Language of document : ECLI:EU:C:2024:257

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

21 de março de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Agricultura — Aproximação das legislações em matéria de saúde — Polícia sanitária — Controlos veterinários — Produtos de origem animal importados da China — Proibição de importação — Decisão 2002/994/CE — Isenção para certos produtos — Parte I do anexo — Produtos da pesca — Conceito — Óleo de peixe — Produtos destinados à alimentação animal — Validade»

No processo C‑7/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica), por Decisão de 22 de dezembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de janeiro de 2023, no processo

Marvesa Rotterdam NV

contra

Federaal Agentschap voor de veiligheid van de voedselketen (FAVV),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: N. Wahl (relator), exercendo funções de presidente da Sétima Secção, J. Passer e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: L. Medina,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Marvesa Roterdam NV, por S. Feyen, advocaat, C. Louski, avocate, e J. Mosselmans, advocaat,

–        em representação da Federaal Agentschap voor de veiligheid van de voedselketen (FAVV), por R. Depla, advocaat,

–        em representação do Governo Belga, por S. Baeyens, P. Cottin e C. Pochet, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por B. Hofstötter e M. ter Haar, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação e a validade da parte I do anexo da Decisão 2002/994/CE da Comissão, de 20 de dezembro de 2002, relativa a certas medidas de proteção no que diz respeito aos produtos de origem animal importados da China (JO 2002, L 348, p. 154), conforme alterada pela Decisão de Execução (UE) 2015/1068 da Comissão, de 1 de julho de 2015 (JO 2015, L 174, p. 30) (a seguir «Decisão 2002/994»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Marvesa Rotterdam NV (a seguir «Marvesa») à Federaal Agentschap voor de veiligheid van de voedselketen (FAVV) [Agência Federal para a Segurança da Cadeia Alimentar (AFSCA), Bélgica], a respeito da legalidade de duas decisões desta última que recusam a importação de óleo de peixe proveniente da China e destinado à alimentação animal.

 Quadro jurídico

 Diretiva 97/78/CE

3        O artigo 2.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 97/78/CE do Conselho, de 18 de dezembro de 1997, que fixa os princípios relativos à organização dos controlos veterinários dos produtos provenientes de países terceiros introduzidos na Comunidade (JO 1998, L 24, p. 9), conforme alterada pelo artigo 58.o da retificação ao Regulamento (CE) n.o 882/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo aos controlos oficiais realizados para assegurar a verificação do cumprimento da legislação relativa aos alimentos para animais e aos géneros alimentícios e das normas relativas à saúde e ao bem‑estar dos animais (JO 2004, L 191, p. 1) (a seguir «Diretiva 97/78»), definia o conceito de «[p]rodutos» nos seguintes termos:

«Além disso, entende‑se por:

a)      “Produtos”, os produtos de origem animal referidos nas Diretivas 89/662/CEE [do Conselho, de 11 de dezembro de 1989, relativa aos controlos veterinários aplicáveis ao comércio intracomunitário, na perspetiva da realização do mercado interno (JO 1989, L 395, p. 13),] e 90/425/CEE [do Conselho, de 26 de junho de 1990, relativa aos controlos veterinários aplicáveis ao comércio intraunião de certos animais vivos e produtos, na perspetiva da realização do mercado interno (JO 1990, L 224, p. 29)], no Regulamento (CE) n.o 1774/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de outubro de 2002, que estabelece regras sanitárias relativas aos subprodutos animais não destinados ao consumo humano [(JO 2002, L 273, p. 1)], na Diretiva 2002/99/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, que estabelece as regras de polícia sanitária aplicáveis à produção, transformação, distribuição e introdução de produtos de origem animal destinados ao consumo humano [(JO 2003, L 18, p. 11)] e no Regulamento (CE) n.o 854/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece regras específicas de organização dos controlos oficiais de produtos de origem animal destinados ao consumo humano [(JO 2004, L 139, p. 206)]; inclui também os produtos vegetais contemplados no artigo 19.o».

