

7.        Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva:

«Os Estados‑Membros devem prever a favor dos autores o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio [...].»

 Direito austríaco

8.        O § 17.ob, n.o 1, da Urheberrechtsgesetz (Lei dos Direitos de Autor), de 9 de abril de 1936, na sua versão de 27 de dezembro de 2018 (6), aplicável ao caso em apreço, enuncia:

«Na radiodifusão por satélite, o ato de exploração reservado ao autor consiste na introdução, sob o controlo e a responsabilidade do organismo de radiodifusão, de sinais portadores de programas numa cadeia ininterrupta de comunicação conducente ao satélite e deste para a terra. Sem prejuízo do disposto no n.o 2, a radiodifusão por satélite verifica‑se apenas no Estado em que essa introdução é feita.»

 Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

9.        A Staatlich genehmigte Gesellschaft der Autoren, Komponisten und Musikverleger Reg. Gen. mbH (Sociedade reconhecida de utilidade pública de autores, compositores e editores de música, Áustria, a seguir «AKM») é uma sociedade austríaca de gestão coletiva dos direitos de autor e direitos conexos sobre obras musicais.

10.      A Canal + Luxembourg Sàrl (a seguir «Canal +») é uma sociedade de direito luxemburguês que oferece na Áustria, a título oneroso, pacotes de programas de diversos organismos de radiodifusão (a seguir «pacotes de canais de televisão por satélite»).

11.      A introdução de cada um dos sinais de satélite portadores de programas na cadeia de comunicação (ligação ascendente) é efetuada na maior parte das vezes pelos próprios organismos de radiodifusão, algumas vezes pela Canal +, contudo nunca na Áustria, mas noutros Estados‑Membros da União. É enviado um fluxo de transmissão que contém a totalidade do programa em alta‑definição com todas as informações complementares, como dados de áudio, legendas, etc. Depois de ter sido «reenviado» pelo satélite, o fluxo é captado por instalações de receção por satélite situadas na área de cobertura. O fluxo é então fracionado e o utilizador pode aceder a cada um dos programas num terminal. Os programas são codificados e devem ser descodificados pela instalação de receção para poderem ser utilizados. A Canal + coloca à disposição dos seus clientes chaves de acesso com o consentimento dos organismos de radiodifusão. Os «pacotes» são criados combinando as chaves de acesso para diferentes programas.

12.      Os pacotes contêm programas de televisão pagos e gratuitos. Estes últimos não são codificados e podem sempre ser captados por qualquer pessoa em qualidade padrão no território austríaco.

13.      A AKM intentou uma ação visando, em substância, a cessação da difusão de sinais satélites na Áustria e o pagamento de uma indemnização, alegando que não tinha autorizado essa difusão. Com efeito, a AKM considera que, não obstante a eventual autorização obtida pelos organismos de radiodifusão para a comunicação de obras ao público por satélite, a Canal + devia igualmente dispor dessa autorização, o que não conseguiu demonstrar. Por conseguinte, a AKM considera que a Canal + viola os direitos cuja gestão assegura.

14.      Quatro sociedades, entre as quais a Seven.One Entertainment Group GmbH, um organismo de radiodifusão estabelecido na Alemanha, e a ProSiebenSat.1 PULS 4 GmbH, um organismo de radiodifusão estabelecido na Áustria (a seguir, conjuntamente, «intervenientes»), foram admitidas a intervir no litígio no processo principal em apoio da Canal +.

15.      Por Sentença de 30 de junho de 2020, o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria) julgou, em sede de recurso, o recurso parcialmente procedente. Esse órgão jurisdicional considerou, nomeadamente, que os pacotes de canais de televisão por satélite fornecidos pela Canal + são dirigidos a um público novo, isto é, um público diferente do das transmissões em livre acesso dos operadores de radiodifusão. Tanto a AKM como a Canal +, apoiada pelos intervenientes, interpuseram recurso de «Revision» desta sentença para o órgão jurisdicional de reenvio.

16.      Nestas circunstâncias, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve o artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da [Diretiva 93/83] ser interpretado no sentido de que não só o organismo de radiodifusão, mas também o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite que participa no ato de transmissão indivisível e uniforme, realiza um ato de utilização — que pode estar sujeito a autorização — apenas no Estado em que os sinais portadores dos programas são introduzidos numa cadeia ininterrupta de comunicação, sob o controlo e a responsabilidade do organismo de radiodifusão, que os transmite para o satélite e os retransmite, com a consequência de que a participação do fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite no ato de transmissão não pode dar origem a uma violação dos direitos de autor no Estado de receção?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão: Deve o conceito de “comunicação ao público” que figura no artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e c), da [Diretiva 93/83], bem como no artigo 3.o, n.o 1, da [Diretiva 2001/29], ser interpretado no sentido de que o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite que contribui como outro operador no âmbito de uma comunicação ao público por satélite, que agrupa num único pacote vários sinais codificados de alta definição de programas de televisão gratuitos e pagos de diferentes organismos de radiodifusão e oferece o produto audiovisual independente assim criado aos seus clientes mediante pagamento, deve obter uma autorização distinta do titular dos direitos em questão mesmo no que diz respeito ao conteúdo protegido dos programas de televisão gratuitos incluídos no pacote de programas, embora se limite nesse caso a dar aos seus clientes acesso a obras que já estão disponíveis gratuitamente para todos na área de [cobertura] — embora com qualidade inferior à definição padrão?»

