Language of document : ECLI:EU:T:2023:831

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção Alargada)

20 de dezembro de 2023 (*)

«Auxílios de Estado — Auxílio concedido pela França à Air France e à Air France‑KLM no contexto da pandemia de COVID‑19 — Recapitalização — Decisão que declara o auxílio compatível com o mercado interno — Recurso de anulação — Legitimidade processual — Prejuízo substancial para a posição de mercado do recorrente — Admissibilidade — Determinação do beneficiário do auxílio no contexto de um grupo de sociedades»

No processo T‑494/21,

Ryanair DAC, com sede em Swords (Irlanda),

Malta Air ltd., com sede em Pietà (Malta),

representadas por F.‑C. Laprévote, E. Vahida, V. Blanc, S. Rating, I.‑ G. Metaxas‑Maranghidis e D. Pérez de Lamo, advogados,

recorrentes,

contra

Comissão Europeia, representada por L. Flynn, J. Carpi Badía e C. Georgieva, na qualidade de agentes,

recorrida,

apoiada por:

República Federal da Alemanha, representada por P.‑ L. Krüger e J. Möller, na qualidade de agentes,

por

República Francesa, representada por A.‑ L. Desjonquères, P. Dodeller, T. Stéhelin, B. Fodda e T. Lechevallier, na qualidade de agentes,

por

Reino dos Países Baixos, representado por M. Bulterman, C. Schillemans e J. Langer, na qualidade de agentes, assistidos por S. Corrijn, advogado,

por

Air FranceKLM, com sede em Paris (França), representada por J. Derenne e D. Vallindas, advogados,

e por

Société Air France, com sede em Tremblay‑en‑France (França), representada por J. Derenne e D. Vallindas,

intervenientes,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção Alargada),

composto por: M. van der Woude, presidente, A. Kornezov (relator), G. De Baere, D. Petrlík e S. Kingston, juízes,

secretário: S. Spyropoulos, administradora,

vistos os autos,

após a audiência de 22 de maio de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        No recurso que interpuseram ao abrigo do artigo 263.o TFUE, as recorrentes, Ryanair DAC e Malta Air ltd., pedem a anulação da Decisão C(2021) 2488 final da Comissão, de 5 de abril de 2021, relativa ao auxílio de Estado SA.59913 — França — COVID‑19 — Recapitalização da Air France e da Air France‑KLM (a seguir «decisão impugnada»).

 Antecedentes do litígio

2        A Société Air France (a seguir «Air France») e a Air France‑KLM (a seguir «holding Air France‑KLM») fazem parte do grupo Air France‑KLM. À frente do referido grupo encontra‑se a holding Air France‑KLM. Segundo a decisão impugnada, este grupo inclui, ainda, nomeadamente, a Koninklijke Luchtvaart Maatschappij NV (a seguir «KLM»), a «Air France‑KLM International Mobility (Suíça)», a «Blueteam V (França)», a «BigBlank (França)», a «Air France‑KLM Finance (França)» e a «Transavia Company (França)».

3        Segundo a decisão impugnada, a República Francesa e o Reino dos Países Baixos detêm, respetivamente, 14,3 % e 14 % do capital da holding Air France‑KLM, dispondo a República Francesa, por outro lado, de 21 % dos direitos de voto nesta última. Por sua vez, a holding Air France‑KLM detém 100 % das participações sociais da Air France e, direta e indiretamente, 93,48 % do capital social da KLM. A referida holding detém, além disso, 99,7 % dos direitos económicos, ou seja, dos direitos aos dividendos, e 49 % dos direitos de voto da KLM. A mesma holding detém 100 % das participações sociais das outras filiais enumeradas no n.o 2, supra.

4        A medida em causa insere‑se no contexto de uma série de outras medidas de auxílio de Estado destinadas a apoiar o setor da aviação e, mais especificamente, as sociedades que fazem parte do grupo Air France‑KLM.

5        Em especial, em 4 de maio de 2020, a Comissão Europeia autorizou um auxílio individual concedido pela República Francesa à Air France sob a forma, por um lado, de uma garantia de Estado de 90 % sobre um empréstimo no montante de 4 mil milhões de euros, concedido por um consórcio de bancos, e, por outro, de um empréstimo acionista no montante máximo de 3 mil milhões de euros (a seguir «empréstimo acionista») através da sua Decisão C (2020) 2983 final, relativa ao auxílio de Estado SA.57082 (2020/N). — França — COVID‑19 — Quadro temporário [artigo 107.o, n.o 3, alínea b)] — Garantia e empréstimo de acionista em benefício da Air France, conforme corrigida pelas Decisões C(2020) 9384 final da Comissão, de 17 de dezembro de 2020, e C(2021) 5701 final da Comissão, de 26 de julho de 2021(a seguir «Decisão Air France»), que faz parte dos autos submetidos ao Tribunal Geral.

6        Na Decisão Air France, a Comissão considerou que os beneficiários do auxílio em causa eram a Air France e as filiais que controlava. Em contrapartida, nem a holding Air France‑KLM nem as suas outras filiais, incluindo a KLM e as sociedades que esta controlava, foram consideradas beneficiárias deste auxílio.

7        Em 13 de julho de 2020, a Comissão autorizou um auxílio individual concedido pelo Reino dos Países Baixos a favor da KLM, que consistia, por um lado, numa garantia de Estado para um empréstimo concedido à KLM por um consórcio de bancos e, por outro, num empréstimo de Estado, no montante total de 3,4 mil milhões de euros, através da sua Decisão C(2020) 4871 final, de 13 de julho de 2020, relativa ao auxílio de Estado SA.57116 (2020/N). — Países Baixos — COVID‑19: Garantia de Estado e empréstimo de Estado a favor da KLM (a seguir «Decisão KLM»).

8        Em 31 de março de 2021, a República Francesa notificou à Comissão, ao abrigo do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE e da Comunicação da Comissão de 19 de março de 2020, intitulada «Quadro temporário relativo a medidas de auxílio estatal em apoio da economia no atual contexto do surto de COVID‑19» (JO 2020, C 91 I, p. 1), conforme alterada em 1 de fevereiro de 2021 (JO 2021, C 34, p. 6) (a seguir «Quadro Temporário»), um auxílio individual sob a forma de recapitalização da Air France e da holding Air France‑KLM, no montante total de 4 mil milhões de euros (a seguir «medida em causa»). A medida em causa consiste, por um lado, numa participação da República Francesa num projeto de aumento de capital no montante máximo de mil milhões de euros (a seguir «participação no capital») e, por outro, na conversão do empréstimo acionista, que foi objeto da Decisão Air France, num instrumento de capital híbrido (a seguir «instrumento de capital híbrido»).

9        Em 5 de abril de 2021, a Comissão adotou a decisão impugnada, na qual concluiu que a medida em causa constituía um auxílio de Estado compatível com o mercado interno, nos termos do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE e do Quadro Temporário.

10      Na decisão impugnada, a Comissão considerou que os beneficiários da medida em causa eram, por um lado, a Air France e as suas filiais e, por outro, a holding Air France‑KLM e as filiais que esta última controla (a seguir «beneficiários»), com exceção da KLM e das suas filiais.

11      No Acórdão de 19 de maio de 2021, Ryanair/Comissão (KLM; COVID‑19) (T‑643/20, EU:T:2021:286), o Tribunal Geral anulou a Decisão KLM, por insuficiência de fundamentação no que respeita à determinação do beneficiário da medida de auxílio controvertida.

 Pedidos das partes

12      As recorrentes concluem pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada;

–        condenar a Comissão nas despesas.

13      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar as recorrentes nas despesas.

14      A República Federal da Alemanha, o Reino dos Países Baixos, a Air France e a holding Air France‑KLM concluem pedindo que seja negado provimento ao recurso e que as recorrentes sejam condenadas nas despesas.

15      A República Francesa conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne julgar o recurso inadmissível, na parte em que as recorrentes contestam o mérito da decisão impugnada, e julgá‑lo improcedente quanto ao restante.

 Questão de direito

 Quanto à admissibilidade

16      As recorrentes alegam, primeiro, que são partes interessadas na aceção do artigo 108.o, n.o 2, TFUE e do artigo 1.o, alínea h), do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o TFUE (JO 2015, L 248, p. 9), e que, por conseguinte, têm legitimidade processual para defender os seus direitos processuais. Segundo, sustentam que a sua posição concorrencial no mercado foi substancialmente afetada pela medida em causa e que, por conseguinte, têm legitimidade processual para contestar o mérito da decisão impugnada.

17      A Comissão, a República Federal da Alemanha, o Reino dos Países Baixos, a Air France e a holding Air France‑KLM não contestam a admissibilidade da ação.

18      Em contrapartida, a República Francesa sustenta que as recorrentes não têm legitimidade processual para contestar o mérito da decisão impugnada.

19      No caso em apreço, é pacífico que as recorrentes são concorrentes da Air France e não é contestado, por conseguinte, que devem ser consideradas «partes interessadas», na aceção do artigo 1.o, alínea h), do Regulamento 2015/1589, tendo legitimidade processual para salvaguardar os direitos processuais que lhes são conferidos pelo artigo 108.o, n.o 2, TFUE.

20      Quanto à legitimidade das recorrentes para contestarem o mérito da decisão impugnada, importa recordar que a admissibilidade de um recurso interposto por uma pessoa singular ou coletiva de um ato do qual não é destinatária, ao abrigo do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, está sujeita à condição de lhe ser reconhecida legitimidade processual, a qual se verifica em duas situações. Por um lado, esse recurso pode ser interposto se esse ato lhe disser direta e individualmente respeito. Por outro, essa pessoa pode interpor recurso de um ato regulamentar que não necessite de medidas de execução, se o mesmo lhe disser diretamente respeito (Acórdãos de 17 de setembro de 2015, Mory e o./Comissão, C‑33/14 P, EU:C:2015:609, n.os 59 e 91, e de 13 de março de 2018, Industrias Químicas del Vallés/Comissão, C‑244/16 P, EU:C:2018:177, n.o 39).

21      Não constituindo a decisão impugnada, que foi dirigida à República Francesa, um ato regulamentar nos termos do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, dado não ser um ato de alcance geral (v., neste sentido, Acórdão de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, C 583/11 P, EU:C:2013:625, n.o 56), incumbe ao Tribunal Geral verificar se essa decisão diz direta e individualmente respeito às recorrentes, na aceção desta disposição.

22      A este respeito, resulta de jurisprudência constante que os sujeitos que não sejam destinatários de uma decisão só podem alegar que a mesma lhes diz individualmente respeito se os prejudicar em razão de determinadas qualidades que lhes são específicas ou de uma situação de facto que os caracterize relativamente a qualquer outra pessoa, individualizando‑os, por isso, de forma idêntica à do destinatário (Acórdãos de 15 de julho de 1963, Plaumann/Comissão, 25/62, EU:C:1963:17, p. 223; de 28 de janeiro de 1986, Cofaz e o./Comissão, 169/84, EU:C:1986:42, n.o 22, e de 22 de novembro de 2007, Sniace/Comissão, C‑260/05 P, EU:C:2007:700, n.o 53).

