Language of document : ECLI:EU:T:2007:22

Processo T‑340/03

France Télécom SA

contra

Comissão das Comunidades Europeias

«Concorrência − Abuso de posição dominante − Mercado dos serviços de acesso à Internet de alta velocidade – Preços predatórios»

Sumário do acórdão

1.      Concorrência – Procedimento administrativo – Comunicação das acusações – Conteúdo necessário

2.      Tramitação processual – Petição inicial – Requisitos formais

(Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 21.°, primeiro parágrafo; Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, artigo 44.°, n.° 1)

3.      Concorrência – Procedimento administrativo – Decisão que imputa uma infracção – Dever de fundamentação – Alcance

(Artigo 82.° CE)

4.      Concorrência – Coimas – Princípio da individualização das sanções

5.      Concorrência – Posição dominante – Mercado em questão – Delimitação

(Artigo 82.° CE)

6.      Concorrência – Posição dominante – Caracterização através da detenção de uma quota de mercado extremamente importante

(Artigo 82.° CE)

7.      Concorrência – Posição dominante – Abuso – Prática de preços inferiores aos custos com o objectivo de eliminar um concorrente

(Artigo 82.° CE)

8.      Concorrência – Posição dominante – Abuso – Prática de preços inferiores aos custos com o objectivo de eliminar um concorrente

(Artigo 82.° CE)

9.      Concorrência – Posição dominante – Obrigações que incumbem à empresa dominante

(Artigo 82.° CE)

10.    Concorrência – Coimas

(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2)

11.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Critérios – Impacto concreto no mercado

(Regulamento n.° 17 do Conselho, artigo 15.°, n.° 2; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão)

12.    Concorrência – Coimas – Montante – Determinação – Redução da coima em contrapartida da cooperação da empresa recriminada

(Artigo 81.° CE; Regulamento n.° 17 do Conselho,, artigos 11.°, n.os 4 e 5, e 14.°, n.os 2 e 3; Comunicação 98/C 9/03 da Comissão)

1.      A comunicação de acusações deve incluir uma exposição das acusações redigida em termos suficientemente claros, ainda que sucintos, para permitir que os interessados tomem efectivamente conhecimento do comportamento que lhes é imputado pela Comissão. Com efeito, só nesta condição é que a comunicação de acusações pode desempenhar a sua função nos termos dos regulamentos comunitários, que é a de fornecer às empresas e associações de empresas todos os elementos necessários para lhes permitir que se defendam efectivamente antes de a Comissão tomar uma decisão definitiva. Esta exigência é respeitada desde que a decisão não impute aos arguidos infracções diferentes das referidas na descrição das acusações e apenas tome em consideração factos sobre os quais os interessados tenham tido oportunidade de se pronunciar. A decisão final da Comissão, porém, não deve necessariamente ser uma cópia da descrição das acusações. Assim, admite‑se que sejam feitos aditamentos à comunicação de acusações tendo em conta a contestação das partes, cujos argumentos demonstrem que estas puderam, efectivamente, exercer o seu direito de defesa. A Comissão pode também, atendendo ao procedimento administrativo, rever ou acrescentar argumentos de facto ou de direito em apoio das acusações que formulou

Assim, uma exigência dessa natureza está satisfeita quando a comparação entre a primeira comunicação de acusações e a decisão revela que a sociedade, o mercado e os produtos em causa são os mesmos, bem como a infracção imputada, ou seja, a prática de preços predatórios contrária ao artigo 82.° CE, e quando, no caso de a decisão ser muito mais detalhada quanto à cobertura dos custos, esta precisão foi introduzida na comunicação de acusações complementar.

(cf. n.os 18, 25‑27, 36)

2.      Não compete ao Tribunal de Primeira Instância procurar e identificar nesses anexos da petição inicial os elementos que poderiam fundamentar o recurso.

Nos termos do artigo 21.° do Estatuto do Tribunal de Justiça e do artigo 44.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Primeira Instância, a petição deve conter o objecto do litígio e a exposição sumária dos fundamentos do pedido. Esta indicação deve ser suficientemente clara e precisa para permitir à parte demandada preparar a sua defesa e ao Tribunal proferir uma decisão, eventualmente sem quaisquer outros elementos.

Embora o texto da petição possa ser desenvolvido e completado em determinados pontos específicos por remissão para determinadas passagens de documentos a ela anexos, uma remissão global para outros documentos, mesmo juntos à petição, não pode desculpar a falta de elementos essenciais nessa petição, os anexos com uma função puramente probatória e instrumental. Os anexos não podem, assim, servir para desenvolver um fundamento sumariamente exposto na petição quando contenham acusações ou argumentos que dela não constam. A recorrente deve indicar na petição as acusações precisas sobre as quais o Tribunal é chamado a pronunciar‑se, bem como, de modo pelo menos sumário, os elementos de direito e de facto em que essas acusações assentam.

