Language of document : ECLI:EU:C:2022:491

Processo C817/19

Ligue des droits humains

contra

Conseil des ministres

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica)]

 Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 21 de junho de 2022

«Reenvio prejudicial — Tratamento de dados pessoais — Dados dos registos de identificação dos passageiros (PNR) — Regulamento (UE) 2016/679 — Artigo 2.o, n.° 2, alínea d) — Âmbito de aplicação — Diretiva (UE) 2016/681 — Utilização dos dados PNR dos passageiros dos voos operados entre a União Europeia e países terceiros — Faculdade de incluir os dados dos passageiros dos voos operados na União — Tratamento automatizado desses dados — Prazo de conservação: — Luta contra as infrações terroristas e criminalidade grave — Validade — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 7.°, 8.°, 21.° e 52.°, n.° 1 — Legislação nacional que estende a aplicação do sistema PNR a outros transportes efetuados na União — Liberdade de circulação na União — Carta dos Direitos Fundamentais — Artigo 45.°»

1.        Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais — Regulamento 2016/679 — Âmbito de aplicação — Tratamento de dados pessoais previsto numa legislação nacional que transpõe as Diretivas 2004/82, 2010/65 e 2016/681 — Inclusão — Limitações

(Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 2.°, n.° 2, alínea d), e 23.°; Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho 2010/65, 2016/680 e 2016/681; Diretiva 2004/82 do Conselho)

(cf. n.os 67, 68, 73, 74, 80, 83, 84, disp. 1)

2.        Cooperação policial — Cooperação judiciária em matéria penal — Utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros (PNR) para efeitos de prevenção, deteção, investigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave — Diretiva 2016/681 — Dados PNR — Alcance — Passageiros aéreos e voos em causa — Tratamento automatizado desses dados — Violação dos direitos fundamentais ao respeito da vida privada e à proteção dos dados pessoais —Inexistência

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 8,.°, 21.° e 52.°, n.° 1; Diretiva 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 1.°, n.o 2, 2.°, 3.°, pontos 2, 4, 8 e 9, 6.° e 12.° e anexos I e II)

(cf. n.os 94‑97, 111, 122, 123, 129, 131‑140, 152, 157, 162, 169‑175, 184, 188, 197, 202, 213, 218‑220, 223, 225‑228, disp. 2)

3.        Direitos fundamentais — Respeito pela vida privada — Proteção de dados pessoais — Limitações — Requisitos

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 8.°, e 52.°, n.° 1)

(cf. n.os 115‑118)

4.        Cooperação policial — Cooperação judiciária em matéria penal — Utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros (PNR) para efeitos de prevenção, deteção, investigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave — Diretiva 2016/681 — Tratamento dos dados PNR — Fins — Tratamento para fins diferentes dos expressamente previstos — Inadmissibilidade

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 8.° e 52.°, n.° 1; Diretiva 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 1.°, n.° 2, e 6.°)

(cf. n.os 233, 235‑237, 288, 289, disp. 3)

5.        Cooperação policial — Cooperação judiciária em matéria penal — Utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros (PNR) para efeitos de prevenção, deteção, investigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave — Diretiva 2016/681 — Comunicação dos dados PNR além dos seis meses subsequentes à sua transferência pelas transportadoras aéreas — Requisito — Aprovação por uma autoridade nacional competente — Conceito — Unidade de informações de passageiros — Exclusão

[Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.° e 8.°; Diretiva 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 4.°, n.os 1 a 3, e 12.°, n.° 3, alínea b)]

(cf. n.os 244, 245, 247, disp. 4)

6.        Cooperação policial — Cooperação judiciária em matéria penal — Utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros (PNR) para efeitos de prevenção, deteção, investigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave — Diretiva 2016/681 — Período de conservação dos dados PNR — Prazo geral de conservação de cinco anos, aplicável indiferentemente a todos os passageiros aéreos — Inadmissibilidade

(Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 8.°, 45.° e 52.°, n.° 1; Diretiva 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 12.°)

(cf. n.os 251, 255‑259, 262, disp. 5)

7.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração — Obrigação de comunicação de dados dos passageiros pelas transportadoras — Diretiva 2004/82 — Âmbito de aplicação — Voos intraUE — Exclusão

(Diretiva 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 2.° e 23.°; Diretiva 2004/82 do Conselho, artigos 2.°, n.° 4, 3.°, n.os 1 e 2, e 1.°)

(cf. n.os 266‑269, disp. 6)

8.        Cooperação policial — Cooperação judiciária em matéria penal — Utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros (PNR) para efeitos de prevenção, deteção, investigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave — Diretiva 2016/681 — Aplicação da diretiva aos voos intraUE — Aplicação a todos os voos intraUE e aos transportes efetuados por outros meios dentro da União não havendo uma ameaça terrorista real e atual ou previsível — Inadmissibilidade — Aplicação limitada — Admissibilidade — Requisitos

(Artigo 3.°, n.° 2, TUE, artigo 67.°, n.° 2, TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 8.°, 45.° e 52.°, n.° 1; Diretiva 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho)

(cf. n.os 277‑282, 285, 290, 291, disp. 7)

9.        Direito da União Europeia — Primado — Diretiva 2016/681 — Anulação, pelo juiz nacional, de disposições nacionais incompatíveis com essa diretiva — Possibilidade de manter os efeitos das disposições em causa — Inexistência — Admissibilidade dos elementos de prova obtidos ao abrigo dessas disposições — Aplicação do direito nacional — Limitações — Observância dos princípios da equivalência e da efetividade

(Artigo 3.°, n.° 2, TUE, artigo 67.°, n.° 2, TFUE; Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, artigos 7.°, 8.°, 45.° e 52.°, n.° 1; Diretiva 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho)

(cf. n.os 293‑298, disp. 8)

Resumo

Os dados PNR (Passenger Name Record) são informações de reserva armazenadas pelas transportadoras aéreas nos seus sistemas de reserva e de controlo das partidas. A Diretiva PNR (1) obriga essas transportadoras a transferir os dados de qualquer passageiro que apanhe um voo extra‑UE, operado entre um país terceiro e a União Europeia, para a Unidade de informações de passageiros (a seguir «UIP») do Estado‑Membro de destino ou de partida do voo em causa, a fim de lutar contra o terrorismo e a criminalidade grave. Com efeito, os dados PNR assim transferidos são objeto de uma avaliação prévia pela UIP (2) e são, em seguida, conservados com vista a uma eventual avaliação posterior pelas autoridades competentes do Estado‑Membro em causa ou pelas de outro Estado‑Membro. Os Estados‑Membros podem decidir aplicar a diretiva igualmente aos voos intra‑UE (3).

A Ligue des droits humains interpôs na Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica) um recurso de anulação da loi du 25 décembre 2016 (Lei de 25 de dezembro de 2016)(4), que transpôs para o direito belga tanto a Diretiva PNR como a Diretiva API (5). Segundo a recorrente, esta lei viola o direito ao respeito pela vida privada e à proteção dos dados pessoais. A mesma critica, por um lado, o caráter muito amplo dos dados PNR e, por outro, o caráter geral da recolha, da transferência e do tratamento desses dados. A lei viola igualmente a livre circulação de pessoas, na medida em que restabelece indiretamente controlos nas fronteiras ao alargar o sistema PNR aos voos intra‑UE e aos transportes efetuados por outros meios no interior da União.

Neste contexto, a Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional) submeteu ao Tribunal de Justiça dez questões prejudiciais relativas, nomeadamente, à validade e à interpretação da Diretiva PNR, bem como à aplicabilidade do RGPD (6).