17.      O pedido de decisão prejudicial foi apresentado em 5 de maio de 2021. Apresentaram observações escritas a AKM, o Canal +, as intervenientes e a Comissão Europeia. As mesmas partes estiveram representadas na audiência que se realizou em 8 de junho de 2022.

 Análise

18.      O órgão jurisdicional de reenvio submete duas questões prejudiciais, dependendo a segunda questão da resposta dada à primeira. Tendo em conta a resposta que proponho que seja dada a esta primeira questão, não será, portanto, necessário, se o Tribunal de Justiça adotar o meu raciocínio, responder à segunda questão. No entanto, analisá‑la‑ei brevemente, por uma questão de exaustividade.

 Quanto à primeira questão prejudicial

19.      Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 93/83 deve ser interpretado no sentido de que um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite é obrigado a obter, no Estado‑Membro em que o material protegido assim comunicado está acessível ao público (Estado‑Membro recetor), a autorização dos titulares do direito de autor e dos direitos conexos ao abrigo do ato de comunicação ao público por satélite em que participa.

20.      Esta questão diz respeito à jurisprudência do Tribunal de Justiça que decorre, nomeadamente, do Acórdão de 13 de outubro de 2011, Airfield e Canal Digitaal (C‑431/09 e C‑432/09, a seguir «Acórdão Airfield», EU:C:2011:648) e refere‑se, na realidade, à interpretação desse acórdão.

21.      Antes de proceder à análise do Acórdão Airfield, é necessário formular algumas observações preliminares.

 Quanto à comunicação ao público por satélite, na aceção da Diretiva 93/83

22.      Inicialmente, a radiodifusão televisiva estava naturalmente confinada às fronteiras nacionais — utilizava as ondas hertzianas cujas frequências estavam à disposição dos Estados que as atribuíam aos operadores para uma emissão limitada ao território nacional. Por conseguinte, a área de cobertura do sinal correspondia, no essencial, ao território do Estado de emissão que constituía ao mesmo tempo o âmbito de aplicação territorial do direito de autor desse Estado.

23.      O aparecimento da televisão por satélite alterou profundamente esse cenário, ao permitir cobrir um território muito mais vasto do que o de um único Estado. Consequentemente, colocou‑se a questão de saber qual era o direito de autor aplicável: apenas o direito do Estado de emissão do sinal para o satélite ou também o ou os direitos dos Estados onde é possível rececionar o sinal (7)?

24.      O artigo 1.o, n.o 2), alínea b) da Diretiva 93/83 responde a esta pergunta do ponto de vista do direito da União. Embora conste da rubrica «Definições», esta disposição estabelece uma das principais regras substantivas desta diretiva, a saber, o princípio do Estado‑Membro de emissão. Nos termos deste princípio, considera‑se que o ato de comunicação ao público por satélite, tal como definido na referida diretiva, se verifica apenas no Estado‑Membro onde o sinal foi enviado para o satélite. Por conseguinte, é também o direito de autor desse Estado que será aplicável a tal ato.

25.      Paralelamente, a Diretiva 93/83 assegura uma proteção equivalente do direito de autor e direitos conexos em todos os Estados‑Membros, ao harmonizar essa proteção nos seus artigos 2.o e 4.o e ao excluir as licenças obrigatórias no seu artigo 3.o, n.o 1. Por conseguinte, os direitos dos titulares pela utilização das obras nos Estados‑Membros de receção serão protegidos, de forma equivalente, nos termos do direito de autor do Estado‑Membro de emissão (8). A eles cabe assegurar que a remuneração contratada pela utilização desses direitos tem em conta todo o público potencial, em conformidade com o considerando 17 da Diretiva 93/83.

26.      O principal objetivo do estabelecimento do princípio do Estado‑Membro de emissão foi facilitar a transmissão transfronteiriça por satélite dos programas de rádio e televisão, assegurando uma segurança jurídica e um nível adequado de proteção dos seus interesses a todos os atores implicados (9).

27.      No entanto, o princípio do Estado‑Membro de emissão apenas diz respeito ao ato de comunicação ao público por satélite, conforme definido no artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e b), da Diretiva 93/83. Esta definição é composta por vários elementos. Em primeiro lugar, este ato consiste na introdução de sinais portadores do programa numa cadeia de comunicação conducente ao satélite e deste para a terra. Em segundo lugar, a introdução deve ser feita sob o controlo e a responsabilidade de um organismo de radiodifusão. Em terceiro lugar, os sinais portadores de programas devem destinar‑se a ser captados pelo público. Em quarto lugar, a cadeia de comunicação em questão deve ser ininterrupta desde a introdução dos sinais até à receção (potencial (10)) pelo público. Em quinto lugar, e último, se os sinais são codificados, os meios para descodificar esses sinais devem ser postos à disposição do público pelo organismo de radiodifusão ou com o seu consentimento (11).

28.      Um ato que preencha estes requisitos constitui um ato de «comunicação ao público por satélite», na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/83, e beneficia do princípio do Estado‑Membro de emissão. Este princípio abrange não só a emissão propriamente dita, isto é, a introdução do sinal portador do programa na ligação ascendente para o satélite, mas também toda a comunicação, incluindo o encaminhamento desse sinal para os utilizadores finais. Por conseguinte, só o direito do Estado‑Membro de emissão é aplicável à comunicação no seu todo. Em contrapartida, qualquer ato de exploração à distância, incluindo por satélite, de material protegido pelo direito de autor ou direitos conexos que não preencha os requisitos do artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e c), da Diretiva 93/83 não pode ser qualificado de «comunicação ao público por satélite», na aceção da referida disposição, e não beneficia do princípio do Estado‑Membro de emissão.

