Language of document : ECLI:EU:C:2024:352

Edição provisória

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

25 de abril de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Operações tributáveis — Artigo 16.° — Afetação de bens da empresa e transmissão desses bens a título gratuito a outro sujeito passivo — Secagem de madeira e aquecimento de campos de espargos provenientes de uma central de cogeração ligada a uma unidade de produção de biogás — Artigo 74.° — Valor tributável — Preço de custo — Limitação aos custos tributados a montante em sede de IVA»

No processo C‑207/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal, Alemanha), por Decisão de 22 de novembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de março de 2023, no processo

Finanzamt X

contra

Y KG,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, P. G. Xuereb (relator) e A. Kumin, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Y KG, por T. Streit e A. Zawatson, Rechtsanwälte,

–        em representação do Governo Alemão, por J. Möller e N. Scheffel, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por F. Behre e J. Jokubauskaitė, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 16.° e 74.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1; a seguir «Diretiva IVA»).

2        Este pedido foi introduzido no âmbito de um litígio que opõe a sociedade Y KG ao Finanzamt X (Serviço de Impostos X, Alemanha) (a seguir, «Autoridade Tributária»), a respeito da tributação, em sede de imposto sobre o valor acrescentado (TVA), de transmissões gratuitas de calor proveniente da central de cogeração ligada à unidade de produção de biogás dessa sociedade, por um lado, ao empresário A para secagem de madeira e, por outro, à sociedade B para aquecimento dos seus campos de espargos.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, da Diretiva IVA:

«Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações:

a)      As entregas de bens efetuadas a título oneroso no território de um Estado‑Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;

[...]»

4        O artigo 14.°, n.° 1, desta diretiva tem a seguinte redação:

«Entende‑se por “entrega de bens” a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário.»

5        O artigo 15.°, n.° 1, da referida diretiva prevê:

«São equiparados a “bens corpóreos” a eletricidade, o gás, o calor ou o frio e similares.»

6        O artigo 16.° da mesma diretiva enuncia:

«É assimilada a entrega de bens efetuada a título oneroso a afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa [destinados] ao seu uso próprio ou do seu pessoal, a transmissão desses bens a título gratuito ou, em geral, a sua afetação a fins alheios à empresa, quando esses bens ou os elementos que os constituem tenham conferido direito à dedução total ou parcial do IVA.

Todavia, não é assimilada a entrega de bens efetuada a título oneroso a afetação a ofertas de pequeno valor e a amostras efetuadas para os fins da empresa.»

7        O artigo 73.° da Diretiva IVA dispõe:

«Nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.° a 77.°, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente relacionadas com o preço de tais operações.»

8        Nos termos do artigo 74.° desta diretiva:

«Nas operações de desafetação ou de afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa, ou de detenção de bens por um sujeito passivo ou pelos seus sucessores em casos de cessação da sua atividade económica tributável, referidas nos artigos 16.° e 18.°, o valor tributável é constituído pelo preço de compra dos bens ou de bens similares ou, na falta de preço de compra, pelo preço de custo, determinados no momento em que tais operações se realizam.»

9        O artigo 78.° da referida diretiva tem a seguinte redação:

«O valor tributável inclui os seguintes elementos:

a)      Os impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos, com exceção do próprio IVA;

b)      As despesas acessórias, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte e seguro, exigidas pelo fornecedor ao adquirente ou ao destinatário.

Para efeitos da alínea b) do primeiro parágrafo, os Estados‑Membros podem considerar despesas acessórias as que sejam objeto de convenção separada.»

10      O artigo 79.° da mesma diretiva prevê:

«O valor tributável não inclui os seguintes elementos:

a)      As reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado;

b)      Os abatimentos e bónus concedidos ao adquirente ou ao destinatário, no momento em que a operação se realiza;

c)      As quantias que um sujeito passivo receba do adquirente ou do destinatário, a título de reembolso das despesas efetuadas em nome e por conta destes últimos, e que sejam registadas na sua contabilidade em contas de passagem.

O sujeito passivo deve justificar o montante efetivo dos encargos referidos na alínea c) do primeiro parágrafo e não pode proceder à dedução do IVA que eventualmente tenha incidido sobre eles.»