4        O artigo 22.o, n.o 1, da Diretiva 97/78 previa:

«Se no território de um país terceiro se manifestar ou se desenvolver uma doença prevista na Diretiva 82/894/CEE do Conselho, de 21 de dezembro de 1982, relativa à notificação de doenças dos animais na Comunidade [(JO 1982, L 378, p. 58)], uma zoonose ou outra doença ou qualquer outra fenómeno suscetível de constituir perigo grave para os animais ou a saúde humana, ou se qualquer outra razão grave de polícia sanitária ou de proteção da saúde pública o justificar, nomeadamente à luz das verificações feitas pelos seus peritos veterinários, ou durante os controlos efetuados num posto de inspeção fronteiriço, a Comissão [Europeia], por sua própria iniciativa ou a pedido de um Estado‑Membro, adotará sem demora, e um função da gravidade da situação, uma das seguintes medidas:

–        suspensão das importações provenientes da totalidade ou de parte do país terceiro em questão e, se for caso disso, do país terceiro de trânsito,

–        fixação de condições especiais para os produtos provenientes da totalidade ou de parte do país terceiro em questão,

–        fixação, com base nas constatações efetivamente feitas, de exigências de controlo adaptadas, em que se poderão incluir uma pesquisa específica dos riscos para a saúde pública ou animal e, em função do resultado desses controlos, o aumento das frequências dos controlos físicos.»

5        A Diretiva 97/78 foi revogada e substituída pelo Regulamento (UE) 2017/625 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2017, relativo aos controlos oficiais e outras atividades oficiais que visam assegurar a aplicação da legislação em matéria de géneros alimentícios e alimentos para animais e das regras sobre saúde e bem‑estar animal, fitossanidade e produtos fitofarmacêuticos, que altera os Regulamentos (CE) n.o 999/2001, (CE) n.o 396/2005, (CE) n.o 1069/2009, (CE) n.o 1107/2009, (UE) n.o 1151/2012, (UE) n.o 652/2014, (UE) 2016/429 e (UE) 2016/2031 do Parlamento Europeu e do Conselho, os Regulamentos (CE) n.o 1/2005 e (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, e as Diretivas 98/58/CE, 1999/74/CE, 2007/43/CE, 2008/119/CE e 2008/120/CE do Conselho, e que revoga os Regulamentos (CE) n.o 854/2004 e (CE) n.o 882/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, as Diretivas 89/608/CEE, 89/662/CEE, 90/425/CEE, 91/496/CEE, 96/23/CE, 96/93/CE e 97/78/CE do Conselho e a Decisão 92/438/CEE do Conselho (Regulamento sobre os controlos oficiais) (JO 2017, L 95, p. 1).

 Decisão 2002/994

6        Os considerandos 1 e 4 da Decisão 2002/994 enunciam:

«(1)      Em conformidade com a Diretiva [97/78], devem ser adotadas as medidas necessárias no que diz respeito à importação de certos produtos de países terceiros sempre que se manifeste ou desenvolva um fenómeno suscetível de constituir um perigo grave para a saúde animal ou humana.

[…]

(4)      Na sequência da deteção de cloranfenicol em certos produtos da pesca e da aquicultura importados da China, a Comissão adotou a Decisão 2001/699/CE, de 19 de setembro de 2001, relativa a certas medidas de proteção no que diz respeito a determinados produtos da pesca e da aquicultura destinados ao consumo humano e originários da China e do Vietname [(JO 2001, L 251, p. 11)], alterada pela Decisão 2002/770/CE [da Comissão, de 2 de outubro de 2002, que altera a Decisão 2001/699/CE e revoga a Decisão 2002/250/CE, com o objetivo de revogar as medidas de proteção no que diz respeito aos produtos da pesca e da aquicultura importados do Vietname (JO 2002, L 265, p. 16)]. Além disso, na sequência das insuficiências identificadas durante uma visita de inspeção efetuada na China no que diz respeito à regulamentação de medicamentos veterinários e ao sistema de controlo de resíduos em animais vivos e produtos de origem animal, a Comissão adotou a Decisão 2002/69/CE, de 30 de janeiro de 2002, relativa a certas medidas de proteção no que diz respeito aos produtos de origem animal importados da China [(JO 2002, L 30, p. 50)], com a última redação que lhe foi dada pela Decisão 2002/933/CE [da Comissão, de 28 de novembro de 2002, que altera a Decisão 2002/69/CE relativa a certas medidas de proteção no que diz respeito aos produtos de origem animal importados da China (JO 2002, L 324, p. 71)].»

