Language of document : ECLI:EU:C:2016:782

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 19 de outubro de 2016 (1)

Processo C‑452/16 PPU

Openbaar Ministerie

contra

Krzysztof Marek Poltorak

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos)]

«Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu — Conceitos de ‘autoridade judiciária’ e de ‘decisão judiciária’»





1.        No sistema estabelecido pela Decisão‑Quadro 2002/584/JAI (2), que substituiu o tradicional mecanismo de extradição, o papel principal pertence às autoridades judiciais dos Estados‑Membros. Em particular, a decisão‑quadro diz respeito tanto à autoridade judiciária de emissão, que emite o mandado de detenção europeu (3), quanto à de execução, no Estado de receção, que lhe há de dar o devido cumprimento.

2.        Até agora, o Tribunal de Justiça não tinha sido chamado a interpretar os conceitos de «autoridade judiciária» (na aceção do artigo 6.° da decisão‑quadro) e de «decisão judiciária» (na aceção do artigo 1.° do mesmo texto normativo). O rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos) submete ao Tribunal de Justiça neste reenvio quatro questões em que, em síntese, pede que se esclareça o sentido daquelas expressões, para dar seguimento ou, se for o caso, anular um MDE emitido por uma autoridade policial sueca, tendo em vista a execução de uma sentença transitada em julgado.

3.        Paralelamente a este processo, o mesmo tribunal a quo submeteu outras questões prejudiciais sobre o conceito de «decisão judiciária», que contém um dos requisitos exigidos pelo artigo 8.° da decisão‑quadro, embora não tenha por objeto o MDE, mas o mandado de detenção nacional que o deve preceder. Apresento também nesta data as conclusões relativas a esse outro processo (4).

I –    Quadro jurídico

A –    Direito da União

1.      Tratado da União Europeia

4.        Segundo o artigo 6.° TUE:

«1.      A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [a seguir ‘Carta’], e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.

De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados.

Os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem ser interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do [t]ítulo VII da Carta que regem a sua interpretação e aplicação e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência, que indicam as fontes dessas disposições.

2.      A União adere à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais [assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir ‘CEDH’)]. Essa adesão não altera as competências da União, tal como definidas nos Tratados.

3.      Do direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a [CEDH] e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros.»

2.      Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

5.        Nos termos do artigo 47.° da Carta, sob a epígrafe «Direito à ação e a um tribunal imparcial»:

«Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo.

Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.

[…]»

3.      Decisão‑Quadro 2002/584/JAI

6.        O considerando 5 da decisão‑quadro tem a seguinte redação:

«O objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados‑Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. […]»

7.        Segundo o seu considerando 6:

«O mandado de detenção europeu previsto na presente decisão‑quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de ‘pedra angular’ da cooperação judiciária.»

8.        Além disso, o considerando 10 salienta:

«O mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.° 1 do artigo 6.° do Tratado da União Europeia, verificada pelo Conselho nos termos do n.° 1 do artigo 7.° do mesmo Tratado e com as consequências previstas no n.° 2 do mesmo artigo.»

9.        Nos termos do artigo 1.° da decisão‑quadro, sob a epígrafe «Definição de mandado de detenção europeu e obrigação de o executar»:

«1.      O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.      Os Estados‑Membros executam todo e qualquer mandado de detenção europeu com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.      A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.° do Tratado da União Europeia.»

10.      O artigo 6.° da decisão‑quadro, sob a epígrafe «Determinação das autoridades judiciárias competentes», prevê:

«1.      A autoridade judiciária de emissão é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de emissão competente para emitir um mandado de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

2.      A autoridade judiciária de execução é a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução competente para executar o manda[d]o de detenção europeu nos termos do direito desse Estado.

3.      Cada Estado‑Membro informa o Secretariado‑Geral do Conselho da autoridade judiciária competente nos termos do respetivo direito nacional.»

11.      Nos termos do artigo 7.° da decisão‑quadro, relativo à autoridade central:

«1.      Cada Estado‑Membro pode designar uma autoridade central ou, quando o seu ordenamento jurídico o previr, várias autoridades centrais, para assistir as autoridades judiciárias competentes.

2.      Um Estado‑Membro pode, se a organização do seu sistema judiciário interno o exigir, confiar à sua autoridade central ou às suas autoridades centrais a transmissão e a receção administrativas dos mandados de detenção europeus bem como de qualquer outra correspondência oficial que lhes diga respeito.

[…]»

12.      No que se refere às relações com outros instrumentos jurídicos, o artigo 31.°, n.° 1, alínea a), da decisão‑quadro dispõe:

«1.      Sem prejuízo da sua aplicação nas relações entre Estados‑Membros e Estados terceiros, as disposições constantes da presente decisão‑quadro substituem, a partir de 1 de janeiro de 2004, as disposições correspondentes das convenções que se seguem, aplicáveis em matéria de extradição nas relações entre os Estados‑Membros:

a)      A Convenção europeia de extradição de 13 de dezembro de 1957, o seu protocolo adicional de 15 de outubro de 1975, o seu segundo protocolo adicional de 17 de março de 1978 e a Convenção europeia para a repressão do terrorismo de 27 de janeiro de 1977, no que diz respeito à extradição;

[…]»

B –    Direito sueco

13.      Em 29 de maio de 2009, a Suécia comunicou (5) ao Secretariado‑Geral do Conselho da União Europeia, em aplicação do artigo 6.°, n.° 3, da decisão‑quadro, uma atualização da informação relativa às autoridades judiciais competentes de acordo com o seu direito interno, em que se referia:

«[Relativamente ao] Artigo 6.°, n.° 3

As seguintes autoridades da Suécia têm competência para emitir e executar um mandado de detenção europeu:

Autoridade judiciária de emissão

[…]

O mandado de detenção europeu para execução de uma pena ou medida de segurança privativa da liberdade é emitido pela Direção‑Geral da Polícia Nacional (Rikspolisstyrelsen) […]».