 Direito alemão

11      Nos termos do § 3, n.° 1b, do Umsatzsteuergesetz (Lei relativa ao Imposto sobre o Volume de Negócios, a seguir «UStG»):

«São equiparadas a uma entrega efetuada a título oneroso:

1.      a afetação por um empresário de bens da sua empresa para fins alheios aos da empresa;

2.      a transmissão a título gratuito, por um empresário, de bens a favor do seu pessoal para uso privado deste, exceto se se tratar de ofertas de pequeno valor;

3.      qualquer outra transmissão a título gratuito de bens com exceção das ofertas de pequeno valor e de amostras para fins ligados à atividade da empresa. Esta equiparação está sujeita à condição de os bens ou os elementos que o compõem conferirem o direito a uma dedução completa ou parcial do IVA pago a montante.»

12      O § 10, n.° 4, do UStG tem a seguinte redação:

«O valor tributável é calculado:

1.      na transferência de bens, na aceção do § 1a, n.° 2, e do § 3, n.° 1a, bem como nas entregas, na aceção do § 3, n.° 1b, com base no preço de aquisição dos bens, acrescido dos custos conexos ou de aquisição de bens semelhantes ou, não havendo preço de aquisição, pelos custos de aquisição no momento da operação;

[...]»

13      O § 8 do Erneuerbare‑Energien‑Gesetz, na versão de 7 de novembro de 2006 (BGBl. 2006 I, p. 2550) (Lei das Energias Renováveis, a seguir «EEG»), estabelece:

«1)      No caso da eletricidade produzida em instalações com uma capacidade até 20 MW, que utilizam unicamente biomassa na aceção do regulamento aprovado nos termos do n.° 7, a remuneração é a seguinte:

[...]

3)      A remuneração mínima prevista no n.° 1, primeiro período, é acrescida de dois cêntimos por kWh, desde que se trate de eletricidade na aceção do § 3, n.° 4, do [Gesetz für die Erhaltung, die Modernisierung und den Ausbau der Kraft‑Wärme‑Kopplung (Kraft‑Wärme‑Kopplungsgesetz) (Lei relativa à Manutenção, Modernização e Extensão da Cogeração de Eletricidade e Calor), na versão de 19 de março de 2002 (BGBl. 2002 I, p. 1092),] e seja apresentada ao operador da rede [...] uma prova nesse sentido. Em vez da prova referida no primeiro período, no caso das unidades de cogeração que produzem em massa com uma capacidade até 2 MW, podem ser apresentados documentos adequados do produtor, indicando a potência térmica e elétrica, bem como o rácio de eletricidade.»

14      O § 3, n.° 4, da Lei relativa à Manutenção, Modernização e Extensão da Cogeração de Eletricidade e Calor, na versão de 19 de março de 2002, prevê:

«A eletricidade cogerada é o produto calculado resultante do calor útil e do rácio de eletricidade da unidade de cogeração. No caso de unidades que não estejam equipadas com dispositivos de evacuação do calor residual, a produção líquida total de eletricidade é eletricidade cogerada.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15      A Y explora uma unidade de produção de biogás a partir de biomassa. O biogás produzido foi utilizado durante o ano de 2008 para a produção descentralizada de eletricidade e de calor. A eletricidade assim produzida era, na sua maioria, distribuída através da rede elétrica geral em contrapartida de uma remuneração paga pelo operador dessa rede. O calor gerado por este processo destinava‑se, em parte, ao processo de produção da Y.

16      Por contrato de 29 de novembro de 2007, a Y cedeu «gratuitamente» a maior parte do calor produzido desse modo ao empresário A, para que este pudesse secar madeira em contentores, e, por contrato de 29 de julho de 2008, à sociedade B, que aqueceu os seus campos de espargos com esse calor. Ambos os contratos estipulavam que o montante da remuneração era acordado individualmente em função da situação económica do utilizador do calor e que essa remuneração não era especificada nesses contratos.