 Acórdão Airfield e aplicação ao caso vertente

29.      No Acórdão Airfield, o Tribunal de Justiça devia examinar a atividade de um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite semelhante ao da Canal + no caso em apreço. Concluiu que esta atividade constituía uma comunicação ao público por satélite na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) a c) da Diretiva 93/83 (12).

30.      No presente processo, há que constatar que o órgão jurisdicional de reenvio é relativamente parco em informações sobre os detalhes técnicos da comunicação em causa no processo principal. No entanto, como as questões prejudiciais dizem respeito à interpretação do artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 93/83, e assim, indiretamente, do Acórdão Airfield, parto da premissa de que a conclusão a que o Tribunal de Justiça chegou naquele acórdão relativamente à qualificação da atividade de um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite é transponível para o caso em apreço.

31.      Isto significa que os sinais portadores de programas são introduzidos numa cadeia de comunicação conducente ao satélite e deste para a terra, quer pelos próprios organismos de radiodifusão, quer pela Canal +, mas com o consentimento destes. Por conseguinte, os organismos de radiodifusão têm o controlo e assumem a responsabilidade por essa introdução (13). Esses sinais destinam‑se a ser captados pelo público. Com efeito, o objetivo da atividade em questão é a transmissão de programas para captação direta pelo público (14). A cadeia de comunicação é ininterrupta entre a introdução dos sinais na ligação ascendente para o satélite e a potencial receção pelo público. As eventuais intervenções sobre esses sinais, como a compressão ou a codificação e a descodificação são abrangidas pelas atividades técnicas habituais de preparação dos sinais para a sua transmissão por satélite e não constituem uma interrupção da cadeia de comunicação (15). Por último, é facto assente que os dispositivos de descodificação são postos pela Canal+ à disposição do público, com o consentimento dos respetivos organismos de radiodifusão.

32.      Partilho plenamente da análise seguida pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Airfield sobre a qualificação da atividade de um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite como comunicação ao público por satélite. O único ponto, nesta fase, sobre o qual tenho dúvidas, é a constatação de que, em primeiro lugar, o controlo e a responsabilidade do organismo de radiodifusão, referidos no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/83, dizem respeito não ao ato de comunicação ao público por satélite no seu conjunto, mas apenas à introdução dos sinais na cadeia de comunicação e, em segundo lugar, que esse controlo e essa responsabilidade podem ser partilhados (16).

33.      Em primeiro lugar, embora, segundo a disposição acima referida, os sinais portadores de programas devam destinar‑se, desde a sua introdução na cadeia de comunicação, a ser captados pelo público (17) e se esta cadeia tiver de ser ininterrupta, o controlo da introdução desses sinais implica necessária e automaticamente o controlo do ato de comunicação ao público no seu todo. Com efeito, o controlo por outra pessoa após a introdução dos sinais, por exemplo para diferir a transmissão no tempo ou alterar o seu destino, daria lugar à interrupção da cadeia de comunicação.

34.      O mesmo acontece no que respeita à responsabilidade. Numa cadeia ininterrupta de comunicação, a decisão sobre a introdução dos sinais conduz necessariamente à sua acessibilidade ao público, pelo que o organismo de radiodifusão não pode negar a sua responsabilidade pela comunicação ao público dos programas veiculados por esses sinais. O mesmo se passa na hipótese de os sinais serem codificados, uma vez que, para que haja comunicação ao público por satélite, os dispositivos de descodificação devem ser colocados à disposição do público com o consentimento do organismo de radiodifusão, o que lhe dá o controlo sobre este aspeto do ato de comunicação. Sendo dado livremente, esse consentimento implica também a responsabilidade.

35.      Em segundo lugar, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/83, o controlo e a responsabilidade do organismo de radiodifusão constituem uma condição para que o ato em questão seja considerado um ato de comunicação ao público por satélite e beneficie das disposições desta diretiva, nomeadamente do princípio do Estado‑Membro de emissão como lugar onde ocorre esse ato.

36.      No que respeita ao controlo, parece‑me evidente que não basta que o organismo de radiodifusão tenha um controlo meramente parcial. O controlo deve ser total para que o requisito esteja preenchido.

37.      É claro que, a exigência de controlo não equivale à necessidade de o organismo de radiodifusão efetuar ele próprio todas as operações que envolve uma comunicação ao público por satélite. O controlo materializa‑se em acordos celebrados com operadores terceiros, como um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite. Consequentemente, esses terceiros atuam como mandatários do organismo de radiodifusão, que conserva o controlo do ato de comunicação.

38.      Também não se trata de um controlo sobre todos os aspetos, ainda que ínfimos, da comunicação. O organismo de radiodifusão deve ter o controlo sobre os elementos que tenham importância do ponto de vista do direito de autor, nomeadamente, o próprio facto de comunicar, o conteúdo exato da comunicação e o público‑alvo. Em contrapartida, questões técnicas como a compressão do sinal ou o padrão no qual será codificado não são relevantes e podem ser resolvidas pelos operadores aos quais o organismo de radiodifusão confia a realização técnica da comunicação.