Estas questões levam o Tribunal de Justiça a debruçar‑se uma vez mais sobre o tratamento dos dados PNR à luz dos direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e à proteção dos dados pessoais (7), consagrados pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (8). No seu acórdão, proferido pela Grande Secção, o Tribunal de Justiça confirma a validade da Diretiva PNR, na medida em que esta pode ser interpretada em conformidade com a Carta e contém precisões quanto à interpretação de certas das suas disposições (9).

Apreciação do Tribunal de Justiça

Após precisar quais são, entre os tratamentos de dados pessoais previstos por uma legislação nacional como a que está em causa, que tem por objetivo transpor simultaneamente a Diretiva API e a Diretiva PNR, aqueles a que se aplicam as regras gerais do RGPD (10), o Tribunal de Justiça analisa a validade da diretiva PNR.

Quanto à validade da diretiva PNR

No seu acórdão, o Tribunal de Justiça declara que, uma vez que a interpretação feita pelo Tribunal das disposições da Diretiva PNR à luz dos direitos fundamentais consagrados nos artigos 7.°, 8.°, 21.° e 52.°, n.° 1, da Carta (11) assegura a conformidade desta diretiva com esses artigos, a análise das questões submetidas não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade da mencionada diretiva.

A título preliminar, recorda que um ato da União deve ser interpretado, tanto quanto possível, de modo a não pôr em causa a sua validade e em conformidade com o direito primário no seu todo e, nomeadamente, com as disposições da Carta, devendo assim os Estados‑Membros ter o cuidado de não se basear numa interpretação do mesmo que conflitue com os direitos fundamentais protegidos pelo ordenamento jurídico da União ou com outros princípios gerais reconhecidos por este ordenamento jurídico. No que diz respeito à Diretiva PNR, o Tribunal esclarece que um número significativo dos seus considerandos e disposições impõem essa interpretação conforme, acentuando a importância dada pelo legislador da União, quando se refere a um elevado nível de proteção de dados, ao respeito integral pelos direitos fundamentais consagrados na Carta.

O Tribunal declara que a Diretiva PNR comporta ingerências de uma certa gravidade nos direitos consagrados nos artigos 7.° e 8.° da Carta, na medida em que, nomeadamente, prevê a instituição de um regime de supervisão contínuo, não direcionado e sistemático que inclui a avaliação automatizada de dados pessoais de todas as pessoas que utilizam os serviços de transporte aéreo. Recorda que a possibilidade de os Estados‑Membros justificarem esse tipo de ingerência deve ser apreciado mensurando a sua gravidade e verificando que a importância do objetivo de interesse geral prosseguido se relaciona com essa gravidade.

O Tribunal conclui que a transferência, o tratamento e a conservação dos dados PNR previstos nessa diretiva podem ser considerados limitados ao estritamente necessário para efeitos da luta contra o terrorismo e a criminalidade grave, desde que os poderes previstos na referida diretiva sejam objeto de uma interpretação restritiva. A este respeito, o acórdão hoje proferido esclarece nomeadamente que:

–        o sistema estabelecido pela Diretiva PNR deve abranger apenas as informações claramente identificáveis e circunscritas às rubricas que figuram no seu anexo I, as quais se relacionam com o voo efetuado e o passageiro em causa, o que implica, para algumas das rubricas que figuram nesse anexo, que só estão abrangidas as informações aí expressamente previstas (12).

–        A aplicação do sistema estabelecido pela Diretiva PNR deve limitar‑se às infrações terroristas e apenas à criminalidade grave que apresente um nexo objetivo, pelo menos indireto, com o transporte aéreo de passageiros. No que se refere a essa criminalidade, a aplicação deste sistema não pode ser estendida às infrações que, embora preencham o critério previsto nesta diretiva relativamente ao limiar de gravidade e estejam, nomeadamente, previstas no seu anexo II, pertençam à criminalidade comum tendo em conta as especificidades do sistema penal nacional.

