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CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 28 de novembro de 2019 (1)

Processo C567/18

Coty Germany GmbH

contra

Amazon Services Europe Sàrl,

Amazon FC Graben GmbH,

Amazon Europe Core Sàrl,

Amazon EU Sàrl

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Marca da União Europeia — Efeitos da marca — Direitos conferidos pela marca — Direito de proibir a terceiros o armazenamento dos produtos para os oferecer ou colocar no mercado — Armazenamento de produtos por um terceiro que não tem conhecimento da violação do direito das marcas»






1.        No Acórdão Coty Germany (2), o Tribunal de Justiça foi confrontado com um dos problemas causados pelas «plataformas terceiras para a venda na Internet dos produtos [de luxo]», no âmbito de um sistema de distribuição seletiva. Nesse processo discutia‑se a validade da proibição de recorrer a tais plataformas (ou a empresas terceiras para as vendas através da Internet) imposta aos distribuidores autorizados de certos produtos cosméticos, com o objetivo de preservar a sua imagem de luxo.

2.        A mesma empresa que deu origem a esse litígio (a Coty Germany Gmbh) intentou uma ação nos tribunais alemães que também diz respeito ao funcionamento das plataformas de comércio eletrónico, em particular, uma das mais conhecidas, a Amazon. No seu entendimento, algumas empresas do grupo Amazon violaram o direito do titular de uma marca da União Europeia de proibir um terceiro de utilizar o sinal (3). As referidas empresas cometeram a infração ao intervir, sem autorização do titular, na venda de um perfume protegido pela marca da qual a Coty Germany detém uma licença.

3.        O Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha), que deve decidir em última instância após as decisões de um órgão jurisdicional de primeira instância e de um outro órgão jurisdicional de recurso, submete ao Tribunal de Justiça as suas dúvidas sobre a interpretação do artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 207/2009 (4), que estabelece os direitos do titular de uma marca da União Europeia (5).

I.      Quadro jurídico: Regulamento (UE) 2017/1001 (6)

4.        O Regulamento 2017/1001 codificou e substituiu o Regulamento n.o 207/2009, que era o regulamento aplicável à data dos factos no processo principal. O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se a ambos, salientando que, tendo em conta a natureza do processo instaurado, deve ser aplicado aquele que se encontra atualmente em vigor. De todo o modo, a norma relevante para o presente processo (7) não difere substancialmente nos dois regulamentos.

5.        O artigo 9.o («Direitos conferidos por uma marca da UE») dispõe:

«1.      O registo de uma marca da UE confere ao seu titular direitos exclusivos.

2.      Sem prejuízo dos direitos dos titulares adquiridos antes da data de depósito ou da data de prioridade da marca da UE, o titular dessa marca da UE fica habilitado a proibir que terceiros, sem o seu consentimento, façam uso, no decurso de operações comerciais, de qualquer sinal em relação aos produtos ou serviços caso o sinal seja:

a)      Idêntico à marca da UE e seja utilizado para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca da UE foi registada;

[…]

3.      Ao abrigo do n.o 2, pode ser proibido, nomeadamente:

[…]

b)      Oferecer os produtos, colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esses fins, ou oferecer ou prestar serviços sob o sinal;

[…]»

II.    Matéria de facto do litígio, tramitação processual nos órgãos jurisdicionais nacionais e questão prejudicial

6.        A Coty Germany, que vende produtos cosméticos na Alemanha, é detentora de uma licença da marca da União Europeia «DAVIDOFF», para «perfumes, óleos essenciais, cosméticos». Nessa qualidade, dispõe do poder (conferido pela empresa titular do registo da marca) de exercer em seu próprio nome os direitos inerentes à referida marca.

7.        A Amazon Services Europe S.a.r.l. (a seguir «Amazon Services»), com sede no Luxemburgo, oferece a terceiros vendedores a possibilidade de apresentarem as suas propostas de venda dos seus produtos no sítio de Internet amazon.de. Os contratos de compra e venda dos produtos comercializados dessa forma são celebrados entre os terceiros vendedores e os compradores.

8.        Os vendedores podem participar no programa «Envio através da Amazon» (8), que implica tanto o armazenamento dos produtos nos centros logísticos das empresas do grupo Amazon, como o envio da mercadoria ao comprador e outros serviços adicionais.

9.        Em 8 de maio de 2014, um comprador simulado da Coty Germany adquiriu, através do sítio de Internet amazon.de, o perfume «Davidoff Hot Water EdT 60 ml», proposto para venda por OE (a seguir «vendedora») com a menção «Versand durch Amazon» («Envio através da Amazon»), uma vez que a vendedora se tinha inscrito no referido programa.

10.      A Amazon Services tinha encarregado a Amazon FC Graben GmbH (a seguir «Amazon FC»), empresa do mesmo grupo que explora um armazém de mercadorias, com sede em Graben, Alemanha, do armazenamento dos produtos da vendedora.

11.      Após tomar conhecimento da venda dos referidos produtos, a Coty Germany notificou a vendedora para cessar a venda, alegando que o direito da marca do perfume não se encontrava esgotado. Em resposta, a vendedora emitiu uma declaração de cessação, acompanhada de uma cláusula penal para o caso de incumprimento.

12.      Por carta de 2 de junho de 2014, a Coty Germany solicitou à Amazon Services que entregasse todos os perfumes «Davidoff Hot Water EdT 60 ml» da vendedora. A Amazon Services enviou uma encomenda com 30 embalagens desse perfume. Após outra empresa pertencente ao grupo das demandadas ter informado a demandante de que 11 dos 30 perfumes provinham das existências de outro vendedor, a Coty Germany solicitou à Amazon Services que indicasse o nome e a morada desse outro vendedor, acrescentando que, relativamente a 29 dos 30 perfumes, o direito de marca não estava esgotado. A Amazon Services respondeu que já não era possível apurar a empresa de cujas existências provinham os 11 perfumes em causa.

13.      A Coty Germany, considerando que a conduta da Amazon Services e da Amazon FC violava os seus direitos da marca, propôs uma ação com vista a obter a condenação de ambas as empresas a cessar o armazenamento e o envio do perfume da marca «Davidoff Hot Water» para a respetiva colocação no mercado (eventualmente por terceiros) na Alemanha.

