Language of document : ECLI:EU:C:2024:125

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

8 de fevereiro de 2024 (*)

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Política económica e monetária — Supervisão prudencial das instituições de crédito — Regulamento (UE) n.o 1024/2013 — Atribuições específicas de supervisão conferidas ao Banco Central Europeu (BCE) — Revogação da autorização — Recurso de anulação — Inadmissibilidade — Representação de uma parte — Mandato outorgado a um advogado — Representante irregularmente mandatado»

No processo C‑256/22 P,

que tem por objeto um recurso de um acórdão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 12 de abril de 2022,

Pilatus Bank plc, com sede em Ta’Xbiex (Malta), representada por O. Behrends, Rechtsanwalt,

recorrente,

sendo as outras partes no processo:

Pilatus Holding ltd.,

recorrente em primeira instância,

Banco Central Europeu (BCE), representado por M. Puidokas e E. Yoo, na qualidade de agentes,

recorrido em primeira instância,

Comissão Europeia, representada inicialmente por A. Nijenhuis, A. Steiblytė e D. Triantafyllou e, em seguida, por A. Steiblytė e D. Triantafyllou, na qualidade de agentes,

interveniente em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, F. Biltgen, N. Wahl (relator), J. Passer e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 25 de maio de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        Com o presente recurso, a Pilatus Bank plc pede a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 2 de fevereiro de 2022, Pilatus Bank e Pilatus Holding/BCE (T‑27/19, a seguir «acórdão recorrido», EU:T:2022:46), através do qual o Tribunal Geral negou provimento ao recurso de anulação da Decisão do Banco Central Europeu (BCE), de 2 de novembro de 2018, que lhe revogou a sua autorização de acesso à atividade de instituição de crédito (a seguir «decisão controvertida»).

 Quadro jurídico

2        O artigo 4.o do Regulamento (UE) n.o 1024/2013 do Conselho, de 15 de outubro de 2013, que confere ao BCE atribuições específicas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das instituições de crédito (JO 2013, L 287, p. 63), define as atribuições conferidas ao BCE e dispõe, no n.o 1, alínea a):

«Nos termos do artigo 6.o, cabe ao BCE, de acordo com o n.o 3 do presente artigo, exercer em exclusivo, para fins de supervisão prudencial, as seguintes atribuições relativamente à totalidade das instituições de crédito estabelecidas nos Estados‑Membros participantes:

a)      Conceder e revogar a autorização a instituições de crédito, sob reserva do disposto no artigo 14.o»

3        O artigo 6.o deste regulamento, sob a epígrafe «Cooperação no âmbito do [mecanismo único de supervisão (MUS)]», enuncia:

«1.      O BCE exerce as suas atribuições no âmbito de um mecanismo único de supervisão composto pelo BCE e pelas autoridades nacionais competentes. O BCE é responsável pelo funcionamento eficaz e coerente do MUS.

[…]

4.      No se refere às atribuições previstas no artigo 4.o, com exceção do n.o 1, alíneas a) e c), o BCE dispõe dos poderes previstos no n.o 5 do presente artigo, e as autoridades nacionais competentes dispõem dos poderes previstos no n.o 6 do presente artigo, no âmbito e sob reserva dos procedimentos a que se refere o n.o 7 do presente artigo, em matéria de supervisão das seguintes instituições de crédito, companhias financeiras ou companhias financeiras mistas, ou sucursais — que estejam estabelecidas nos Estados‑Membros participantes — de instituições de crédito estabelecidas em Estados‑Membros não participantes:

–        Aquelas que sejam menos significativas em base consolidada, ao nível mais elevado de consolidação nos Estados‑Membros participantes, ou individualmente no caso específico das sucursais — que estejam estabelecidas em Estados‑Membros participantes — de instituições de crédito estabelecidas em Estados‑Membros não participantes. O caráter significativo é avaliado com base nos seguintes critérios:

i)      dimensão;

ii)      importância para a economia da União ou de um Estado‑Membro participante;

iii)      importância das atividades transfronteiriças.