–        A eventual extensão da aplicação da Diretiva PNR a todos ou a parte dos voos intra‑UE, que um Estado‑Membro pode decidir fazendo uso da faculdade prevista nesta diretiva, deve limitar‑se ao estritamente necessário. Para o efeito, essa extensão deve poder ser objeto de uma fiscalização efetiva por um órgão jurisdicional ou por uma entidade administrativa independente, cuja decisão é dotada de efeito vinculativo. A este respeito, o Tribunal especifica que:

–        apenas na situação em que o referido Estado‑Membro constate a existência de circunstâncias suficientemente concretas para considerar que está perante uma ameaça terrorista real e atual ou previsível, a aplicação desta diretiva a todos os voos intra‑UE com proveniência de ou destino ao referido Estado‑Membro, por um período limitado ao estritamente necessário mas renovável, não excede os limites do estritamente necessário (13);

–        não havendo essa ameaça terrorista, a aplicação da referida diretiva não pode estender‑se a todos os voos intra‑UE, mas deve limitar‑se aos voos intra‑UE relativos, nomeadamente, a certas ligações aéreas ou planos de viagens ou ainda a certos aeroportos para os quais existem, segundo a apreciação do Estado‑Membro em causa, indicações suscetíveis de justificar essa aplicação. O caráter estritamente necessário dessa aplicação aos voos intra‑UE assim selecionados deve ser regularmente reexaminado, em função da evolução das condições que justificaram a sua seleção.

–        Para efeitos da avaliação prévia dos dados PNR, que tem por objetivo identificar as pessoas relativamente às quais é exigido um exame mais aprofundado antes da sua chegada ou partida e que, num primeiro momento, é efetuada através de tratamentos automatizados, a unidade de informações de passageiros (UIP) pode apenas, por um lado, confrontar esses dados somente com as bases de dados relativas a pessoas ou a objetos procurados ou que foram sinalizados (14). Essas bases de dados devem ser não discriminatórias e ser usadas pelas autoridades competentes em relação à luta contra o terrorismo e a criminalidade grave que apresentem um nexo objetivo, pelo menos indireto, com o transporte aéreo de passageiros. Por outro lado, no que se refere à avaliação prévia à luz dos critérios preestabelecidos, a UIP não pode utilizar tecnologias de inteligência artificial no âmbito de sistemas de autoaprendizagem («machine learning»), suscetíveis de modificar, sem intervenção ou controlo humano, o processo de avaliação e, em especial, os critérios de avaliação em que se baseiam o resultado da aplicação deste processo e a ponderação dos mencionados critérios. Esses critérios devem ser determinados de forma que a sua aplicação vise, especificamente, os indivíduos relativamente aos quais possa haver uma suspeita razoável de participação em infrações terroristas ou em criminalidade grave e de modo a ter em conta os elementos «incriminatórios» e «ilibatórios», sem que simultaneamente dê lugar a discriminações diretas ou indiretas (15).

–        Tendo em conta a taxa de erro inerente a esses tratamentos automatizados de dados PNR e a quantidade bastante significativa de resultados «falsos positivos», obtidos na sequência da sua aplicação em 2018 e 2019, a aptidão do sistema estabelecido pela Diretiva PNR para realizar os objetivos prosseguidos depende essencialmente do bom funcionamento da verificação dos resultados positivos, obtidos mediante esses tratamentos, que a UIP efetua, num segundo momento, através de meios não automatizados. A este respeito, os Estados‑Membros devem prever regras claras e precisas de forma a orientar e enquadrar a análise efetuada pelos agentes da UIP responsáveis por esse reexame individual para efeitos de assegurar o respeito integral dos direitos fundamentais consagrados nos artigos 7.°, 8.° e 21.° da Carta e, nomeadamente, garantir uma prática administrativa coerente no seio da UIP que respeite o princípio da não‑discriminação. Em especial, devem assegurar que a UIP estabelece critérios de reexame objetivos que permitam aos seus agentes verificar, por um lado, se e em que medida uma concordância positiva (hit) diz efetivamente respeito a um indivíduo suscetível de estar implicado em infrações terroristas ou na criminalidade grave e, por outro lado, o caráter não discriminatório dos tratamentos automatizados. Neste contexto, o Tribunal sublinha ainda que as autoridades competentes devem garantir que o interessado é capaz de compreender o funcionamento dos critérios de avaliação preestabelecidos e os programas que aplicam esses critérios, de forma a poder decidir, com total conhecimento de causa, se exerce ou não o seu direito à interposição de uma ação judicial. Do mesmo modo, no âmbito dessa ação, o juiz responsável pelo controlo da legalidade da decisão adotada pelas autoridades competentes e, salvo os casos de ameaças à segurança do Estado, o próprio interessado, devem poder tomar conhecimento tanto do conjunto dos fundamentos como dos elementos de prova com base nos quais essa decisão foi tomada, incluindo os critérios de avaliação preestabelecidos e o funcionamento dos programas que aplicam esses critérios.