14.      A ação inibitória dizia respeito aos produtos que não foram colocados no mercado pelo titular da marca ou por um terceiro com o consentimento deste, em território nacional, noutro Estado‑Membro da União Europeia ou noutro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (9). Esta ação incluía um pedido de indemnização por perdas e danos (a indemnização solicitada era de 1 973,90 euros, acrescidos de juros à taxa de 5 % desde 24 de outubro de 2014).

15.      Tanto o tribunal de primeira instância como o tribunal de recurso (10) julgaram improcedentes os pedidos da Coty Germany. O tribunal de recurso considerou, nomeadamente, que:

–        A Amazon FC não tinha feito uso da marca controvertida nem armazenado os perfumes com o objetivo de os oferecer ou colocar no mercado, mas limitou‑se a armazenar os produtos para a vendedora. Por conseguinte, não podia ser considerada autora de uma infração nem ser obrigada a cessar a sua atuação relativamente aos perfumes. Uma vez que não ficou provado que tivesse conhecimento de que o direito de marca sobre o produto não estava esgotado, não faz sentido imputar‑lhe responsabilidade como coautora ou cúmplice de uma violação a esse direito.

–        A Amazon Services não tinha em seu poder os produtos da vendedora nem expedia os produtos controvertidos aos seus compradores, pelo que, por maioria de razão, devia ser absolvida.

16.      A Coty Germany interpôs recurso de «Revision» no Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) que destaca que, uma vez que a Coty Germany intentou uma ação inibitória que pressupõe um risco de repetição, o recurso só é procedente se a conduta das demandadas for ilícita quer quando teve lugar quer no momento da decisão sobre o recurso.

17.      Assim, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, à luz do artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento 2017/1001, uma pessoa que armazena produtos que violam direitos de marca, sem ter conhecimento dessa violação, efetua o armazenamento de tais produtos para os oferecer ou colocar no mercado, quando não seja ela mas apenas esse terceiro quem tem a intenção de os oferecer ou colocar no mercado.

18.      Para o órgão jurisdicional de reenvio, a resposta a esta dúvida deve ser negativa:

–        Segundo a sua própria jurisprudência em matéria de patentes, o mero armazenamento ou transporte, por parte de um armazenista, um transportador ou transitário, de produtos que violam patentes não tem lugar, geralmente, para oferecer ou colocar no mercado esses produtos (11).

–        Não é justificado subverter os limites da responsabilidade dos detentores, nos termos do artigo 9.o da Lei de Patentes alemã, imputando a intenção do detentor indireto ao detentor direto.

–        Esta consideração pode ser aplicável por analogia ao direito das marcas. Os limites da responsabilidade do detentor, em conformidade com o artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento (UE) 2017/1001, seriam excessivamente ampliados se, pelo simples facto de estar na posse dos produtos em infração, essa responsabilidade fosse imputada ao armazenista que não tem conhecimento da violação.

19.      Nestas condições, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial relativa à interpretação do artigo 9.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 207/2009 e do artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento 2017/1001:

«Deve considerar‑se que uma pessoa que armazena, em nome de um terceiro, produtos que violam direitos de marca, sem ter conhecimento dessa violação, efetua o armazenamento de tais produtos para os oferecer ou colocar no mercado, quando não seja ela mas apenas esse terceiro quem tem a intenção de os oferecer ou colocar no mercado?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

20.      A decisão de reenvio deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de setembro de 2018, tendo a Coty Germany, a Amazon Services e a Comissão Europeia apresentado observações escritas. Todas elas intervieram na audiência, realizada em 19 de setembro de 2019, na qual o Governo da República Federal da Alemanha também participou.

IV.    Análise

A.      Admissibilidade da questão prejudicial

21.      A Coty Germany alega que a decisão de reenvio não reflete corretamente a situação do litígio, o que a leva a duvidar da admissibilidade da questão prejudicial, com fundamento no seu caráter hipotético. Defende que a atuação das empresas Amazon Services e Amazon FC não corresponde à de um mero armazenista ou transportador dos produtos: a sua intervenção nos contratos relativos aos produtos proposto na plataforma e a cobrança do preço de venda implica, entre outras coisas, que estão detalhadamente informadas sobre os produtos armazenados e enviados.

22.      Para a Coty Germany, aquelas duas empresas não se limitam à mera colocação à disposição de uma plataforma de venda eletrónica e ao armazenamento de produtos vendidos pelos seus clientes, respetivamente, mas também prestam uma série de serviços que têm um valor acrescentado para a distribuição desses produtos (neste processo, produtos que violam direitos de marca). Acresce que o vendedor lhes concedeu a posse plena e efetiva das mercadorias.

23.      O Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que, no âmbito do procedimento do artigo 267.o TFUE, não pode apreciar as interrogações que constituem questões de facto (12), nem verificar a exatidão desses factos (13). No quadro da repartição das competências entre os Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, incumbe ao primeiro ter em conta o contexto factual e regulamentar no qual se inserem as questões prejudiciais, tal como definido pela decisão de reenvio (14).

24.      O facto de uma das partes no litígio contestar a versão dos factos exposta pelo órgão jurisdicional de reenvio, ou a considerar insuficiente, não basta para declarar uma questão prejudicial inadmissível. O Tribunal de Justiça não é competente para verificar a exatidão daquela versão e a presunção de pertinência de que gozam as questões prejudiciais deve prevalecer (15). Estas são declaradas inadmissíveis, nomeadamente, quando é manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objeto do litígio (16). Tal não ocorre neste pedido de decisão prejudicial.

25.      É certo, porém, que, embora caiba ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar os factos, o Tribunal de Justiça deve envidar esforços para dar respostas úteis (17). Nada impede que o Tribunal de Justiça dê ao juiz nacional indicações, baseadas nos autos e nas observações que lhe foram apresentadas, sobre as interrogações não tratadas na questão prejudicial, se o entender pertinente para melhorar a sua colaboração com o órgão judicial a quo (18).

26.      Na audiência, o Tribunal convidou a Amazon Services e a Amazon FC a precisar «a abrangência dos serviços prestados pela Amazon no âmbito do seu programa “Envio através da Amazon”». Em especial, pediu‑lhes que «tomassem posição sobre a descrição fornecida pela Coty Germany nas suas observações escritas […] em relação às operações que a Amazon realiza no litígio no processo principal por conta do terceiro vendedor». Estas questões revelam uma predisposição inicial para completar as informações factuais que, talvez de forma insuficiente, foram apresentadas no despacho de reenvio.