7        O artigo 1.o da Decisão 2002/994 tem a seguinte redação:

«A presente decisão é aplicável a todos os produtos de origem animal importados da China e destinados ao consumo humano ou animal.»

8        O artigo 2.o desta decisão dispõe:

«1.      Os Estados‑Membros proíbem a importação dos produtos referidos no artigo 1.o

2.      Em derrogação do n.o 1, os Estados‑Membros autorizam as importações dos produtos constantes do anexo da presente decisão, em conformidade com as condições específicas de sanidade animal e saúde pública aplicáveis aos produtos em causa e com o artigo 3.o, no caso dos produtos enumerados na parte II do anexo.»

9        Nos termos da parte I do anexo da referida decisão:

«Lista de produtos de origem animal destinados à alimentação humana ou animal cuja importação para a União [Europeia] é autorizada sem a apresentação da declaração referida no artigo 3.o:

–        produtos da pesca, exceto:

–        produtos de aquicultura,

–        camarão descascado e/ou transformado,

–        lagostins‑vermelhos‑do‑rio da espécie Procambrus clarkii capturados em águas doces naturais por meio de operações de pesca;

–        gelatina;

–        alimentos para animais de companhia, tal como regulados pelo Regulamento (CE) n.o 1069/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho[, de 21 de outubro de 2009, que define regras sanitárias relativas a subprodutos animais e produtos derivados não destinados ao consumo humano e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1774/2002 (regulamento relativo aos subprodutos animais) (JO 2009, L 300, p. 1)];

–        substâncias a utilizar como aditivos alimentares, tal como regulados pelo Regulamento (CE) n.o 1333/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho[, de 16 de dezembro de 2008, relativo aos aditivos alimentares (JO 2008, L 354, p. 16)];

[…]»

 Regulamento (CE) n.o 853/2004

10      O artigo 2.o do Regulamento (CE) n.o 853/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, que estabelece regras específicas de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal (JO 2004, L 139, p. 55; retificação no JO 2004, L 226, p. 22), dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento são aplicáveis as seguintes definições:

1.      As definições previstas no Regulamento (CE) n.o 178/2002 [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro de 2002, que determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos géneros alimentícios (JO 2002, L 31, p. 1)];

[…]»

11      O ponto 3.1 do anexo I do Regulamento n.o 853/2004 prevê:

«Produtos da pesca: todos os animais marinhos ou de água doce (com exceção dos moluscos bivalves, equinodermes, tunicados e gastrópodes marinhos vivos e de todos os mamíferos, répteis e rãs), selvagens ou de cultura, incluindo todas as formas, partes e produtos comestíveis desses animais».

 Regulamento n.o 854/2004

12      O artigo 2.o, n.o 2, alínea d), do Regulamento n.o 854/2004 enuncia:

«São também aplicáveis, sempre que adequado, as definições constantes dos seguintes regulamentos:

[…]

d)      Regulamento [n.o 853/2004].»

13      O Regulamento n.o 854/2004 foi revogado e substituído pelo Regulamento 2017/625.

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

14      A Marvesa, uma sociedade com sede nos Países Baixos, importa óleo de peixe proveniente da China no âmbito da sua atividade de comércio grossista e de distribuição de óleo de peixe destinado à alimentação animal.

15      Em 5 e 25 de janeiro de 2018, as autoridades fronteiriças chinesas emitiram certificados sanitários para o transporte para a Bélgica de um primeiro lote de 258 470 quilogramas (kg) e de um segundo lote de 261 674 kg de óleo de peixe destinado à alimentação animal proveniente da China.

16      Em 23 de fevereiro de 2018, o posto de inspeção fronteiriço belga competente recusou a importação para a União dos contentores que transportavam os referidos lotes de óleo de peixe.

17      Na sequência de contactos entre a AFSCA e a Marvesa sobre a referida recusa de importação e na sequência da audição desta última, a AFSCA confirmou, através de duas decisões definitivas de 20 e 24 de abril de 2018, a recusa de importação para a Bélgica dos referidos lotes de óleo de peixe.