–        A comunicação e a avaliação ulteriores dos dados PNR, ou seja, após a chegada ou a partida da pessoa em causa, só podem ser efetuadas com base em circunstâncias novas e elementos objetivos suscetíveis de fundar uma suspeita razoável de implicação dessa pessoa em criminalidade grave que apresente um nexo objetivo, pelo menos indireto, com o transporte aéreo de passageiros, ou que permitam considerar que esses dados poderiam, num caso concreto, dar uma contribuição efetiva à luta contra as infrações terroristas que apresentem esse nexo. A comunicação dos dados PNR para efeitos dessa avaliação ulterior deve, em princípio, salvo em caso de urgência devidamente justificado, ser subordinada a um controlo prévio efetuado quer por um órgão jurisdicional, quer por uma autoridade administrativa independente, mediante pedido fundamentado das autoridades competentes, independentemente da questão de saber se esse pedido foi apresentado antes ou depois de decorrido o prazo de seis meses subsequente à transferência desses dados para a UIP (16).

Quanto à interpretação da diretiva

Após ter declarado a validade da Diretiva PNR, o Tribunal de Justiça fornece esclarecimentos adicionais quanto à interpretação desta diretiva. Em primeiro lugar, salienta que a diretiva enumera exaustivamente os objetivos prosseguidos pelo tratamento dos dados PNR. Por conseguinte, esta diretiva opõe‑se a uma legislação nacional que autoriza o tratamento de dados PNR para fins diferentes da luta contra as infrações terroristas e a criminalidade grave. Assim, uma legislação nacional que admite, além disso, como finalidade do tratamento dos dados PNR, o acompanhamento das atividades visadas pelos serviços de informação e de segurança é suscetível de violar o caráter exaustivo dessa enumeração. Do mesmo modo, o sistema instituído pela Diretiva PNR não pode ser previsto para efeitos da melhoria dos controlos nas fronteiras e da luta contra a imigração clandestina (17). Daqui resulta igualmente que os dados PNR não podem ser conservados numa única base de dados que possa ser consultada com vista à prossecução tanto das finalidades da Diretiva PNR como de outras finalidades.

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça explicita o conceito de autoridade nacional independente, competente para analisar se os requisitos de comunicação dos dados PNR, para efeitos da sua avaliação posterior, estão preenchidos e para aprovar essa comunicação. Em especial, a autoridade criada como UIP não pode ser qualificada como tal, uma vez que não tem a qualidade de terceiro em relação à autoridade que pede o acesso aos dados. Com efeito, uma vez que os membros do seu pessoal podem ser agentes destacados pelas autoridades habilitadas a pedir esse acesso, o UIP surge necessariamente ligada a essas autoridades. Por conseguinte, a diretiva PNR opõe‑se a uma legislação nacional segundo a qual a autoridade criada como UIP tem igualmente a qualidade de autoridade nacional competente, habilitada a aprovar a comunicação dos dados PNR decorrido o prazo de seis meses subsequente à transferência desses dados para a UIP.