14.      Segundo o despacho de reenvio, e conforme confirmou o Governo sueco nas suas observações escritas e na audiência, a execução das sentenças transitadas em julgado, assim como as decisões subsequentes que tenham de ser adotadas nesse país, são tomadas por autoridades diferentes do tribunal, em especial, diferentes dos órgãos jurisdicionais que tenham proferido essas sentenças (6).

15.      Além disso, em resposta ao pedido de informação do rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão), a Autoridade da Polícia Nacional da Suécia (Swedish Police Authority) comunicou‑lhe, por ofício de 1 de agosto de 2016, que a referida autoridade:

a)      É a autoridade competente para a emissão de um MDE que tenha por objeto a execução de uma pena privativa da liberdade;

b)      Emite MDEs apenas a pedido do Instituto Sueco dos Serviços Penitenciários e de Reinserção Social («Instituto de serviços penitenciários»), do qual é, no entanto, independente;

c)      Delegou competências a um ou mais funcionários policiais ao serviço da Divisão de Cooperação Policial Internacional;

d)      Exerce essas competências sem estar sujeita à orientação e fiscalização dos órgãos jurisdicionais, ao Ministério da Justiça nem ao tribunal que proferiu a sentença condenatória.

II – Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16.      Em 23 de maio de 2016, o magistrado do Ministério Público junto do rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) solicitou a esse tribunal que executasse o MDE emitido em 30 de junho de 2014 pela Direção‑Geral da Polícia Nacional da Suécia (7), com vista à detenção e entrega de K. M. Poltorak, que se encontra detido no Centro de Detenção de Alphen aan de Rijn (Países Baixos).

17.      O MDE baseia‑se na sentença transitada em julgado proferida por um tribunal de Gotemburgo (Suécia) de 21 de dezembro de 2012 (referência B 9380/12), que determinou a aplicação a K. M. Poltorak de uma pena privativa de liberdade de um ano e três meses, enquanto autor de um crime de ofensas qualificadas à integridade física (8).

18.      O tribunal de reenvio pretende saber se o MDE foi emitido por uma «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro e, portanto, se é uma «decisão judiciária», na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da referida decisão‑quadro. Acrescenta que este problema se coloca, em especial, atendendo às considerações formuladas pelo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (9).

19.      Nestas circunstâncias, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      As expressões ‘autoridade judiciária’, na aceção do artigo 6.°, n.° [1], da decisão‑quadro […], e ‘decisão judiciária’, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, decisão‑quadro […], constituem conceitos autónomos do direito da União?

2)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: com base em que critérios se pode determinar se uma autoridade do Estado‑Membro de emissão é uma ‘autoridade judiciária’ e se o MDE que a mesma emitiu constitui, consequentemente, uma ‘decisão judiciária’?

3)      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: a Direção‑Geral da Polícia Nacional da Suécia é abrangida pelo conceito de ‘autoridade judiciária’, na aceção do artigo 6.°, n.° [1], da decisão‑quadro […], e o MDE que esta autoridade emitiu constitui, consequentemente, uma ‘decisão judiciária’, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro […]?

4)      Em caso de resposta negativa à primeira questão: a designação como autoridade judiciária emissora de uma autoridade policial nacional, tal como a Direção‑Geral da Polícia Nacional da Suécia, é conforme com o direito da União?»

20.      De acordo com a apreciação do tribunal a quo, exposta nos n.os 4.2 a 4.6 do despacho de reenvio:

–        A expressão «autoridade judiciária» do artigo 6.°, n.° 1, decisão‑quadro pode ser interpretada como uma delegação no direito do Estado‑Membro de emissão do conceito «autoridade judiciária», ou no sentido de que se confia apenas a esse ordenamento jurídico a designação da autoridade competente (10). No primeiro caso, a expressão «autoridade judiciária» não seria um conceito do direito da União e não exigiria, assim, uma interpretação autónoma e uniforme. No segundo, constituiria um conceito autónomo do direito da União, mas sem uma interpretação clara (11), nem jurisprudência anterior do Tribunal de Justiça que o convertam em «acte éclairé» (12).

–        Do contexto, em particular da Convenção Europeia de Extradição e dos antecedentes legislativos, especialmente da Proposta de decisão‑quadro (13), não se infere de forma clara se outras autoridades, além das judiciárias, podem ser competentes para emitir MDEs, na aceção do artigo 6.°, n.° 1, apesar da tendência, observada no desenvolvimento normativo desde a Convenção Europeia de Extradição, para substituir as relações entre Estados‑Membros por relações entre autoridades judiciárias.

–        O objetivo da decisão‑quadro de estabelecer um sistema simplificado de entrega de pessoas, baseado no princípio do reconhecimento mútuo e levado a cabo sob fiscalização judiciária (14), inclui uma proteção em dois níveis dos direitos em matéria processual e dos direitos fundamentais (15), isto é, no Estado‑Membro de emissão e no de execução, pelo que a falta da proteção judiciária num destes dois níveis poderia afetar negativamente os princípios do reconhecimento e da confiança mútuos.

III – Tramitação processual no Tribunal de Justiça

21.      O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de agosto de 2016, acompanhado de um pedido de tramitação urgente (artigo 267.°, quarto parágrafo, TFUE). O órgão de reenvio fundamentou o seu pedido no facto de K. M. Poltorak se encontrar privado de liberdade e de a sua manutenção nessa situação depender da decisão quanto ao mérito do processo.

22.      Na reunião administrativa de 1 de setembro de 2016, o Tribunal de Justiça decidiu submeter o processo a tramitação urgente.

23.      Apresentaram observações escritas a defesa de K. M. Poltorak, os Governos neerlandês e sueco e a Comissão Europeia.

24.      Foi realizada uma audiência conjunta com o processo C‑477/16 PPU (Kovalkovas), em 5 de outubro de 2016, na qual os interessados, em particular o Governo sueco, foram instados, de acordo com o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça, a responder às questões que lhes tinham sido colocadas.