23      Assim, quando um recorrente ponha em causa os fundamentos da decisão de apreciação do auxílio, tomada com base no artigo 108.o, n.o 3, TFUE ou no termo do procedimento formal de investigação, o simples facto de poder ser considerado «interessado», na aceção do artigo 108.o, n.o 2, TFUE, não basta para que o recurso seja julgado admissível. Deve então demonstrar que tem um estatuto específico, na aceção da jurisprudência recordada no n.o 22, supra. É o que sucede, nomeadamente, quando a posição do recorrente no mercado em questão é substancialmente afetada pelo auxílio objeto da decisão em causa (v. Acórdão de 15 de julho de 2021, Deutsche Lufthansa/Comissão, C‑453/19 P, EU:C:2021:608, n.o 37 e jurisprudência referida).

24      A este respeito, a demonstração, pelo recorrente, de que a sua posição no mercado foi substancialmente afetada não implica uma decisão definitiva sobre a relação concorrencial entre esse recorrente e as empresas beneficiárias, mas exige apenas que o recorrente indique de forma pertinente as razões pelas quais a decisão da Comissão pode lesar os seus interesses legítimos, afetando substancialmente a sua posição no mercado em causa (v. Acórdão de 15 de julho de 2021, Deutsche Lufthansa/Comissão, C‑453/19 P, EU:C:2021:608, n.o 57 e jurisprudência referida).

25      Assim, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a afetação substancial da posição concorrencial do recorrente no mercado em causa não resulta de uma análise aprofundada das diferentes relações de concorrência nesse mercado, que permita demonstrar com precisão a extensão da afetação da sua posição concorrencial, mas, em princípio, de uma constatação prima facie de que a concessão da medida visada na decisão da Comissão conduz a que esta posição seja substancialmente afetada (Acórdão de 15 de julho de 2021, Deutsche Lufthansa/Comissão, C‑453/19 P, EU:C:2021:608, n.o 58).

26      Daqui resulta que esta condição pode ser satisfeita se o recorrente apresentar elementos que permitam demonstrar que a medida em causa é suscetível de afetar substancialmente a sua posição no mercado em causa (v. Acórdão de 15 de julho de 2021, Deutsche Lufthansa/Comissão, C‑453/19 P, EU:C:2021:608, n.o 59 e jurisprudência referida).

27      No que respeita aos elementos admitidos pela jurisprudência para demonstrar essa afetação substancial, importa recordar que a mera circunstância de um ato ser suscetível de exercer uma certa influência nas relações de concorrência existentes no mercado pertinente e de a empresa em causa se encontrar numa qualquer relação de concorrência com o beneficiário desse ato não basta para se poder considerar que o referido ato diz individualmente respeito à empresa em questão. Assim, uma empresa não pode invocar apenas a sua qualidade de concorrente da empresa beneficiária (v. Acórdão de 15 de julho de 2021, Deutsche Lufthansa/Comissão, C‑453/19 P, EU:C:2021:608, n.o 60 e jurisprudência referida).

28      A prova de que a posição de um concorrente no mercado foi substancialmente afetada não pode ser limitada à presença de certos elementos que indiquem uma degradação dos resultados comerciais ou financeiros do recorrente, como uma redução importante do volume de negócios, perdas financeiras não negligenciáveis ou ainda uma diminuição significativa da quota de mercado na sequência da concessão do auxílio em questão. A concessão de um auxílio de Estado pode lesar a situação concorrencial de um operador também de outras formas, designadamente originando lucros cessantes ou uma evolução menos favorável do que a que se verificaria se o auxílio em causa não tivesse existido (Acórdão de 15 de julho de 2021, Deutsche Lufthansa/Comissão, C‑453/19 P, EU:C:2021:608, n.o 61).

29      Por outro lado, a jurisprudência não exige que o recorrente apresente elementos sobre a dimensão ou a extensão geográfica dos mercados em causa, ou ainda sobre a sua quota de mercado ou a do beneficiário da medida em questão ou de eventuais concorrentes nestes mercados (v., neste sentido, Acórdão de 15 de julho de 2021, Deutsche Lufthansa/Comissão, C‑453/19 P, EU:C:2021:608, n.o 65).

30      É à luz destes princípios que há que examinar se as recorrentes apresentaram elementos que permitam demonstrar que a medida em questão é suscetível de afetar substancialmente a sua posição no mercado em causa.

31      A este respeito, em primeiro lugar, as recorrentes alegam que, antes da pandemia de COVID‑19, exploravam 211 ligações aéreas a partir de ou com destino a França. Em especial, explicam que a Ryanair estava em concorrência direta com a Air France e as suas filiais em 45 ligações aéreas em 2019 e em 47 ligações aéreas em 2021, com partida ou destino a França, as quais revestem importância económica na medida em que ligam grandes cidades na Europa e para além dela, as quais geralmente foram servidas por um número reduzido de outras companhias aéreas. Além disso, a Ryanair transportou mais de um milhão de passageiros nas referidas ligações em 2019 e um total de 127 305 passageiros nas mesmas de janeiro até agosto de 2021.

32      A República Francesa responde, em substância, que a Ryanair não é a concorrente mais próxima e mais direta da Air France. Além disso, contesta o facto de as recorrentes estarem «em concorrência direta» com a Air France, pela circunstância de as ligações aéreas operadas por esta última a partir dos e com destino aos aeroportos de Roissy‑Charles‑de‑Gaulle (a seguir «aeroporto CDG») e de Paris‑Orly (a seguir «aeroporto ORY») e as operadas pela Ryanair a partir de e com destino ao aeroporto de Beauvais‑Tillé (a seguir «aeroporto BVA») não serem substituíveis e, portanto, pertinentes para apreciar a relação de concorrência entre as recorrentes e a Air France. No que respeita às demais ligações aéreas invocadas pelas recorrentes, alega que, nestas, a Ryanair não é a única concorrente da Air France.

33      A este respeito, há que recordar que, na fase do exame da admissibilidade do recurso, não é necessário haver uma pronúncia definitiva sobre a definição do mercado dos produtos ou dos serviços em causa ou ainda sobre as relações de concorrência entre as recorrentes e o beneficiário. Basta, em princípio, que as recorrentes demonstrem que, prima facie, a concessão da medida em causa afeta substancialmente a sua posição concorrencial no mercado (v. jurisprudência referida nos n.os 24 e 25, supra).

34      Quanto à questão de saber se as ligações aéreas operadas a partir dos e com destino aos aeroportos CDG e ORY, por um lado, e ao aeroporto BVA, por outro, são passíveis de substituição, resulta da jurisprudência que, para este efeito, o Tribunal Geral pode ter em conta vários fatores, como a distância e o tempo de trajeto segundo o critério de referência dos 100 km ou uma hora de viagem por estrada, o ponto de vista dos concorrentes, o ponto de vista dos aeroportos em causa e o das autoridades da aviação civil dos Estados‑Membros, a estimativa da parte dos passageiros de lazer numa determinada ligação, o conceito de «sistema de aeroportos» na aceção do anexo II do Regulamento (CEE) n.o 2408/92 do Conselho, de 23 de julho de 1992, relativo ao acesso das transportadoras aéreas comunitárias às rotas aéreas intracomunitárias (JO 1992, L 240, p. 8), as práticas comerciais e a existência ou não de serviços de transporte entre os aeroportos e certas cidades (Acórdão de 6 de julho de 2010, Ryanair/Comissão, T‑342/07, EU:T:2010:280, n.os 103 e segs.).

35      É certo que, na nota de rodapé n.o 100 da decisão impugnada, a Comissão indicou, «por uma questão de exaustividade», que os aeroportos de CDG e de ORY não eram substituíveis ao aeroporto BVA. Todavia, não fundamentou esta conclusão e não examinou, nem sequer mencionou, nenhum dos critérios pertinentes enumerados na jurisprudência acima recordada no n.o 34.

36      Na audiência, a Comissão referiu que, à luz destes critérios, as ligações aéreas operadas pela Ryanair a partir de ou com destino ao aeroporto BVA podiam, para efeitos da admissibilidade do presente recurso, ser consideradas prima facie como passíveis de substituição relativamente às operadas pela Air France a partir de ou com destino aos aeroportos CDG e ORY.

37      Esta posição reflete‑se na prática decisória da Comissão, a qual, sem vincular o juiz da União Europeia, pode, no entanto, constituir um elemento útil no âmbito de uma apreciação prima facie da questão de saber se a concessão da medida em causa é suscetível de afetar a posição concorrencial das recorrentes no mercado. Assim, nos considerandos 266 a 279 da Decisão C(2013) 1106 final, de 27 de fevereiro de 2013, que declara uma concentração incompatível com o mercado interno e com o Acordo EEE (Processo COMP/M.6663 — Ryanair/Aer Lingus III), a Comissão considerou que o critério dos 100 km ou de uma hora de viagem por estrada estava preenchido, sendo a distância e o tempo de trajeto de carro para o centro de Paris desde os aeroportos de CDG, ORY e BVA respetivamente de 23 km (31 minutos), 20 km (30 minutos) e 80 km (60 minutos). Nesta base, concluiu que o aeroporto ORY era passível de substituição pelos aeroportos CDG e BVA para os voos com origem em e destino a Dublim (Irlanda).

38      Nestas circunstâncias, e na falta de elementos concretos em sentido inverso nos autos de que dispõe o Tribunal Geral, há que considerar que as ligações aéreas asseguradas pela Ryanair com partida e destino ao aeroporto BVA, às quais as recorrentes fazem referência para demonstrar a sua legitimidade processual, podem ser consideradas, prima facie, passíveis de substituição pelas operadas pela Air France a partir dos e com destino aos aeroportos CDG e ORY. Por conseguinte, para efeitos da análise da legitimidade processual da Ryanair, há que ter em conta todas as ligações aéreas invocadas pelas recorrentes, precisando‑se que a República Francesa não contesta a substituibilidade das outras ligações aéreas operadas, respetivamente, pela Ryanair e pela Air France com partida e destino a outros aeroportos situados em França.

39      Por conseguinte, há que considerar que a Ryanair estava em concorrência com a Air France e as suas filiais num número significativo de ligações aéreas com origem em e destino a França, a saber, entre 45 e 47 no período de 2019 a 2021. Além disso, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal Geral e, nomeadamente, do anexo A.3.6 da petição, cujo valor probatório não é contestado pela Comissão nem pelas intervenientes, que o número de lugares disponibilizados pela Ryanair nessas ligações era frequentemente comparável, ou chegava mesmo a ultrapassar em certos casos, o número disponibilizado pela Air France e suas filiais. Em termos de número de lugares oferecidos, a concorrência entre elas era, portanto, igualmente significativa.

40      Em segundo lugar, as recorrentes alegam que encaravam a hipótese de uma expansão comercial no mercado francês, como demonstra o facto de terem lançado 67 novas ligações aéreas com partida ou destino a França em 2019. A Comissão e os intervenientes não contestam esta circunstância. Por outro lado, as recorrentes acrescentam que tinham encomendado 210 aeronaves Boeing 737 Max que se juntaram à sua frota em junho de 2021 e lhes permitem prosseguir os seus planos de expansão.