No que respeita ao primeiro parágrafo acima, uma instituição de crédito, uma companhia financeira ou uma companhia financeira mista não é considerada menos significativa, a não ser que tal se justifique por circunstâncias específicas a mencionar na metodologia, se se verificar uma das seguintes condições:

i)      o valor total dos seus ativos exceder 30 mil milhões de euros; ou

ii)      o rácio entre a totalidade dos seus ativos e o [produto interno bruto (PIB)] do Estado‑Membro participante de estabelecimento exceder 20 %, salvo se o valor total dos seus ativos seja inferior a 5 mil milhões de euros;

iii)      após notificação, pela autoridade nacional competente, de que esta considera que a instituição em causa assume caráter significativo para a economia nacional, o BCE tomar uma decisão que confirma esse caráter significativo, após ter realizado uma avaliação completa da instituição de crédito, incluindo uma avaliação do seu balanço.

O BCE pode também, por iniciativa própria, considerar que uma instituição tem caráter significativo se tiver filiais bancárias estabelecidas em mais de um Estado‑Membro participante e os seus ativos ou passivos transfronteiriços representarem uma parte considerável da totalidade dos seus ativos ou passivos, sob reserva das condições estabelecidas na metodologia.

Aquelas instituições para as quais foi solicitada ou recebida diretamente assistência financeira pública do [Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF)] ou do [Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE)] não podem ser consideradas menos significativas.

Não obstante os parágrafos anteriores e a menos que circunstâncias específicas justifiquem outra solução, o BCE exerce as atribuições que lhe são conferidas pelo presente regulamento no que respeita às três instituições de crédito mais significativas em cada Estado‑Membro participante.

[…]

6.      Sem prejuízo do n.o 5 do presente artigo, as autoridades nacionais competentes exercem e são responsáveis pelas atribuições de supervisão a que se refere o artigo 4.o, n.o 1, alíneas b), d) a g), e i), adotando todas as decisões de supervisão relevantes dirigidas às instituições de crédito a que se refere o n.o 4, primeiro parágrafo, do presente artigo, no âmbito e sob reserva dos procedimentos a que se refere o n.o 7 do presente artigo.

Sem prejuízo dos artigos 10.o a 13.o, as autoridades nacionais competentes e as autoridades nacionais designadas mantêm os poderes, de acordo com a legislação nacional, para obter informações das instituições de crédito, das companhias financeiras, das companhias financeiras mistas e das empresas incluídas na situação financeira consolidada de uma instituição de crédito e para efetuar inspeções no local nessas instituições de crédito, companhias financeiras, companhias financeiras mistas e empresas. As autoridades nacionais competentes informam o BCE, de acordo com o estabelecido no n.o 7 do presente artigo, das medidas tomadas ao abrigo do presente número e coordenam estreitamente essas medidas com o BCE.

As autoridades nacionais competentes informam periodicamente o BCE sobre as atividades realizadas no âmbito do presente artigo.

[…]»

4        O artigo 14.o do Regulamento n.o 1024/2013, sob a epígrafe «Autorização», prevê, no n.o 5:

«Sob reserva do disposto no n.o 6, o BCE pode revogar a autorização nos casos previstos na legislação aplicável da União, por sua própria iniciativa, na sequência de consultas com a autoridade nacional competente do Estado‑Membro participante em que a instituição de crédito está estabelecida, ou sob proposta dessa autoridade nacional competente. Essas consultas garantem em especial que, antes de tomar uma decisão em matéria de revogação, o BCE dá tempo suficiente às autoridades nacionais para decidirem das medidas corretivas necessárias, incluindo eventuais medidas de resolução, e tem em conta as medidas decididas.

Caso a autoridade nacional competente que propôs a autorização nos termos do n.o 1 considere que essa autorização deve ser revogada de acordo com a legislação nacional aplicável, apresenta ao BCE uma proposta nesse sentido. O BCE toma uma decisão sobre a revogação proposta tendo plenamente em conta a justificação apresentada pela autoridade nacional competente.»

 Antecedentes do litígio

5        A recorrente, a Pilatus Bank, e a Pilatus Holding ltd., que era a segunda recorrente no Tribunal Geral, são, respetivamente, uma instituição de crédito «menos significativa», na aceção do artigo 6.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1024/2013, com sede em Malta e sujeita à supervisão prudencial direta da Malta Financial Services Authority (Autoridade Maltesa dos Serviços Financeiros, Malta) (a seguir «MFSA»), «autoridade nacional competente», na aceção do artigo 2.o, n.o 2, deste regulamento, e o acionista maioritário direto desta instituição de crédito.