25.      Os representantes de K. M. Poltorak, dos Governos dos Países Baixos, da Alemanha, da Grécia, da Finlândia e da Suécia e a Comissão apresentaram as suas observações na referida audiência.

IV – Análise

A –    Quanto à primeira questão prejudicial

26.      O órgão jurisdicional neerlandês pergunta se as expressões «autoridade judiciária», do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro, e «decisão judiciária», do artigo 1.°, n.° 1, do mesmo texto normativo, devem ser interpretadas como conceitos autónomos do direito da União.

27.      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, decorre tanto das exigências da aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenham uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros a fim de determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme. Esta jurisprudência foi aplicada, especificamente, a alguns dos preceitos da decisão‑quadro (16) e ao conceito de «tribunal competente, nomeadamente em matéria penal» do artigo 1.°, alínea a), iii), da Decisão‑quadro 2005/214/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sanções pecuniárias (17).

28.      Ora, nenhum dos referidos artigos da diretiva‑quadro remete para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance. É certo que o artigo 6.°, n.° 1, faz alusão à autoridade judiciária «competente […] nos termos do direito [do Estado‑Membro]». No entanto, essa remissão não visa a definição de «autoridade judiciária», mas apenas a atribuição de competência para a emissão de MDEs a um ou a vários dos órgãos judiciais nacionais, em conformidade com o ordenamento interno.

29.      Assim, deve entender‑se que as expressões «autoridade judiciária» e «decisão judiciária» que figuram, respetivamente, no artigo 6.°, n.° 1, e no artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro, são conceitos autónomos do direito da União, que requerem uma interpretação autónoma e uniforme no território desta última, tendo em conta os termos destas disposições, o seu contexto e os objetivos da regulamentação de que fazem parte (18).

30.      Não obstante, há que precisar o sentido dessa afirmação: dado o contexto processual em que se inserem ambas as expressões, ao proceder à sua interpretação, deve ser tida em conta a liberdade de configuração normativa dos Estados‑Membros tanto para designar os órgãos judiciais competentes como para regular as formas processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos seus cidadãos pelo direito da União (19).

31.      A resposta afirmativa à primeira questão deixa sem objeto a quarta, submetida apenas caso tal resposta fosse negativa.

B –    Quanto à segunda e terceira questões prejudiciais

32.      Com a segunda e a terceira questões, o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos) pretende saber se um órgão como a DGPN sueca reúne os requisitos para ser qualificado de «autoridade judiciária», na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro, de modo a que o MDE que emitiu no caso em apreço seja considerado uma «decisão judiciária», na aceção do artigo 1.°, n.° 1, daquele mesmo ato normativo.

33.      Como já salientei, contrariamente ao que se verifica no pedido de decisão prejudicial C‑453/16 PPU, as questões do juiz a quo não incidem, neste processo, sobre a autoridade competente para a emissão do mandado nacional prévio, mas para a emissão do MDE de acordo com a decisão‑quadro.

34.      A título preliminar, gostaria de referir que a reformulação da segunda e terceira questões que proponho decorre do facto de estar convencido de que existe uma estreita ligação entre a natureza de uma decisão judiciária e a qualidade de autoridade judiciária de quem a profere. Por isso, na verdade, o conceito que verdadeiramente requer clarificação neste processo é o de «autoridade judiciária».

35.      Parece lógico pensar que, se a DGPN sueca não puder estar entre as entidades e organismos que se configuram como autoridades judiciárias, o MDE emitido por esta carecerá do atributo fundamental e, simultaneamente, requisito primordial de uma decisão de natureza «judiciária», isto é, a sua emanação de um dos órgãos pertencentes à administração da justiça.

36.      Em face da falta de definição (20) da «autoridade judiciária» no texto da decisão‑quadro, terá que recorrer‑se, de acordo com os critérios hermenêuticos habituais do Tribunal de Justiça, ao sentido literal das palavras, ao seu contexto e aos seus objetivos.

37.      Para evitar equívocos, considero imprescindível, no entanto, destacar desde já que não vejo fundamento jurídico para tratar de forma diferente os MDEs de execução de uma sentença e os MDEs de execução de outros procedimentos penais, prévios à pronúncia da sentença (como os mandados de detenção e medidas similares). Uma vez que todos visam a entrega, por um Estado‑Membro, das pessoas procuradas noutro, é irrelevante, para a interpretação dos conceitos de autoridade judiciária de emissão e de receção do MDE, que a procura seja efetuada com o objetivo de colocar à disposição do juiz nacional uma pessoa condenada por sentença ou uma pessoa contra quem se dirige o processo penal e que ainda não foi julgada.

38.      Este esclarecimento é essencial uma vez que, se não for tido em conta, poderia levar a que se pensasse que, no caso dos MDEs de execução de uma sentença condenatória, a intervenção da «autoridade judiciária» se esgotara ao proferir essa sentença e, consequentemente, nada teria a dizer relativamente ao seu cumprimento. No meu entender, tal não é o caso. Num sistema de entrega caracterizado pela judicialização e pelo subsequente reconhecimento mútuo das decisões judiciais, o MDE posterior à sentença também implica a adoção prévia de determinadas decisões, que só podem ser judiciárias, na medida em que afetam a privação, provisória ou não, da liberdade e a análise da proporcionalidade para o decidir (21).

39.      No que diz respeito à interpretação do artigo 6.° e, em primeiro lugar, à aceção comum das palavras «autoridade» e «judiciária», importa referir que o primeiro desses termos se refere a uma entidade que exerce o controlo nalgum domínio da vida pública, por lhe terem sido atribuídas competências e poderes e por estar legitimada para fazê‑lo. O adjetivo «judiciária» confere ao substantivo que acompanha a conotação de que a autoridade em causa deve pertencer à administração da justiça (22), por oposição, segundo a separação de poderes clássica, aos poderes legislativo e executivo.