41      Em terceiro lugar, resulta nomeadamente dos n.os 14 a 18 da decisão recorrida que a medida em causa visava evitar o risco de insolvência da holding Air France‑KLM e da Air France. Além disso, segundo um relatório da Fondation pour l’innovation politique (Fundação para a Inovação Política, França), apresentado pelas recorrentes e intitulado «Before COVID‑19 air transportation in Europe: an already fragile sector» (O transporte aéreo na Europa antes da pandemia de COVID‑19: um setor já fragilizado), datado de maio de 2020 e cujo teor não é contestado pelas partes, «[era] provável que a Ryanair […] saí[sse] da crise da COVID‑19 sem demasiados danos e dispon[do] mesmo de recursos financeiros suficientes, nomeadamente graças ao endividamento e à aquisição de empresas em situação de falência, para participar na provável reestruturação do transporte aéreo na Europa». Daqui decorre que a Ryanair se encontrava numa posição relativamente forte em relação às companhias aéreas tradicionais como a Air France, que se via confrontada com o risco de insolvência ou mesmo de saída do mercado.

42      Em quarto lugar, resulta dos autos que, em 2019, o diretor‑geral da holding Air France‑KLM anunciou um plano de ação destinado a intensificar a concorrência com as companhias aéreas «de baixo custo», como a Ryanair, através da filial de baixo custo «Transavia France».

43      Os elementos referidos nos n.os 38 a 42, supra, no seu conjunto, permitem considerar que as recorrentes demonstraram que a concessão da medida em causa era suscetível de reforçar a posição concorrencial da Air France em detrimento da Ryanair e de conduzir prima facie a que a posição concorrencial da Ryanair no mercado fosse substancialmente afetada, provocando, designadamente, lucros cessantes ou uma evolução menos favorável do que a que se teria registado se essa medida não tivesse existido (v. jurisprudência referida no n.o 28, supra).

44      Esta conclusão não é posta em causa pela objeção da República Francesa segundo a qual a Ryanair não é a principal concorrente da Air France no mercado francês.

45      Com efeito, a jurisprudência não exige que a recorrente seja a principal concorrente do beneficiário de uma medida de auxílio para que a sua posição concorrencial possa ser considerada substancialmente afetada por esta.

46      Também não pode ser acolhida a objeção da República Francesa segundo a qual as recorrentes não demonstraram que a decisão impugnada as afeta devido a uma situação de facto que as distingue da de todos os outros concorrentes da Air France.

47      Com efeito, o requisito da afetação substancial da posição concorrencial da recorrente é um elemento específico desta, devendo ser avaliado apenas em relação à sua posição no mercado anteriormente à concessão da medida em causa ou na ausência dessa concessão. Não se trata de comparar a situação de todos os concorrentes presentes no mercado em questão (v., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Deutsche Lufthansa/Comissão, C‑453/19 P, EU:C:2020:862, n.o 58). Por outro lado, como foi recordado no n.o 29, supra, o Tribunal de Justiça precisou que não era necessário que a recorrente apresentasse elementos relativos às suas quotas de mercado, às do beneficiário ou às de eventuais concorrentes nesse mercado. Daqui resulta que, para demonstrar uma afetação substancial na sua posição concorrencial, não é exigível à recorrente que faça a prova de qual a situação concorrencial de todos os seus concorrentes e de que a sua é distinta em relação àquela.

48      Além disso, importa salientar que a jurisprudência referida no n.o 22, supra, prevê dois critérios distintos para demonstrar que esta diz individualmente respeito aos sujeitos que não sejam os destinatários da decisão, a saber, que a decisão impugnada os afete em razão de «certas qualidades que lhes são próprias» ou de «uma situação de facto que os caracterize em relação a qualquer outra pessoa». Esta jurisprudência não exige, portanto, que um recorrente demonstre, em todos os casos, que a sua situação de facto é distinta da de qualquer outra pessoa. Com efeito, basta que a decisão impugnada afete o recorrente em virtude de certas qualidades que lhe são específicas.

49      É o que sucede no presente processo. Com efeito, todos os elementos mencionados nos n.os 38 a 42, supra, tendem a demonstrar, de forma suficientemente plausível, que a posição da Ryanair nos mercados em causa se caracterizava por certas qualidades que lhe são específicas, a saber, o facto de a Ryanair se encontrar em concorrência direta com a Air France num grande número de ligações aéreas, nas quais, além disso, explora um número significativo de lugares, que tinha iniciado uma expansão comercial no mercado francês lançando um grande número de novas ligações aéreas antes do aparecimento da pandemia de COVID‑19, que a Air France pretendia intensificar a concorrência no segmento de mercado dito «de baixo custo», no qual opera a Ryanair, através da sua companhia aérea «Transavia France» e que, na ausência da medida em causa, havia o risco de a Air France se tornar insolvente ou, pelo menos, enfraquecer significativamente, ao passo que a situação financeira da Ryanair parecia ser relativamente forte em comparação com a da beneficiária, colocando‑a assim numa posição suscetível de lhe permitir, não fosse o auxílio, ganhar quotas de mercado em detrimento da Air France.

50      Em face do exposto, importa concluir que as recorrentes fizeram prova bastante de que a medida em causa era suscetível de afetar de forma substancial a posição concorrencial da Ryanair no mercado em questão.

51      Há que declarar que a decisão impugnada também diz diretamente respeito à Ryanair, uma vez que é indubitável a intenção da República Francesa de proceder ao pagamento de um auxílio à holding Air France‑KLM e à Air France e que esse pagamento é suscetível de colocar a Ryanair numa situação de desvantagem concorrencial e, portanto, de afetar o seu direito a não ser sujeita a distorções da concorrência em consequência desse auxílio (v., neste sentido, Acórdão de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci, C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 43 e jurisprudência referida).

52      Por conseguinte, a Ryanair tem legitimidade para contestar o mérito da decisão impugnada.

53      No que respeita à legitimidade processual da Malta Air, foi declarado que, quando uma das recorrentes tenha legitimidade e se trate do mesmo recurso, não há que examinar a legitimidade processual das demais recorrentes [v. Acórdão de 12 de dezembro de 2014, Crown Equipment (Suzhou) e Crown Gabelstapler/Conselho, T‑643/11, EU:T:2014:1076, n.o 33 (não publicado) e jurisprudência referida].

 Quanto ao mérito

54      As recorrentes invocam sete fundamentos de recurso, relativos, em substância, o primeiro, à exclusão da KLM do perímetro dos beneficiários da medida em causa, o segundo, à errada aplicação do Quadro Temporário, o terceiro, à errada aplicação errada do artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE, o quarto, à violação dos princípios da não discriminação, da livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento, o quinto, à violação dos direitos processuais das recorrentes, o sexto, à violação do dever de fundamentação e, o sétimo, à violação do artigo 342.o TFUE e do Regulamento n.o 1 do Conselho, de 15 de abril de 1958, que estabelece o regime linguístico da Comunidade Económica Europeia (JO 1958, 17, p. 401).

 Quanto ao primeiro fundamento, relativo à exclusão da KLM do perímetro dos beneficiários da medida em causa

55      As recorrentes alegam que a definição do beneficiário da medida em causa na decisão impugnada não é clara, tem falta de coerência e não está suficientemente fundamentada, dado que esta definição não corresponde a uma realidade jurídica, económica ou contabilística. Invocam vários elementos para demonstrar que a KLM pode igualmente ser considerada beneficiária da medida em causa. Invocam, em substância, as relações de capital, orgânicas, funcionais e económicas entre a holding Air France‑KLM, a Air France e a KLM, o contexto em que se insere a medida em causa, o quadro contratual com base no qual esta medida foi concedida, bem como os compromissos assumidos pela República Francesa.

56      A Comissão contesta os argumentos das recorrentes. Afirma ter tido em conta todos os fatores pertinentes estabelecidos na jurisprudência para determinar se entidades juridicamente autónomas constituem uma unidade económica e ter corretamente concluído que a KLM e as suas filiais não beneficiam da medida em causa. Para chegar a esta conclusão, indica ter tomado em consideração o quadro contratual instituído com o objetivo de encaminhar os efeitos financeiros e económicos decorrentes da medida em causa para a Air France, bem como os compromissos assumidos pela República Francesa, que garantem que a referida medida não será transferida para a KLM.

57      A República Francesa, o Reino dos Países Baixos, a Air France e a holding Air France‑KLM subscrevem as observações da Comissão.

58      Na decisão impugnada, a Comissão considerou que os beneficiários da medida em causa eram, por um lado, a Air France e as suas filiais e, por outro, a holding Air France‑KLM e as filiais que controla, com exceção da KLM e das suas filiais. Assim, considerou como beneficiárias da referida medida a holding Air France‑KLM e todas as suas filiais, mencionadas no n.o 2, supra, a saber, a Air France, a «Air France‑KLM International Mobility (Suíça)», a «Blueteam V (França)», a «BigBlank (França)», a «Air France‑KLM Finance (França)» e a «Transavia Company (França)», com exceção da KLM e das filiais desta última.

59      O presente fundamento suscita assim, em substância, a questão da determinação do beneficiário de uma medida de auxílio no contexto de um grupo de sociedades.

60      A este respeito, resulta da jurisprudência que se pode considerar que várias entidades jurídicas distintas formam uma única unidade económica para efeitos da aplicação das regras em matéria de auxílios de Estado. Com efeito, neste domínio, a questão de saber se existe uma unidade económica entre várias entidades juridicamente distintas coloca‑se, designadamente, quando há que identificar o beneficiário de um auxílio [v., neste sentido, Acórdãos de 14 de novembro de 1984, Intermills/Comissão, 323/82, EU:C:1984:345, n.os 11 e 12, e de 19 de maio de 2021, Ryanair/Comissão (KLM; COVID‑19), T‑643/20, EU:T:2021:286, n.o 46 e jurisprudência referida].

61      Entre os elementos tidos em conta pela jurisprudência para determinar a existência ou inexistência de uma unidade económica em matéria de auxílios de Estado figuram, nomeadamente, a participação da empresa em causa num grupo de sociedades cujo controlo seja exercido, direta ou indiretamente, por uma delas, a prossecução de atividades económicas idênticas ou paralelas e a falta de autonomia económica das sociedades em causa (v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 2004, Pollmeier Malchow/Comissão, T‑137/02, EU:T:2004:304, n.os 68 a 70); a formação de um grupo único controlado por uma entidade, apesar da constituição de novas sociedades que possuem, cada uma, personalidade jurídica distinta (v., neste sentido, Acórdão de 14 de novembro de 1984, Intermills/Comissão, 323/82, EU:C:1984:345, n.o 11); a possibilidade de uma entidade que detém participações de controlo noutra sociedade exercer, além de um simples investimento de capitais por um investidor, funções de controlo, de impulso e de apoio financeiro em relação a essa sociedade, bem como a existência de relações orgânicas, funcionais e económicas entre si [v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 2010, AceaElectrabel Produzione/Comissão, C‑480/09 P, EU:C:2010:787, n.o 51, e de 19 de maio de 2021, Ryanair/Comissão (KLM; COVID‑19), T‑643/20, EU:T:2021:286, n.o 47]; assim como a existência de cláusulas contratuais relevantes (v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2010, AceaElectrabel Produzione/Comissão, C‑480/09 P, EU:C:2010:787, n.o 57).