39.      No que se refere à responsabilidade do organismo de radiodifusão, também não pode ser partilhada. No artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) a c), da Diretiva 93/83, o legislador da União não só definiu o ato de comunicação ao público por satélite como um ato único de exploração, na aceção do direito de autor, e o lugar onde ocorre esse ato, como também designou o seu autor na pessoa do organismo de radiodifusão que toma a iniciativa dessa comunicação (18). Este organismo é responsável, nomeadamente, perante os titulares do direito de autor e direitos conexos pela exploração de material protegido. Esta responsabilidade do organismo de radiodifusão é o corolário do princípio do Estado de emissão. Com efeito, a Diretiva 93/83 tinha por objetivo não só facilitar a transmissão dos programas por satélite, suprimindo os obstáculos ligados à territorialidade do direito de autor, mas também a defesa do direito de autor e direitos conexos, designando um operador responsável por todo o ato de comunicação ao público por satélite (19).

40.      Consequentemente, num ato de comunicação ao público por satélite, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/83, é o organismo de radiodifusão que deve ter o controlo total e que assume a plena responsabilidade de todo esse ato (20).

 Quanto às alegações da AKM em matéria de aplicabilidade das disposições relativas à comunicação ao público por satélite aos fornecedores de pacotes de canais de televisão por satélite

41.      A constatação de que a atividade de um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite, como a Canal +, está abrangida pela comunicação ao público por satélite (21) permite‑me responder a determinadas teses invocadas pela AKM no caso em apreço.

42.      Em primeiro lugar, a AKM defende que, no momento da adoção da Diretiva 93/83, não existia o modelo económico de pacotes de canais de televisão por satélite e que os autores desta diretiva não tinham previsto a atividade que consiste no fornecimento desses pacotes. Por conseguinte, as disposições da referida diretiva, e nomeadamente o princípio do Estado‑Membro de emissão, não devem ser aplicáveis.

43.      É perfeitamente possível que os autores da Diretiva 93/83 não conhecessem o modelo dos pacotes de canais de televisão por satélite. No entanto, isto não altera o facto de a atividade dos fornecedores desses pacotes se inscrever perfeitamente nas disposições desta diretiva consagradas à comunicação ao público por satélite. Com efeito, essa comunicação não tem de ser imperativamente efetuada por um organismo de radiodifusão, basta que esse organismo conserve o seu controlo. Pode muito bem confiar certas tarefas a outro operador, como um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite. O fornecimento desses pacotes não exige também que se interrompa a cadeia de comunicação entre a introdução dos sinais portadores dos programas e a sua potencial receção pelo público. No que respeita à codificação e à descodificação, estas disposições exigem apenas que sejam efetuadas com o consentimento do organismo de radiodifusão em questão. Nada obsta, portanto, à aplicação das referidas disposições a uma atividade que consiste em fornecer pacotes de canais de televisão por satélite.

44.      Em segundo lugar, a AKM alega que a atividade de um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite devia ser equiparada à retransmissão, conforme definida no artigo 1.o, n.o 3, da Diretiva 93/83. O órgão jurisdicional de reenvio rejeita esta tese, com o fundamento de que uma retransmissão pressupõe uma transmissão inicial que, neste caso, não existe. Partilho desta opinião. Se a atividade de um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite constitui um ato único de comunicação ao público por satélite, não se pode falar de uma transmissão inicial e de uma retransmissão.

45.      É certo que se poderia eventualmente tirar uma conclusão diferente com base na nova Diretiva (UE) 2019/789 (22) e que, em função do método de introdução do sinal na ligação ascendente para o satélite e consoante o organismo de radiodifusão em causa oferece ou não de forma independente e em livre acesso, os programas incluídos num pacote de canais de televisão por satélite, a atividade em causa no presente processo poderia ser qualificada de «transmissão de programas por injeção direta», na aceção do artigo 8.o, n.o 1, desta diretiva ou então de «retransmissão» na aceção do seu artigo 2.o, ponto 2. Tratar‑se‑ia, então, de uma alteração tácita do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 93/83, a par da alteração expressa do seu artigo 1.o, n.o 3, prevista no artigo 9.o da Diretiva 2019/789.

46.      No entanto, como a Comissão explicou nas suas observações, a Diretiva 2019/789 não é aplicável ratione temporis ao litígio no processo principal. Além disso, não foi mencionada no pedido de decisão prejudicial nem debatida entre as partes. Por conseguinte, não há que ter em conta esta diretiva para efeitos da resposta a dar às questões prejudiciais no presente processo.

 Quanto à questão da responsabilidade de um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite pela comunicação a um público novo

47.      Embora no seu Acórdão Airfield o Tribunal de Justiça tenha constatado que a radiodifusão de programas de televisão por satélite e a sua distribuição por um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite constituem uma única e indivisível comunicação ao público por satélite (23), prosseguiu de seguida a sua análise relativamente à responsabilidade desse fornecedor nos termos do direito de autor. Assim, desenvolveu a ideia de que, embora envolvido num ato de comunicação ao público por satélite, único e indivisível, o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite está obrigado a obter, independentemente do organismo de radiodifusão, uma autorização dos titulares do direito de autor e dos direitos conexos a título do novo público ao qual tenha dado acesso ao material protegido assim comunicado (24).

48.      Esta análise do Tribunal de Justiça parece‑me problemática, uma dado que, na minha opinião, é inconciliável com o caráter único e indivisível da comunicação ao público por satélite declarado no Acórdão Airfield, caráter único e indivisível que, por sua vez, constitui um requisito para qualificar um ato de «comunicação ao público por satélite», na aceção da Diretiva 93/83. Ao longo das presentes conclusões, vou desenvolver esta ideia.