40.      Assim, as versões linguísticas da decisão‑quadro que consultei fazem invariavelmente referência à justiça: «autorité judiciaire», na francesa; «judicial authority», na inglesa; «Justizbehörde», na alemã; «autorità giudiziaria», na italiana; «autoridade judiciária», na portuguesa; «rättsliga myndighet», na sueca; e «tiesu iestāde», na letã.

41.      Portanto, deduz‑se desde já um primeiro indício de que a autoridade a que se refere, em particular, o artigo 6.° da decisão‑quadro tem de inserir‑se na administração da justiça. E esta primeira pista é confirmada, como indica corretamente o rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão), pelos antecedentes legislativos. Tanto a Convenção Europeia de Extradição como a Proposta de decisão‑quadro (23) optam por usar as expressões «autoridade competente» e «autoridade judiciária», respetivamente, no sentido de incluir os tribunais e o Ministério Público, mas excluindo de forma expressa as autoridades policiais (24).

42.      Esta impressão é confirmada, em segundo lugar, pelo contexto do referido artigo 6.° da decisão‑quadro. Juntamente com o artigo 7.°, relativo ao «Recurso à autoridade central», de acordo com a sua epígrafe, ambos conformam a arquitetura institucional do procedimento simplificado que a decisão‑quadro estabelece. E esse sistema funciona segundo um esquema básico, a que me referirei a seguir.

43.      Em princípio, como se deduz do considerando 5 da decisão‑quadro, a extradição entre Estados‑Membros é substituída por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias, construído sobre o princípio do reconhecimento mútuo (25). O pilar de tal reconhecimento consiste, precisamente, no diálogo inter pares que o artigo 6.° gera, isto é, entre a autoridade judiciária de emissão, que emite o MDE, e a de execução, ou de receção, que lhe há de dar cumprimento. Graças a essa configuração das relações entre os Estados‑Membros, por mediação das suas respetivas autoridades judiciárias, é possível gerar a confiança recíproca em que as respetivas ordens jurídicas nacionais estão em condições de fornecer uma proteção equivalente e efetiva dos direitos fundamentais, reconhecidos ao nível da União, em particular, na Carta (26).

44.      O único desvio ao funcionamento deste esquema admitido pelo legislador encontra‑se previsto no artigo 7.° da decisão‑quadro, ao permitir, a título excecional, a intervenção de autoridades não pertencentes ao âmbito «judiciário». No entanto, neste caso, o teor literal da referida disposição não deixa margem para dúvidas: as palavras usadas para descrever o caráter subordinado da atuação dessas «autoridades centrais» foram cuidadosamente escolhidas, com o objetivo de delimitar as funções que estas desempenham no quadro do diálogo entre autoridades judiciárias.

45.      Assim, de acordo com o artigo 7.°, n.° 1, da decisão‑quadro, a faculdade de designar esse tipo de autoridades centrais, de que gozam os Estados‑Membros, é‑lhes concedida para «assistir» as judiciárias competentes. Daqui se deduz, de forma clara, o seu papel de mera colaboração e em caso algum de decisão ou de direção, função instrumental reforçada pelos termos usados no n.° 2 do mesmo artigo: as tarefas que podem ser assumidas pela autoridade central designada são a «transmissão» e a «receção» administrativas dos MDEs e de «qualquer outra correspondência oficial que lhes diga respeito».

46.      A comparação dessas funções com as funções atribuídas às autoridades judiciárias (a de emissão é «competente para emitir um mandado» e a de execução «competente para executar [um] mandado», nos termos do artigo 6.°, n.os 1 e 2, respetivamente), evidencia o confinamento das autoridades centrais a atividades meramente administrativas e a inexistência de qualquer poder para que deem o impulso processual necessário, isto é, para que ponham em marcha o mecanismo de emissão de um MDE.

47.      Consequentemente, embora o legislador tenha previsto a entrada de um tipo específico de órgão administrativo no diálogo entre autoridades judiciárias visado pela decisão‑quadro, a sua intervenção está muito limitada: a) por um lado, só pode atuar a autoridade expressamente designada pelo Estado‑Membro (que o terá comunicado ao Secretariado‑Geral do Conselho) e não outra; e b) por outro lado, as funções que pode exercer limitam‑se ao apoio administrativo aos verdadeiros órgãos de decisão, ou seja, às autoridades judiciárias que devem tomar a decisão de emitir ou executar os MDEs.

48.      Esta interpretação também se deduz da exposição de motivos da proposta de decisão‑quadro (27). A explicação por artigos indica, relativamente ao atual artigo 7.°, que «é inspirado nas disposições da Convenção da União Europeia de 1996 e da Convenção da União Europeia de 2000 relativa ao auxílio judiciário em matéria penal […] [t]ratando‑se de uma disposição prática que visa facilitar a transmissão de informações entre Estados‑Membros […]» e que «[…] a função destas autoridades centrais deve ser facilitar, entre Estados‑Membros, a difusão e execução dos [MDEs] [que d]evem assegurar, nomeadamente, a sua tradução, bem como o apoio administrativo à execução dos mandados» (28).

49.      A arquitetura institucional do MDE assim configurada é, em terceiro lugar, a que melhor serve o objetivo de instituir um novo sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de ter infringido a lei penal, facilitando e acelerando a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo atribuído à União, de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça baseando‑se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados‑Membros (29).

50.      O diálogo entre autoridades judiciárias, que partilham no essencial a característica constitucional de pertencerem ao poder judicial nos seus respetivos Estados‑Membros, bem como o seu compromisso com a garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais a que se refere o artigo 6..° TUE, representa o elemento chave dessa confiança recíproca. A ele é inerente a inexistência de intromissões de outro tipo de autoridades não judiciárias, cuja função, se for o caso, poderá ser apenas de mero auxílio nos limites estabelecidos pelo artigo 7.° da decisão‑quadro.