Em terceiro lugar, no que diz respeito ao prazo de conservação dos dados PNR, o Tribunal declara que o artigo 12.° da Diretiva PNR, lido à luz dos artigos 7.°, 8.° e 52.°, n.° 1, da Carta, se opõe a uma legislação nacional que prevê um prazo geral de conservação desses dados de cinco anos, aplicável indiferentemente a todos os passageiros aéreos.

Com efeito, segundo Tribunal de Justiça, após o decurso do prazo de conservação inicial de seis meses, a conservação dos dados PNR não se afigura limitada ao estritamente necessário no que respeita aos passageiros aéreos relativamente aos quais, nem as eventuais verificações efetuadas durante o prazo de conservação inicial de seis meses, nem qualquer outra circunstância, revelaram a existência de elementos objetivos — como o facto de os dados PNR dos passageiros em causa terem dado lugar a uma concordância positiva verificada no âmbito da avaliação prévia — suscetíveis estabelecer um risco em matéria de infrações terroristas ou de criminalidade grave que apresentem um nexo objetivo, pelo menos indireto, com a viagem aérea efetuada por esses passageiros. Em contrapartida, considera que, durante o período inicial de seis meses, a conservação dos dados PNR de todos os passageiros aéreos sujeitos ao sistema instituído por essa diretiva não parece, em princípio, exceder os limites do estritamente necessário.

Em quarto lugar, o Tribunal de Justiça fornece indicações relativas a uma eventual aplicação da Diretiva PNR, para efeitos da luta contra as infrações terroristas e a criminalidade grave, a outros modos de transporte que encaminhem passageiros para a União. Ora, a diretiva, lida à luz do artigo 3.°, n.° 2, TUE, do artigo 67.°, n.° 2, TFUE e do artigo 45.° da Carta, opõe‑se a um sistema de transferência e de tratamento dos dados PNR de todos os transportes efetuados por outros meios no interior da União, se o Estado‑Membro em causa não estiver perante uma ameaça terrorista real e atual ou previsível. Com efeito, nessa situação, como nos caso dos voos intra‑UE, a aplicação do sistema estabelecido pela Diretiva PNR deve limitar‑se aos dados PNR dos transportes relativos, nomeadamente, a certas ligações ou a certos planos de viagem ou ainda a certas gares ou portos marítimos, relativamente aos quais existem indicações suscetíveis de justificar essa aplicação. Compete ao Estado‑Membro em causa selecionar os transportes para os quais tais indicações existem e reexaminar regularmente essa aplicação em função da evolução das condições que justificaram a sua seleção.


1      Diretiva (UE) 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros (PNR) para efeitos de prevenção, deteção, investigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave (JO 2016, L 119, p. 132) (a seguir «Diretiva PNR»).


2      Esta avaliação prévia tem por objetivo identificar as pessoas relativamente às quais é exigido um exame mais aprofundado pelas autoridades competentes, tendo em conta o facto de que essas pessoas podem estar implicadas em infrações terroristas ou em criminalidade grave. A mesma é efetuada de forma sistemática e através de meios automatizados, confrontando os dados PNR com as bases de dados «úteis» ou tratando‑os à luz dos critérios preestabelecidos no artigo 6.°, n.° 2, alínea a), e n.° 3, da Diretiva PNR.


3      Fazendo uso da possibilidade prevista no artigo 2.° da Diretiva PNR.


4      Lei de 25 de dezembro de 2016 relativa ao tratamento dos dados dos passageiros (Moniteur belge de 25 de janeiro de 2017, p. 12905).


5      Diretiva 2004/82/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à obrigação de comunicação de dados dos passageiros pelas transportadoras (JO 2004, L 261, p. 24) (a seguir «Diretiva API»). Esta diretiva regula a transmissão, pelas transportadoras aéreas às autoridades nacionais competentes, de informações prévias sobre passageiros, a fim de melhorar os controlos nas fronteiras e combater a imigração ilegal.