6        Ali Sadr Hasheminejad, acionista da recorrente que detinha indiretamente 100 % do seu capital e dos direitos de voto, foi detido nos Estados Unidos com base em seis acusações relacionadas com a sua alegada participação num sistema através do qual cerca de 115 milhões de dólares dos Estados Unidos (USD) (cerca de 108 milhões de euros) pagos para financiar um projeto imobiliário na Venezuela foram desviados em benefício de pessoas e de empresas iranianas.

7        Na sequência da acusação contra Ali Sadr Hasheminejad nos Estados Unidos, a recorrente recebeu pedidos de levantamento de depósitos no montante total de 51,4 milhões de euros, ou seja, cerca de 40 % dos depósitos que constavam do seu balanço.

8        Neste contexto, a MFSA adotou três diretivas que diziam respeito à recorrente.

9        Em 21 de março de 2018, a MFSA adotou, por um lado, uma diretiva relativa à revogação ou à suspensão dos direitos de voto, na qual ordenou, nomeadamente, que Ali Sadr Hasheminejad fosse demitido do seu cargo de dirigente da recorrente com efeitos imediatos, bem como de todas as suas outras funções decisórias no seio desta última, que o exercício dos seus direitos de voto fosse suspenso e que se abstivesse de representação jurídica ou judicial desta recorrente.

10      Nesse mesmo dia, a MFSA adotou também uma diretiva relativa à moratória, pela qual ordenou à recorrente que não autorizasse nenhuma transação bancária, em especial os levantamentos e os depósitos dos seus acionistas e membros do seu conselho de administração.

11      Em 22 de março de 2018, a MFSA adotou uma diretiva relativa à nomeação de uma pessoa competente, mandatada, nos termos dessa designação, para «assumir todos os poderes, funções e deveres do banco relativamente a todos os bens, sejam eles exercidos pelo banco em assembleia geral ou pelo conselho de administração ou por qualquer outra pessoa, incluindo a representação legal e judicial do banco, com exceção do banco e de qualquer outra pessoa» (a seguir «pessoa competente»).

12      Em 29 de junho de 2018, a MFSA propôs ao BCE que revogasse à recorrente a sua autorização para o acesso à atividade de instituição de crédito, em aplicação do artigo 14.o, n.o 5, do Regulamento n.o 1024/2013.

13      Em 2 de agosto de 2018, a MFSA apresentou ao BCE uma proposta revista de revogação da autorização da recorrente para o acesso à atividade de instituição de crédito.

14      Durante o procedimento administrativo de revogação da autorização, o conselho de administração da recorrente mandatou um advogado que entrou em contacto com o BCE.

15      Por carta de 31 de agosto de 2018, o BCE convidou a recorrente a apresentar as suas observações sobre o projeto revisto de decisão de revogação da autorização no prazo de cinco dias úteis seguintes à data de receção desta carta.

16      Após ter obtido duas prorrogações desse prazo de audição e o acesso aos autos do procedimento administrativo, a recorrente, por intermédio do advogado mandatado pelo seu conselho de administração, apresentou, em 21 de setembro de 2018, as suas observações relativas ao projeto de decisão de revogação da aprovação, nas quais exprimiu a oposição da sua direção e dos seus acionistas a esse projeto.

17      Em 2 de novembro de 2018, o BCE adotou a decisão controvertida ao abrigo do artigo 4.o, n.o 1, alínea a), e do artigo 14.o, n.o 5, do Regulamento n.o 1024/2013.

 Recurso no Tribunal Geral e acórdão recorrido

18      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 15 de janeiro de 2019, a Pilatus Bank e a Pilatus Holding interpuseram, por intermédio do advogado mandatado pelo conselho de administração da Pilatus Bank e pelo diretor da Pilatus Holding, um recurso de anulação da decisão controvertida.

19      Por Decisão de 17 de maio de 2019, a Comissão Europeia foi admitida a intervir no processo em apoio dos pedidos do BCE.

20      No acórdão recorrido, o Tribunal Geral negou provimento ao recurso da decisão controvertida.

21      No que respeita, em primeiro lugar, à admissibilidade, o Tribunal Geral declarou que o recurso era inadmissível por ter sido interposto pela Pilatus Holding, tendo em conta que esta entidade não é, enquanto acionista da recorrente, diretamente afetada pela decisão controvertida.

22      No que respeita, em segundo lugar, ao mérito, o Tribunal Geral julgou improcedentes os onze fundamentos invocados pela recorrente.

 Tramitação processual no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

23      Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 12 de abril de 2022, a recorrente, por intermédio do mesmo advogado que em primeira instância, interpôs o presente recurso.