51.      Além disso, conforme já foi declarado por este Tribunal, todo o processo de entrega entre Estados‑Membros, previsto na decisão‑quadro, é levado a cabo sob fiscalização judiciária (30).

52.      Existe também um argumento complementar que corrobora a limitação da cooperação penal, relativamente aos MDEs, aos órgãos judiciais: a base jurídica substantiva da própria decisão‑quadro, o artigo 31.°, n.° 1, alíneas a) e b), TUE. Na versão do referido Tratado em vigor em 2002 (31) falava‑se ainda de facilitar e acelerar a cooperação «entre os ministérios e as autoridades judiciárias ou outras equivalentes». No entanto, após o Tratado de Lisboa, este preceito passou para o TFUE, dando lugar ao artigo 82.°, cujo n.° 1 introduz o princípio do reconhecimento mútuo de sentenças e decisões em matéria penal, e cuja alínea d) reproduz o conteúdo do antigo artigo 31.°, n.° 1, alínea a), TUE, mas com a alteração significativa de suprimir a referência expressa aos ministérios (32). Esta alteração tem de ser tida em conta na interpretação da decisão‑quadro de acordo com o novo espírito, que restringe ainda mais esta forma de cooperação em matéria penal ao âmbito judiciário (33). A este respeito, importa trazer à colação a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, segundo a qual os textos de direito derivado da União devem ser interpretados, na medida do possível, no sentido da sua conformidade com as disposições dos Tratados (34).

53.      No contexto da cooperação policial e judiciária em matéria penal, o Tribunal de Justiça declarou que o Tratado de Lisboa alterou substancialmente o quadro institucional, e que o artigo 9.° do Protocolo n.° 36, relativo às disposições transitórias, visa, nomeadamente, garantir que os atos adotados no âmbito dessa cooperação poderão continuar a ser aplicados eficazmente, apesar da alteração do quadro institucional que a regula (35).

54.      Esta afirmação, feita no contexto de um recurso de anulação, não é incompatível, antes pelo contrário, com uma exegese evolutiva da decisão‑quadro que, embora adotada sobre uma base jurídica anterior, a ponha em sintonia com o teor e com os objetivos da nova base, isto é, a torne mais concordante com a perspetiva que o legislador conferiu à cooperação judiciária no âmbito penal. Continuar a interpretar o ato normativo exclusivamente de acordo com o espírito da anterior base jurídica implicaria o risco de petrificar o ordenamento, contra o próprio TFUE e a vontade expressa posterior do legislador.

55.      Atendendo às considerações anteriores, quando, no caso em apreço, a autoridade de que emana o MDE é abrangida pela «polícia», sem que a sua decisão seja assumida por nenhum juiz, é natural que se suscite a questão de se saber se um órgão policial pode revestir a natureza de «autoridade judiciária», na aceção da decisão‑quadro. Sendo certo que a polícia faz parte da força coerciva do Estado, normalmente sob o comando dos titulares do poder executivo, não é menos verdade que, frequentemente, também auxilia as autoridades judiciárias na investigação dos ilícitos e, por vezes, na execução das decisões judiciárias. Todavia, este elemento de cooperação ou assistência não a converte numa autoridade judiciária.

56.      Da informação prestada pela autoridade policial sueca (36) em resposta às perguntas do órgão jurisdicional de reenvio decorrem as seguintes características da autoridade competente para a emissão de MDEs: a) a polícia é uma autoridade repressiva com amplos poderes de ação; b) a referida autoridade não recebe instruções do Ministro da Justiça relativamente aos MDEs; c) não tem qualquer vínculo, direto ou indireto, com o tribunal que condenou a pessoa procurada; d) age, em matéria de MDEs, a pedido da administração dos serviços penitenciários, mas não recebe instruções da parte desta, e beneficia de margem de discricionariedade para a sua emissão; e e) delegou no IPO (37), uma subdivisão administrativa constituída por juristas, dos quais apenas três estão habilitados a assinar os MDEs suecos, a competência de emitir um MDE com vista ao cumprimento de uma sentença de condenação a uma pena privativa de liberdade transitada em julgado.

57.      De todas estas características distintivas, a relativa à designação da autoridade de emissão dos MDEs, ao abrigo da lei sueca que transpôs a decisão‑quadro para o ordenamento interno, é precisamente a que origina maior preocupação, tendo em conta a comunicação do Governo sueco ao Conselho em 2009, em aplicação do artigo 6.°, n.° 3, da referida decisão‑quadro (38).

58.      Consta, de facto, que o Conselho recomendara à Suécia (39) que adotasse as medidas adequadas para garantir que, nos casos de execução de penas, o MDEs fossem emitidos por uma autoridade judiciária ou sob a supervisão de uma autoridade judiciária, em conformidade com a decisão‑quadro.

59.      A resposta negativa do Governo sueco a esta recomendação é clara quanto à forma de implementação do sistema de MDE no seu ordenamento interno. Resumidamente (40), o referido governo entende que é adequado que a execução de uma sentença penal, em virtude da qual é requerida a entrega do condenado por outro Estado‑Membro, não exija que o MDE tenha de emanar de uma autoridade judiciária stricto sensu. Alega, pelo contrário, que, uma vez que o sistema nacional de execução de sentenças proferidas por juízes e tribunais atribui a competência a outro tipo de autoridades, não necessariamente judiciárias, não é contrário à decisão‑quadro que essas autoridades, cujo caráter não judiciário reconhece, decidam também relativamente à emissão do MDE.

60.      Ora, atendendo às considerações expostas, creio que o sistema institucional preconizado pelo Governo sueco não é conforme com a decisão‑quadro. Tal só poderia suceder, eventualmente, se a autoridade policial que emite o MDE de execução de uma sentença cumprisse os seguintes requisitos, que entendo serem indispensáveis para manter o nível de garantias judiciais em que se baseia o sistema dos MDEs: a) teria de atuar com base num mandato e sob a supervisão de uma autoridade judiciária, na aceção do artigo 6.° da decisão‑quadro; e b) não poderia ter poderes discricionários nem margem de apreciação quanto à emissão do MDE, devendo cingir‑se ao mandato recebido da autoridade judiciária. Além disso, caberia a esta última, em caso de dúvidas quanto ao mandado, submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça quanto à interpretação da decisão‑quadro.