27.      É por esta razão que, tendo em conta a forma como o processo prejudicial evoluiu, adotarei uma dupla abordagem, com base em várias visões — mais do que versões — dos factos:

—      Por um lado, limitar‑me‑ei à exposição de factos descrita na decisão de reenvio. Segundo essa exposição, a Amazon Services e a Amazon FC, que integram ambas a plataforma de comércio eletrónico, atuam como operadora principal dessa plataforma em linha (a primeira) e como prestadora de, entre outros, serviços de armazenamento de produtos (a segunda).

—      Por outro lado, em alternativa, analisarei os diferentes aspetos resultantes das observações das partes e das suas respostas a algumas das questões colocadas na audiência. O cenário assim configurado é mais complexo e exige que se tenha em conta o modelo de negócio integrado (por oposição a um modelo autónomo) do grupo Amazon, bem como as especificidades dos serviços que prestam a terceiros vendedores quando estes aderem ao programa «Envio através da Amazon».

28.      A primeira abordagem tem em conta, repito, a descrição remetida pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) que coincide com a decisão de recurso. Esse órgão jurisdicional terá de decidir, em última instância, se se consideram apenas os factos tal como foram apresentados pelas instâncias inferiores (o que é próprio num tribunal de recurso) ou se pode ir mais longe e avaliar o impacto de outros elementos que o mesmo não incorporou no pedido de decisão prejudicial.

29.      De todo o modo, há dois elementos que não são contestados por nenhuma das partes: a) a marca foi utilizada comercialmente sem autorização do seu titular (ou da entidade a quem este concedeu uma licença); b) essa utilização infringia o direito inerente à marca, que não se encontrava esgotado, no sentido do artigo 15.o do Regulamento 2017/1001, uma vez que não se tratava de «produtos que tenham sido comercializados no espaço económico europeu sob essa marca pelo titular ou com o seu consentimento».

B.      Interpretação do artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento 2017/1001

30.      O registo de uma marca da União Europeia confere ao seu titular o direito exclusivo de proibir que terceiros, sem o seu consentimento, façam uso, no decurso de operações comerciais, de um sinal idêntico à sua marca em produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a marca foi registada. Tal está previsto no artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento 2017/1001.

31.      Apenas quando estejam reunidas estas condições (isto é, as enunciadas no referido n.o 2) é que o titular da marca pode proibir terceiros de «[o]ferecer os produtos, colocá‑los no mercado ou armazená‑los para esses fins, ou oferecer ou prestar serviços sob o sinal», tal como disposto do n.o 3, alínea b), do referido artigo.

32.      Embora o órgão jurisdicional de reenvio não pergunte sobre as condições do referido n.o 2, penso que é conveniente debruçar‑me sobre este último tendo em conta o impacto que pode ter na resposta à questão prejudicial. Acresce que os problemas relacionados com o uso voltam a colocar‑se aquando da análise da interpretação do n.o 3 do mesmo preceito.

1.      Observações preliminares: Quanto à eventual falta de uso da marca no decurso de operações comerciais próprias

33.      A decisão de recurso declarou que a atuação da Amazon FC não constituía um uso na aceção do referido n.o 2 (19), mas não desenvolveu essa afirmação, pois decidiu o litígio com base na falta de posse dos produtos com intenção de os vender e no desconhecimento de que se tratavam de produtos cujo direito de marca não se encontrava esgotado.

34.      Quanto ao órgão jurisdicional de reenvio, parece subsumir implicitamente no artigo 9.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento 2017/1001 as circunstâncias em que a Amazon Services e a Amazon FC utilizam a marca contestada.

35.      A Comissão observa, contudo, que provavelmente as empresas do grupo Amazon não utilizavam o sinal em causa como marca, pelo que as condições de aplicação do artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento 2017/1001 não se encontravam reunidas. Uma vez que o n.o 2 é um pressuposto indispensável para a aplicação do n.o 3, se se acolher a posição da Comissão, deixa de ser necessário analisar este último.

36.      Para a Comissão, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os intermediários (20), como os armazenistas de produtos e os transportadores, que prestam serviços para terceiros não incorrem em responsabilidade pelas violações dos direitos de marca que cometam, dado que não utilizam o sinal no âmbito da sua própria comunicação comercial nem da sua atividade económica (21).

37.      Pela mesma ordem de ideias, a Comissão recorda a forma como o Tribunal de Justiça abordou uma questão prejudicial relativa à conduta de um operador de um sítio de comércio eletrónico (eBay), de cuja página de internet constavam anúncios de produtos protegidos por marcas da União, colocados à venda por pessoas que, com esse objetivo, se tinham registado e criado uma conta de vendedor (cobrando o eBay uma percentagem das transações efetuadas). Segundo o Tribunal de Justiça, aquele operador não utiliza a marca apenas pelo facto de a exibir na sua plataforma de comércio eletrónico em benefício do vendedor (22).

38.      O Tribunal de Justiça declarou que:

—      Caso seja um armazenista, «a prestação do serviço de armazenamento de mercadorias que ostentam a marca de outrem não constitui uso do sinal idêntico a essa marca para produtos ou serviços idênticos àqueles para os quais a referida marca foi registada» (23).

—      No caso do operador de um sítio de comércio eletrónico, «o “uso” de um sinal idêntico ou semelhante à marca do titular por parte de um terceiro, na aceção dos artigos 5.o da Diretiva 89/104 [do Conselho, de 21 de dezembro de 1988, que harmoniza as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 1989, L 40, p. 1),] e 9.o do Regulamento n.o 40/94 [do Conselho, de 20 de dezembro de 1993, sobre a marca comunitária (JO 1994, L 11, p. 1)], implica, pelo menos, que este último utilize o sinal no quadro da sua própria comunicação comercial. Ora, na medida em que o terceiro presta um serviço que consiste em permitir que os seus clientes façam aparecer, no quadro das suas atividades comerciais, como as suas propostas de venda, sinais que correspondem a marcas no seu sítio, aquele não faz, ele próprio, no referido sítio, uma utilização destes sinais na aceção da referida legislação da União» (24).

39.      Por conseguinte, o Tribunal de Justiça estabelece uma distinção entre operadores, a fim de determinar se existe ou não um uso por um terceiro de um sinal idêntico à marca. Não se considera uso, para efeitos do artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento 2017/1001, quando o terceiro simplesmente cria as condições técnicas necessárias para o uso de um sinal (25) ou quando tenha um comportamento passivo, sem domínio direto ou indireto do ato que constitui o uso (26).