17      Durante o ano de 2008, além da denominada remuneração mínima de injeção recebida do operador da rede elétrica, ao abrigo do § 8, n.° 1, do EEG, no montante de 1 054 337,85 euros, a Y também recebeu desse operador uma bonificação paga nos termos do § 8, n.° 1, do EEG, no montante de 85 070,66 euros, como contrapartida pela transmissão de 6 714 247 kWh de eletricidade, pelo facto de se tratar de eletricidade resultante da cogeração, na aceção do § 3, n.° 4, da Lei relativa à Manutenção, Modernização e Extensão da Cogeração de Eletricidade e Calor, na versão de 19 de março de 2002. Esta bonificação de 85 070,66 euros foi incluída, juntamente com a retribuição mínima, no valor tributável das operações tributáveis da Y, em conformidade com o que consta da sua declaração de IVA.

18      Uma vez que a Y não faturou o calor transmitido a A e a B, a Autoridade Tributária considerou, no âmbito de um controlo in loco, que esse calor era afetado gratuitamente, na aceção do § 3, n.° 1b, primeiro período, ponto 3, do UStG, a favor de A e de B. Na falta de um preço de compra do referido calor, essa autoridade calculou o valor tributável da afetação com base no preço de custo do mesmo calor, em conformidade com o § 10.°, n.° 4, primeiro período, ponto 1, do UStG.

19      A Autoridade Tributária confirmou essas conclusões no aviso de liquidação do IVA de 17 de novembro de 2011.

20      Por Decisão de 1 de agosto de 2012, a Autoridade Tributária indeferiu a reclamação apresentada pela Y contra esse aviso de liquidação.

21      A Y interpôs recurso do referido aviso de liquidação para o Finanzgericht (Tribunal Tributário, Alemanha), que lhe concedeu provimento.

22      No recurso de «Revision» interposto pela Autoridade Tributária, o Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal, Alemanha) anulou a sentença do Finanzgericht (Tribunal Tributário) e remeteu o processo a este último. O Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal) considerou que este processo não estava em condições de ser julgado, por não poder avaliar o montante a que as vantagens que a Y concedeu a título gratuito deviam ser tributadas e que cabia ao Finanzgericht (Tribunal Tributário) proceder às verificações necessárias a este respeito.

23      Após a remessa ao Finanzgericht (Tribunal Tributário), este concedeu provimento parcial ao recurso. Reduziu o montante do IVA fixado depois de ter considerado que o IVA relativo às vantagens concedidas a título gratuito é calculado com base no preço de custo do calor.

24      Tanto a Y como a Autoridade Tributária interpuseram recurso de «Revision» para o Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

25      Em primeiro lugar, esse órgão jurisdicional salienta que o artigo 16.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA equipara, em quatro situações, a afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa a uma entrega de bens efetuada a título oneroso, a saber, a afetação destinada «ao seu uso próprio», ou «do seu pessoal», «a transmissão a título gratuito» e «a afetação a fins alheios à empresa». A este respeito, o referido órgão jurisdicional considera que, no caso em apreço, estão reunidos os elementos constitutivos de uma transmissão de bens a título gratuito, enunciados na redação desta disposição, terceira hipótese. Além disso, constata que o calor transmitido a título gratuito foi produzido por uma unidade cujo custo de construção e de exploração conferiu à Y direito à dedução do IVA pago a montante. Todavia, o mesmo órgão jurisdicional interroga‑se sobre se, além dos termos da referida disposição, a situação da afetação por transmissão a título gratuito não deve ser limitada por um requisito adicional. Com efeito, tal situação poderá igualmente destinar‑se a impedir um consumo final de bens não sujeitos a IVA e essa interpretação restritiva poderá deduzir‑se do Acórdão de 16 de setembro de 2020, Mitteldeutsche Hartstein‑Industrie (C‑528/19, EU:C:2020:712).

26      Todavia, se for admitida esta interpretação restritiva do artigo 16.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se há que considerar que não existe consumo final não tributado quando o beneficiário da transmissão, que é um sujeito passivo, utiliza os bens transmitidos para exercer uma atividade económica ou se, além disso, é necessário que utilize esses bens para o exercício de uma atividade económica que lhe confere direito à dedução.