–       Quanto ao conceito de «público novo»

49.      O Tribunal de Justiça introduziu na sua jurisprudência o conceito de «público novo» no seu Acórdão de 7 de dezembro de 2006, SGAE (C‑306/05, EU:C:2006:764). Este conceito é aí definido como «um público diferente do público visado pelo ato de comunicação originário da obra» (25). O Tribunal de Justiça inspirou‑se no guia da Convenção de Berna (26), do qual faz a seguinte leitura:

«[…] o autor, ao autorizar este modo de exploração da sua obra, toma em consideração apenas os utentes diretos, isto é, os detentores de aparelhos de receção que, individualmente ou na sua esfera privada ou familiar, captam as emissões. Segundo este guia, quando esta receção se destina a um círculo mais amplo, e, por vezes, com fins lucrativos, permite‑se que uma fração nova do público desfrute da audição ou da ou da visão da obra e a comunicação da emissão por altifalante ou instrumento análogo deixa de ser a mera receção da própria emissão, mas um ato independente através do qual a obra emitida é comunicada a um novo público. Como precisa o referido guia, esta receção pública dá origem ao direito exclusivo do autor para a autorizar» (27).

50.      O conceito de «público novo» foi depois definido na jurisprudência do Tribunal de Justiça no sentido de que se refere a «um público que não foi considerado pelos autores das obras protegidas quando autorizaram a sua utilização pela comunicação ao público original» (28). É até hoje utilizado neste sentido (29).

51.      Dois elementos importantes resultam desta definição, lida à luz da passagem do guia da Convenção de Berna que serviu de inspiração ao Tribunal de Justiça na elaboração deste conceito no direito de autor da União. Antes de mais, a utilização deste conceito só faz sentido perante duas comunicações sucessivas ao público (30), a comunicação primária, igualmente denominada «comunicação inicial», para a qual os titulares do direito de autor deram a sua autorização, e a comunicação secundária que tem a sua origem na comunicação inicial e que visa o público novo em questão. Seguidamente, embora esta comunicação secundária dependa da comunicação inicial, constitui um ato de exploração distinto e necessita, consequentemente, de uma autorização distinta.

52.      A existência de um público novo é então apenas um critério que permite constatar a existência de uma comunicação ao público distinta da comunicação inicial.

–       Quanto ao público visado por uma comunicação ao público por satélite

53.      Numa radiodifusão direta por satélite (isto é, uma comunicação ao público por satélite na aceção da Diretiva 93/83), o público é uno e indivisível, tal como o ato pelo qual esse público recebe a comunicação do material protegido. Numa radiodifusão em acesso livre o referido público é constituído por pessoas que se encontram na zona de receção (a pegada) do satélite. Quando a radiodifusão é codificada, o público é constituído pelas pessoas à disposição das quais foram colocados os dispositivos de descodificação pelo organismo de radiodifusão ou com o seu consentimento.

54.      Afirmar que existem dois públicos distintos para um único ato de comunicação seria uma contradição em si mesma, uma vez que o público é definido precisamente em relação a uma comunicação. O público visado por essa comunicação constitui o público da referida comunicação, qualquer público suplementar (público novo) implica necessariamente um novo ato de comunicação.

55.      Por conseguinte, é contraditório constatar, por um lado, o caráter único e indivisível de uma comunicação ao público por satélite e afirmar, por outro, que existe um público suplementar dessa comunicação que não é tido em conta pelos titulares dos direitos de autor. Num caso como o que estava em causa no processo que deu origem ao Acórdão Airfield e como no caso em apreço, ou seja, de uma radiodifusão por satélite codificada na qual intervém um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite, o público é constituído por pessoas à disposição das quais esse fornecedor coloca os dispositivos de descodificação contra pagamento da assinatura e com o consentimento dos organismos de radiodifusão sob o controlo dos quais os sinais portadores dos programas que formam os pacotes foram introduzidos na cadeia de comunicação.

56.      Esse público foi necessariamente tido em conta pelos organismos de radiodifusão, na medida em que estes deram o seu consentimento para a colocação à disposição do referido público dos dispositivos de descodificação. É possível que os organismos de radiodifusão não tenham sido suficientemente transparentes com os titulares do direito de autor e que estes tenham previsto um público diferente daquele a que a comunicação realmente se destinava. No entanto, nesse caso, é ilícita toda a comunicação ao público por satélite, pelo facto de ter sido efetuada sem autorização dos titulares. Cabe então aos organismos de radiodifusão obter essa autorização (31) no Estado‑Membro de origem da comunicação. Em contrapartida, isso não cria nenhum direito de os titulares se oporem, no Estado‑Membro de receção, à atividade do fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite.

57.      Esta conclusão não é alterada pelas diferentes prestações efetuadas por esse fornecedor e enumeradas pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Airfield.

58.      Com efeito, em primeiro lugar, no que respeita à codificação do sinal e à colocação dos dispositivos de descodificação à disposição do público (32), tal prestação, quando é efetuada com o consentimento do organismo de radiodifusão, está abrangida, em conformidade com o artigo 1.o, n.o 2, alínea c), da Diretiva 93/83, pelo ato único e indivisível de comunicação ao público por satélite. Por conseguinte, se, ao permitir aos membros do público descodificar os programas, o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite dá a esses membros do público acesso ao material protegido, trata‑se dos membros do público da comunicação ao público por satélite, ou seja, aqueles que foram tidos em conta pelos organismos de radiodifusão que estão na origem dessa comunicação.