40.      Com o mesmo objetivo de avaliar se há um uso do sinal em tais casos, o Tribunal de Justiça desenvolve a sua análise do nexo entre o sinal e o serviço do prestador (27). Na ausência de vínculo, não haverá uso da marca por parte deste último.

41.      Tendo em conta os factos tal como descritos na decisão de reenvio, poderia concluir‑se que a Amazon Services e a Amazon FC não fazem uso da marca do perfume como se fosse própria: limitam‑se a prestar aos vendedores e aos compradores os serviços típicos da intermediação, sem usar o sinal Davidoff na sua comunicação comercial nem na sua própria atividade económica.

42.      Por outro lado, seguindo a abordagem alternativa aos factos anteriormente referida, poder‑se‑ia admitir que as empresas do grupo Amazon usavam o sinal Davioff na medida em que não se limitavam a colocar os meios técnicos digitais à disposição dos vendedores, mas ofereciam um serviço que implicava o estabelecimento de um nexo entre o sinal e o referido serviço.

43.      Nestes termos, afigura‑se‑me correta a posição da Comissão que, após pôr em causa o uso da marca quando as empresas do grupo Amazon apenas criaram as condições técnicas necessárias para o seu uso por terceiros (28), abre a porta ao uso da marca por essas mesmas empresas na atividade comercial. Para que assim seja, a respetiva prestação dos serviços deve implicar um comportamento ativo e um domínio, direto ou indireto, do ato que constitui uso (29), o que deve ser analisado pelo órgão jurisdicional de reenvio. Abordarei posteriormente este aspeto.

2.      Posse dos bens para oferta ou colocação no mercado

44.      Admitindo, para efeitos dialéticos, que os requisitos do artigo 9.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento 2017/1001 se encontram preenchidos, há que definir, em seguida, o alcance do ius prohibendi regulado no n.o 3, alínea b), do mesmo artigo.

45.      Entre as condutas que o titular da marca pode proibir a terceiros que não obtenham o seu consentimento incluem‑se «oferecer os produtos», «colocá‑los no mercado» ou «armazená‑los para esses fins». O órgão jurisdicional de reenvio pergunta, especificamente, sobre o significado do sintagma «armazenamento de [produtos que violam direitos de marca] para os oferecer ou colocar no mercado» (30).

46.      O termo «armazenamento», cujas especificidades oferecem dúvidas ao órgão jurisdicional de reenvio, não figura em todas as versões linguísticas do artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento 2017/1001. A francesa («détenir») e a alemã («besitzen») utilizam palavras diretamente relacionadas com o instituto jurídico da posse (possessio). Outras, como a espanhola, a italiana, a portuguesa, a inglesa e a sueca preferem verbos ou substantivos que identificam a ação de armazenar bens (31).

47.      Parece‑me, no entanto, que em todas as línguas está presente a ideia de possuir com objetivos comerciais, pois além do armazenamento (ou nas versões que utilizam esse termo, da posse) exige‑se que a ação seja realizada «para esses fins», isto é, com o propósito de oferecer os bens ou colocá‑los no mercado, sem que se registem divergências linguísticas na segunda parte da oração.

48.      As condições de aplicação deste aspeto do ius prohibendi do titular da marca são, por conseguinte, duas, devendo ambas estar preenchidas para que se considere esse direito violado.

—      Um elemento material, a posse dos produtos que violam o direito sobre a marca.

—      Um elemento intencional, o caráter volitivo da posse com o objetivo de introduzir o produto no mercado, através de qualquer negócio jurídico, incluindo a sua oferta.

a)      Quanto ao elemento material: a posse

49.      No que diz respeito à posse, deve ser estabelecida uma distinção entre o armazenista e o operador do sítio de comércio eletrónico:

—      Em relação ao primeiro, de acordo com a jurisprudência já referida (32), o armazenista que se limita a conservar os produtos para um terceiro, no exercício habitual da sua profissão, não reúne os elementos necessários para a violação do direito de marca, pese embora tenha a posse imediata dos bens, quando é o terceiro, e não o próprio, que prossegue fins comerciais com os produtos. Assim, a sua conduta não parece implicar o estabelecimento de um nexo entre o sinal do produto e serviço de armazenamento (33).

—      No que diz respeito aos meros operadores de um sítio de comércio eletrónico, nem sequer se pode considerar que estão na posse dos produtos que violam a marca, quando a sua intermediação se limite a uma análoga à descrita no Acórdão L’Oréal.

50.      Aplicando estas categorias aos factos descritos pelo órgão jurisdicional de reenvio, nem a Amazon Services nem a Amazon FC estariam na posse dos produtos que violam o direito de marca com o propósito de os colocar no mercado ou oferecer, na aceção do artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento 2017/1001. Pelo exposto, concordo com a conclusão do órgão jurisdicional de reenvio de que a conduta destas empresas se encontra abrangida pela referida disposição.

51.      No entanto, esta apreciação pode ser alterada se se adotar a abordagem alternativa dos factos que referi acima. Nesta perspetiva, a Amazon Services e a Amazon FC, que participam ambas num modelo integrado de negócio, adotam um comportamento ativo no processo de venda, que é precisamente o comportamento exemplificado na norma em causa quando enumera atos como «oferecer os produtos», «colocá‑los no mercado» ou «armazená‑los para esses fins». Este comportamento ativo tem por corolário o aparente controlo total do processo de venda.

52.      Na atividade das empresas do grupo Amazon, analisada nesta perspetiva, é necessário distinguir os elementos exógenos (os que são percecionados pelo consumidor médio que adquire um produto da Amazon) e os elementos endógenos (aqueles que dizem respeito à relação entre o vendedor e a Amazon, sem serem percecionados externamente) (34).

53.      Concentrar‑me‑ei na perspetiva de um consumidor final que compra um bem a um terceiro através de uma página da Internet como a amazon.de, no âmbito do programa «Envio através da Amazon». Na medida em que o comprador pode pensar que é a Amazon Services que coloca os produtos no mercado, isto é, que existe uma «conexão material na vida comercial entre os produtos do terceiro e a empresa de proveniência desses produtos» (35), é possível deduzir, no mesmo sentido do Tribunal de Justiça em jurisprudência anterior, que existe um uso da marca.