27      Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, uma vez que o artigo 74.° da Diretiva IVA tem por objeto concretizar os elementos constitutivos da afetação prevista no artigo 16.°, primeiro parágrafo, desta diretiva, há que ter em conta, na interpretação deste artigo 74.°, o objetivo prosseguido pelo artigo 16.° da referida diretiva, que visa que o sujeito passivo não beneficie de uma vantagem indevida em relação a um consumidor final. Se se dever transpor este objetivo para o artigo 74.° da mesma diretiva, daí pode resultar que, na determinação do preço de custo do bem transmitido a título gratuito, apenas os custos onerados com IVA devem ser tidos em conta. Assim, dado que os custos não onerados com o IVA a montante não devem ser incluídos pelo sujeito passivo que produz um bem no cálculo do preço de custo desse bem, esse sujeito passivo não beneficia de uma vantagem injustificada em relação ao consumidor final que produz um bem.

28      Em terceiro lugar, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre a questão de saber se o preço de custo inclui unicamente os custos diretos de fabrico ou de produção dos bens transmitidos a título gratuito ou se também inclui os custos indiretamente imputáveis, como as despesas de financiamento. Todavia, o referido órgão jurisdicional é da opinião de que as dificuldades suscitadas pela tomada em consideração dos custos indiretos no preço de custo se opõem a essa inclusão. Assim, o objetivo de se chegar a uma avaliação simples do valor das afetações milita contra a tomada em consideração desses custos.

29      Nestas circunstâncias, o Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Tributário Federal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Trata‑se da “afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa [...] [sob a forma de] transmissão desses bens a título gratuito” na aceção do artigo 16.° da Diretiva IVA, quando um sujeito passivo cede gratuitamente calor proveniente da sua empresa a outro sujeito passivo para a sua atividade económica (no presente caso, transmissão de calor proveniente da central de cogeração de um fornecedor de eletricidade a uma empresa agrícola para aquecer os campos de espargos)?

Será relevante para esse efeito o facto de o sujeito passivo destinatário utilizar o calor para fins que lhe conferem o direito à dedução do imposto pago a montante?

2)      Os elementos constitutivos da afetação (artigo 16.° da Diretiva IVA) restringem o preço de custo, na aceção do artigo 74.° da Diretiva IVA, de tal forma que no seu cálculo devem apenas ser incluídos os custos tributados a montante?

3)      O preço de custo compreende unicamente os custos diretos de fabrico ou de produção ou também os custos meramente indiretamente imputáveis, como as despesas de financiamento?»

 Quanto à primeira questão

30      Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 16.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que a cessão a título gratuito do calor produzido por um sujeito passivo a outros sujeitos passivos para os fins das suas atividades económicas constitui uma afetação, por esse sujeito passivo, de bens da sua empresa através de transmissão a título gratuito, na aceção desta disposição, equiparável a uma entrega de bens efetuada a título oneroso, e se é relevante a este respeito o facto de os outros sujeitos passivos utilizarem ou não esse calor para operações que lhes conferem direito à dedução do IVA.

31      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a interpretação de uma disposição do direito da União exige que se tenham em conta não só os seus termos mas também o contexto em que se insere, bem como os objetivos e a finalidade que o ato de que faz parte prossegue (Acórdão de 21 de dezembro de 2023, Cofidis, C‑340/22, EU:C:2023:1019, n.° 21 e jurisprudência referida).

32      Nos termos do artigo 16.°, primeiro parágrafo, terceira hipótese, da Diretiva IVA, é assimilada a entrega de bens efetuada a título oneroso a afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa através da transmissão a título gratuito, quando esses bens ou os elementos que os constituem tenham conferido direito à dedução total ou parcial do IVA.

33      Resulta da redação do artigo 16.°, primeiro parágrafo, desta diretiva que, neste caso, a afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa é equiparada a uma entrega de bens efetuada a título oneroso quando, por um lado, dê lugar a uma transmissão a título gratuito e, por outro, os bens sobre os quais incide ou os elementos que os compõem tenham conferido direito a dedução total ou parcial do IVA em benefício desse sujeito passivo.