59.      Em segundo lugar, no que respeita ao facto de o fornecedor dos pacotes de canais de televisão por satélite cobrar o preço de assinatura, o próprio Tribunal de Justiça observa que se trata do preço de acesso à comunicação ao público por satélite (33) e, portanto, do público dessa comunicação.

60.      Por último, em terceiro lugar, no que respeita ao facto de o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite agrupar várias comunicações provenientes dos organismos de radiodifusão num novo produto audiovisual (34), há que observar o seguinte. O direito de autor não raciocina em termos de produtos audiovisuais, nem de pacotes de canais de televisão por satélite, nem mesmo de programas radiodifundidos, mas em termos de material protegido, ou seja, de obras e material de direitos conexos, uma vez que é em relação a esse material que os titulares exercem os seus direitos exclusivos. Por conseguinte, embora a inclusão de um programa que contenha material protegido num pacote de canais de televisão por satélite de um dado fornecedor possa, é certo, influenciar o preço da autorização da comunicação ao público desse material, podendo esse preço ser determinado em função do resultado esperado da exploração do material em questão, não é de forma alguma constitutiva de um ato abrangido pelos direitos exclusivos garantidos pelo direito de autor. Assim, o reagrupamento dos diferentes programas que emanam de diversos organismos de radiodifusão num pacote de canais de televisão por satélite é indiferente do ponto de vista da existência de um ato sujeito à autorização dos titulares do direito de autor.

61.      Assim, através destes atos, contrariamente ao que o Tribunal de Justiça afirmou no Acórdão Airfield (35), o fornecedor dos pacotes de canais de televisão por satélite não amplia o círculo de pessoas que têm acesso aos programas que constituem esses pacotes relativamente às pessoas visadas pela comunicação ao público por satélite efetuada sob o controlo e a responsabilidade dos organismos de radiodifusão dos quais emanam esses programas. A sua atividade não dá, portanto, lugar a uma autorização dos titulares do direito de autor e dos direitos conexos a título de qualquer público novo.

62.      Só seria de outro modo se se considerasse que o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite efetua um ato de comunicação ao seu próprio público (36). Não se trataria então de uma comunicação ao público por satélite na aceção da Diretiva 93/83, uma vez que esta é necessariamente efetuada sob o controlo e a responsabilidade de um organismo de radiodifusão, mas de uma comunicação ao público na aceção do artigo 3.o n.o 1, da Diretiva 2001/29. Por conseguinte, neste caso, o princípio do Estado‑Membro de emissão instaurado pelo artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 93/83 não seria aplicável; considerar‑se‑ia que o ato tinha ocorrido no Estado‑Membro da receção, em conformidade com o princípio da territorialidade do direito de autor.

63.      No entanto, tal solução colidiria, com as conclusões do Tribunal de Justiça efetuadas nos n.os 51 a 69 do Acórdão Airfield, relativas ao caráter único e indivisível de uma comunicação ao público por satélite na qual intervém um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite. Na minha opinião, também seria contrária à redação da Diretiva 93/83, que impõe que se qualifique uma comunicação que preenche os requisitos enunciados no artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e c), desta diretiva, de «comunicação ao público por satélite» e, portanto, de ato único que tem lugar no Estado‑Membro onde o sinal portador de programa é introduzido na cadeia de comunicação.

–       Quanto à relação entre a radiodifusão em livre acesso e a radiodifusão codificada

64.      A confusão deve‑se talvez ao facto de determinados programas de televisão serem radiodifundidos (por satélite) simultaneamente e no mesmo território, tanto em livre acesso como, muitas vezes com melhor qualidade, sob forma codificada, o que exige um pagamento adicional pela sua receção. Por conseguinte, podia parecer que a radiodifusão codificada constitui uma retransmissão da radiodifusão em livre acesso e que, portanto, se destina a um público novo em relação ao público visado por essa segunda radiodifusão. É o que parece ter decidido o órgão jurisdicional de recurso no processo principal.

65.      No entanto, em minha opinião, não é esse o caso. A radiodifusão em livre acesso não é captada para ser depois retransmitida sob forma codificada e a segunda (isto é a radiodifusão codificada ) pode muito bem existir sem a primeira. Trata‑se de duas radiodifusões distintas e independentes, devendo as duas ser qualificadas de primárias, e destinadas a públicos diferentes. Isto é tanto mais assim quanto a radiodifusão codificada é normalmente efetuada numa qualidade melhor, nomeadamente em alta‑definição, do que a radiodifusão em livre acesso. No caso da radiodifusão em livre acesso, o público é constituído por todas as pessoas que se encontram na área de cobertura, ao passo que, no caso da radiodifusão codificada, é constituído por pessoas que possuem dispositivos de descodificação. Por conseguinte, não está em causa um público novo de uma dessas radiodifusões em relação ao público do outro. Quando essas radiodifusões são efetuadas nas condições enunciadas no artigo 1.o, n.o 2, alíneas a) e c), da Diretiva 93/83, trata‑se de dois atos distintos de comunicação ao público por satélite, sendo os dois imputáveis ao organismo de radiodifusão sob cujo controlo e responsabilidade o sinal portador de programa foi introduzido na cadeia de comunicação.

66.      A circunstância de o sinal portador dessas duas radiodifusões poder ser comprimido e multiplexado num único fluxo para efeitos de encaminhamento para o satélite (37) não altera esta conclusão. Do ponto de vista jurídico, o que é importante é que a comunicação de um material protegido segundo um determinado método técnico, neste caso o satélite, a um público determinado. Os pormenores técnicos do encaminhamento do sinal que contém esse material para o público são, deste ponto, de vista irrelevantes.