54.      Ao comprador que procura um produto na página Internet da Amazon são apresentadas diferentes propostas do mesmo produto, que podem provir quer de vendedores que tenham celebrado com Amazon um contrato para a colocação no mercado dos seus produtos através do seu sítio de comércio eletrónico quer da própria Amazon, que os vende por conta própria. Nem sempre é fácil, mesmo para um internauta normalmente informado e razoavelmente atento, determinar se os produtos ou os serviços apresentados provêm do titular da marca ou de uma empresa que lhe está economicamente ligada ou, pelo contrário, de um terceiro (36). A função essencial da marca, que é indicar a origem de um produto, fica assim prejudicada.

55.      Com o programa «Envio através da Amazon», as empresas deste grupo, que atuam de forma coordenada, não se ocupam unicamente do armazenamento e do transporte neutros dos produtos, mas também de uma gama de atividade muito mais ampla.

56.      Com efeito, ao escolher esse programa, o vendedor remete à Amazon os produtos selecionados pelo cliente e são as empresas do grupo Amazon que os recebem, os armazenam nos seus centros de distribuição, os preparam (podem inclusivamente etiquetá‑los, embalá‑los adequadamente ou embrulhá‑los para presente) e os expedem para o comprador. A Amazon pode também utilizar a sua página Internet para fazer publicidade (37) e difundir as ofertas. Além disso, é a Amazon que presta o serviço pós‑venda, para pedidos de informação e devoluções, e gere os reembolsos dos produtos defeituosos (38). É também a Amazon que recebe do comprador o pagamento dos produtos, cujo montante é depois transferido para a conta bancária do vendedor (39).

57.      Esta participação ativa e coordenada das empresas da Amazon na comercialização dos produtos implica a assunção de uma boa parte das tarefas próprias do vendedor, para quem a Amazon «faz o trabalho pesado», como resulta da página Internet da Amazon. Na referida página pode ler‑se, como incentivo ao vendedor para que subscreva o programa «Envio através da Amazon», a seguinte frase: «Envia‑nos os teus produtos e nós encarregamo‑nos do resto». Nestas condições, as empresas da Amazon exercem «um comportamento ativo e um domínio, direto ou indireto, do ato que constitui o uso [da marca]» (40).

58.      Se, no caso dos autos, se se confirmasse que as empresas da Amazon prestaram esses serviços (ou, pelo menos, os mais relevantes) no âmbito do programa «Envio através da Amazon» (41), haveria que considerar que, quer como operador de um sítio de comércio eletrónico quer como armazenista, desempenham funções na colocação do produto no mercado que vão além da mera criação de condições técnicas para o uso do sinal. Por conseguinte, perante um produto que viola os direitos do titular dessa marca, a reação deste último poderia legitimamente consistir em proibir o uso do sinal.

59.      O papel relevante das empresas da Amazon no processo de comercialização não pode ser diluído pela análise separada da atividade individual de cada uma delas. Seria contrário à realidade económica e ao princípio da igualdade tratar o armazenamento, a gestão dos pedidos e os demais serviços que prestam da mesma forma que os serviços prestados por um simples transportador ou armazenista independente, num modelo de negócio independente de qualquer outra operação da cadeia de distribuição (42).

60.      Também não é um obstáculo ao exposto até agora que as empresas do grupo Amazon afirmem agir enquanto intermediários por conta do vendedor. Por um lado, essa pretensa intermediação tem as características de um envolvimento ativo na colocação no mercado, que já foram salientadas. Por outro lado, para o Tribunal de Justiça «não tem importância […] que este uso seja feito pelo terceiro, no quadro da comercialização de produtos por conta de outro operador que é o único proprietário desses produtos» (43).

61.      Por último, é irrelevante, para os efeitos agora pertinentes, que as empresas do grupo Amazon não adquiram «a […] propriedade [dos produtos] no decurso da transação em que interv[ê]m» (44).

62.      Uma vez que, neste caso, o papel do intermediário não é neutro, as isenções de responsabilidade dos prestadores de serviços da sociedade da informação previstas no artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2000/31 não são aplicáveis a este litígio. Essas isenções limitam‑se ao processo técnico de exploração e abertura do acesso a uma rede de comunicação na qual as informações prestadas por terceiros são transmitidas ou temporariamente armazenadas (45). Por conseguinte, não podem ser aplicadas a uma atividade como o armazenamento físico e a entrega material dos produtos.

63.      Acresce que, o Tribunal de Justiça excluiu a aplicação do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2000/31 ao operador de um sítio de comércio eletrónico que desempenha um papel ativo, como o de prestar «assistência para otimizar a apresentação das propostas de venda […] ou para promover estas propostas» (46).

b)      Quanto ao elemento intencional: o objetivo de oferecer ou colocar no mercado os produtos armazenados (ou objeto de posse)

64.      O artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento (UE) 2017/1001 exige que o armazenamento dos produtos que violam direitos de marca esteja relacionado com os objetivos de os oferecer ou colocar no mercado.

65.      A Amazon Services e a Amazon FC alegam que não têm uma relação direta com esses objetivos, uma vez que se limitam a prestar os seus serviços aos verdadeiros vendedores. Sublinham que, se a responsabilidade pela violação de um direito de marca for alargada aos operadores que armazenam os bens, mas sem a intenção de os vender (o que é comum a qualquer intermediário, armazenista, transportador ou transitário), criar‑se‑á uma grande insegurança jurídica no comércio legítimo.

66.      O órgão jurisdicional de reenvio parece aceitar esta tese, uma vez que a sua questão diz respeito a uma «pessoa que armazena, em nome de um terceiro, produtos que violam direitos de marca […] quando não seja ela mas apenas esse terceiro quem tem a intenção de os oferecer ou colocar no mercado».

67.      Por conseguinte, poderia dizer‑se que a pergunta formulada nestes termos encerra em si mesma a resposta: se é apenas o terceiro (o vendedor) que pretende ou tem intenção de oferecer os produtos ou colocá‑los no mercado, fica excluído que as empresas do grupo Amazon tenham também esse objetivo. A conduta destas, simplesmente, não é abrangida pelo artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento 2017/1001, uma vez que não se verifica o elemento intencional que o preceito exige.

68.      De novo, a resposta podia ser diferente se se adotasse uma visão dos factos centrada na conduta particular das empresas do grupo Amazon, enquanto muito envolvidas na colocação no mercado dos referidos produtos, no âmbito do programa «Envio através da Amazon».

69.      Segundo esta perspetiva, que supera em muito a de um mero auxiliar neutro do vendedor, é difícil negar que aquelas empresas têm, juntamente com o vendedor, o objetivo de oferecer ou colocar no mercado os produtos em causa.