34      Em contrapartida, não resulta da análise da redação desta disposição que exista um requisito suplementar ligado ao estatuto fiscal do destinatário dessa transmissão, que estaria relacionado com o facto de este utilizar os bens transmitidos desse modo em operações que dão direito a dedução do IVA.

35      No caso em apreço, resulta das informações constantes do pedido de decisão prejudicial, por um lado, que a Y, sociedade sujeita a IVA, afetou calor da sua empresa, o qual constitui um bem corpóreo, na aceção do artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva IVA, calor esse que a empresa tinha produzido no âmbito das suas atividades. Além disso, resulta também dessas informações que o referido calor foi transmitido gratuitamente pela Y a A e a B a fim de exercerem as suas atividades económicas.

36      Por outro lado, esse órgão jurisdicional precisou que, tendo em conta o facto de as entregas a título oneroso da eletricidade produzida pela unidade de cogeração da Y terem sido sujeitas a IVA, a Y tinha tido o direito de deduzir a totalidade do IVA pago a montante sobre essa unidade, que tinha igualmente produzido o calor transmitido gratuitamente a A e a B.

37      Quanto aos objetivos do artigo 16.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA e ao contexto em que esta disposição se insere, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 16.° da Diretiva IVA visa assegurar uma igualdade de tratamento entre, por um lado, o sujeito passivo que afeta um bem para seu uso privado ou do seu pessoal e, por outro, o consumidor final que adquire um bem do mesmo tipo. Desta forma, a tributação das afetações mencionadas no artigo 16.°, primeiro parágrafo, desta diretiva visa afastar situações de consumo final não tributado [v., neste sentido, no que respeita ao artigo 5.°, n.° 6, da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO 1977, L 145, p. 1), correspondente ao artigo 16.° da Diretiva IVA, Acórdão de 16 de setembro de 2020, Mitteldeutsche Hartstein‑Industrie, C‑528/19, EU:C:2020:712, n.° 59 e jurisprudência referida].

38      Para este efeito, a referida disposição equipara certas operações, em relação às quais o sujeito passivo não recebe uma contrapartida real, a entregas de bens efetuadas a título oneroso, sujeitas a IVA (v., neste sentido, no que respeita ao artigo 5.°, n.° 6, da Sexta Diretiva 77/388, Acórdão de 16 de setembro de 2020, Mitteldeutsche Hartstein‑Industrie, C‑528/19, EU:C:2020:712, n.° 60 e jurisprudência referida).

39      Ora, para afastar situações de consumo final não tributado, a transmissão a título gratuito de bens afetados deve ser sujeita a uma tributação posterior, seja qual for o beneficiário.

40      Além disso, o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 16.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA constitui uma exceção à regra segundo a qual a tributação das afetações mencionadas no artigo 16.°, primeiro parágrafo, dessa diretiva visa afastar situações de consumo final não tributado, pelo facto de excluir da tributação as afetações, efetuadas para os fins da empresa, de ofertas de pequeno valor e amostras (v., neste sentido, no que respeita ao artigo 5.°, n.° 6, da Sexta Diretiva 77/388, Acórdão de 30 de setembro de 2010, EMI Group, C‑581/08, EU:C:2010:559, n.° 19 e jurisprudência referida).

41      Por conseguinte, os termos que figuram no artigo 16.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA são de interpretação estrita, de modo que não sejam postos em causa os objetivos do referido artigo 16.°, primeiro parágrafo. Assim, o objetivo desta exceção não pode consistir na isenção do IVA relativo a bens que dão lugar a um consumo final diferente do inerente a operações de promoção de bens efetuadas pelas amostras (v., neste sentido, Acórdão de 30 de setembro de 2010, EMI Group, C‑581/08, EU:C:2010:559, n.os 20 e 25).

42      Daqui resulta que a sujeição ao IVA das afetações de bens transmitidos a título gratuito, referidas no artigo 16.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA, não conhece outra exceção senão a relativa às operações que consistem em ofertas de pequeno valor e amostras, abrangidas pelo artigo 16.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA.

43      Ora, no caso em apreço, o calor afetado e transmitido não pode ser considerado uma oferta de pequeno valor ou uma amostra, na aceção do artigo 16.°, segundo parágrafo, desta diretiva.