67.      O facto de o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite incluir programas em livre acesso nesses pacotes é apenas uma comunicação comercial para os seus clientes, destinada a aumentar de forma aparente o número de programas disponíveis no pacote. No entanto, no que respeita aos programas de livre acesso, o fornecedor dos pacotes de canais de televisão por satélite atua, quando muito, como um fornecedor de equipamentos técnicos que permitem rececioná‑los, ou seja, de um recetor e, eventualmente, de uma antena de satélite. Em contrapartida, os seus outros serviços não são necessários para essa receção (38).

 Conclusão e resposta à primeira questão prejudicial

68.      Em conformidade com o que precede, um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite só pode ser responsável para com os titulares do direito de autor e direitos conexos pela comunicação a um novo público no caso de a sua atividade ser considerada um ato de comunicação ao público distinto da comunicação ao público por satélite imputável ao organismo de radiodifusão, sob cujo controlo e responsabilidade o sinal portador do programa foi introduzido na cadeia de comunicação. Neste caso, a comunicação ao público efetuada por um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite teria lugar no Estado‑Membro recetor. Ora, na minha opinião, que encontra confirmação na primeira parte do Acórdão Airfield, não é esse o caso, na medida em que o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite participa num ato único e indivisível de comunicação ao público por satélite. Por conseguinte, não é visado nenhum novo público.

69.      Não analisarei mais detalhadamente a questão de saber se o fornecedor dos pacotes de canais de televisão por satélite poderia eventualmente ser considerado responsável por outros títulos além da comunicação a um novo público, conjuntamente com o organismo de radiodifusão que está na origem da comunicação. Embora não partilhe desta ideia, é, contudo, irrelevante para a resposta à primeira questão prejudicial. Com efeito, esta questão não se refere ao facto de saber se o fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite é responsável para com os titulares do direito de autor e direitos conexos, mas se é responsável no Estado‑Membro de receção. Ora, considera‑se que o ato de comunicação ao público por satélite tem apenas lugar, nos termos do artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 93/83, no Estado‑Membro de emissão. Consequentemente, é nesse Estado‑Membro que os titulares do direito de autor podem eventualmente exercer os seus direitos contra o fornecedor dos pacotes de canais de televisão por satélite.

70.      Por conseguinte, proponho que se responda à primeira questão prejudicial que o artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 93/83 deve ser interpretado no sentido de que um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite não está obrigado a obter, no Estado‑Membro no qual o material protegido assim comunicado está acessível ao público, a autorização dos titulares do direito de autor e dos direitos conexos no âmbito do ato de comunicação ao público por satélite no qual esse fornecedor participa.

 Quanto à segunda questão prejudicial

71.      Com a sua segunda questão prejudicial, lida à luz das explicações contidas na decisão prejudicial de reenvio, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a doutrina do público novo deve ser interpretada no sentido de que, na hipótese de os programas difundidos serem livremente acessíveis na área de cobertura do satélite em definição padrão, o facto de um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite incluir os mesmos programas em alta definição num pacote destinado ao público nessa mesma área não constitui uma comunicação a um público novo.

72.      Esta questão só foi colocada para o caso de decorrer da resposta do Tribunal de Justiça à primeira questão prejudicial que o fornecedor de um pacote de canais de televisão por satélite comunicava material protegido a um público novo no Estado‑Membro de receção. Ora, se o Tribunal de Justiça seguir a minha proposta de resposta à primeira questão prejudicial, não é necessário responder à segunda. Por conseguinte, é apenas por uma questão de exaustividade que farei as seguintes observações sobre esta segunda questão.

73.      Em primeiro lugar, como já expliquei, o conceito de «público novo» só tem sentido perante duas comunicações ao público ligadas de tal forma que uma delas é a comunicação primária (inicial) e a outra a comunicação secundária, dependente da primeira. Ora, é difícil imaginar que a transmissão de um programa de televisão em alta‑definição possa constituir a retransmissão de uma emissão em definição padrão. Com efeito, o autor dessa transmissão devia ter acesso ao programa em alta‑definição por uma fonte diferente da transmissão em definição padrão. Por conseguinte, não se trata, portanto, de uma comunicação secundária e o conceito de «público novo» não é aplicável (39).

74.      Em segundo lugar, a qualidade de imagem pode ser um fator importante da atratividade da obra para o público, nomeadamente no caso das obras audiovisuais, e, por conseguinte, influenciar o preço que os titulares do direito de autor poderão obter em troca da sua autorização para explorar essa obra. Assim, esses titulares têm o direito de limitar a sua autorização a uma determinada qualidade de difusão, como a radiodifusão em definição padrão. A mera acessibilidade da obra, para o mesmo público, em menor qualidade de imagem não isenta automaticamente o explorador dessa obra da obrigação de obter a autorização dos referidos titulares para a sua difusão em melhor qualidade.

75.      O argumento invocado a este respeito pela Canal +, de que, no caso em apreço, a AKM representa titulares de obras musicais e que o som do sinal de televisão é o mesmo na radiodifusão em alta‑definição e em definição padrão, não altera, em meu entender, esta conclusão. Com efeito, em programas de televisão, as obras musicais estão habitualmente integradas em obras audiovisuais e exploradas conjuntamente com estas, pelo que a sua atratividade também pode depender da qualidade da imagem da radiodifusão no seu conjunto.