24      Com o presente recurso, conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        anular o acórdão recorrido;

–        anular, nos termos do artigo 264.o TFUE, a decisão controvertida;

–        remeter o processo ao Tribunal Geral para que este conheça do pedido de anulação no caso de o Tribunal de Justiça não se poder pronunciar quanto ao mérito, e

–        Condenar o BCE nas despesas relativas ao presente recurso e ao processo no Tribunal Geral.

25      O BCE conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

–        julgar o recurso parcialmente inadmissível e parcialmente improcedente;

–        a título subsidiário, julgar o recurso totalmente improcedente, e

–        em qualquer caso, condenar a recorrente na totalidade das despesas.

26      A Comissão pede que o Tribunal de Justiça se digne:

–        negar provimento ao recurso por falta de fundamentação e

–        condenar a recorrente nas despesas da instância.

 Quanto ao pedido de reabertura da fase oral do processo

27      Por requerimento que deu entrada no Tribunal de Justiça em 27 de junho de 2023, o BCE pediu a reabertura da fase oral do processo, em aplicação do artigo 83.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

28      Em apoio do seu pedido, o BCE indica que pretende apresentar novos elementos de facto que, à luz dos acontecimentos recentes, a saber, as Conclusões da advogada‑geral de 25 de maio de 2023, são suscetíveis de constituir um elemento decisivo para a decisão do Tribunal de Justiça. Resulta das conclusões que a advogada‑geral considera que as diretivas que dizem respeito à recorrente adotadas pela MFSA em março de 2018 são «atos preparatórios» no âmbito do procedimento administrativo composto que levou à adoção pelo BCE da decisão de revogação da autorização e que as irregularidades que viciam estas diretivas são, por este facto, imputáveis ao BCE e «contaminam» a decisão de revogação da autorização adotada por este último. O BCE apresenta elementos de facto para demonstrar que as referidas diretivas foram impugnadas nos órgãos jurisdicionais malteses.

29      A este respeito, importa recordar, por um lado, que o Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e o Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça não preveem a possibilidade de os interessados visados no artigo 23.o desse Estatuto apresentarem observações em resposta às conclusões apresentadas pelo advogado‑geral (Acórdão de 9 de junho de 2022, Préfet du Gers e Institut national de la statistique et des études économiques, C‑673/20, EU:C:2022:449, n.o 40 e jurisprudência referida).

30      Por outro lado, por força do artigo 252.o, segundo parágrafo, TFUE, cabe ao advogado‑geral apresentar publicamente, com toda a imparcialidade e independência, conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requeiram a sua intervenção. Não se trata, portanto, de um parecer destinado aos juízes ou às partes que emane de uma autoridade externa ao Tribunal de Justiça, mas da opinião individual, fundamentada e expressa publicamente, de um membro da própria instituição. Nestas condições, as conclusões do advogado‑geral não podem ser debatidas pelas partes. Além disso, o Tribunal de Justiça não está vinculado nem por essas conclusões nem pela fundamentação em que o advogado‑geral baseia essas conclusões. Por conseguinte, o desacordo de uma parte com as conclusões do advogado‑geral, sejam quais forem as questões nelas examinadas, não constitui, em si mesmo, um fundamento justificativo da reabertura da fase oral do processo (Acórdão de 9 de junho de 2022, Préfet du Gers e Institut national de la statistique et des études économiques, C‑673/20, EU:C:2022:449, n.o 41 e jurisprudência referida).

31      No entanto, em conformidade com o artigo 83.o do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, ouvido o advogado‑geral, ordenar a abertura ou a reabertura da fase oral do processo, designadamente se considerar que não está suficientemente esclarecido, ou quando, após o encerramento dessa fase, uma parte invocar um facto novo que possa ter influência determinante na decisão do Tribunal.

32      Todavia, no caso em apreço, o Tribunal de Justiça considera que dispõe de todos os elementos necessários para decidir e que os elementos invocados pelo BCE em apoio do seu pedido de reabertura da fase oral do processo não constituem factos novos suscetíveis de poder influenciar a decisão que é assim chamado a proferir.

33      Nestas condições, o Tribunal de Justiça considera, ouvida a advogada‑geral, que não há que ordenar a reabertura da fase oral do processo.