44      Importa acrescentar que resulta do artigo 16.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA que este não estabelece qualquer diferença em função do estatuto fiscal do destinatário das amostras e que, por conseguinte, este estatuto não é relevante para a aplicação desta disposição (v., neste sentido, no que respeita ao artigo 5.°, n.° 6, da Sexta Diretiva 77/388, Acórdão de 30 de setembro de 2010, EMI Group, C‑581/08, EU:C:2010:559, n.os 51 e 52 e jurisprudência referida).

45      Por outro lado, a interpretação do artigo 16.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA, segundo a qual há que ter em conta o estatuto fiscal do destinatário dos bens afetados e transmitidos a título gratuito, é suscetível de criar dificuldades práticas, salientadas tanto pelo órgão jurisdicional de reenvio como pela Comissão Europeia nas suas observações escritas, na medida em que o sujeito passivo que afeta e transmite bens a título gratuito é obrigado a efetuar pesquisas para verificar esse estatuto.

46      Por último, é certo que o Tribunal de Justiça declarou, no n.° 68 do Acórdão de 16 de setembro de 2020, Mitteldeutsche Hartstein‑Industrie (C‑528/19, EU:C:2020:712), invocado nomeadamente pela Y, que obras de alargamento, em benefício de um município, de uma estrada municipal aberta ao público, mas que é utilizada, no âmbito da sua atividade económica, pelo sujeito passivo que efetuou essas obras a título gratuito, bem como pelo público, não constituem uma operação que deva ser equiparada a uma entrega de bens efetuada a título oneroso, na aceção do artigo 5.°, n.° 6, da Sexta Diretiva 77/338 (correspondente ao artigo 16.° da Diretiva IVA).

47      Todavia, por um lado, essas obras beneficiavam o sujeito passivo autor da transmissão e tinham uma relação direta e imediata com toda a sua atividade económica e, por outro, o custo das prestações recebidas a montante e relacionadas com os referidos trabalhos faziam parte dos elementos do custo das operações efetuadas a jusante por esse sujeito passivo. Em contrapartida, nada permite considerar que o calor cobrado e transmitido a título gratuito pela Y foi igualmente utilizado por ela.

48      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 16.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que a cessão a título gratuito do calor produzido por um sujeito passivo a outros sujeitos passivos para os fins das suas atividades económicas constitui uma afetação, por esse sujeito passivo, de bens da sua empresa através de transmissão a título gratuito, na aceção desta disposição, equiparável a uma entrega de bens efetuada a título oneroso, não sendo relevante a este respeito o facto de os outros sujeitos passivos utilizarem ou não esse calor para operações que lhes conferem direito à dedução do IVA.

 Quanto à segunda e terceira questões

49      Com a segunda e terceira questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 74.° da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que o preço de custo, na aceção desta disposição, abrange não só os custos diretos de fabrico ou de produção mas também os custos indiretamente imputáveis, como as despesas de financiamento, e se só os custos tributados a montante em sede de IVA devem entrar no cálculo desse preço.

50      Por força do artigo 74.° da Diretiva IVA, nas operações de desafetação ou de afetação, por um sujeito passivo, de bens da sua empresa, ou de detenção de bens por um sujeito passivo ou pelos seus sucessores em casos de cessação da sua atividade económica tributável, referidas nos artigos 16.° e 18.°, o valor tributável é constituído pelo preço de compra dos bens ou de bens similares ou, na falta de preço de compra, pelo preço de custo, determinados no momento em que tais operações se realizam.

51      Importa começar por recordar que o Tribunal de Justiça já esclareceu que o artigo 74.° da Diretiva IVA constitui uma derrogação à regra geral enunciada no artigo 73.° desta diretiva (Acórdão de 8 de maio de 2013, Marinov, C‑142/12, EU:C:2013:292, n.° 31). Além disso, decorre inequivocamente do artigo 74.° da Diretiva IVA que só na falta de preço de compra dos bens ou de bens similares o valor tributável será constituído pelo «preço de custo» [v., neste sentido, relativamente ao artigo 11.°, A, n.° 1, alínea b), da Sexta Diretiva 77/388, que corresponde ao artigo 74.° da Diretiva IVA, Acórdão de 28 de abril de 2016, Het Oudeland Beheer, C‑128/14, EU:C:2016:306, n.° 38].

