Language of document : ECLI:EU:T:2021:194

(Processo T379/20)

Ryanair DAC

contra

Comissão Europeia

 Acórdão do Tribunal Geral (Décima Secção Alargada) de 14 de abril de 2021

«Auxílios de Estado — Mercado dinamarquês do transporte aéreo — Auxílio concedido pela Dinamarca a favor de uma companhia aérea no quadro da pandemia de COVID‑19 — Garantia — Decisão de não levantar objeções — Compromissos que condicionam a compatibilidade do auxílio com o mercado interno — Auxílio destinado a remediar os danos causados por um acontecimento extraordinário — Liberdade de estabelecimento — Livre prestação de serviços — Igualdade de tratamento — Dever de fundamentação»

1.      Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios compatíveis com o mercado interno —Auxílios destinados a remediar os danos causados por um acontecimento extraordinário — Apreciação — Medida de auxílio que não remedeia a totalidade dos danos causados pelo acontecimento extraordinário — Inclusão

[Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 18‑24)

2.      Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações — Auxílios compatíveis com o mercado interno — Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários — Garantia numa linha de crédito renovável a favor de uma companhia aérea para a indemnizar no quadro da pandemia de Covid19 — Apreciação — Critérios — proporcionalidade do auxílio

[Artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 29‑32, 36‑38, 51)

3.      Auxílios concedidos pelos Estados — Proibição — Derrogações —Auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários — Garantia numa linha de crédito renovável a favor de uma companhia aérea para a indemnizar no quadro da pandemia de Covid19 — Apreciação à luz do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE — Violação do princípio da não discriminação — Inexistência

[Artigos 18.°, primeiro parágrafo, e 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE]

(cf. n.os 58‑60, 65, 66, 68‑75)

4.      Livre prestação de serviços — Disposições do Tratado — Âmbito de aplicação — Serviços no domínio dos transportes na aceção do artigo 58.°, n.° 1, TFUE — Serviços de transportes aéreos — Regime jurídico especial

(Artigos 56.°, 58.°, n.° 1, e 100.°, n.° 2, TFUE)

(cf. n.os 77‑82)

5.      Recurso de anulação — Pessoas singulares ou coletivas — Atos que lhes dizem direta e individualmente respeito — Decisão da Comissão que declara a compatibilidade de um auxílio de Estado com o mercado interno sem abertura do procedimento formal de exame — Recurso dos interessados na aceção do artigo 108.°, n.° 2, TFUE — Identificação do objeto do recurso — Recurso destinado a salvaguardar os direitos processuais dos interessados — Fundamentos que podem ser invocados — Inexistência de conteúdo autónomo de um fundamento desse tipo no caso vertente

(Artigos 108.°, n.° 2, e 263.°, quarto parágrafo, TFUE)

(cf. n.os 86‑88)

6.      Auxílios concedidos pelos Estados — Decisão da Comissão de não levantar objeções a uma medida nacional — Dever de fundamentação — Alcance — Tomada em conta do contexto e de todas as normas jurídicas que regulam a matéria

(Artigo 108.°, n.° 3, e 296.° TFUE)

(cf. n.os 92‑101)

Resumo

As medidas de auxílio instituídas pela Suécia e pela Dinamarca a favor da SAS para os danos resultantes do cancelamento ou da reprogramação de voos na sequência das restrições de deslocação causadas pela pandemia de COVID19 são conformes com o direito da União

Dado que a SAS detém uma quota de mercado significativamente mais elevada do que as do seu concorrentemais próximo nestes dois EstadosMembros, os auxílios não constituem uma discriminação ilegal

Em abril de 2020, o Reino da Dinamarca e o Reino da Suécia notificaram à Comissão Europeia duas medidas de auxílio distintas a favor da sociedade SAS AB (a seguir «SAS»), que consistiam, cada uma delas, numa garantia sobre uma linha de crédito renovável no montante máximo de 1,5 mil milhões de coroas suecas (SEK) (1). As referidas medidas destinavam‑se a indemnizar parcialmente a SAS pelos prejuízos decorrentes da anulação ou da reprogramação dos seus voos na sequência da instauração de restrições em matéria de deslocação no contexto da pandemia de Covid‑19.