 Quanto ao presente recurso

34      Antes de mais, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, qualquer circunstância relativa à admissibilidade do recurso de anulação interposto no Tribunal Geral é suscetível de constituir um fundamento de ordem pública que o Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar‑se no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal Geral, tem o dever de suscitar oficiosamente (Acórdãos de 23 de abril de 2009, Sahlstedt e o./Comissão, C‑362/06 P, EU:C:2009:243, n.os 21 a 23, e de 6 de julho de 2023, Julien/Conselho, C‑285/22 P, EU:C:2023:551, n.o 45 e jurisprudência referida).

35      Por força do artigo 19.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, aplicável ao Tribunal Geral em conformidade com o artigo 53.o, primeiro parágrafo, desse Estatuto, para poderem pleitear nas jurisdições da União, as pessoas coletivas, como a recorrente, só podem ser representadas por um advogado autorizado a exercer nos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro ou de outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3).

36      Assim, a representação de uma pessoa coletiva por um advogado e, em especial, a questão da regularidade do mandato conferido a um advogado para a interposição de um recurso no Tribunal Geral figuram entre as considerações de ordem pública que o Tribunal de Justiça, chamado a pronunciar‑se no âmbito de um recurso de uma decisão do Tribunal Geral, é obrigado a suscitar oficiosamente.

37      No que se refere ao mandato conferido a um advogado por essas pessoas, o artigo 51.o, n.o 3, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral prevê que, quando a parte que representam for uma pessoa coletiva de direito privado, os advogados devem apresentar na Secretaria um mandato outorgado por esta última. Ao contrário da versão deste regulamento aplicável antes de 1 de julho de 2015, esta disposição não prevê a obrigação de essa pessoa apresentar a prova de que o mandato outorgado ao seu advogado foi regularmente emitido por um representante qualificado para o efeito.

38      Todavia, o Tribunal de Justiça já declarou que a circunstância de esse artigo 51.o, n.o 3, não prever essa obrigação não dispensa o Tribunal Geral de verificar a regularidade do mandato em causa em caso de contestação. Com efeito, o facto de, na fase da apresentação do recurso, o recorrente não necessitar de fazer essa prova não afeta a sua obrigação de ter regularmente mandatado o seu advogado para poder agir em juízo. O aligeiramento dos requisitos de prova no momento da apresentação de um recurso é irrelevante sobre o requisito material segundo o qual os recorrentes devem estar devidamente representados pelos seus advogados. Assim, em caso de contestação da regularidade do mandato conferido por uma parte ao seu advogado, essa parte deve demonstrar a regularidade desse mandato (Acórdão de 21 de setembro de 2023, China Chamber of Commerce for Import and Export of Machinery and Electronic Products e o./Comissão, C‑478/21 P, EU:C:2023:685, n.o 93 e jurisprudência referida).

39      O Tribunal Geral também está obrigado a verificar oficiosamente a regularidade do mandato em questão e, nomeadamente, o facto de o mandato ter sido regularmente outorgado por um representante da pessoa coletiva em causa competente para esse efeito, quando tal mandato for manifestamente irregular ou na presença de elementos suscetíveis de pôr seriamente em dúvida a regularidade desse mandato.

40      Ora, no caso em apreço, várias circunstâncias deveriam ter levado o Tribunal Geral a duvidar seriamente da regularidade do mandato do advogado da recorrente.

41      Assim, primeiro, as circunstâncias factuais que levaram à interposição do recurso no Tribunal Geral e os termos do mandato de representação conferido pelo conselho de administração da recorrente ao advogado que interpôs este recurso eram suscetíveis de pôr seriamente em causa a regularidade deste mandato.

42      Com efeito, a nomeação da pessoa competente pela MFSA e o facto de essa pessoa competente ter nomeadamente por função assumir «a representação legal e judicial do banco, com exceção do banco e de qualquer outra pessoa» eram suscetíveis de suscitar dúvidas sérias quanto à capacidade do conselho de administração da recorrente de a envolver em litígios e de mandatar um advogado para esse efeito.

43      Os termos do mandato de representação conferido ao advogado também eram suscetíveis de reforçar tais dúvidas. Assim, os membros do conselho de administração da recorrente recordaram, nesse mandato, que a MFSA tinha nomeado a pessoa competente em 22 de março de 2018 e que lhe tinha atribuído determinadas competências e precisaram que «os órgãos jurisdicionais competentes deverão determinar quais as pessoas autorizadas a representar [a recorrente] no contexto em causa. Os membros do conselho de administração não assumem nenhuma responsabilidade pessoal». Estas menções indicam que os próprios signatários do mandato duvidam da sua capacidade para emitir esse mandato e constituem um convite claro e explícito para verificar se têm efetivamente essa capacidade.