62      Além disso, o tipo de medida de auxílio concedida, os compromissos eventualmente assumidos pelo Estado‑Membro em causa e o contexto em que essa medida se insere podem, consoante o caso, constituir igualmente elementos relevantes para determinar a existência ou inexistência de uma unidade económica em matéria de auxílios de Estado.

63      Por outro lado, a Comissão esclareceu a sua interpretação do conceito de «empresa» na sua Comunicação sobre a noção de auxílio estatal nos termos do artigo 107.o, n.o 1, TFUE (JO 2016, C 262, p. 1; a seguir «Comunicação sobre a noção de auxílio estatal»). Esta comunicação, embora não possa vincular o Tribunal, pode, porém, servir de fonte de inspiração útil [v. Acórdão de 6 de abril de 2022, Mead Johnson Nutrition (Asia Pacific) e o./Comissão, T‑508/19, EU:T:2022:217, n.o 93 e jurisprudência referida].

64      A Comissão reconheceu, no n.o 11 da Comunicação sobre a noção de auxílio estatal, que se pode considerar que várias entidades jurídicas distintas formam uma única unidade económica para efeitos da aplicação das regras em matéria de auxílios estatais. Para tanto, segundo este número, importa tomar em consideração a existência de uma participação de controlo e de outras ligações funcionais, económicas e orgânicas.

65      Neste contexto, foi declarado que a Comissão dispunha de um amplo poder de apreciação para determinar se as sociedades que fazem parte de um grupo deviam ser consideradas uma unidade económica ou unidades jurídica e financeiramente autónomas para efeitos da aplicação do regime dos auxílios de Estado. Este poder de apreciação da Comissão implica a tomada em consideração e a apreciação de factos e de circunstâncias económicas complexos. Uma vez que o juiz da União não pode substituir a apreciação do autor da decisão sobre os factos, nomeadamente no plano económico, pela sua própria apreciação, a fiscalização do Tribunal Geral deve, a este respeito, limitar‑se à verificação do cumprimento das regras processuais e de fundamentação, da exatidão material dos factos e da inexistência de erro manifesto de apreciação e de desvio de poder (v. Acórdão de 8 de setembro de 2009, AceaElectrabel/Comissão, T‑303/05, não publicado, EU:T:2009:312, n.os 101 e 102 e jurisprudência referida).

66      Todavia, o juiz da União deve, designadamente, verificar, não só a exatidão material dos elementos de prova invocados, a sua fiabilidade e coerência, mas também fiscalizar se esses elementos constituem a totalidade dos dados pertinentes a tomar em consideração na apreciação de uma situação complexa e se são suscetíveis de sustentar as conclusões que deles se retiram (Acórdão de 20 de setembro de 2018, Espanha/Comissão, C‑114/17 P, EU:C:2018:753, n.o 104).

67      Além disso, incumbe à Comissão examinar com especial atenção as relações entre as sociedades que pertencem ao mesmo grupo, quando haja razões para recear os efeitos na concorrência de uma cumulação de auxílios de Estado dentro do mesmo grupo [v. Acórdão de 19 de maio de 2021, Ryanair/Comissão (KLM; COVID‑19), T‑643/20, EU:T:2021:286, n.o 48 e jurisprudência referida].

68      Por outro lado, importa salientar que existe uma relação cronológica e estrutural entre a medida objeto da Decisão Air France e a medida em causa. Com efeito, a perspetiva de uma conversão em capital próprio do empréstimo acionista, que é objeto da Decisão Air France, já estava prevista aquando da adoção desta última, como decorre expressamente do seu n.o 11. Assim, alguns meses mais tarde, o referido empréstimo, autorizado por essa decisão, foi efetivamente convertido, no mesmo montante, num instrumento de capital híbrido, o qual é, por sua vez, objeto da decisão impugnada. No n.o 3 desta última, a Comissão reconheceu, com efeito, que a medida em causa «dava seguimento» à medida de auxílio autorizada na Decisão Air France.

69      Nestas circunstâncias específicas, a Decisão Air France constituía um elemento contextual que devia ser tomado em consideração aquando do exame da medida em causa [v., neste sentido e por analogia, Acórdão de 19 de maio de 2021, Ryanair/Comissão (KLM; COVID‑19), T‑643/20, EU:T:2021:286, n.o 42].

70      Tendo em conta os critérios desenvolvidos na jurisprudência já referida e os argumentos das partes, importa examinar sucessivamente as relações de capital, orgânicas, funcionais e económicas entre a holding Air France‑KLM, a Air France e a KLM e as respetivas filiais, os contratos com base nos quais a medida em causa foi concedida, bem como o tipo de medida de auxílio concedida e o contexto em que esta se insere.

–       Quanto às relações de capital e orgânicas entre a holding Air FranceKLM, a Air France e a KLM

71      Em primeiro lugar, quanto às relações de capital dentro do Grupo Air France‑KLM, importa salientar, como foi recordado nos n.os 2 e 3, supra, que a Air France é detida a 100 % pela holding Air France‑KLM e que esta última detém 93,48 % do capital social, 99,7 % dos direitos económicos e 49 % dos direitos de voto na KLM. As outras filiais da holding Air France‑KLM mencionadas no n.o 2, supra, são igualmente detidas a 100 % por esta última.

72      Daqui resulta que a holding Air France‑KLM tem «direitos de controlo» tanto sobre a Air France como sobre a KLM. Este facto é, aliás, expressamente destacado no n.o 29 da Decisão Air France, no qual a Comissão precisou, com base nas mesmas relações de capital acima referidas no n.o 71, supra, que, embora a Air France e a KLM fossem entidades jurídicas distintas, cada uma com a sua própria estrutura acionista, a holding Air France‑KLM tinha «direitos de controlo» tanto sobre a Air France como sobre a KLM.

73      Ainda que este facto constitua um primeiro elemento relevante para examinar a existência de uma unidade económica entre estas entidades, a jurisprudência em matéria de auxílios de Estado exige que se verifique, além disso, se a sociedade mãe exerce efetivamente um controlo através de uma participação direta ou indireta na gestão das suas filiais e participa, assim, na atividade económica exercida pela empresa controlada (v., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2010, AceaElectrabel Produzione/Comissão, C‑480/09 P, EU:C:2010:787, n.o 49 e jurisprudência referida).

74      Com efeito, na falta dessa análise, a simples cisão de uma empresa em duas entidades diferentes, em que a primeira prossegue diretamente a atividade económica anterior e a segunda controla a primeira ao mesmo tempo que intervém na sua gestão, bastaria para privar de efeito útil as normas do direito da União relativas aos auxílios de Estado. Isto permitiria à segunda entidade beneficiar de subvenções ou outros benefícios concedidos pelo Estado ou através de recursos estatais e utilizá‑los, no todo ou em parte, em proveito da primeira, no interesse, igualmente, da unidade económica formada pelas duas entidades (v. Acórdão de 16 de dezembro de 2010, AceaElectrabel Produzione/Comissão, C‑480/09 P, EU:C:2010:787, n.o 50 e jurisprudência referida).

75      No caso em apreço, resulta dos n.os 27 e 91 da decisão Air France que a holding Air France‑KLM exerce um poder de controlo sobre a Air France e sobre a KLM graças aos direitos de veto de que dispõe, por um lado, sobre os planos dos negócios e os orçamentos destas últimas, e, por outro, sobre a remuneração, a nomeação e a destituição dos seus dirigentes, incluindo a nomeação e a destituição dos membros do seu conselho de administração. Assim, a referida holding deve aprovar as decisões relativas, nomeadamente, às opções estratégicas, ao orçamento e ao plano de investimento do «Grupo Air France‑KLM, incluindo a KLM» antes de estas serem adotadas ou executadas.

76      Resulta igualmente do n.o 91 da Decisão Air France que a holding Air France‑KLM dispõe do direito de aprovação das operações de financiamento das suas filiais que ultrapassem os 150 milhões de euros.

77      Em segundo lugar, no que respeita às relações orgânicas entre a holding Air France‑KLM, a Air France e a KLM, as recorrentes fazem referência, nomeadamente, ao documento de registo universal de 2019 da referida holding, apresentado à Autorité des marchés financiers (AMF) (Autoridade dos Mercados Financeiros, França) em aplicação do Regulamento (UE) 2017/1129 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, relativo ao prospeto a publicar em caso de oferta de valores mobiliários ao público ou da sua admissão à negociação num mercado regulamentado, e que revoga a Diretiva 2003/71/CE (JO 2017, L 168, p. 12) (a seguir «documento de registo universal de 2019»), o qual foi debatido na audiência. Em conformidade com os artigos 9.o e 21.o do Regulamento 2017/1129, o documento de registo universal é um documento colocado à disposição do público, que descreve a organização da empresa e a sua atividade, situação financeira, resultados e perspetivas, governação e estrutura acionista do emitente em causa.

78      Resulta do documento de registo universal de 2019 que, ao nível do Grupo Air France‑KLM, existem vários órgãos mistos, compostos por representantes de alto nível da holding Air France‑KLM, da Air France e da KLM, encarregados de controlar e coordenar certas decisões importantes a tomar no referido grupo.

79      Por exemplo, dentro do Grupo Air France‑KLM, todos os investimentos superiores a cinco milhões de euros, bem como as operações relativas à frota e as operações de aquisição de participações e de cessão, estão sujeitos à aprovação de um «Comité Executivo Grupo», composto, nomeadamente, pelos diretores‑gerais da holding Air France‑KLM, da Air France e da KLM, como aliás a referida holding confirmou na audiência.

80      Além disso, segundo esse documento de registo universal de 2019, embora a gestão dos investimentos seja assegurada ao nível de cada sociedade do Grupo Air France‑KLM, o processo de tomada de decisão é coordenado por um «Group Investment Committee (GIC)», composto pelo diretor‑geral adjunto «Economia e Finanças» da holding Air France‑KLM, pelo diretor‑geral adjunto «Economia e Finanças» da Air France e pelo «Chief Financial Officer» da KLM.

81      Do mesmo modo, resulta do documento de registo universal de 2019 que a gestão dos riscos de mercado no âmbito do Grupo Air France‑KLM é dirigida por um «Risk Management Committee», composto igualmente por altos dirigentes da holding Air France‑KLM, da Air France e da KLM, que decide e supervisiona os riscos financeiros do referido grupo e determina as coberturas necessárias a implementar.

82      Daqui resulta igualmente que as decisões tomadas por esses órgãos mistos ao nível do Grupo Air France‑KLM são, em seguida, executadas por cada entidade do grupo.