C.      Responsabilidade das empresas que armazenam produtos que violam direitos de marca sem ter conhecimento dessa violação

70.      O órgão jurisdicional de reenvio incluiu uma referência explícita ao não conhecimento da infração pelas empresas que armazenam os produtos (parte do princípio de que é um terceiro que procura oferecê‑los ou colocá‑los no mercado) como fator suscetível de ter impacto na sua responsabilidade. Faz referência, como é lógico, às empresas da Amazon, demandadas no processo.

71.      Nos termos do artigo 17.o do Regulamento 2017/1001, as infrações às marcas da União são reguladas pelo direito nacional em matéria de infrações a marcas nacionais (n.o 1). O próprio regulamento «não exclui que sejam intentadas ações respeitantes a marcas da [União] com base no direito dos Estados‑Membros, nomeadamente em matéria de responsabilidade civil» (n.o 2). Acrescenta, no artigo 129.o, n.o 2, que «[à]s questões relativas a marcas comerciais não abrangidas pelo âmbito de aplicação do presente regulamento, os tribunais de marcas da [União] aplicam o direito nacional aplicável».

72.      À luz do artigo 1.o da Diretiva 2004/48 (47), o direito nacional aplicável será, por um lado, o direito que resulte da sua transposição. Por outro lado, em conformidade com o seu considerando 15, a Diretiva 2004/48 não afeta a Diretiva 2000/31, pelo que a legislação nacional que transpõe esta diretiva também é aplicável.

73.      A existência ou não de conhecimento da infração do direito de marca é relevante no mercado eletrónico: assim se deduz do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2000/31/CE, sobre a isenção de responsabilidade dos prestadores de serviços intermediários, e da interpretação que o Tribunal de Justiça faz do mesmo.

74.      O Acórdão L’Oréal, como já foi referido, excluiu da isenção o operador que desempenha um papel ativo em virtude do qual adquire conhecimento dos dados relativos às propostas de venda armazenadas no seu servidor (48). Um operador neutro também não está isento se tiver tido conhecimento efetivo da atividade ou informação ilegal e, no que diz respeito a uma ação de indemnização por perdas e danos, tiver tido conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciam a atividade ou informação ilegal (49).

75.      No que se refere às perdas e danos, no contexto da Diretiva 2004/48, o conhecimento (ou o não conhecimento) da ilicitude também pode ser relevante. Tal resulta do teor do artigo 13.o, n.o 1, relativamente aos infratores. Para os intermediários, o mesmo artigo (n.o 2) deixa aos Estados‑Membros a decisão sobre o regime aplicável a quem, «sem o saber [nem] tendo motivos razoáveis para o saber, […] tenha desenvolvido uma atividade ilícita».

76.      Questão distinta da relevância do conhecimento, ainda que relacionada com esta, é a relativa à diligência do intermediário em adquiri‑lo. A jurisprudência do Tribunal de Justiça, em relação ao artigo 11.o, última frase, da Diretiva 2004/48 (relativa às medidas inibitórias contra intermediários cujos serviços sejam utilizados por terceiros para violar direitos de propriedade intelectual) oferece alguma indicação (50).

77.      No Acórdão L’Oréal, o Tribunal de Justiça fez uma análise das medidas que, com base nessa disposição, podem ser impostas ao prestador de serviços em linha a fim de prevenir qualquer violação futura dos direitos de propriedade intelectual de um terceiro. Recordou, em primeiro lugar, o artigo 15.o da Diretiva 2000/31, que afasta uma obrigação geral de vigilância por parte dos prestadores de serviços. Em segundo lugar, remeteu para o artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2004/48, salientando que as medidas destinadas a assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual devem ser aplicadas de forma a evitar que se criem obstáculos ao comércio legítimo.

78.      Neste contexto, uma proposta suscetível de garantir o justo equilíbrio entre a proteção dos direitos de marca e a inexistência de obstáculos ao comércio legítimo seria, na minha opinião, a que distingue os intermediários em função da qualidade dos serviços prestados ao autor direto da infração da marca.

79.      Assim, os meros armazenistas encarregados de tarefas exclusivamente auxiliares estão isentos de responsabilidade se participarem na atividade ilícita sem conhecer ou sem ter motivos razoáveis para conhecer esse caráter ilícito. Por outras palavras, se não tiveram nem podiam ter tido conhecimento do caráter ilícito da comercialização do produto que um vendedor introduz no mercado sem respeitar o direito do titular da marca.

80.      Sob reserva de algumas variantes que não é necessário salientar agora, a esses meros armazenistas não se pode exigir uma especial obrigação de diligência para assegurar, em cada caso, o respeito pelos direitos do titular da marca que identifica os produtos que lhes são confiados exceto se a ilicitude da infração for manifesta. Essa exigência generalizada oneraria em excesso a atividade normal dessas empresas, enquanto prestadoras de serviços auxiliares de comércio (51).

81.      A situação é diferente quando se trata de empresas, como as demandadas, que, ao prestarem os seus serviços no âmbito do programa «Envio através da Amazon», se envolvem na colocação dos produtos no mercado como descrito anteriormente. O órgão jurisdicional de reenvio afirma que essas empresas desconheciam que as mercadorias violavam o direito de marca da Coty Germany, mas sou da opinião que esse desconhecimento não as isenta necessariamente de responsabilidade.

82.      Com efeito, o envolvimento significativo destas empresas na colocação dos produtos no mercado através do referido programa implica a possibilidade de se lhes exigir um especial cuidado (diligência) em relação ao controlo da licitude dos produtos que comercializam. Precisamente por terem consciência de que, sem esse controlo (52), podem facilmente servir de canal de venda de «produtos ilícitos, de contrafação, pirateados, roubados ou resultado de outras práticas ilegais ou contrárias à ética, que violam os direitos de propriedade de terceiros» (53), não podem, sem mais, desonerar‑se da sua responsabilidade imputando‑a em exclusivo ao vendedor.

83.      A decisão, em última instância, sobre a responsabilidade civil das demandadas é da competência do órgão jurisdicional de reenvio, em função das circunstâncias de facto que considerar provadas. Na medida em que esta última parte da questão prejudicial respeita à incidência que o desconhecimento, pelas demandadas, da infração do direito do titular da marca pode ter nessa decisão, considero que essa ignorância, por si só, não as isenta de responsabilidade.