44      Segundo, embora o recurso no Tribunal Geral tivesse por objeto a anulação da decisão de revogação da autorização, alguns argumentos apresentados pela recorrente em apoio desse recurso e, em especial, os invocados em apoio do décimo fundamento diziam respeito à representação da recorrente e visavam demonstrar que o BCE a tinha privado da possibilidade de beneficiar de uma representação efetiva.

45      Estes argumentos também eram suscetíveis de pôr seriamente em dúvida a regularidade do mandato de representação do advogado da recorrente no processo no Tribunal Geral. Com efeito, a circunstância de os honorários do advogado da recorrente não poderem ser pagos era suscetível de indicar que o órgão que o tinha mandatado não era competente para proceder a esse pagamento nem era competente para envolver a recorrente num litígio e para mandatar um advogado para esse efeito.

46      Nestas condições, independentemente do mérito destes argumentos, o Tribunal Geral devia exigir oficiosamente a prova de que o advogado representante da recorrente tinha sido regularmente mandatado e de que o mandato tinha sido outorgado por um representante com poderes para este efeito.

47      Resulta das considerações precedentes que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao não ter procedido oficiosamente à verificação da regularidade do mandato conferido pelo conselho de administração da recorrente ao seu advogado.

48      Este erro manifesto deve implicar a anulação do acórdão recorrido, sem que seja necessário pronunciar‑se sobre os fundamentos invocados pela recorrente.

49      Em conformidade com o artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal de Justiça pode, em caso de anulação da decisão do Tribunal Geral, decidir definitivamente o litígio, se este estiver em condições de ser julgado.

50      É o que sucede no presente processo. Com efeito, tendo as partes sido convidadas pelo Tribunal de Justiça a tomar posição sobre a admissibilidade do recurso no Tribunal Geral e, em especial, sobre a regularidade do mandato de representação conferido pelo conselho de administração da recorrente, o Tribunal de Justiça dispõe de todos os elementos necessários para se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso.

51      A recorrente alegou, baseando‑se no Acórdão do Qorti tal‑Appell (Kompetenza Inferjuri) [Tribunal de Recurso (Competência Inferior), Malta] de 5 de novembro de 2018 no processo n.o 6/2017 (Heikki Niemelä, e o./Maltese financial services authority), que, apesar da nomeação da pessoa competente, o seu conselho de administração ainda tinha o poder de a representar em juízo e, para esse efeito, de conferir um mandato a um advogado.

52      Assim, a designação da pessoa competente tem unicamente por efeito confiar os ativos e a gestão das atividades do banco a essa pessoa sem, no entanto, a investir da capacidade de representar esse banco num processo judicial destinado à impugnação de decisões vinculativas para o banco. A este respeito, é indiferente que tais decisões possam afetar também os ativos e as atividades cuja gestão é da competência da pessoa competente.

53      A recorrente sublinhou também que o Acórdão de 5 de novembro de 2019, BCE e o./Trasta Komercbanka e o. (C‑663/17 P, C‑665/17 P e C‑669/17 P, a seguir «Acórdão Trasta Komercbanka», EU:C:2019:923), e as Conclusões da advogada‑geral J. Kokott relativas a esse acórdão confirmam que a questão da representação é determinada principalmente pelo direito nacional e que a constatação do Tribunal Geral a este respeito é vinculativa, salvo se uma parte demonstrar que constitui uma desvirtuação dos factos. Ora, segundo o direito maltês, a representação do banco não faz parte das atribuições da pessoa competente, mesmo que esta seja responsável pelas atividades do banco ou dos seus ativos.

54      O BCE indicou que a representação de uma pessoa coletiva constituída em sociedade é regida pela lex incorporationis e que, no caso em apreço, o direito maltês conforme interpretado pelo Acórdão do Qorti tal‑Appell (Kompetenza Inferjuri) [Tribunal de Recurso (Competência Inferior)] de 5 de novembro de 2018 no processo n.o 6/2017 (Heikki Niemelä, e o./Maltese financial services authority), limita o poder da pessoa competente de representar a recorrente às circunstâncias específicas visadas pelo direito nacional com base nas quais foi nomeada, designadamente no que respeita às questões relativas aos ativos e à gestão das atividades e mantém, por este facto, direitos residuais no conselho de administração.