83      Daqui decorre que as relações de capital e orgânicas no âmbito do Grupo Air France‑KLM tendem a demonstrar que a holding Air France‑KLM exerce efetivamente um controlo ao participar, direta ou indiretamente, na gestão da Air France e da KLM e, assim, na atividade económica por elas exercida. Daqui resulta também que existe, ao nível do referido grupo, um processo de tomada de decisão centralizado e uma certa coordenação, assegurados através de órgãos mistos que reúnem representantes de alto nível da holding Air France‑KLM, da Air France e da KLM, pelo menos no que respeita à tomada de determinadas decisões importantes.

84      As relações de capital e orgânicas dentro do Grupo Air France‑KLM são, assim, como alegam as recorrentes, um primeiro elemento destinado a demonstrar que as entidades jurídicas distintas no interior do referido grupo formam uma única unidade económica para efeitos da aplicação das regras em matéria de auxílios de Estado.

–       Quanto às relações funcionais entre a holding Air FranceKLM, a Air France e a KLM

85      Em primeiro lugar, a Comissão salientou, no n.o 37 da decisão impugnada, que a holding Air France‑KLM não desenvolvia atividade no mercado do transporte aéreo, mas que coordenava as atividades das suas filiais e lhes prestava serviços financeiros. Além disso, mencionou que a referida holding empregava os seus próprios trabalhadores e «[contava]» com funcionários destacados da Air France e da KLM junto de si. Além disso, conforme recordado no n.o 75, supra, a holding Air France‑KLM dispunha de direitos de veto quanto à remuneração, nomeação e destituição dos dirigentes da KLM e da Air France. Daqui resulta que existe uma certa integração entre os funcionários desta holding e das suas filiais e que a mesma holding está envolvida nas decisões mais importantes relativas aos dirigentes das suas filiais.

86      Em segundo lugar, a Comissão declarou que a Air France e a holding Air France‑KLM mantinham «relações comerciais e financeiras com a outra filial estratégica da holding, a KLM», e que existia um «certo grau de integração» entre a referida holding, a Air France e a KLM relativo, nomeadamente, à «partilha de custos, ao alinhamento estratégico e ao acesso ao financiamento» [v., nomeadamente, n.o 113, alínea c), da decisão impugnada].

87      Todavia, no n.o 38 da Decisão Air France, a Comissão declarou que a Air France e a KLM, sob a égide da holding Air France‑KLM, se coordenavam no «domínio das vendas e da gestão dos preços e das receitas com base na estratégia determinada ao nível da holding [Air France‑KLM]», com o auxílio dos funcionários da Air France e da KLM destacados para esse efeito na referida holding.

88      Daqui resulta que, embora seja certo que a própria holding Air France KLM não presta serviços de transporte aéreo, não é menos verdade que desempenha um papel estratégico na prestação desses serviços, nomeadamente no domínio das vendas e da gestão dos preços e das receitas, e que, além disso, está envolvida na tomada de decisões relativas às operações relativas à frota (v. n.o 79, supra), o que confirma a existência de um grau de integração entre a holding Air France KLM, a Air France e a KLM.

89      A existência de uma certa coordenação funcional no âmbito do Grupo Air France‑KLM é, além disso, ilustrada pelo exemplo da «Transavia», invocado pelas recorrentes. Como resulta das respostas da Comissão às questões colocadas a propósito de uma medida de organização do processo, no âmbito do referido grupo existem várias sociedades com o nome «Transavia», algumas das quais operam no mercado dos serviços de transporte aéreo de passageiros. Trata‑se da Transavia France SAS e da Transavia Airlines CV, apelidadas respetivamente de «Transavia France» e «Transavia Netherlands» na decisão impugnada. A «Transavia France» e a «Transavia Netherlands» são filiais, respetivamente, da Air France e da KLM. A Comissão referiu a este respeito que, embora estas duas sociedades disponham das suas próprias licenças, certificados, direitos de tráfego, faixas horárias, ativos, pessoal e direção, apresentam‑se no mercado sob a mesma marca Transavia e partilham a mesma página da Internet, o que a holding Air France‑KLM confirmou na audiência.

90      Por outro lado, a Comissão não contesta o facto referido num artigo de 12 de julho de 2021, apresentado pelas recorrentes, que o «Grupo Air France‑KLM» tinha encetado negociações com a Boeing Co. e com a Airbus SE com vista a encomendar aeronaves para a «Transavia França, a Transavia Netherlands e a KLM». Além disso, como foi salientado no n.o 58, supra, a «Transavia Company (França)» fazia parte, segundo a decisão impugnada, dos beneficiários da medida em causa. Segundo as respostas da Comissão às questões colocadas no âmbito de uma medida de organização do processo, a atividade económica desta sociedade consistia na locação financeira de duas aeronaves, que eram seguidamente subalugadas à Transavia Netherlands, não sendo esta última, no entanto, considerada beneficiária da referida medida. Este exemplo dá, assim, conta de uma certa integração e cooperação funcional e comercial entre duas filiais da Air France e da KLM.

91      Em terceiro lugar, a holding Air France‑KLM assume igualmente funções financeiras na medida das necessidades das suas filiais. Com efeito, resulta do n.o 20, alínea c), da decisão impugnada que uma das fontes de financiamento dos beneficiários antes da pandemia de COVID‑19 incluía um financiamento a médio e a longo prazo não garantido, obtido nos mercados financeiros «principalmente ao nível da holding Air France‑KLM», por exemplo sob a forma de títulos de rendimento fixo, públicos ou privados, ou de capital próprio.

92      Do mesmo modo, como salientado no n.o 86, supra, no n.o 113, alínea c), da decisão impugnada, a Comissão precisou que existia uma certa integração entre a holding Air France‑KLM, a Air France e a KLM no que respeita ao «acesso ao financiamento». Importa acrescentar, à semelhança das recorrentes e como resulta dos n.o 79 a 81, supra, que a holding Air France‑KLM está envolvida na coordenação e aprovação dos investimentos importantes das suas filiais, nas operações de aquisição de participações e de cessão, e na gestão dos riscos financeiros e das coberturas necessárias a pôr em prática, que são objeto de um acompanhamento contínuo e permanente ao nível do Grupo Air France‑KLM.

93      O papel financeiro assumido pela holding Air France KLM é ilustrado, no caso em apreço, pelo facto, salientado no n.o 76 da decisão impugnada, de que esta dispõe do direito de aprovação das operações de financiamento das suas filiais que ultrapassem os 150 milhões de euros, e que, consequentemente, teve de aprovar a medida em causa.

94      Este facto é ainda corroborado pelo que é declarado nos n.os 32 a 34 e 91 da Decisão Air France, de que resulta que a holding Air France‑KLM assume efetivamente funções financeiras para as necessidades da Air France e da KLM. Por um lado, dá, nomeadamente, instruções orçamentais às suas filiais. Por outro, pode «ocasionalmente», nos termos dessa decisão, angariar capitais nos mercados financeiros (dívida ou capital próprio) em benefício das suas filiais e em função das respetivas necessidades individuais. Quanto à emissão de ações ou de instrumentos que dão acesso ao capital, essas operações são igualmente realizadas ao nível da referida holding, ao passo que as dívidas do Grupo Air France‑KLM são «principalmente» contraídas diretamente pela Air France e pela KLM.

95      Além disso, resulta dos dados que constam do documento de registo universal de 2019 que a holding Air France‑KLM realizou uma série de emissões de obrigações de montantes significativos, que «a estratégia financeira é decidida pelo Grupo [Air France‑KLM] em coordenação com a [Air France] e com a [KLM]», que a referida holding era a entidade emitente «principal» das obrigações, e que o Grupo Air France‑KLM previa o «recurso sistemático ao financiamento nos mercados [através da] Air France‑KLM».

96      Por último, resulta do n.o 113, alínea b), da decisão impugnada que a situação financeira da holding Air France‑KLM, que não tem atividade comercial autónoma, depende em grande parte da situação financeira das suas filiais Air France e KLM. Nos termos do mesmo ponto da decisão impugnada, a medida de auxílio objeto da Decisão Air France teve como consequência fazer a situação financeira da holding Air France‑KLM depender mais da da Air France. Concretamente, a referida medida traduziu‑se numa dívida de 7 mil milhões de euros da holding Air France‑KLM para com a República Francesa e, paralelamente, num crédito de montante semelhante detido por esta holding sobre a sua filial Air France. Assim, segundo as conclusões da Comissão, em caso de insolvência da Air France, o capital próprio da holding Air France‑KLM não seria suficiente para cobrir os prejuízos nesse valor. Ao garantir a viabilidade da Air France, esta medida acaba por garantir a viabilidade da holding Air France‑KLM.

97      Por conseguinte, as relações funcionais entre a holding Air France‑KLM, a Air France e a KLM constituem um segundo elemento destinado a demonstrar que essas entidades formam uma única unidade económica para efeitos da aplicação das regras em matéria de auxílios de Estado.

–       Quanto às relações económicas entre a holding Air FranceKLM, a Air France e a KLM

98      No n.o 43 da decisão impugnada, a Comissão refere a existência de relações comerciais entre a Air France (e suas filiais) e a KLM (e suas filiais) envolvendo fluxos financeiros que consistem, nomeadamente, na prestação de serviços ou na venda de produtos da Air France à KLM, ou inversamente. Daqui resulta igualmente que estas sociedades celebraram acordos de partilha de custos e exercem atividades em comum. A decisão impugnada não especifica mais detalhadamente a natureza dessas atividades desenvolvidas em comum ou dos serviços prestados pela Air France à KLM ou inversamente, nem, aliás, o objeto dos referidos contratos de partilha de custos. Não deixa de ser verdade que a existência de tais acordos de partilha de custos entre a Air France e a KLM, bem como das atividades desenvolvidas em comum, confirma a existência de uma certa integração e cooperação económica entre ambas.

99      Esta conclusão é corroborada, como alegam as recorrentes, pelo facto de a holding Air France‑KLM gerar as suas receitas exclusivamente ao nível interno junto das suas filiais, através de comissões de gestão que cobrem as despesas de gestão da holding, de taxas de marcas e de certos mecanismos de redistribuição (n.o 37 da decisão impugnada). Isto demonstra que existe uma certa interdependência económica entre a holding e as suas filiais. Isto é corroborado, nomeadamente, pelo facto de a Air France e a KLM se esforçarem por obter sinergias através da coordenação das respetivas atividades sob a égide da holding Air France KLM, em especial no domínio das vendas e da gestão dos preços e das receitas (v. n.o 88, supra), e de esta holding estar envolvida no financiamento das suas filiais de forma coordenada. (v. n.os 91 a 95, supra).

100    Do mesmo modo, como decorre dos n.os 91 a 95, supra, a holding Air France‑KLM atua nos mercados financeiros no interesse das suas filiais, obtendo fundos para as respetivas necessidades nesses mercados. Este facto revela que a mencionada holding negoceia os termos do financiamento nos mercados financeiros com base na posição financeira global do Grupo Air France‑KLM. Por conseguinte, é graças à holding Air France‑KLM que as sinergias no interior do Grupo Air France‑KLM são realizadas.