V.      Conclusão

84.      Atendendo às considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial submetida pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha) nos seguintes termos:

«O artigo 9.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento (CE) n.o 207/2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária, e o artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia devem ser interpretados no sentido de que:

—      Uma pessoa não armazena para um terceiro (vendedor) produtos que violam direitos de marca para os oferecer ou colocar no mercado quando, sem ter conhecimento dessa violação, não é ela própria, mas apenas esse terceiro, que pretende oferecer ou colocar no mercado os produtos.

—      Todavia, se essa pessoa se envolver ativamente na distribuição desses produtos no âmbito de um programa com as características do programa “Envio através da Amazon”, que o vendedor subscrever, pode entender‑se que armazena esses produtos a fim de os oferecer ou colocar no mercado.

—      O facto de essa pessoa não ter conhecimento de que o terceiro oferece ou vende os seus produtos em violação dos direitos do titular da marca, no âmbito de um programa como o referido, não a isenta de responsabilidade quando se puder razoavelmente exigir‑lhe que implemente os meios para detetar essa infração».


1      Língua original: espanhol.


2      Acórdão de 6 de dezembro de 2017 (C‑230/16, EU:C:2017:941).


3      O contexto da questão prejudicial é o direito das marcas da União Europeia. Se se vier a concluir que as demandadas não utilizaram a marca, pode ainda aferir‑se a sua responsabilidade quer nos termos da Diretiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno (Diretiva sobre o comércio eletrónico, JO 2000, L 178, p. 1), caso atuem como intermediárias no comércio eletrónico; quer nos termos da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual (JO 2004, L 157, p. 45).


4      Regulamento (CE) n.o 207/2009 do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, sobre a marca comunitária (JO 2009, L 78, p. 1).


5      Desde 23 de março de 2016, as «marcas comunitárias» passaram a denominar‑se «marcas da União Europeia», em virtude do artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento (UE) 2015/2424 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, que altera o Regulamento (CE) n.o 207/2009 do Conselho sobre a marca comunitária e o Regulamento (CE) n.o 2868/95 da Comissão relativo à execução do Regulamento (CE) n.o 40/94 do Conselho sobre a marca comunitária, e que revoga o Regulamento (CE) n.o 2869/95 da Comissão relativo às taxas a pagar ao Instituto de Harmonização do Mercado Interno (marcas, desenhos e modelos) (JO 2015, L 341, p. 21).


6      Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia (JO 2017, L 154, p. 1).


7      O artigo 9.o, n.o 2, alínea b), do Regulamento n.o 207/2009 e o artigo 9.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento 2017/1001.


8      Nos cinco sítios de Internet da Amazon na União Europeia, o programa denomina‑se Versand durch Amazon (amazon.de); Logística de Amazon (amazon.es); Logistica di Amazon (amazon.it); Expedié par Amazon (amazon.fr); e Fulfilment by Amazon (amazon.co.uk).


9      A título subsidiário, pediu a mesma condenação em relação à «Davidoff Hot Water EdT 60 ml» ou aos lotes do referido perfume fornecidos pela vendedora.


10      Acórdão do Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique, Alemanha) de 29 de setembro de 2017 (Az.: 29 U 745/16).


11      Na aceção do artigo 9.o, segunda frase, n.o 1, da Patentgesetz (Lei de Patentes alemã).


12      Despacho de 7 de outubro de 2013, Società cooperativa Madonna dei micoli (C‑82/13, EU:C:2013:655, n.o 13).


13      Acórdão de 26 de abril de 2012, Balkan and Sea Properties e Provadinvest (C‑621/10 e C‑129/11, EU:C:2012:248, n.o 41 e jurisprudência citada).


14      Acórdão de 26 de outubro de 2017, Argenta Spaarbank (C‑39/16, EU:C:2017:813, n.o 38 e jurisprudência citada).


15      Acórdão de 22 de setembro de 2016, Breitsamer und Ulrich (C‑113/15, EU:C:2016:718, n.o 34 e jurisprudência citada).


16      Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Global Starnet (C‑322/16, EU:C:2017:985, n.o 17 e jurisprudência citada).


17      Acórdão de 5 de junho de 2014, I (C‑255/13, EU:C:2014:1291, n.o 55 e jurisprudência citada).


18      Tal pode ser o caso, nomeadamente, quando o advogado‑geral tenha efetuado uma análise da questão prejudicial com base numa interpretação dos factos diferente da do órgão jurisdicional de reenvio. Em alguns casos [Acórdão de 20 de setembro de 2001, Grzelczyk (C‑184/99, EU:C:2001:458, n.os 16 a 18)], o Tribunal de Justiça permitiu ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, à luz das conclusões do advogado‑geral, se os factos e as circunstâncias do processo principal autorizam outra abordagem. Nesse processo, o advogado‑geral S. Alber considerou que R. Grzelczyk preenchia as condições para ser considerado trabalhador, na aceção do TFUE, e não apenas estudante, como tinha sido descrito pelo órgão jurisdicional de reenvio. O advogado‑geral propunha, assim, uma perspetiva algo diferente da do órgão jurisdicional de reenvio, mas o Tribunal de Justiça cingiu‑se estritamente aos factos do despacho de reenvio. V. Conclusões de 28 de setembro de 2000 apresentadas no referido processo (EU:C:2000:518, n.os 65 a 75).


19      Acórdão do Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique), referido, 2.a parte, B. I. 1. a) bb) (1).


20      É assim que qualifica as duas empresas do grupo Amazon: no caso da Amazon Services, à luz da Diretiva 2000/31; no caso da Amazon FC, da Diretiva 2004/48.


21      A Comissão invoca, nomeadamente, o Acórdão de 16 de julho de 2015, TOP Logistics BV e o. (C‑379/14, EU:C:2015:497, n.o 45).


22      Acórdão de 12 de julho de 2011, L’Oréal e o. (C‑324/09, EU:C:2011:474; a seguir «Acórdão L’Oreal», n.os 102 a 104).


23      Acórdão de 16 de julho de 2015, TOP Logistics e o. (C‑379/14, EU:C:2015:497, n.o 45).


24      Acórdão L’Oréal, n.os 102 e 103.


25      Acórdão de 15 de dezembro de 2011, Frisdranken Industrie Winters (C‑119/10, EU:C:2011:837; a seguir «Acórdão Frisdranken Industrie Winters», n.o 29).