55      Observou também que o mandato conferido pelo conselho de administração da recorrente abrangia apenas a representação para as questões regulamentares sem mencionar expressamente a representação em juízo.

56      A este respeito, como o Tribunal de Justiça já salientou no n.o 35 do presente acórdão, por força do artigo 19.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, aplicável ao Tribunal Geral em conformidade com o artigo 53.o, primeiro parágrafo, deste estatuto, para poderem pleitear nas jurisdições da União, as pessoas coletivas, como a recorrente, só podem ser representadas por um advogado autorizado a exercer nos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro ou de outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu.

57      Tendo em conta esta necessidade de as pessoas coletivas serem representadas por um advogado autorizado a exercer nos órgãos jurisdicionais de um Estado‑Membro ou de outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, a admissibilidade de um recurso de anulação interposto por essa pessoa e com base no artigo 263.o TFUE está subordinada à prova de que a pessoa em causa tomou realmente a decisão de interpor recurso e de que os advogados que afirmam representá‑la foram efetivamente mandatados para esse fim (v., neste sentido, Acórdão Trasta Komercbanka, n.o 57 e jurisprudência referida).

58      É precisamente para garantir que é esse o caso que o artigo 51.o, n.o 3, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral exige aos advogados, quando a parte que representam seja uma pessoa coletiva de direito privado, que apresentem na Secretaria do Tribunal Geral um mandato outorgado por esta parte, uma vez que a não apresentação deste mandato pode determinar, em conformidade com o n.o 4 deste artigo, a inadmissibilidade formal da petição (Acórdão Trasta Komercbanka, n.o 57).

59      No que respeita a uma instituição de crédito constituída sob a forma de pessoa coletiva regida pelo direito de um Estado‑Membro, como a recorrente, na falta de regulamentação da União na matéria é em conformidade com esse direito que cabe determinar os órgãos dessa pessoa coletiva com competência para tomar as decisões referidas nos n.os 57 e 58 do presente acórdão (Acórdão Trasta Komercbanka, n.o 58).

60      No caso em apreço, não pode deixar de se observar que, tendo em conta o mandato da pessoa competente e nomeadamente o facto de que lhe competia «assumir todos os poderes, funções e deveres do banco relativamente a todos os bens, sejam eles exercidos pelo banco em assembleia geral ou pelo conselho de administração ou por qualquer outra pessoa, incluindo a representação legal e judicial do banco, com exceção do banco e de qualquer outra pessoa», o conselho de administração da recorrente já não estava habilitado a assegurar a sua representação e já não era competente para mandatar um advogado para esse efeito.

61      A competência do conselho de administração da recorrente para a representar em juízo e mandatar um advogado para esse efeito não pode, além disso, basear‑se no Acórdão Trasta Komercbanka.

62      Com efeito, este acórdão tem por objeto a obrigação de um órgão jurisdicional da União não ter em conta a revogação do mandato conferido ao representante de uma parte, quando esta revogação viola o direito dessa parte a uma tutela jurisdicional efetiva. Todavia, tal obrigação só se impõe a um órgão jurisdicional da União em determinadas circunstâncias específicas.

63      Como resulta dos n.os 60 a 62 do Acórdão Trasta Komercbanka, o Tribunal de Justiça considerou que a violação do direito a um recurso efetivo da instituição de crédito Trasta Komercbanka resultava do facto de o liquidatário nomeado na sequência da revogação da autorização e do processo de liquidação desta instituição estar em situação de conflito de interesses. Salientou que o liquidatário, responsável por proceder à liquidação definitiva da referida instituição, tinha sido designado sob proposta da autoridade nacional competente, a qual podia, a qualquer momento, pedir a sua revogação. Por conseguinte, considerou que existia o risco de este liquidatário se abster de pôr em causa, no âmbito de um processo judicial, a decisão de revogação da autorização da mesma instituição, que tinha sido adotada pelo BCE sob proposta desta autoridade e que tinha conduzido ao seu processo de liquidação. O Tribunal de Justiça deduziu daí, no n.o 78 do referido acórdão, que a revogação, pelo liquidatário, do mandato conferido pelos antigos órgãos de administração da Trasta Komercbanka ao advogado que interpôs recurso desta decisão violava o direito desta instituição a uma tutela jurisdicional efetiva e que, ao ter em conta essa revogação, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito.