61.      Segundo consta dos autos e se depreende das observações escritas do Governo sueco, a DGPN sueca não cumpre esses requisitos. A sua integração orgânica situa‑a fora da administração da justiça, e dada a inexistência de ligação com os tribunais e o Ministério Público, falta a fiscalização obrigatória por parte de uma autoridade judiciária das decisões de emissão de MDEs, relativamente aos quais a DGPN goza de discricionariedade.

62.      Esta conclusão não é posta em causa pela independência que a autoridade policial possa ter relativamente ao Ministério da Justiça e ao Instituto de serviços penitenciários, dos quais não recebe instruções. Esta característica não é, em meu entender, relevante para qualificar a polícia de «autoridade judicial». E quanto à margem de discricionariedade de que beneficia na emissão de um MDE, o que é relevante é que não tem de requerer a decisão nem prestar contas ao tribunal que condenou a pessoa procurada. Embora este dado reforce a sua autonomia relativamente ao tribunal que proferiu a sentença, evidencia também a falta de fiscalização judiciária, contrária à jurisprudência que afirmou que todo o processo de entrega entre Estados‑Membros previsto na decisão‑quadro tem de ser levado a cabo sob fiscalização judiciária (41).

63.      Por último, a autonomia dos Estados‑Membros confere‑lhes a margem de liberdade necessária para determinar, nos seus ordenamentos internos, a que autoridades atribuirão as competências processuais (no caso em apreço, as relativas à emissão de MDEs). É jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, na falta de regulamentação da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União, desde que as referidas modalidades processuais não sejam menos favoráveis do que as das ações semelhantes de direito interno (princípio da equivalência), nem estruturadas de modo a impossibilitar na prática ou a dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (42).

64.      Ora, após a aprovação da decisão‑quadro, alguns dos Estados‑Membros comunicaram ao Secretariado‑Geral do Conselho, em aplicação do artigo 6.°, n.° 3, da referida decisão, quais eram as autoridades competentes de acordo com o seu direito interno para emitir ou executar os MDEs, tendo a Suécia incluído a autoridade policial (a Direção‑Geral da Polícia Nacional ou Rikspolisstyrelsen) relativamente aos MDEs para a execução de uma pena ou de uma medida de segurança privativas de liberdade.

65.      No entanto, estas comunicações não prejudicam nem condicionam, em termos estritamente jurídicos, a conformidade da atuação de cada Estado com o conteúdo da decisão‑quadro. O artigo 6.°, n.° 3, da decisão‑quadro permite que os Estados designem ou escolham, entre as suas autoridades judiciárias, as que serão competentes para a receção ou emissão de MDEs, mas não permite ampliar o conceito de autoridade judiciária, alargando‑o a órgãos que não beneficiam desse estatuto.

66.      Neste contexto, não creio que implique uma ingerência excessiva no modelo escolhido pelo referido Estado para dirigir a execução das sentenças, no uso da sua autonomia processual, a exigência (em linha com a recomendação feita ao Governo sueco pelo Conselho) de adoção das medidas necessárias para que, caso queira manter a intervenção das autoridades policiais nos MDEs, o faça submetendo‑as ao mandato e à fiscalização de uma verdadeira autoridade judiciária que a supervisione. Essa modulação não poria em causa os fundamentos do seu sistema nacional e facilitaria a sua adaptação ao desenho da cooperação judiciária estabelecida nesta matéria pela decisão‑quadro.

67.      Consequentemente, considero que uma autoridade de polícia cujos poderes tenham a configuração dos da DGPN sueca não se enquadra no conceito de «autoridade judiciária» na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da decisão‑quadro, motivo pelo qual um MDE emitido pela referida autoridade também não pode ser qualificado de «decisão judiciária» na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da mesma decisão‑quadro.

V –    Quanto à limitação dos efeitos no tempo do acórdão do Tribunal de Justiça

68.      Alguns dos governos que estiveram presentes na audiência, bem como a Comissão, sugeriram ao Tribunal de Justiça que, se optar por negar o caráter de decisão judiciária aos MDEs emitidos pela DGPN sueca (o que, logicamente, impediria que a autoridade judiciária do Estado de execução lhes desse seguimento), limite a eficácia no tempo do seu acórdão, por forma a que aquela seja meramente pro futuro.

69.      Na minha opinião, esta sugestão não merece acolhimento. Como recordei noutras conclusões recentes (43), a regra geral consiste em que «a interpretação que [o Tribunal de Justiça] faz de uma norma de direito da União, no exercício da competência que lhe confere o artigo 267.° TFUE, esclarece e precisa o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Donde se conclui que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz inclusive às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decida o pedido de interpretação, se se encontrarem também reunidas as condições que permitem submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma».

70.      Não creio que haja motivos para abrir, neste processo, uma exceção a essa regra, uma vez que:

a)      O órgão jurisdicional de reenvio não formulou nenhuma questão sobre o alcance no tempo do acórdão do Tribunal de Justiça (em rigor, nem sequer o fez relativamente às consequências imediatas do MDE), cingindo as suas dúvidas às questões já apreciadas.

b)      Cabe aos juízes de cada Estado apreciar, casuisticamente, se os MDEs em curso reúnem os requisitos que o Tribunal de Justiça considera na sua decisão, que podem também afetar situações pendentes, tanto mais quanto o que está em causa é a privação de liberdade daqueles que ainda se encontrem detidos a aguardar a sua entrega. A solução de cada caso dependerá de variáveis que são, neste momento, difíceis de antecipar, como, por exemplo, a possibilidade de uma eventual sanação a posteriori do «erro» em que tenha incorrido o MDE originário.

c)      Por último, relativamente às entregas já consumadas (cujo desfecho parece constituir a principal preocupação exposta pela Comissão), terão também de ser os órgãos jurisdicionais nacionais a avaliar a incidência nas mesmas do acórdão do Tribunal de Justiça, pelo que não poderão prescindir das exigências inerentes ao princípio da força do caso julgado.