18      A AFSCA indicou, nestas duas decisões, que o óleo de peixe em causa era um «produto proibido», com a menção «não autorizado a entrar proveniente da China (medidas de proteção 2002/994/CE)».

19      A Marvesa contesta as referidas decisões no Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica), que é o órgão jurisdicional de reenvio. Sustenta que estas violam os artigos 1.o e 2.o da Decisão 2002/994, ao alegar, a este respeito, que o óleo de peixe destinado à alimentação animal corresponde à definição de «produtos da pesca», na aceção da parte I do anexo desta última decisão, pelo que a importação deste produto é autorizada, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 2, da referida decisão.

20      Segundo a Marvesa, o conceito de «produtos da pesca» inclui tanto os produtos da pesca destinados ao consumo humano como os destinados à alimentação animal. Por conseguinte, este conceito inclui o óleo de peixe destinado à alimentação animal. A Marvesa baseia‑se, a este respeito, na definição do conceito de «produtos da pesca», que figura noutros atos de direito da União que considera pertinentes, na redação do anexo da Decisão 2002/994, bem como no contexto e no objetivo desta decisão. Observa igualmente que a interpretação deste conceito no sentido de incluir apenas produtos destinados ao consumo humano daria origem a uma situação «inédita», em que o óleo de peixe destinado à alimentação animal estaria sujeito a um regime mais estrito do que o óleo de peixe destinado ao consumo humano.

21      A AFSCA, por seu lado, sustenta que o conceito de «produtos da pesca», na aceção da parte I do anexo da Decisão 2002/994, visa apenas produtos da pesca destinados ao consumo humano. Indica, entre outros argumentos, que o direito da União distingue entre produtos destinados ao consumo humano e produtos destinados à alimentação animal. Recorda igualmente a apreciação da Comissão, que figura na ata da reunião de 9 de abril de 2018 do «Expert Group on veterinary import controls» (grupo de peritos em matéria de controlos das importações no domínio veterinário), segundo a qual a regulamentação da União atualmente aplicável não autoriza a importação de óleo de peixe de origem chinesa destinado à alimentação animal.

22      O órgão jurisdicional de reenvio considera que a legalidade das duas decisões em causa depende da interpretação do conceito de «produtos da pesca», que figura no anexo da Decisão 2002/994, e que a interpretação da AFSCA pode estar na origem de um tratamento diferente das importações de óleo de peixe consoante este seja destinado ao consumo humano ou à alimentação animal.

23      Nestas circunstâncias, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Deve a parte I do anexo da [Decisão 2002/994] ser interpretada no sentido de que o conceito [de] “produtos da pesca” inclui tanto os produtos destinados ao consumo humano como os produtos destinados ao consumo animal e que, consequentemente, o óleo de peixe destinado ao consumo animal pode ser considerado um “produto da pesca” na aceção do referido anexo?

2)      Em caso de resposta negativa à primeira questão, a parte I do anexo da [Decisão 2002/994] viola o artigo 22.o, n.o 1, da [Diretiva 97/78], eventualmente em conjugação com o artigo 1.o do [Protocolo (n.o 2) anexo ao Tratado] FUE relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, na medida em que os produtos da pesca destinados ao consumo humano provenientes da China estão isentos da proibição de importação estabelecida no artigo 2.o da Decisão 2002/994/CE, ao passo que os produtos da pesca destinados ao consumo animal provenientes da China estão sujeitos à referida proibição de importação?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira questão

24      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a parte I do anexo da Decisão 2002/994 deve ser interpretada no sentido de que o conceito de «produtos da pesca» inclui os produtos destinados ao consumo humano e os produtos destinados à alimentação animal e, por conseguinte, se o óleo de peixe destinado à alimentação animal constitui um «produto da pesca» na aceção deste anexo.

25      A título preliminar, importa recordar que, baseando‑se num motivo grave de polícia sanitária ou de proteção da saúde humana, a Comissão podia, ao abrigo do artigo 22.o, n.o 1, da Diretiva 97/78, adotar medidas relativas às importações provenientes de um Estado terceiro, como a suspensão das importações, a fixação de condições especiais, a imposição de controlos adaptados ou o aumento da frequência dos controlos físicos.