64      No caso em apreço, o mandato da pessoa competente nomeada pela MFSA difere significativamente do mandato do liquidatário conforme descrito no n.o 72 do Acórdão Trasta Komercbanka, uma vez que este último tinha por único objetivo recuperar os créditos, alienar os ativos e satisfazer os créditos dos credores com vista à cessação total da atividade da instituição de crédito em causa.

65      Além disso, a recorrente não apresentou elementos relativos ao mandato da pessoa competente ou às condições em que esse mandato é exercido que indiquem que esta pessoa se encontrava, de direito ou de facto, numa situação de conflito de interesses. Em especial, não resulta de modo algum dos termos do referido mandato, recordados no n.o 60 do presente acórdão, que a pessoa competente não representa os interesses do banco.

66      Do mesmo modo, a circunstância de a pessoa competente ter sido nomeada pela autoridade nacional competente que submeteu ao BCE a proposta de revogação da autorização não é suficiente, por si só, para demonstrar a existência de um conflito de interesses.

67      Quanto ao alcance do acórdão referido no n.o 51 do presente acórdão, por um lado, há que salientar que este não dizia respeito à recorrente, mas a outra instituição de crédito maltesa em relação à qual a MFSA tinha nomeado uma pessoa competente.

68      Por outro lado, o Qorti tal‑Appell (Kompetenza Inferjuri) [Tribunal de Recurso (Competência Inferior)] confirmou, nesse acórdão, que os administradores de uma instituição de crédito não estão privados de todos os seus poderes devido à nomeação de uma pessoa competente. Continuam assim habilitados a pedir, em nome da instituição de crédito, a revogação de um determinado número de decisões de supervisão prudencial adotadas pela MFSA enquanto autoridade nacional competente e, nomeadamente, da decisão de nomeação de uma pessoa competente.

69      No entanto, não resulta desse acórdão que, quando uma pessoa competente tenha sido designada e lhe tenha sido conferido um mandato de representação nomeadamente judicial, os administradores de uma instituição de crédito continuam a ser competentes para mandatar um advogado para representar esta instituição em processos relativos a decisões adotadas pelo BCE ou para contestar decisões desta instituição.

70      Além disso, a representação em juízo no âmbito da impugnação de uma revogação da autorização pode estar abrangida pelas atribuições da pessoa competente, uma vez que diz necessariamente respeito aos ativos do banco.

71      Por último, é indiferente que a recorrente seja a destinatária da decisão controvertida.

72      Com efeito, isso não significa que o conselho de administração da recorrente, na sequência da nomeação da pessoa competente, continuava habilitado para tomar a decisão de interpor um recurso numa jurisdição da União em nome da recorrente e competente para mandatar um advogado para esse efeito.

73      Tendo em conta todas as considerações que precedem, há que julgar inadmissível o recurso interposto em primeira instância.

 Quanto às despesas

74      Em conformidade com o disposto no artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se o recurso for julgado procedente e o Tribunal de Justiça decidir definitivamente o litígio, decidirá igualmente sobre as despesas.

75      O artigo 138.o, n.o 1, deste regulamento, aplicável aos recursos de decisões do Tribunal Geral por força do artigo 184.o, n.o 1, do mesmo, dispõe que a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

76      No caso em apreço, tendo a Pilatus Bank sido vencida e tendo o BCE pedido, tanto no Tribunal de Justiça como no Tribunal Geral, a condenação da Pilatus Bank nas despesas, há que condenar esta última a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas do BCE relativas ao processo em primeira instância e ao presente recurso.

77      Ao abrigo do artigo 140, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, aplicável aos recursos de decisões do Tribunal Geral por força do seu artigo 184.o, n.o 1, os Estados‑Membros e as instituições que intervenham no litígio devem suportar as suas próprias despesas. Por conseguinte, a Comissão, interveniente em primeira instância, suportará as suas próprias despesas relativas ao processo em primeira instância e ao presente recurso.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

1)      É anulado o Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 2 de fevereiro de 2022, Pilatus Bank e Pilatus Holding/BCE (T27/19, EU:T:2022:46).

2)      O recurso interposto no processo T27/19 é julgado inadmissível.

3)      A Pilatus Bank plc é condenada a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas pelo Banco Central Europeu (BCE) relativas tanto ao processo em primeira instância como ao presente recurso.

4)      A Comissão Europeia suportará as suas próprias despesas relativas ao processo em primeira instância e ao presente recurso.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.