É contrário à função meramente probatória e instrumental dos anexos que estes possam servir para fazer uma demonstração pormenorizada de uma alegação feita de modo insuficientemente claro e preciso na petição.

(cf. n.os 30, 166, 167, 204)

3.      Quando adopta uma decisão relativa à aplicação do artigo 82.° CE, a Comissão cumpriu o seu dever de fundamentação se tiver mencionando na sua decisão os elementos de facto de que depende a justificação legal da medida e as considerações que a levaram a tomar a sua decisão.

(cf. n.° 57)

4.      Por força do princípio da individualidade das penas e das sanções, uma empresa só pode ser punida por factos que lhe sejam individualmente imputados, princípio que é aplicável a qualquer processo administrativo susceptível de levar à aplicação de sanções por força das regras comunitárias da concorrência

O facto de uma decisão que conclui pela violação do artigo 82.° CE por parte de uma empresa e que lhe aplica uma coima fazer referência ao comportamento de outra empresa não viola esse princípio visto que tal comportamento não constitui objecto de uma acusação relativamente à empresa punida, mas é tomado em conta apenas para descrever o contexto do mercado em causa.

(cf. n.os 66, 68, 70, 71)

5.      Para efeitos do exame da eventual posição dominante de uma empresa em determinado mercado sectorial, as possibilidades de concorrência devem ser apreciadas no âmbito do mercado que agrupa o conjunto dos produtos ou serviços que, em função das suas características, são particularmente aptos à satisfação das necessidades constantes e pouco substituíveis por outros produtos ou serviços. Além disso, dado que a determinação do mercado em causa serve para avaliar se a empresa em questão tem a possibilidade de obstar à manutenção de uma concorrência efectiva e de se comportar, em medida apreciável, independentemente dos seus concorrentes e, no caso em apreço, dos seus prestadores de serviços, não se pode, para este efeito, limitar o exame unicamente às características objectivas dos serviços em questão, devendo as condições da concorrência e a estrutura da oferta e da procura no mercado ser, igualmente, tomadas em consideração.

Quando um produto pode ser utilizado para diversos fins e quando essas diferentes utilizações correspondem a necessidades económicas também elas diferentes, há que reconhecer que esse produto pode pertencer, consoante o caso, a mercados distintos que tenham eventualmente características diferentes, tanto do ponto de vista da respectiva estrutura como das condições de concorrência. No entanto, esta asserção não justifica a conclusão de que esse produto faz parte de um único e mesmo mercado que todos os outros que, nas diferentes utilizações que lhes podem ser dadas, podem ser substituídos e com os quais entra, consoante os casos, em concorrência.

O conceito de mercado relevante (relevant market) implica, com efeito, que possa haver uma concorrência efectiva entre os produtos que dele fazem parte, o que pressupõe um grau suficiente de permutabilidade para efeitos da mesma utilização entre todos os produtos que façam parte de um mesmo mercado.

Resulta igualmente do n.° 7, da Comunicação da Comissão relativa à definição de mercado relevante para efeitos do direito comunitário da concorrência que «[u]m mercado de produto relevante compreende todos os produtos e/ou serviços considerad[o]s permutáveis ou substituíveis pelo consumidor devido às suas características, preços e utilização pretendida». De acordo com esta comunicação, a apreciação da substituição do lado da procura implica a determinação da gama de produtos considerados substituíveis pelo consumidor.

Assim, relativamente ao sector do acesso à Internet, não estando em causa apenas uma diferença de conforto ou de qualidade entre a alta e a baixa velocidade, uma vez que a uma diferença de preço significativa entre as duas acrescem diferenças de utilizações de especificidades técnicas e de desempenhos, e que, apesar de a baixa e a alta velocidade apresentarem um certo grau de substituibilidade, esta última funciona de modo profundamente assimétrico, a Comissão pode concluir correctamente que o grau de substituibilidade entre a alta e a baixa velocidade não é suficiente e definir o mercado em causa como o do acesso à Internet de alta velocidade para particulares.

(cf. n.os 78‑82, 85‑88, 91)

6.      Uma posição dominante é uma posição de poder económico detida por uma empresa que lhe permite afastar a manutenção de uma concorrência efectiva no mercado em causa e lhe possibilita comportar‑se, em medida apreciável, de modo independente em relação aos seus concorrentes, aos seus clientes e, finalmente, aos consumidores, e a Comissão não tem que demonstrar que os concorrentes de uma empresa serão excluídos do mercado, ainda que provisoriamente, para concluir pela existência de uma posição dominante.