26      Resulta do considerando 4 da Decisão 2002/994 que foram adotadas medidas desta natureza depois de ter sido detetada a presença de cloranfenicol em produtos da aquicultura e da pesca importados da China e depois de uma visita de inspeção nesse país ter revelado insuficiências no que diz respeito à regulamentação de medicamentos veterinários e ao sistema de controlo de resíduos em animais vivos e produtos de origem animal. Assim, através da Decisão 2001/699 e da Decisão 2002/69, a Comissão começou por proibir a importação de camarões provenientes ou originários da China e do Vietname e, em seguida, a importação de todos os produtos de origem animal importados da China e destinados ao consumo humano ou à alimentação animal, com exceção de determinados produtos de origem animal claramente identificados, como os produtos da pesca que são capturados, congelados e embalados na sua embalagem final no mar e diretamente desembarcados no território da União.

27      Na sequência do reexame dessas medidas e tendo em conta os resultados positivos dos controlos efetuados pelos Estados‑Membros e as informações fornecidas pelas autoridades chinesas, a Comissão, considerando que era necessário atualizar e consolidar as disposições da Decisão 2002/69 e revogar as Decisões 2001/699 e 2002/69, adotou a Decisão 2002/994.

28      Em conformidade com o artigo 1.o e com o artigo 2.o, n.o 1, da Decisão 2002/994, os Estados‑Membros proíbem a importação de produtos de origem animal importados da China e destinados ao consumo humano ou à alimentação animal. No entanto, nos termos do artigo 2.o, n.o 2, desta decisão, os Estados‑Membros autorizam, em derrogação da proibição enunciada neste artigo 2.o, n.o 1, as importações dos produtos constantes do anexo da referida decisão.

29      Embora os produtos da pesca figurem entre os produtos de origem animal enumerados nesse anexo, a Decisão 2002/994 e, em especial, a parte I do referido anexo não definem, contudo, o conceito de «produtos da pesca» nem especificam se este conceito abrange tanto os produtos destinados ao consumo humano como os destinados à alimentação animal.

30      Por conseguinte, para determinar o sentido e o alcance da parte I do anexo da Decisão 2002/994 e do conceito de «produtos da pesca» que figura neste anexo, há que tomar em consideração, em conformidade com jurisprudência constante, não apenas a sua redação, mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (Acórdão de 27 de outubro de 2022, Orthomol, C‑418/21, EU:C:2022:831, n.o 24 e jurisprudência referida).

31      Em primeiro lugar, é certo que, de acordo com a redação do artigo 1.o da Decisão 2002/994 e da parte I do anexo desta decisão, tanto a referida decisão como este anexo se aplicam a todos os produtos de origem animal importados da China e destinados ao consumo humano ou à alimentação animal.

32      No entanto, tal circunstância não significa que todos os produtos identificados e enumerados no referido anexo se destinem necessariamente ao consumo humano e à alimentação animal.

33      Com efeito, por um lado, o artigo 1.o da Decisão 2002/994 e a parte I do anexo desta decisão referem‑se alternativamente aos produtos destinados ao consumo humano ou à alimentação animal. Por outro lado, determinados produtos visados por esse anexo podem, pela sua natureza, destinar‑se unicamente ao consumo humano ou unicamente à alimentação animal. É o que acontece, em especial, com os alimentos para animais de companhia visados pelo referido anexo.

34      Daqui resulta que, contrariamente ao que sustenta a Marvesa, não se pode inferir do âmbito de aplicação da Decisão 2002/994 que o conceito de «produtos da pesca», referido no anexo desta decisão, engloba necessariamente os produtos da pesca destinados ao consumo humano e os destinados à alimentação animal.

35      Em segundo lugar, quanto ao contexto e ao quadro jurídico em que se inscreve a Decisão 2002/994, importa recordar que, tendo em conta as exigências de unidade e de coerência da ordem jurídica da União, os conceitos utilizados nos atos adotados num mesmo domínio devem ter o mesmo significado (Acórdão de 19 de novembro de 2020, 5th AVENUE Products Trading, C‑775/19, EU:C:2020:948, n.o 42).