76.      Dito isto, considerando que a doutrina do público novo não é aplicável no caso em apreço, abster‑me‑ei de propor uma resposta para a segunda questão prejudicial.

 Conclusão

77.      Tendo em conta todas as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais do Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) do seguinte modo:

O artigo 1.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 93/83/CEE do Conselho, de 27 de setembro de 1993, relativa à coordenação de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo,

deve ser interpretado no sentido de que

um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite não está obrigado a obter, no Estado‑Membro no qual o material protegido assim comunicado está acessível ao público, a autorização dos titulares do direito de autor e dos direitos conexos no âmbito do ato de comunicação ao público por satélite no qual esse fornecedor participa.


1      Língua original: francês.


2      JO 1993, L 248, p. 15.


3      Diretiva do Conselho, de 19 de novembro de 1992, relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos ao direito de autor em matéria de propriedade intelectual (JO 1992, L 346, p. 61). Esta diretiva foi revogada e substituída pela Diretiva 2006/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006 (JO 2006, L 376, p. 28).


4      JO 2001, L 167, p. 10.


5      Alterações sem relevância para o presente processo.


6      BGBl. I, 105/2018.


7      V. considerando 7 da Diretiva 93/83.


8      As organizações de gestão coletiva que, na prática, asseguram frequentemente essa proteção representam, através dos contratos de cooperação, os interesses dos titulares tanto nacionais como estrangeiros.


9      V., nomeadamente, considerandos 3 a 5 da Diretiva 93/83.


10      A receção efetiva pelo público não é uma condição da existência do ato de comunicação ao público no direito de autor.


11      V., neste sentido, Acórdão Airfield, n.o 52.


12      V. Acórdão Airfield, n.o 69 desse acórdão.


13      V., neste sentido, Acórdão Airfield, n.os 53 a 55.


14      V., neste sentido, Acórdão Airfield, n.os 65 a 67.


15      V., neste sentido, Acórdão Airfield, n.os 60 e 61.


16      V. Acórdão Airfield, n.o 56.


17      Isto é, destinados a uma receção direta pelo público.


18      O que o Tribunal de Justiça parece reconhecer igualmente no n.o 75 do Acórdão Airfield.


19      V., neste sentido, considerando 5 da Diretiva 93/83. V., também, Pollaud‑Dulian, F., Le droit d'auteur, Economica, Paris, 2014, p. 765.


20      V., sobre o controlo e responsabilidade do organismo de radiodifusão, Dreier, T., em Walter, M.M. e von Lewinski, S., European Copyright Law.  A Commentary, Oxford University Press, Oxford, 2010, pp. 412 e segs.


21      V. n.os 31 e 32 das presentes conclusões.


22      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, que estabelece normas sobre o exercício dos direitos de autor e direitos conexos aplicáveis a determinadas transmissões em linha dos organismos de radiodifusão e à retransmissão de programas de televisão e de rádio e que altera a Diretiva 93/83/CEE do Conselho (JO 2019, L 130, p. 82).


23      V. Acórdão Airfield, n.o 69.


24      V. Acórdão Airfield, n.os 71 a 83.


25      Acórdão de 7 de dezembro de 2006, SGAE (C‑306/05, EU:C:2006:764, n.o 40).


26      Guia da Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas (Ato de Paris, 1971), Organização Mundial da Propriedade Intelectual, Genebra, 1978, p. 80. Este guia foi redigido por C. Masouyé.


27      Acórdão de 7 de dezembro de 2006, SGAE (C‑306/05, EU:C:2006:764, n.o 41).


28      Acórdão de 4 de outubro de 2011, Football Association Premier League e o. (C‑403/08 e C‑429/08, EU:C:2011:631, n.o 197).


29      V., recentemente, Acórdão de 22 de junho de 2021, YouTube e Cyando (C‑682/18 e C‑683/18, EU:C:2021:503, n.o 70).


30      Sucessivas em sentido funcional, isto é, uma delas depende da outra. Por outro lado, podem ser simultâneas no tempo.


31      Como o Tribunal de Justiça observou corretamente no n.o 75 do Acórdão Airfield.


32      V. Acórdão Airfield, n.o 78.


33      V. Acórdão Airfield, n.o 80.


34      V. Acórdão Airfield, n.o 81.


35      V. Acórdão Airfield, n.o 82.


36      Era a solução preconizada nas Conclusões do advogado‑geral N. Jääskinen nos processos apensos Airfield e Canal Digitaal (C‑431/09 e C‑432/09, EU:C:2011:157). A AKM sugere uma solução semelhante no presente processo, fazendo uma analogia com a retransmissão por cabo.


37      O que o órgão jurisdicional de reenvio qualifica de «viagem agrupada».


38      Embora seja verdade que um recetor descodificador, fornecido por um fornecedor de pacotes de canais de televisão por satélite, só funciona habitualmente na condição de ter uma assinatura ativa, isso não muda nada, uma vez que o membro do público interessado também pode adquirir um equipamento dito «free to air» para receber os programas em livre acesso.


39      Devo sublinhar que a questão da qualidade de uma emissão televisiva é distinta da questão de saber em que qualidade o público receciona esta emissão devido ao equipamento técnico na sua posse. É claro que, num televisor não compatível, uma emissão em alta‑definição será entendida como uma emissão de definição padrão. No entanto, isto é irrelevante, na medida em que, para apreciar a existência de um ato de comunicação ao público, pouco importa se e como o público receciona efetivamente essa comunicação e forma como a receciona.