Por outro lado, embora o significado das quotas de mercado possa diferir de um mercado para outro, quotas de mercado particularmente elevadas podem, por si só, salvo circunstâncias excepcionais, constituir a prova da existência de uma posição dominante. Esse é o caso, por exemplo, de uma quota de mercado de 50%.

A existência de uma concorrência, mesmo viva, num determinado mercado, não exclui a existência de uma posição dominante nesse mesmo mercado, caracterizando‑se a referida posição fundamentalmente pela capacidade de a sociedade não ter de tomar em consideração esta concorrência na sua estratégia de mercado sem, no entanto, sofrer os efeitos prejudiciais desta atitude. Assim, sendo certo que a eventual existência de concorrência no mercado é uma circunstância relevante, nomeadamente, para efeitos de verificar a existência de uma posição dominante, essa eventualidade não é por si só uma circunstância determinante a este propósito.

A redução de quotas de mercado durante todo o período em causa também não exclui a existência de uma posição dominante, a redução de quotas de mercado ainda muito elevadas não pode constituir, por si só, prova da ausência de posição dominante.

O facto de se tratar de um mercado em forte crescimento também não pode excluir a aplicação das regras de concorrência, nomeadamente as do artigo 82.° CE, especialmente quando a empresa em causa tenha sempre detido uma quota de mercado muito superior à do primeiro dos seus concorrentes, o que constitui um indício válido de posição dominante, e quando seja a própria a considerar a concorrência potencial limitada.

O facto de a empresa em causa ter beneficiado, através do «apoio» do grupo a que pertence, de vantagens sobre os seus concorrentes pode, em contrapartida, ser susceptível de contribuir para a sua posição dominante.

(cf. n.os 99‑101, 103, 104, 107, 109, 111, 112, 118)

7.      No quadro da caracterização, através da taxa de cobertura dos custos da empresa em causa, de um abuso de posição dominante resultante de uma prática de preços predatórios, há que distinguir a aplicação do método de determinação da taxa de cobertura dos custos e os cálculos propriamente ditos, que se limitam a simples operações matemáticas.

Na medida em que a escolha do método de cálculo da taxa de cobertura dos custos, diferentemente dos próprios cálculos, implica, por parte da Comissão, uma apreciação económica complexa, pelo que lhe deve ser reconhecido um amplo poder de apreciação. A fiscalização do Tribunal deve, assim, limitar‑se à verificação do cumprimento das normas processuais e de fundamentação, bem como à exactidão material dos factos, à inexistência de erros manifestos de apreciação e de desvio de poder.

(cf. n.os 129, 162, 163)

8.      Para efeitos da aplicação do artigo 82.° CE, a demonstração do objectivo e do efeito anticoncorrencial podem eventualmente confundir‑se. Efectivamente, se se demonstrar que o objectivo prosseguido pelo comportamento de uma empresa em posição dominante é restringir a concorrência, este comportamento é também susceptível de produzir esse efeito. Assim, relativamente às práticas em matéria de preços, existem dois métodos de análise diferentes quando se trata de verificar se uma empresa praticou preços predatórios. Preços inferiores à média dos custos variáveis praticados por uma empresa dominante são considerados per se abusivos porque o único interesse que essa empresa pode ter em praticar tais preços é eliminar os seus concorrentes e que preços inferiores à média dos custos totais, mas superiores à média dos custos variáveis, são abusivos quando são fixados no âmbito de um plano que tem como finalidade eliminar um concorrente. Não é exigida qualquer demonstração dos efeitos concretos das práticas em causa.

Efectivamente, quando uma empresa em posição dominante leva efectivamente a cabo uma prática cujo objectivo é afastar um concorrente, o facto de o resultado esperado não ser conseguido não pode bastar para afastar a qualificação de abuso de posição dominante na acepção do artigo 82.° CE.

Daí resulta claramente que, relativamente aos preços predatórios, o primeiro elemento da prática abusiva levada a cabo pela empresa dominante é constituído pela não cobertura dos seus custos. No caso de não cobertura dos custos variáveis, o segundo elemento, ou seja, a intenção de práticas predatórias, presume‑se, ao passo que, relativamente aos preços inferiores à média dos custos totais, é necessário provar a existência de um plano de eliminação da concorrência. Esta intenção de eliminação deve ser provada com base em indícios sérios e concordantes.

A este respeito, as receitas e os custos posteriores à infracção não podiam entrar em linha de conta para avaliar a taxa de cobertura dos custos durante o período considerado. Com efeito, o artigo 82.° CE visa a posição detida no mercado comum pela empresa em causa no momento em que esta adoptou a conduta alegadamente abusiva.