36      A este respeito, importa sublinhar que, no âmbito da regulamentação relativa aos produtos de origem animal, o legislador estabelece uma distinção entre os produtos destinados ao consumo humano e os produtos destinados à alimentação animal. Estas duas categorias de produtos pertencem a quadros jurídicos que diferem pelo facto de terem sido concebidos tendo em conta as especificidades de cada uma destas categorias de produtos.

37      Além disso, a Diretiva 97/78 na qual se baseia a Decisão 2002/994 definia, no seu artigo 2.o, n.o 2, alínea a), o conceito de «produtos» por remissão para outros atos do direito da União. Fazia referência, em especial, ao Regulamento n.o 854/2004, que remetia, no seu artigo 2.o, n.o 2, alínea d), para o Regulamento n.o 853/2004, que define o conceito de «produtos da pesca» no ponto 3.1 do seu anexo I.

38      Ora, o Regulamento n.o 853/2004 e o Regulamento n.o 854/2004 só se aplicam, por definição, aos produtos destinados a serem consumidos por humanos.

39      Com efeito, por um lado, o Regulamento n.o 854/2004 visava os produtos de origem animal destinados ao consumo humano.

40      Por outro lado, o Regulamento n.o 853/2004 determina as regras de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal. Ora, o Regulamento n.o 178/2002, cujas definições são, por força do artigo 2.o, ponto 1, do Regulamento n.o 853/2004, aplicáveis para efeitos deste último regulamento, define, no seu artigo 2.o, o conceito de «género alimentício» como sendo «qualquer substância ou produto, transformado, parcialmente transformado ou não transformado, destinado a ser ingerido pelo ser humano ou com razoáveis probabilidades de o ser».

41      Daqui resulta que, no âmbito da regulamentação relativa aos produtos de origem animal, da qual faz parte a Decisão 2002/994, o conceito de «produtos da pesca» visa apenas os produtos destinados ao consumo humano.

42      Por conseguinte, não havendo indicação em contrário na Decisão 2002/994, o conceito de «produtos da pesca» deve, por razões de coerência, ter o mesmo significado para efeitos dessa decisão e nesse contexto mais geral.

43      Em terceiro lugar, tal abordagem é corroborada pelo objetivo prosseguido pela Decisão 2002/994.

44      Como a Comissão recordou no considerando 1 desta decisão, a Diretiva 97/78 permite adotar as medidas necessárias no que diz respeito à importação de certos produtos de países terceiros, sempre que se manifeste ou desenvolva um fenómeno suscetível de constituir um perigo grave para a saúde animal ou humana.

45      Ora, tais medidas dependem, por um lado, da natureza e da finalidade dos produtos a que se aplicam e, por outro, dos riscos específicos que esses produtos representam para a saúde humana ou animal.

46      No que respeita, em especial, à proibição de importação em causa no processo principal, as medidas de proteção instituídas pela Decisão 2002/994 e a eventual flexibilização dessas medidas pela decisão de autorizar a importação de determinados produtos de origem animal dependem, como sublinhou a Comissão, das informações e das garantias fornecidas pelas autoridades chinesas e, se for caso disso, dos resultados dos controlos no local efetuados pelos peritos da União.

47      Essas informações e esses controlos são específicos do produto cuja proibição de importação é reexaminada e do risco para a saúde humana ou animal que o produto assim avaliado representa.

48      Por conseguinte, as informações e os controlos relativos ao óleo de peixe destinado ao consumo humano não são pertinentes para apreciar os riscos apresentados pelo óleo de peixe destinado à alimentação animal.

49      No caso em apreço, uma vez que o conceito de «produtos da pesca» visa apenas os produtos destinados ao consumo humano, as informações e os controlos em que a Comissão baseou a apreciação do risco colocado por esses produtos foram concebidos para avaliar os riscos para a saúde humana e não os riscos para a saúde animal.

50      Daqui resulta que o conceito de «produtos da pesca», na aceção da Decisão 2002/994, visa apenas os produtos destinados ao consumo humano.