101    No entanto, a Comissão considerou que as relações financeiras e comerciais entre a holding Air France KLM e as suas filiais Air France e KLM, assim como entre estas últimas, ocorrem em «condições normais de mercado», o que exclui o risco de transferência da vantagem resultante da medida em causa para a KLM. [n.os 42, 43, 44 e 113, alínea c), segundo travessão, da decisão impugnada].

102    Especialmente a este respeito, a Comissão explicou, em substância, que a Air France e a KLM continuavam a ser tributadas, respetivamente, em França e nos Países Baixos, que as legislações fiscais francesa e neerlandesa preveem que todas as transações dentro do grupo devem ser efetuadas em conformidade com o princípio da plena concorrência e que qualquer desvio desse princípio poderia dar lugar a uma «otimização fiscal» contrária às legislações nacionais referidas (n.o 42, alínea a), da decisão impugnada). É certo que, embora estes elementos pareçam relevantes para a tributação fiscal dessas sociedades ao nível dos Estados‑Membros, não bastam para demonstrar a existência de autonomia económica entre a holding Air France‑KLM, a Air France e a KLM no Grupo Air France‑KLM, tendo em conta os elementos indicados nos n.os 98 a 100, supra.

103    Além disso, deve recordar‑se que a concessão da medida em causa encontrava justificação, nomeadamente, na impossibilidade de a holding Air France‑KLM e a Air France obterem o financiamento da dívida nos mercados e capitais em condições financeiras aceitáveis e dentro dos prazos necessários para evitar um processo de insolvência (n.os 16 e 19 da decisão impugnada). Nestas circunstâncias, a vantagem desta medida traduz‑se precisamente na disponibilização de montantes significativos de liquidez que não estavam disponíveis em condições de mercado. Assim, por um lado, essa medida tem por efeito reforçar a posição financeira global do Grupo Air France‑KLM, uma vez que evita o risco de incumprimento da holding e de uma das suas principais filiais, a saber, a Air France, e tranquiliza desse modo os investidores e os credores das sociedades do referido grupo, precisando‑se, além disso, que o instrumento de capital híbrido assumia a forma de um instrumento de dívida subordinada perpétua, só sendo prioritário, em caso de insolvência, em relação ao capital subscrito e às reservas de capital (n.o 59 da referida decisão). Por outro lado, tendo em conta o papel financeiro da holding Air France‑KLM neste grupo, esta poderia eventualmente obter, no interesse das suas filiais e para as suas necessidades, um financiamento nos mercados, o qual lhe estaria inacessível na falta do auxílio ou em condições menos favoráveis.

104    Por outro lado, se a medida em causa não tivesse existido, a Air France não teria podido prosseguir as suas atividades e, desse modo, teria igualmente posto em perigo a prossecução das atividades desenvolvidas em comum com a KLM (v. n.os 86, 89 e 98, supra). Ao permitir, portanto, a prossecução das atividades da Air France, a referida medida permite também, implícita mas necessariamente, a prossecução das atividades desenvolvidas em comum pela Air France e pela KLM.

105    Além disso, a Comissão salientou, no n.o 42, alínea b), da decisão impugnada, que a «estrutura empresarial do Grupo Air France‑KLM» tem o efeito de incentivar as equipas de gestão da Air France e da KLM a negociar as condições dos contratos celebrados entre si no melhor interesse de cada uma delas. Estas duas filiais são geridas «de forma autónoma» por equipas de gestão distintas.

106    Todavia, esta afirmação deve ser matizada pelos elementos referidos nos n.os 75 a 83 e 85, supra, dos quais resulta que a holding Air France‑KLM tem direito de veto quanto à remuneração, nomeação e destituição dos dirigentes das suas filiais, que órgãos mistos dentro do Grupo Air France‑KLM estão encarregados do controlo e da coordenação de determinadas decisões importantes relativas às suas filiais e que a holding Air France‑KLM conta com funcionários da Air France e da KLM destacados para junto dela.

107    Por conseguinte, as relações económicas entre a holding Air France‑KLM, a Air France e a KLM constituem um terceiro elemento destinado a demonstrar que essas entidades formam uma única unidade económica para efeitos da aplicação das regras em matéria de auxílios de Estado.

–       Quanto aos instrumentos contratuais com base nos quais a medida em causa foi concedida e aos compromissos assumidos pela República Francesa

108    Nos n.os 39, 40, 44 a 46 e 113, alínea c), da decisão impugnada, a Comissão considerou, em substância, que o quadro contratual, com base no qual a medida em causa foi concedida, e os compromissos assumidos pela República Francesa garantiam que a KLM e as suas filiais não eram beneficiárias da referida medida.

109    As recorrentes alegam que estes elementos não são suscetíveis de demonstrar que a KLM e as suas filiais não podiam beneficiar da medida em causa. Em primeiro lugar, consideram que, embora a Comissão se baseie no quadro contratual com base no qual a referida medida foi concedida, que tinha por objetivo encaminhar essa medida da holding Air France‑KLM para a Air France, esta não explica, todavia, quais as cláusulas que garantem que a referida holding não conserva uma parte do benefício e que essa medida não beneficia a KLM e as suas filiais, contrariamente a outras filiais da referida holding. Em segundo lugar, quanto às condições de mercado das relações entre a Air France e a KLM, alegam que a Comissão não examinou as relações entre, por um lado, estas últimas e, por outro, essa holding, o que é essencial para verificar a possibilidade de a mesma medida conferir um benefício indireto à KLM. Em terceiro lugar, alegam que os compromissos assumidos pela República Francesa são inadequados e ineficazes.

110    A Comissão responde que o quadro contratual com base no qual a medida em causa tinha sido concedida garantia que a posição em capital próprio da KLM permanecia inalterada. Em seu entender, a situação financeira da KLM não dependia nem da situação financeira da Air France nem da da holding Air France‑KLM. Além disso, considera que os compromissos em questão, cujo controlo contínuo assegura, impedem a KLM de beneficiar de qualquer eventual melhoria posterior da situação financeira da referida holding, na medida em que esses compromissos preveem que todas as relações entre a KLM e a Air France, bem como entre a KLM e essa holding, devem ser mantidas em condições de mercado. Por outro lado, as vantagens alegadas pelas recorrentes, mesmo que demonstradas, constituem apenas efeitos económicos secundários do auxílio e não uma vantagem indireta para a KLM e suas filiais.

111    Em primeiro lugar, no que respeita ao quadro contratual, com base no qual a medida em causa foi concedida, resulta dos n.os 26 e 39 a 41 da decisão impugnada que a referida medida devia ser concedida «formalmente» à holding Air France‑KLM com base num contrato entre a holding e a República Francesa e, em seguida, «encaminhada» para a Air France através de instrumentos denominados «espelhos», cujo objetivo era o de garantir que a vantagem financeira e económica dessa medida seja inteiramente encaminhada para esta última e que a KLM (e suas filiais) não beneficiariam dela (a seguir «instrumentos‑espelho»). Assim, o empréstimo acionista autorizado pela Decisão Air France seria convertido num instrumento de capital híbrido equiparado a capital próprio da holding Air France‑KLM, e depois o empréstimo «intragrupo» que, segundo a Decisão Air France, visava canalizar os processos do empréstimo acionista e que tinha sido objeto de um contrato‑espelho entre esta holding e a Air France seria, por sua vez, convertido num instrumento de capital híbrido equiparado a capital próprio da Air France.

112    No que diz respeito à participação no capital, a Comissão observou, no n.o 41 da decisão impugnada, que o capital em causa seria inicialmente injetado pela República Francesa na holding Air France‑KLM nos termos do artigo 102.o da loi no 2020‑1721, du 29 décembre 2020, de finances pour 2021 [Lei de Finanças para 2021 com o n.o 2020‑1721, de 29 de dezembro de 2020] (JORF de 30 de dezembro de 2020, texto n.o 1) e de uma decisão do ministro da Economia e das Finanças nos termos do artigo 24.o da ordonnance no 2014‑948, du 20 août 2014, relative à la gouvernance et aux opérations sur les capitaux des sociétés à participation publique [Decreto 2014‑948, de 20 de agosto de 2014, relativo à governação e às operações sobre os capitais das empresas públicas (JORF de 23 de agosto de 2014, texto n.o 22)]. Esta injeção de capital seria então «refletida» na correspondente injeção de capital da holding Air France‑KLM à Air France.

113    Daqui resulta que o contrato relativo ao instrumento de capital híbrido é celebrado entre a República Francesa, por um lado, e a holding Air France‑KLM, por outro, pelo que só esta última assumiu direitos e obrigações contratuais para com a República Francesa. Por conseguinte, a responsabilidade contratual para com esta última pertence à holding Air France‑KLM.

114    Do mesmo modo, a participação no capital é injetada, numa primeira fase, na holding Air France‑KLM.

115    Ora, como referido no n.o 96, supra, a Comissão reconhece que, graças à medida em causa, o capital da holding Air France‑KLM aumentaria, que a sua situação financeira depende principalmente da das suas filiais e que, ao garantir a viabilidade da Air France, a referida medida garante igualmente a viabilidade da referida holding.

116    Como as recorrentes alegam, este raciocínio vale igualmente, mutatis mutandis, para a KLM. Com efeito, a melhoria da posição financeira da holding Air France‑KLM na sequência da recapitalização e do aumento de capital desta teria como consequência reduzir, ou mesmo excluir, o risco de incumprimento da mesma e, desse modo, o das suas filiais Air France e KLM e de todo o grupo Air France‑KLM. Com efeito, na falta da medida em causa, o risco de insolvência da holding Air France‑KLM, constatado na decisão impugnada, poderia ter contaminado a totalidade do Grupo Air France‑KLM, incluindo a KLM e as suas filiais.

117    A Comissão tenta relativizar esse risco, explicando, na nota de rodapé n.o 63 da decisão impugnada, em substância, que a insolvência da Air France e da holding Air France‑KLM não acarretaria «necessariamente» a insolvência da KLM, uma vez que esta última tem uma «exposição limitada» à Air France e à referida holding. Todavia, por um lado, a própria redação desta afirmação não exclui o risco de contaminação enquanto tal. Por outro lado, tendo em conta as relações de capital, orgânicas, funcionais e económicas entre a KLM e o resto do Grupo Air France‑KLM, acima referidas nos n.os 71 a 107, as repercussões sobre a KLM de uma eventual insolvência dessa holding, que a medida em causa visa evitar, não podem ser subestimadas.

118    Esta conclusão não é posta em causa pela existência dos instrumentos‑espelho, mencionados nos n.os 111 e 112, supra. Com efeito, antes de mais, não se pode deixar de observar que a Comissão não faz referência, na decisão recorrida, a nenhuma cláusula contratual específica cujo objeto seja o de garantir que a medida em causa não beneficiará a KLM nem as suas filiais, pelo menos indiretamente.

119    Em seguida, tendo em conta a gestão coordenada e centralizada dos investimentos importantes, as operações sobre a frota e a gestão dos riscos financeiros a nível do Grupo Air France‑KLM (v. n.os 78 a 81, supra), a medida em causa é também suscetível de reforçar, pelo menos indiretamente, a posição financeira da KLM.