VI – Conclusão

71.      Em face do exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterdão, Países Baixos) nos seguintes termos:

«1)      As expressões ‘decisão judiciária’ e ‘autoridade judiciária’ que figuram, respetivamente, no artigo 1.°, n.° 1, e no artigo 6.°, n.° 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, na versão alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, são conceitos autónomos do direito da União e devem ser uniformemente interpretados em toda a União Europeia.

2)      Uma autoridade policial cujos poderes têm a configuração dos poderes da Direção‑Geral da Polícia Nacional sueca não reúne os requisitos para ser qualificada de ‘autoridade judiciária’, na aceção do artigo 6.°, n.° 1, da Decisão‑quadro 2002/584/JAI, nem o mandado de detenção europeu que emitiu no caso vertente reveste o caráter de ‘decisão judiciária’, na aceção do artigo 1.°, n.° 1, da referida decisão‑quadro.»


1 —      Língua original: espanhol.


2 —      Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), na versão alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, que altera as Decisões‑Quadro 2002/584/JAI, 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI e 2008/947/JAI, e que reforça os direitos processuais das pessoas e promove a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido (JO 2009, L 81, p. 24) (a seguir «decisão‑quadro»).


3 —      A seguir «MDE»


4 —      Processo Özçelik, C‑453/16 PPU, pendente neste Tribunal.


5 —      «Atualização das notificações e declarações da Suécia nos termos da decisão‑quadro relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros» (Documento do Conselho n.° 10400/09, p. 2).


6 —      Na explicação do referido governo, que pode ser consultada na íntegra no Documento do Conselho n.° 14876/11 (Evaluation report on the fourth round of mutual evaluations «the practical application of the European Arrest Warrant and corresponding surrender procedures between Member States» Follow‑up to Report on Sweden), p. 2, pode ler‑se: «Sweden would like to stress that when a judgment is final all subsequent decisions concerning the enforcement of the sentence in our legal system are taken by other authorities than the court. [[…]] In Sweden we have three different enforcement authorities and in order to coordinate the issuing of the EAWs: in these cases, the International Police Cooperation Division (IPO) was designated as the issuing authority. [[…]] To conclude, the existing system is the most effective and in line with our national procedure and no complaints has been put forward. Thus, Sweden has not found any convincing reason to change the current system».


7 —      A seguir «DGPN».


8 —      Segundo se descreve na alínea e) do MDE, K. M. Poltorak agrediu fisicamente e espetou a ponta de uma vassoura no olho da vítima, em 4 de maio de 2012, em Husargatan (Gotemburgo, Suécia), atos em consequência dos quais esta sofreu uma rutura do ligamento e do ducto nasolacrimal do olho, que origina hemorragia em caso de conjuntivite, e também fratura das paredes ósseas inferior e superior da cavidade da órbita. O crime foi considerado agravado pela dureza e brutalidade com que agiu a pessoa condenada.


9 —      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C—241/15, EU:2016:385).


10 —      Embora o artigo 1.°, n.° 1, da decisão‑quadro não remeta para o direito dos Estados‑Membros, a estreita ligação entre as expressões «decisão judiciária» e «resolução judiciária», constituiria um argumento — segundo o juiz de reenvio — para que fossem tratados da mesma forma.


11 —      Na aceção da jurisprudência assente relativa ao «acte clair» com o acórdão de 6 de outubro de 1982, Cilfit e o. (C‑283/81, EU:C:1982:335).


12 —      De acordo com a jurisprudência iniciada com o acórdão de 27 de março de 1963, Da Costa e o. (C‑28/62 a C‑30/62, EU:C:1963:6).


13 —      Proposta de decisão‑quadro do Conselho relativa ao mandado de captura europeu e aos procedimentos de entrega entre Estados‑Membros [COM(2001) 0522 final —2001/0215 (CNS)] (JO 2001, C 332 E, p. 305).


14 —      Acórdão de 30 de maio de 2013, F (C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358, n.° 46).


15 —      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:2016:385, n.° 57).


16 —      Acórdão de 28 de julho de 2016, J.Z. (C‑294/16 PPU, EU:C:2016:610, n.° 35 e jurisprudência referida).


17 —      Acórdão de 14 de novembro de 2013, Baláž (C‑60/12, ECLI:EU:C:2013:733, n.os 24 a 32).


18 —      Acórdão de 28 de julho de 2016, J.Z. (C‑294/16 PPU, EU:C:2016:610, n.° 37).


19 —      V., por analogia, acórdão de 30 de junho de 2016, Toma e Biroul Executorului Judecătoresc Horațiu‑Vasile Cruduleci (C‑205/15, EU:2016:499, n.° 33).


20 —      O Parlamento Europeu destacou as divergências interpretativas que decorrem da expressão «autoridade judiciária» na decisão‑quadro, pelo que aprovou uma Resolução, em 27 de fevereiro de 2014, com recomendações destinadas à Comissão sobre a revisão do MDE, na qual criticava «a falta de uma definição da expressão ‘autoridade judiciária’ na Decisão‑quadro 2002/584/JAI e noutros instrumentos de reconhecimento mútuo, o que levou a diferentes práticas nos Estados‑Membros, causando incerteza, comprometendo a confiança mútua e aumentando o número de litígios» [Processo (2013/2019(INL)]. O Parlamento Europeu instava a Comissão a apresentar novas «propostas legislativas que sigam as recomendações detalhadas constantes do anexo ao presente relatório, que preveem […] a) Um procedimento no âmbito do qual uma medida de reconhecimento possa, se necessário, ser validada no Estado‑Membro de emissão por um juiz, tribunal, juiz de instrução ou magistrado do Ministério Público, de modo a ultrapassar as interpretações divergentes da expressão ‘autoridade judiciária’ [[…]]».