Por outro lado, quer se trate de preços inferiores à média dos custos variáveis ou de preços inferiores à média dos custos totais, mas superiores à média dos custos variáveis, não é necessário demonstrar, a título de prova suplementar, que a empresa em causa tinha uma possibilidade real de recuperar os seus prejuízos.

Por último, uma empresa que pratica preços predatórios pode beneficiar da economia de escala e dos efeitos da aprendizagem devido a uma produção acrescida precisamente graças a essa prática. As economias de escala e os efeitos da aprendizagem obtidos não isentam, pois, a empresa da sua responsabilidade nos termos do artigo 82.° CE.

(cf. n.os 130, 152, 195‑197, 217, 224, 227, 229)

9.      Não se pode afirmar que o direito de uma empresa dominante de acompanhar os preços da concorrência é absoluto e que foi reconhecido enquanto tal pela Comissão na sua prática decisória e pela jurisprudência, especialmente quando esse direito leve a justificar o recurso a preços predatórios, aliás proibidos pelo Tratado. Embora a existência de uma posição dominante não prive uma empresa colocada nessa posição do direito de salvaguardar os seus próprios interesses comerciais, quando estes estiverem ameaçados, e embora lhe deva ser reconhecida a faculdade, dentro dos limites do razoável, de praticar os actos que considerar apropriados para proteger os seus interesses, não podem, no entanto, admitir‑se tais comportamentos quando tenham por objectivo reforçar essa posição dominante e abusar dela.

Resulta da natureza das obrigações impostas pelo artigo 82.° CE que, em circunstâncias específicas, as empresas em posição dominante podem ser privadas do direito de adoptar comportamentos ou levar a cabo actos que não são em si mesmos abusivos e que seriam mesmo não condenáveis se fossem adoptados ou praticados por empresas não dominantes.

(cf. n.os 182, 185, 186)

10.    A decisão da Comissão de não aplicar uma coima em caso especial devido à natureza relativamente nova das infracções verificadas não concede imunidade às empresas que cometam infracções que não foram punidas anteriormente pela Comissão. Com efeito, é no contexto específico de cada processo que a Comissão, no exercício do seu poder de apreciação, decide da oportunidade de aplicar uma coima para punir a infracção cometida e preservar a eficácia do direito da concorrência.

(cf. n.° 251)

11.    Em conformidade com as orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do disposto no n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17 e do n.° 5 do artigo 65.° do Tratado CECA, a avaliação do grau de gravidade da infracção deve ter em consideração o carácter da própria infracção, o seu impacto concreto no mercado quando este for quantificável e a dimensão do mercado geográfico de referência.

No que respeita a este último factor, a empresa em questão não pode contestar que a infracção que lhe é imputada teve um impacto concreto no mercado, quando a sua quota no mercado em causa tenha aumentado desde o início da infracção sem voltar a descer ao seu nível inicial e permaneça bem acima da do seu concorrente mais próximo, quando um dos seus concorrentes muito marginal que praticava preços inferiores aos seus custos, mas ligeiramente superiores aos preços por ela praticados, tenha desaparecido do mercado, quando os seus concorrentes se mantenham a níveis de penetração muito baixos e, por último, quando as suas práticas tenham tido um efeito dissuasivo sobre o acesso ao mercado ou o desenvolvimento dos concorrentes.

(cf. n.os 259‑264)

12.    Uma cooperação no inquérito que não ultrapasse o que resulta das obrigações que incumbem às empresas por força do disposto no artigo 11.°, n.os 4 e 5, do Regulamento n.° 17 não justifica uma redução da coima.

O facto de uma empresa incriminada ter, ela própria, convidado a Comissão a fazer uma visita às suas instalações sem esperar que esta última ordenasse inspecções através de decisão, isso não seria suficiente para concluir por uma cooperação tão estreita que pudesse justificar a sua tomada em consideração enquanto circunstância atenuante. O artigo 14.° do Regulamento n.° 17 dispõe que, no cumprimento dos deveres que lhe são impostos pelo artigo 81.° CE, a Comissão pode proceder a todas as diligências de instrução necessárias junto das empresas. Os seus agentes mandatados podem, nomeadamente, aceder a todas as instalações e tirar cópias dos documentos profissionais. As inspecções da Comissão podem ser efectuadas por simples mandado (artigo 14.°, n.° 2) ou ordenadas por decisão (artigo 14.°, n.° 3). O facto de a Comissão não ter actuado, no caso em apreço, mediante decisão não implica, por si só, uma «colaboração efectiva da empresa no processo», na acepção das orientações para o cálculo das coimas aplicadas por força do n.° 2 do artigo 15.° do Regulamento n.° 17 e do n.° 5 do artigo 65.° do Tratado CECA.

(cf. n.os 277, 281)