52      O Tribunal de Justiça mencionou igualmente que há que entender por «preço de compra determinado no momento da afetação», na aceção do artigo 74.° da Diretiva IVA, o valor residual dos bens no momento da afetação. A respeito de uma operação de afetação de bens igualmente abrangidos por este artigo, o Tribunal de Justiça acrescentou que o valor tributável era o valor do bem em questão, determinado no momento da afetação, que corresponde ao preço no mercado de um bem semelhante tendo em conta os custos de transformação desse bem (Acórdão de 8 de maio de 2013, Marinov, C‑142/12, EU:C:2013:292, n.° 32 e jurisprudência referida).

53      A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio referiu que a determinação do preço de compra era impossível no caso em apreço, uma vez que A e B não estão ligados a uma rede que lhes permita receber calor de terceiros a título oneroso, o que lhe caberá verificar.

54      O Tribunal de Justiça também salientou que, contrariamente ao critério do preço de custo, o critério do preço de compra de bens similares permite à Autoridade Tributária basear‑se nos preços de mercado deste tipo de bens no momento da afetação dos bens em causa, sem necessidade de examinar em pormenor quais os elementos de valor que conduziram a esses preços (v., neste sentido, Acórdão de 23 de abril de 2015, Property Development Company, C‑16/14, EU:C:2015:265, n.° 40).

55      Assim, a determinação do preço de custo incumbe à Autoridade Tributária à luz de todos os elementos pertinentes e implica examinar em pormenor os elementos de valor que conduzem a esse preço, o qual deve ser determinado à data em que a operação de afetação foi efetuada.

56      Em seguida, quanto aos elementos a ter em conta para esse efeito, importa salientar que não resulta de modo algum da redação do artigo 74.° da Diretiva IVA que o preço de custo se deva basear apenas nos custos diretos de fabrico ou de produção ou nos custos tributados a montante em sede de IVA.

57      Por outro lado, o artigo 79.° da Diretiva IVA, que enumera os elementos a não incluir no valor tributável, não visa os custos indiretos, como as despesas de financiamento.

58      Por último, na medida em que, como resulta da jurisprudência referida no n.° 51 do presente acórdão, só na falta de preço de compra dos bens ou de bens similares o valor tributável é constituído pelo preço de custo, há que considerar que esse preço de custo se deve aproximar tanto quanto possível do preço de compra e incluir, por conseguinte, quer os custos de produção e de fabrico diretos quer os custos indiretos como as despesas de financiamento, tenham esses custos ou não sido tributados a montante em sede de IVA.

59      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às segunda e terceira questões que o artigo 74.° da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que o preço de custo, na aceção desta disposição, abrange não só os custos diretos de fabrico ou de produção mas também os custos indiretamente imputáveis, como as despesas de financiamento, quer esses custos tenham ou não sido tributados a montante em sede de IVA.

 Quanto às despesas

60      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

1)      O artigo 16.°, primeiro parágrafo, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado,

deve ser interpretado no sentido de que:

a cessão a título gratuito do calor produzido por um sujeito passivo a outros sujeitos passivos para os fins das suas atividades económicas constitui uma afetação, por esse sujeito passivo, de bens da sua empresa através de transmissão a título gratuito, na aceção desta disposição, equiparável a uma entrega de bens efetuada a título oneroso, não sendo relevante a este respeito o facto de os outros sujeitos passivos utilizarem ou não esse calor para operações que lhes conferem direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado.

2)      O artigo 74.° da Diretiva 2006/112

deve ser interpretado no sentido de que:

o preço de custo, na aceção desta disposição, abrange não só os custos diretos de fabrico ou de produção mas também os custos indiretamente imputáveis, como as despesas de financiamento, quer esses custos tenham ou não sido tributados a montante em sede de IVA.

Assinaturas


*      Língua do processo: alemão.