120    Por último, uma vez que a holding Air France‑KLM garantiria a sua viabilidade graças à medida em causa, esta última permitir‑lhe‑ia, por conseguinte, reforçar a sua capacidade de angariar fundos nos mercados financeiros para as necessidades das suas filiais, incluindo a KLM, como acertadamente afirmam as recorrentes.

121    Ora, os efeitos da medida em causa, descritos nos n.os 115 a 120 não são afetados pelos instrumentos‑espelho.

122    Em segundo lugar, no que respeita aos compromissos assumidos pela República Francesa, importa observar que estes consistem, por um lado, no compromisso segundo o qual, em substância, as relações comerciais e financeiras entre a Air France (e as suas filiais), a KLM (e as suas filiais) e a holding Air France‑KLM (e respetivas filiais) são efetuadas em condições normais de mercado e, por outro, no compromisso segundo o qual a República Francesa procederá à recuperação de toda e qualquer parte da medida em questão no caso de ser transferida, direta ou indiretamente, para a KLM ou para as suas filiais, incluindo juros. O respeito por esses compromissos é objeto de fiscalização por um mandatário de supervisão aprovado pela Comissão e remunerado pela Air France e pela referida holding (n.os 44 a 46, 48 e 113 da decisão impugnada).

123    Quanto ao primeiro dos compromissos, importa remeter para os n.os 102 a 104, supra. Além disso, o simples facto de as transações serem efetuadas dentro do grupo em condições normais de mercado conformes com o princípio da plena concorrência, admitindo‑o demonstrado, nada retira à conclusão de que, graças à medida em causa, a holding Air France‑KLM se encontra numa posição financeira reforçada que lhe permite, nomeadamente, obter financiamento nos mercados financeiros para as necessidades das suas filiais ou, ainda, efetuar operações relativas à frota para as necessidades destas últimas e no seu interesse, em melhores condições do que as que teriam prevalecido se a referida medida não tivesse existido, o que é também suscetível de reforçar, pelo menos indiretamente, a posição da KLM.

124    Quanto ao segundo dos compromissos, há que salientar que, através deste, a República Francesa e a Comissão admitem, na realidade, que não está excluído que a vantagem da medida em causa possa ser transferida, direta ou indiretamente, para a KLM e para as suas filiais. Com efeito, se, como alega a Comissão, estas últimas não devessem, em caso algum, ser consideradas beneficiárias, ainda que indiretas, da referida medida, não haveria que encarar a eventual recuperação de uma parte do auxílio junto delas.

125    Em face do exposto, há que concluir que os compromissos acima referidos não são suficientes para garantir que os beneficiários da medida em causa são a Air France e as suas filiais, bem como a holding Air France‑KLM e as suas filiais, com exceção apenas da KLM e das filiais desta última.

126    Esta conclusão não é posta em causa pelo argumento da Comissão segundo o qual a jurisprudência admitiu que o beneficiário de um auxílio de Estado só pode ser uma das sociedades que fazem parte de um grupo, quando existam, nomeadamente, cláusulas de afetação que façam chegar o auxílio a uma das sociedades do referido grupo, com exclusão das demais sociedades desse grupo.

127    A este respeito, como foi acima salientado nos n.os 61 e 62, devem, consoante o caso, ser analisados vários fatores para determinar se se pode considerar que entidades jurídicas distintas formam uma única unidade económica para efeitos da aplicação das regras em matéria de auxílios de Estado, como as relações de capital, orgânicas, funcionais e económicas entre essas entidades, os contratos com base nos quais a medida de auxílio foi concedida, bem como o tipo de medida de auxílio concedida e o contexto em que se insere. Trata‑se, portanto, de uma apreciação global de vários fatores, próprios de cada caso concreto. No que respeita, em especial, aos contratos com base nos quais a medida de auxílio foi concedida, a apreciação destes depende manifestamente do seu teor concreto. Assim, o facto de os órgãos jurisdicionais da União terem concluído, ou não, num determinado processo, com base em elementos concretos próprios desse processo, que a beneficiária de uma determinada medida de auxílio constituía uma única entidade pertencente a um grupo de sociedades, com exclusão das demais entidades desse grupo, não pode servir de base a uma conclusão geral em qualquer dos sentidos.

128    Em todo o caso, as circunstâncias específicas na origem dos processos que deram origem aos acórdãos referidos pela Comissão não são comparáveis às que estão na origem do presente processo.

129    Primeiro, no Acórdão de 3 de julho de 2003, Bélgica/Comissão (C‑457/00, EU:C:2003:387), o Tribunal de Justiça precisou, nos n.os 56 e 57, que, para determinar o beneficiário de uma medida de auxílio, havia que ter em conta, nomeadamente, a existência e a formulação de cláusulas de afetação e que era possível que essa análise levasse à conclusão de que o beneficiário do auxílio não era o mutuário do empréstimo controvertido. Assim, em conformidade com esse acórdão, o resultado da referida análise depende da existência e do teor preciso das cláusulas contratuais relevantes. Ora, no caso em apreço, como resulta dos n.os 111 a 125, supra, é precisamente com base na análise do quadro contratual e dos compromissos de impermeabilidade assumidos pela República Francesa, entre outros elementos, que o Tribunal Geral considera que não era possível excluir a KLM e as filiais que controla dos beneficiários, pelo menos indiretos, da medida em causa. Além disso, ao contrário das circunstâncias que deram origem ao referido acórdão, a holding Air France‑KLM era considerada, no caso em apreço, um dos beneficiários da medida em causa.

130    Segundo, existem várias diferenças factuais significativas entre o presente processo e os que deram origem ao Acórdão de 25 de junho de 1998, British Airways e o./Comissão (T‑371/94 e T‑394/94, EU:T:1998:140). Com efeito, as relações orgânicas, funcionais e económicas entre as entidades do Grupo Air France‑KLM, referidas no presente processo, não são comparáveis às que existem entre as sociedades em causa no acórdão acima mencionado. Por exemplo, no caso em apreço, a holding Air France‑KLM manteve todas as suas prerrogativas estratégicas em matéria de financiamento, investimento e operações relativas à frota, o que não foi o caso da holding nos referidos processos.

131    Terceiro, os processos que deram origem ao Acórdão de 11 de maio de 2005, Saxonia Edelmetalle e ZEMAG/Comissão (T‑111/01 e T‑133/01, EU:T:2005:166), diziam respeito a uma situação muito diferente da que está em causa no presente processo. Com efeito, esses processos diziam respeito à obrigação de recuperação de um auxílio junto de certas filiais de um grupo que tinham sido designadas como beneficiárias iniciais desse auxílio. A este respeito, foi declarado, nos n.os 125 e 126 desse acórdão, que, tendo em conta as circunstâncias do caso em apreço, a Comissão não podia, lícita e automaticamente, imputar às referidas filiais a obrigação de restituição de uma parte do auxílio controvertido se não fosse demonstrado que as mesmas o receberam efetivamente, apenas por estas terem sido designadas como beneficiárias iniciais do auxílio controvertido. Ora, esta situação é alheia ao presente processo, pelo que não se pode retirar dela nenhuma conclusão útil para a resolução do presente litígio.

132    Por conseguinte, o quadro contratual com base no qual é concedida a medida em causa e os compromissos assumidos pela República Francesa não permitem concluir que a holding Air France‑KLM, a Air France e a KLM não formam uma única unidade económica para efeitos da aplicação das regras em matéria de auxílios de Estado.

–       Quanto ao tipo de medida de auxílio concedida e ao contexto em que se insere

133    No que diz respeito ao tipo de medida de auxílio concedida e ao contexto em que se insere, importa salientar que as recorrentes criticam o facto de a Comissão não ter procedido a uma análise dos efeitos cumulados dos auxílios objeto da Decisão Air France, da Decisão KLM e da decisão impugnada.

134    A este respeito, há que salientar, à semelhança do que fazem as recorrentes, que a Comissão não explicou, na decisão impugnada, a razão pela qual definiu os beneficiários da medida em causa de forma diferente da adotada na Decisão Air France ‑ que constituía um elemento de contexto a ser tomado em consideração na análise da medida em causa (v. n.os 68 e 69, supra) ‑ ainda que as duas medidas de auxílio estejam relacionadas nos planos cronológico, estrutural e económico, sendo o financiamento em causa parcialmente proveniente, em ambos os casos mas de forma diferente, do empréstimo acionista.

135    A este respeito, no Tribunal Geral, a Comissão explicou que a forma da intervenção estatal, a saber, na Decisão Air France, um auxílio sob a forma de um empréstimo (um empréstimo garantido pelo Estado e um empréstimo acionista) e, na decisão impugnada, uma medida de recapitalização, era diferente. No entanto, esta diferença de forma não é suscetível de justificar, por si só, as conclusões divergentes a que chegou a Comissão, no que respeita à determinação do beneficiário do auxílio, na Decisão Air France e na decisão impugnada. Com efeito, um empréstimo acionista convertido, alguns meses mais tarde, num instrumento de recapitalização do mesmo montante, produz globalmente um efeito económico semelhante na posição concorrencial do beneficiário. Assim, no que respeita, nomeadamente, aos instrumentos de capital próprio, resulta do Quadro Temporário que esses instrumentos devem ser concebidos de modo que a saída do Estado do capital da empresa em causa seja assegurada o mais rapidamente possível. Assim, a título de exemplo, os instrumentos de capital próprio devem incluir um mecanismo de progressividade que preveja o aumento da remuneração do Estado ao longo do tempo e, assim, incentivar o beneficiário a readquirir a participação do Estado o mais rapidamente possível (pontos 61 e 62 do Quadro Temporário). Do mesmo modo, os instrumentos de capital híbrido devem prever uma remuneração do Estado que aumente ao longo do tempo (ponto 66 do Quadro Temporário) e, após a sua conversão em capital próprio, um mecanismo de progressividade (ponto 68 do Quadro Temporário). Daqui resulta que, tal como um empréstimo, uma medida de recapitalização também deve, em princípio, ser reembolsada. É certo que, embora diferentes no que respeita à sua forma, as medidas de auxílio objeto da Decisão Air France e as que são objeto da decisão impugnada permanecem assim estreitamente relacionadas nos planos cronológico, estrutural e económico. Por outro lado, na decisão impugnada, a Comissão nem sequer mencionou a Decisão KLM.

136    Por conseguinte, nas circunstâncias específicas do caso em apreço, e tendo em conta a jurisprudência recordada no n.o 67, supra, cabia à Comissão tomar em consideração, para a determinação dos beneficiários da medida em causa, o tipo de medida de auxílio concedida e o contexto em que se inseria.

–       Quanto à diferença entre uma vantagem direta ou indireta, por um lado, e os meros efeitos económicos secundários, por outro

137    A Comissão alega que a medida em causa tem, quando muito, «meros efeitos económicos secundários» relativamente à KLM e suas filiais, os quais são inerentes a qualquer auxílio de Estado mas não podem ser qualificados de vantagem, direta ou indireta, em benefício destas últimas.