26      Acórdão de 3 de março de 2016, Daimler (C‑179/15, EU:C:2016:134; a seguir, «Acórdão Daimler», n.o 39).


27      Acórdãos Frisdranken Industrie Winters, n.o 32; de 23 de março de 2010, Google France e Google (C‑236/08 a C‑238/08, EU:C:2010:159; a seguir «Acórdão Google France e Google», n.o 60); L’Oréal, n.o 92; e Despacho de 19 de fevereiro de 2009, UDV North America (C‑62/08, EU:C:2009:111; a seguir «Despacho UDV North America», n.o 47).


28      Acórdãos Google France e Google, n.o 57, e Frisdranken Industrie Winters, n.o 29.


29      Referindo‑se ao Acórdão Daimler, n.os 39 e 41, e ao Acórdão de 25 de julho de 2018, Mitsubishi Shoji Kaisha e Mitsubishi Caterpillar Forklift Europe (C‑129/17, EU:C:2018:594, n.o 38).


30      Não considero imprescindível desenvolver os conceitos de «oferta» ou «colocação no mercado» nos termos da sua habitual aceção no domínio comercial. Em substância, a primeira inclui a disposição para entregar a uma terceira pessoa, individual ou coletiva, os produtos que ostentem uma marca, tanto quando a oferta é juridicamente vinculativa desde o início para quem a faz como quando se trata de uma mera invitatio ad offerendum. No que diz respeito à segunda, entende‑se por colocação no mercado a atividade que conduz à entrada da mercadoria no comércio, normalmente através da transferência para um terceiro do poder de dispor da mesma.


31      Respetivamente, «almacenarlos» «stoccaggio», «armazená‑los», «stocking» e «lagra».


32      V. n.os 35 e segs. das presentes conclusões e das notas que os acompanham.


33      A situação é pois comparável à da empresa que procedia ao enchimento de latas que ostentavam sinais semelhantes aos de uma marca registada. V. Acórdão Frisdranken Industrie Winters, n.os 33 e 34.


34      Na audiência, o representante da Amazon Services respondeu às perguntas do Tribunal fazendo referência às relações internas do vendedor com a Amazon, refletidas num contrato‑tipo e na criação de uma «conta de vendedor» através da qual este gere a lista de produtos e seleciona os serviços da Amazon que subscreve.


35      Despacho UDV North America, n.o 49 que, por sua vez, cita o n.o 60 do Acórdão de 16 de novembro de 2004, Anheuser‑Busch (C‑245/02, EU:C:2004:717).


36      Acórdão L’Oréal, n.o 94.


37      Facilita aos vendedores a promoção dos seus produtos colocando‑os num lugar privilegiado nos resultados da página de pesquisa, sob determinadas condições.


38      Na audiência, o representante da Amazon Services insistiu em separar a atividade da Amazon da compra e venda propriamente dita, argumentando que, de um ponto de vista estritamente jurídico, é o vendedor que fornece os produtos, define o preço e transfere a propriedade; a Amazon não oferece os produtos, apenas os apresenta. Contudo, tal não é pertinente do ponto de vista da função essencial da marca.


39      A contrario sensu, Acórdãos Google France e Google, n.o 57; e Frisdranken Industrie Winters, n.o 29.


40      Acórdão Daimler, n.o 39.


41      Assim, compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se as suas normas processuais permitem tomar em consideração uma matéria de facto que difere da que foi levada em conta no tribunal de recurso (v. n.o 28 das presentes conclusões).


42      Na audiência, o representante do Governo da República Federal da Alemanha sublinhou a necessidade de diferenciar entre modelos de negócio díspares e rejeitar, na hipótese de uma estrutura integrada (como a da Amazon), uma segmentação fictícia entre as diferentes fases do processo de comercialização.


43      Despacho UDV North America, n.o 51.


44      Ibidem, n.o 48.


45      Considerando quadragésimo segundo.


46      Acórdãos L’Oréal, n.o 116; e Google France e Google, n.o 114.


47      «Para efeitos da presente diretiva, a expressão “direitos de propriedade intelectual” engloba os direitos da propriedade industrial».


48      V. n.o 63 destas conclusões.


49      Acórdão L’Oréal, n.os 116 e 119.


50      Ainda que com cautela, atendendo à disparidade de situações, pode também servir de inspiração a jurisprudência do Tribunal de Justiça a propósito do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação (JO 2001, L 167, p. 10). Neste contexto, o Tribunal de Justiça utilizou o elemento subjetivo (conhecimento) na interpretação do conceito de «comunicação ao público». Em concreto, referiu‑se a situações em que a pessoa sabia ou devia saber que a hiperligação que disponibilizou dava acesso a uma obra ilegalmente publicada na Internet. Na realidade, estabeleceu uma presunção iuris tantum, quando a hiperligação se destina a fins lucrativos. V. Acórdão de 8 de setembro de 2016, GS Media (C‑160/15, EU:C:2016:644).


51      Logicamente, não podem invocar o desconhecimento quando são advertidas da infração pelo titular da marca ou pelo seu representante.


52      Esse controlo pressupõe, obviamente, que possam identificar, a qualquer momento, quem é que enviou os produtos abrangidos no programa «Envio através da Amazon». Assim, evitar‑se‑iam situações como a do processos em apreço, em que a Amazon Services não foi capaz de indicar a origem de onze das unidades de perfume «Davidoff Hot Water EdT 60 ml» (v. n.o 12 das presentes conclusões). Na audiência, o representante da Amazon argumentou que tal situação é excecional e que foi consequência de um erro humano.


53      O relatório da Amazon.Con Inc. para a US Securities and Exchange Commission, relativo a 2018, refere o seguinte no que respeita aos riscos assumidos: «We also may be unable to prevent sellers in our stores or through other stores from selling unlawful, counterfeit, pirated, or stolen goods, selling goods in an unlawful or unethical manner, violating the proprietary rights of others, or otherwise violating our policies […] To the extent any of this occurs, it could harm our business or damage our reputation and we could face civil or criminal liability for unlawful activities by our sellers». Há também que referir a cláusula sétima do Amazon Services Europe Business Solutions Agreement, na sua última versão (alterada em agosto de 2019), da qual resulta que a Amazon assume uma responsabilidade direta em relação a terceiros, quer se trate de proprietários de direitos de propriedade intelectual ou de adquirentes de produtos, nos termos estabelecidos nessa cláusula. Os dois documentos foram referidos na audiência.