6      Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (JO 2016, L 119, p. 1, a seguir «RGPD»).


7      A seguir «direitos fundamentais consagrados nos artigos 7.° e 8.° da Carta». O Tribunal de Justiça já examinou a compatibilidade, com estes direitos, do sistema de recolha e tratamento dos dados PNR previsto no Projeto de acordo entre o Canadá e a União Europeia sobre a transferência e o tratamento dos dados dos registos de identificação dos passageiros [Parecer 1/15 (Acordo PNR UE‑Canadá), de 26 de julho de 2017 (EU:C:2017:592)].


8      A seguir «Carta».


9      Em especial, o artigo 2.° («Aplicação da [diretiva] aos voos intra‑UE »), o artigo 6.° («Tratamento dos dados PNR»), e o artigo 12.° («Prazo de conservação e anonimização dos dados»), da Diretiva PNR.


10      O Tribunal de Justiça precisa que o RGPD é aplicável ao tratamento de dados pessoais previsto por essa legislação no que respeita, por um lado, ao tratamento de dados efetuado por operadores privados e, por outro, ao tratamento de dados efetuado por autoridades públicas abrangidos, única ou igualmente, pela Diretiva API. Em contrapartida, o RGPD não é aplicável ao tratamento previsto por uma legislação não abrangida apenas pela Diretiva PNR, que são efetuados pela UIP ou pelas autoridades competentes a fim de lutar contra as infrações terroristas e a criminalidade grave.


11      Nos termos desta disposição, qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Além disso, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.


12      Assim, nomeadamente, «as informações sobre as modalidades de pagamento» (rubrica 6 do anexo) devem limitar‑se às modalidades de pagamento e à faturação do bilhete de avião, com exclusão de qualquer outra informação sem relação direta com o voo, e as «observações gerais» (rubrica 12) só podem ser relativas às informações expressamente elencadas nessa rubrica, relativas aos passageiros menores.


13      Com efeito, a existência de tal ameaça é, por si só, suscetível de estabelecer uma relação entre a transferência e o tratamento dos dados em causa e a luta contra o terrorismo. Por conseguinte, prever a aplicação da diretiva PNR a todos os voos intra‑UE com proveniência ou destino ao Estado‑Membro em causa, por um período limitado, não excede os limites do estritamente necessário, devendo a decisão que prevê essa aplicação poder ser controlada por um órgão jurisdicional ou por uma entidade administrativa independente.


14      Isto é, bases de dados relativas a pessoas ou a objetos procurados ou alvo de um alerta, na aceção do artigo 6.°, n.° 3, alínea a), da diretiva PNR. Em contrapartida, análises a partir de bases de dados diversas podem assumir a forma de uma exploração de dados (data mining) e podem dar lugar a uma utilização desproporcionada desses dados, fornecendo os meios para estabelecer o perfil preciso das pessoas em causa pela simples razão de que estas têm a intenção de viajar de avião.


15      Os critérios preestabelecidos devem ser orientados em função dos objetivos, proporcionados e específicos, e ser revistos regularmente (artigo 6.°, n.° 4, da Diretiva PNR). A avaliação prévia de acordo com critérios preestabelecidos deve ser realizada de forma não discriminatória. Segundo o artigo 6.°, n.° 4, quarto período, esses critérios não podem, em caso algum, basear‑se na raça ou na origem étnica de uma pessoa, nas suas opiniões políticas, religião ou convicções filosóficas, na sua filiação sindical, na sua saúde, vida ou orientação sexual.


16      Nos termos do artigo 12.°, n.os 1 e 3, da Diretiva PNR, esse controlo só está expressamente previsto para os pedidos de comunicação de dados PNR apresentados depois de decorrido o prazo de seis meses subsequente à transferência desses dados para a UIP. 


17      Ou seja, o objetivo da Diretiva API.