138    As recorrentes respondem que a Comissão não fez prova bastante de que a KLM não receberia nenhuma vantagem da medida em causa que fosse além de simples efeitos secundários. Na sua opinião, o aumento de capital da holding Air France‑KLM, previsto no âmbito de uma aquisição de participação pela República Francesa, poderia proporcionar uma vantagem à KLM através dos seguintes mecanismos: em primeiro lugar, os fundos angariados pela holding Air France‑KLM junto de investidores privados poderiam ser utilizados para fins diferentes das necessidades de financiamento da Air France, em segundo lugar, melhorando das condições de financiamento da holding Air France‑KLM, o que permitiria em especial a concessão de empréstimos dentro do grupo, e, em terceiro lugar, reduzindo o risco de incumprimento da holding Air France‑KLM, o que permitiria à KLM ter acesso aos mercados de capitais de empréstimo a menor custo. Assim, a possibilidade de transferência do benefício decorrente da medida em causa vai muito além do conceito de «efeitos económicos secundários» inerentes a quase todas as medidas de auxílio e é abrangida pelo conceito de «vantagem indireta» de tal medida.

139    A este respeito, há que distinguir o conceito de «vantagem indireta» do de «efeitos secundários inerentes a qualquer medida de auxílio».

140    Segundo a jurisprudência, uma empresa que beneficie de uma vantagem indireta deve ser considerada beneficiária do auxílio. Assim, uma vantagem diretamente concedida a certas pessoas singulares ou coletivas pode constituir uma vantagem indireta e, portanto, um auxílio de Estado para outras pessoas singulares ou coletivas que sejam empresas (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de setembro de 2000, Alemanha/Comissão, C‑156/98, EU:C:2000:467, n.o 26, e de 13 de junho de 2002, Países Baixos/Comissão, C‑382/99, EU:C:2002:363, n.os 60 a 66).

141    Por outro lado, nos termos do n.o 115 da Comunicação sobre a noção de auxílio estatal, uma «medida pode igualmente constituir uma vantagem direta para a empresa beneficiária e uma vantagem indireta para outras empresas, por exemplo, empresas que operam em níveis subsequentes de atividade». A nota de pé de página n.o 179 desta comunicação precisa que, se uma empresa intermediária for um mero veículo para a transferência da vantagem para o beneficiário e não conservar qualquer vantagem, não deve normalmente ser considerada destinatária de um auxílio estatal.

142    O n.o 116 da Comunicação sobre a noção de auxílio estatal refere, além disso, que as vantagens indiretas devem ser distinguidas dos meros efeitos económicos secundários inerentes a quase todas as medidas de auxílio estatal. Para este propósito, os efeitos previsíveis da medida devem ser examinados de um ponto de vista ex ante. Assim, existe uma vantagem indireta se a medida for concebida de forma que distribua os seus efeitos secundários «a empresas ou grupos de empresas identificáveis». A nota de rodapé n.o 181 desta comunicação explica que, em contrapartida, um efeito económico meramente secundário, sob a forma de uma maior produção, que não constitui auxílio indireto, se pode verificar quando o auxílio for simplesmente canalizado através de uma empresa, por exemplo, um intermediário financeiro, que o repercute plenamente no beneficiário do auxílio.

143    No caso em apreço, resulta da análise que figura nos n.os 108 a 132, supra, que o papel da holding Air France‑KLM não se limita a um «mero instrumento encarregado de transferir a vantagem para o beneficiário» ou a um «intermediário financeiro» na aceção dos n.os 115 e 116 da Comunicação sobre a noção de auxílio estatal. Com efeito, a própria holding é, segundo a decisão impugnada, beneficiária da medida em causa. Assim, os efeitos previsíveis da medida em causa de um ponto de vista ex ante sugerem, tendo em conta o tipo de medida de auxílio concedida, que consiste, em substância, numa solução de financiamento, que esta mesma solução de financiamento era suscetível de beneficiar todo o Grupo Air France‑KLM, melhorando a sua posição financeira global, o que indica a existência, pelo menos, de uma vantagem indireta a favor de «um grupo de empresas identificáveis» na aceção do n.o 116 da referida Comunicação.

144    Esta conclusão não é posta em causa pelo Despacho de 21 de janeiro de 2016, Alcoa Trasformazioni/Comissão (C‑604/14 P, não publicado, EU:C:2016:54), referido pela Comissão em apoio do seu argumento segundo o qual, quando calcula o montante do auxílio, não examina os efeitos secundários deste para os consumidores, os fornecedores, os investidores ou os funcionários do beneficiário. Por um lado, como alegam as recorrentes, o processo que deu origem a esse despacho não dizia respeito a uma situação intragrupo. Por outro, como acima se refere no n.o 143, não se trata, no caso em apreço, dos efeitos económicos secundários de uma medida de auxílio sobre os consumidores, os fornecedores, os investidores ou os funcionários.

145    A Comissão e a República Francesa fazem igualmente referência ao Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Comissão/Aer Lingus e Ryanair Designated Activity (C‑164/15 P e C‑165/15 P, EU:C:2016:990), alegando, em substância, que, segundo esse acórdão, os efeitos secundários de uma medida de auxílio não devem ser tomados em consideração na apreciação da compatibilidade de um auxílio com o mercado interno. Os processos que deram origem ao referido acórdão diziam respeito a um regime de auxílios sob a forma de uma taxa reduzida do imposto nacional sobre o transporte aéreo, declarada incompatível com o mercado interno. A questão que se colocava era, nomeadamente, a de saber qual devia ser o montante da vantagem a recuperar junto dos beneficiários do auxílio, que eram companhias aéreas. Estas últimas sustentavam, em substância, que a vantagem em causa tinha sido repercutida nos passageiros, sob a forma de redução dos preços dos bilhetes de avião. Foi neste contexto que o Tribunal de Justiça considerou que a recuperação do auxílio controvertido implicava a restituição da vantagem concedida às companhias aéreas, e não o eventual benefício económico por elas realizado através da exploração dessa vantagem (n.os 100 e 102). Ora, ao contrário destes processos, o presente processo não tem por objetivo a determinação do montante da vantagem que deve ser objeto de recuperação no contexto de um auxílio declarado incompatível com o mercado interno, mas a identificação ex ante dos beneficiários de uma medida de auxílio a fim de examinar a sua compatibilidade com o mercado interno. Além disso, e em todo o caso, não estão em questão, no caso em apreço, as repercussões económicas da medida em causa no preço dos bilhetes de avião.

146    Por conseguinte, há que rejeitar o argumento da Comissão segundo o qual a medida em causa, quando muito, tem meros efeitos económicos secundários em relação à KLM e às suas filiais.

 Conclusão

147    Em face de tudo o que ficou exposto, há que concluir que a Comissão cometeu um erro manifesto de apreciação quando considerou que os beneficiários da medida em causa eram a Air France e as suas filiais, e a holding Air France‑KLM e as suas outras filiais, excluindo apenas a KLM e as filiais desta última, e, consequentemente, julgar procedente o primeiro fundamento.

148    Ora, o artigo 107.o, n.o 3, alínea b), TFUE impõe não só que o Estado‑Membro em causa se depare efetivamente com uma perturbação grave da sua economia, mas também que as medidas de auxílio adotadas para sanar essa perturbação sejam, por um lado, necessárias para esse fim e, por outro, adequadas e proporcionadas para atingir esse objetivo. Esta mesma exigência resulta igualmente do n.o 19 do Quadro Temporário [Acórdão de 19 de maio de 2021, Ryanair/Comissão (KLM; COVID‑19), T‑643/20, EU:T:2021:286, n.o 74].

149    Além disso, e mais especificamente, a aplicação de vários requisitos decorrentes do Quadro Temporário depende da definição de beneficiário da medida em causa, como os previstos no n.o 49 do Quadro Temporário, segundo o qual as medidas de recapitalização deve preencher determinadas condições relativas à situação do beneficiário, no n.o 53 do Quadro Temporário, segundo o qual os Estados‑Membros devem assegurar que os instrumentos de recapitalização selecionados e as condições que lhe estão associadas são os mais adequados para dar resposta às necessidades de recapitalização do beneficiário, ao mesmo tempo que são os menos suscetíveis de distorcer a concorrência, ou ainda no n.o 54 do Quadro Temporário, nos termos do qual o montante da recapitalização COVID‑19 não pode exceder o mínimo necessário para assegurar a viabilidade do beneficiário, e não deve ir além da reposição da sua estrutura de capital anterior ao surto de COVID‑19.

150    Assim, o exame da necessidade e da proporcionalidade do auxílio, em geral, e do cumprimento dos requisitos referidos a título de exemplo no n.o 149, supra, em especial, pressupõe que o beneficiário do auxílio seja previamente identificado. Com efeito, uma identificação errada ou incompleta do beneficiário de uma medida de auxílio é suscetível de ter incidência em toda a análise da compatibilidade dessa medida com o mercado interno.

151    Por conseguinte, há que anular a decisão impugnada, não sendo necessário examinar os demais fundamentos de recurso.

152    Por último, no que respeita à possibilidade de os Estados‑Membros concederem auxílios de Estado a sociedades pertencentes a um grupo de sociedades com atividade em vários Estados‑Membros, importa recordar, para todos os efeitos úteis, que os Estados‑Membros e as instituições da União estão vinculados a deveres recíprocos de cooperação leal, em conformidade com o artigo 4.o, n.o 3, TUE. A Comissão e os Estados‑Membros devem assim colaborar de boa‑fé com vista a respeitar plenamente as disposições do Tratado FUE, nomeadamente as relativas aos auxílios de Estado (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Comissão/Eslováquia, C‑507/08, EU:C:2010:802, n.o 44 e jurisprudência referida). Esta obrigação de cooperação leal e de coordenação impõe‑se ainda mais quando diferentes Estados‑Membros tencionam conceder concomitantemente auxílios a entidades que pertencem ao mesmo grupo de sociedades que opera de forma coordenada no mercado interno com vista a obter todas as suas vantagens.

 Quanto às despesas

153    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão sido vencida, há que condená‑la a suportar as suas próprias despesas, bem como as das recorrentes, em conformidade com o pedido destas últimas.

154    Nos termos do artigo 138.o, n.os 1 e 3, do Regulamento de Processo, os intervenientes devem suportar as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção Alargada)

decide:

1)      É anulada a Decisão C(2021) 2488 final da Comissão, de 5 de abril de 2021, relativa ao auxílio de Estado SA.59913 — França — COVID19 — Recapitalização da Air France e da Air FranceKLM.

2)      A Comissão Europeia suportará as suas próprias despesas, bem como as despesas efetuadas pela Ryanair DAC e pela Malta Air ltd.

3)      A República Federal da Alemanha, a República Francesa, o Reino dos Países Baixos, a Air FranceKLM e a Société Air France suportarão as suas próprias despesas.

Van der Woude

Kornezov

De Baere

Petrlík

 

      Kingston

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 20 de dezembro de 2023.

Assinaturas


*      Língua do processo: inglês.