21 —      Sobre a proporcionalidade no âmbito do MDE, remeto para as conclusões (com as quais concordo plenamente) do advogado‑geral Y. Bot no processo que deu origem ao acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:2016:140, n.os 137 e segs.), em especial, no que diz respeito à autoridade judiciária de emissão, n.os 145 a 155. V., também, o Documento do Conselho 17195/1/10 REV 1, Revised version of the European handbook on how to issue a European Arrest Warrant, de 17 de dezembro de 2010, p. 14, em que as autoridades de emissão são exortadas a efetuar um teste de proporcionalidade antes de procederem à emissão do MDE.


22 —      Não abordo nestas conclusões, mas apenas nas do processo Özçelik, C‑453/16 PPU, pendente neste Tribunal, a questão de saber em que medida o Ministério Público pode ser qualificado de autoridade judiciária no contexto da interpretação da decisão‑quadro.


23 —      COM(2001) 0522 final; v. nota 13 destas conclusões.


24 —      A nota explicativa relativa ao artigo 3.° da proposta afirma que: «The procedure of the European arrest warrant is based on the principle of mutual recognition of court judgments. State‑to‑State relations are therefore substantially replaced by court‑to‑court relations between judicial authorities. The term “judicial authority” corresponds, as in the 1957 Convention (cf. Explanatory Report, Article 1), to the judicial authorities as such and the prosecution services, but not to the authorities of police force. The issuing judicial authority will be the judicial authority which has authority to issue the European arrest warrant in the procedural system of the Member State (Article 4)».


25 —      Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e 659/15 PPU, EU:2016:198, n.° 75).


26 —      Acórdão de 1 de junho de 2016, Bob‑Dogi (C‑241/15, EU:2016:385, n.° 33 e jurisprudência referida).


27 —      V. n.° 41 destas conclusões e a nota correspondente.


28 —      O sublinhado é meu. A exposição de motivos aceitava a intervenção administrativa, em casos taxativamente enumerados: quando, no sistema do Estado‑Membro em questão, uma autoridade administrativa deve decidir se a pessoa beneficia de imunidade (artigo 31.°); quando existam razões humanitárias importantes que justifiquem o adiamento da execução do mandado (artigo 38.°); ou para apreciar as garantias prestadas por outro Estado‑Membro no sentido de não aplicar uma pena de prisão perpétua (artigo 37.°).


29 —      Acórdão de 24 de maio de 2016, Dworzecki (C‑108/16 PPU, EU:C:2016:346, n.° 27 e jurisprudência referida).


30 —      Acórdão de 30 de maio de 2013, F (C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358, n.° 46).


31 —      O artigo 31.°, n.° 1, alínea a), determinava: «[A ação em comum no domínio da cooperação policial abrange:] a) Facilitar e acelerar a cooperação entre os ministérios e as autoridades judiciárias ou outras equivalentes dos Estados‑Membros, inclusive, quando tal se revele adequado, por intermédio da Eurojust, no que respeita à tramitação dos processos».


32 —      O artigo 82.°, n.° 1, alínea d), TFUE dispõe: «Facilitar a cooperação entre as autoridades judiciárias ou outras equivalentes dos Estados‑Membros, no âmbito da investigação e do exercício da ação penal, bem como da execução de decisões».


33 —      Tanto o artigo 30.o TUE pré‑Lisboa como, atualmente, os artigos 87.° TFUE a 89.° TFUE (inseridos no capítulo 5 do título V, sob a epígrafe «Cooperação policial») dizem respeito à cooperação policial, no âmbito da qual se poderiam incluir as relações das autoridades policiais suecas com as autoridades homónimas de outros Estados‑Membros. Em contrapartida, as disposições relativas ao MDE, entre outras medidas, enquadram‑se no capítulo 4 daquele mesmo título, sob a epígrafe «Cooperação judiciária em matéria penal».


34 —      Acórdão de 16 de abril de 2015, Parlamento/Conselho (C‑540/13, EU:C:2015:224, n.° 38 e jurisprudência referida).


35 —      Acórdão de 16 de abril de 2015, Parlamento/Conselho (C‑540/13, EU:C:2015:224, n.° 44).


36 —      Sucessora da DGPN.


37 —      International Police Cooperation Division [o acrónimo «IPO» consta dos despachos de reenvio submetidos ao Tribunal de Justiça pelo rechtbank Amsterdam (Tribunal de Primeira Instância de Amesterão)].


38 —      V. n.° 13 destas conclusões.


39 —      Evaluation report on the fourth round of mutual evaluations «the practical application of the European Arrest Warrant and corresponding surrender procedures between Member States» (Council Document 9927/2/08 REV 2, p. 46).


40 —      V. n.° 13 e a nota 5 destas conclusões.


41 —      Acórdão de 30 de maio de 2013, F (C‑168/13 PPU, EU:C:2013:358, n.° 46).


42 —      Acórdãos de 6 de outubro de 2015, Târșia (C‑69/14, EU:C:2015:662, n.° 27), e de 15 de setembro de 1998, Ansaldo Energia e o. (C‑279/96 a C‑281/96, EU:C:1998:403, n.° 16), que remete para os acórdãos pioneiros de 16 de dezembro de 1976, Rewe‑Zentralfinanz e Rewe‑Zentral (33/76, EU:C:1976:188, n.° 5), e Comet (45/76, EU:C:1976:191, n.os 13 e 16), e para o acórdão de 14 de dezembro de 1995, Peterbroeck (C‑312/93, EU:C:1995:437, n.° 12).


43 —      Apresentadas em 13 de julho de 2016 nos processos Eco‑Emballages e Melitta France e o. (C‑313/15 e C‑530/15, EU:C:2016:551, n.° 56).