51      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que a parte I do anexo da Decisão 2002/994 deve ser interpretada no sentido de que o conceito de «produtos da pesca» inclui os produtos destinados ao consumo humano, e não os produtos destinados à alimentação animal, e que, por conseguinte, o óleo de peixe destinado à alimentação animal não constitui um «produto da pesca», na aceção deste anexo.

 Quanto à segunda questão

52      Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que aprecie, em caso de resposta negativa à primeira questão, a validade da parte I do anexo da Decisão 2002/994 à luz do artigo 22.o, n.o 1, da Diretiva 97/78, lido, eventualmente, em conjugação com o artigo 1.o do Protocolo (n.o 2) anexo ao Tratado FUE relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade.

53      Resulta do pedido de decisão prejudicial que a Marvesa sustentou, no órgão jurisdicional de reenvio, que não se justificava um tratamento diferente do óleo de peixe destinado ao consumo humano e do óleo de peixe destinado à alimentação animal e que essa diferença de tratamento suscitaria dúvidas quanto à validade da Decisão 2002/994 à luz da sua base jurídica e do princípio da proporcionalidade.

54      Como o Tribunal de Justiça já recordou no n.o 25 do presente acórdão, ao abrigo do artigo 22.o, n.o 1, da Diretiva 97/78, a Comissão podia, baseando‑se numa razão grave de polícia sanitária ou de proteção da saúde humana, adotar medidas contra importações provenientes de um país terceiro, como a suspensão das importações, a fixação de condições especiais, a imposição de controlos adaptados ou o aumento da frequência dos controlos físicos.

55      Esta disposição exige, assim, que as medidas adotadas pela Comissão tenham por objetivo proteger a saúde humana ou animal e que sejam adaptadas à «gravidade da situação». Para tal, a Comissão deve, por isso, basear essas medidas numa avaliação específica de cada produto visado pelas referidas medidas.

56      Por conseguinte, a referida disposição pressupõe a adoção de medidas diferenciadas, específicas de cada produto visado e do risco que implica para a saúde humana ou para a saúde animal.

57      Ora, no caso em apreço, como o Tribunal de Justiça já sublinhou no âmbito da resposta à primeira questão, os produtos destinados ao consumo humano e os produtos destinados a uma alimentação não humana são diferentes. A avaliação do risco gerado por cada uma destas categorias de produtos deve, por conseguinte, diferir para que sejam identificados e determinados, para cada uma destas categorias, o risco para a saúde animal ou para a saúde humana, a gravidade da situação e as medidas necessárias para a remediar.

58      Assim, tendo em conta as diferenças entre os produtos destinados ao consumo humano e os produtos destinados à alimentação animal, a diferença de tratamento operada pela Decisão 2002/994 entre o óleo de peixe destinado ao consumo humano e o óleo de peixe destinado à alimentação animal não é contrária ao artigo 22.o, n.o 1, da Diretiva 97/78.

59      Neste contexto, a proibição de importação de óleo de peixe destinado à alimentação animal também não viola o princípio da proporcionalidade. Com efeito, a circunstância de a importação deste produto ser proibida quando a importação de óleo de peixe destinado ao consumo humano é autorizada não significa, por si só, que tal proibição vá além do necessário para proteger a saúde humana e animal.

60      Atendendo a todas as considerações precedentes, há que concluir que a análise da segunda questão não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade da parte I do anexo da Decisão 2002/994.

 Quanto às despesas

61      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

1)      A parte I do anexo da Decisão 2002/994/CE da Comissão, de 20 de dezembro de 2002, relativa a certas medidas de proteção no que diz respeito aos produtos de origem animal importados da China, conforme alterada pela Decisão de Execução (UE) 2015/1068 da Comissão, de 1 de julho de 2015,

deve ser interpretada no sentido de que:

o conceito de «produtos da pesca» inclui os produtos destinados ao consumo humano, e não os produtos destinados à alimentação animal, e que, por conseguinte, o óleo de peixe destinado à alimentação animal não constitui um «produto da pesca», na aceção deste anexo.

2)      A análise da segunda questão não revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade da parte I do anexo da Decisão 2002/994, conforme alterada pela Decisão de Execução 2015/1068.

Assinaturas


*      Língua do processo: neerlandês.