Por decisões de 15 de abril de 2020 (2) e de 24 de abril de 2020 (3), a Comissão qualificou as medidas notificadas de auxílios de Estado (4) compatíveis com o mercado interno nos termos do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE. Em conformidade com esta disposição, os auxílios destinados a remediar os danos causados por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários são compatíveis com o mercado interno.

A companhia aérea Ryanair interpôs recursos de anulação dessas decisões, que, no entanto, são julgados improcedentes pela Décima Secção alargada do Tribunal Geral. Neste contexto, esta confirma pela primeira vez a legalidade de medidas de auxílio individuais adotadas com vista a dar uma resposta às consequências da pandemia de COVID‑19 à luz do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE (5).

Apreciação do Tribunal Geral

O Tribunal julga improcedente, em primeiro lugar, o fundamento segundo qual os auxílios concedidos são incompatíveis com o mercado interno por se destinarem a remediar os danos sofridos apenas por uma empresa. A este respeito, esclarece que, em conformidade com o artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE, um auxílio pode destinar‑se a remediar os danos causados por um acontecimento extraordinário mesmo que beneficie unicamente uma empresa individual e não a totalidade dos danos causados por esse acontecimento. Consequentemente, a Comissão não tinha cometido um erro de direito pelo simples facto de as medidas de auxílio a favor da SAS não beneficiarem a totalidade das vítimas dos danos causados pela pandemia de Covid‑19.

Em segundo lugar, o Tribunal julga improcedente o fundamento da Ryanair que contesta a proporcionalidade das medidas de auxílio em relação aos prejuízos causados à SAS pela pandemia de Covid‑19. O Tribunal começa por recordar que o artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE só permite compensar as desvantagens económicas causadas diretamente por calamidades naturais ou por outros acontecimentos extraordinários. Contudo, dado o caráter evolutivo da pandemia e o caráter necessariamente prospetivo da quantificação dos danos que a mesma causou à SAS, a Comissão tinha apresentado com precisão suficiente um método de cálculo destinado à avaliação dos referidos danos capaz de evitar o risco de uma eventual sobrecompensação (6). Neste contexto, o Tribunal sublinha, além disso, o compromisso assumido pelo Reino da Dinamarca e pelo Reino da Suécia de efetuarem uma avaliação ex post do prejuízo efetivamente sofrido pela SAS, o mais tardar em 30 de junho de 2021, e de pedirem a esta última, sendo caso disso, o reembolso do auxílio que exceda os referidos danos, tendo em conta todos ao auxílios suscetíveis de ser concedidos à SAS em razão da pandemia de Covid‑19, incluindo por autoridades estrangeiras.

Em terceiro lugar, o Tribunal julga improcedente o fundamento relativo a uma alegada violação do princípio da não discriminação. Com efeito, um auxílio individual institui, pela sua própria natureza, uma diferença de tratamento, ou mesmo uma discriminação, que é inerente ao caráter individual da medida. Sustentar que tal auxílio é contrário ao princípio da não discriminação equivaleria, assim, a pôr sistematicamente em causa a compatibilidade com o mercado interno de qualquer auxílio individual, quando o direito da União permite aos Estados‑Membros conceder tais auxílios, desde que todos os requisitos previstos no artigo 107.° TFUE estejam preenchidos.

Além disso, mesmo admitindo que possa ser equiparada a um discriminação em aplicação daquele princípio, a diferença de tratamento instituída pelas medidas em causas pode justificar‑se quando necessária, adequada e proporcionada para alcançar um objetivo legítimo. Do mesmo modo, na medida em que a Ryanair refere igualmente o artigo 18.° TFUE, o Tribunal observa, além disso, que esta disposição proíbe qualquer discriminação em razão da nacionalidade no âmbito da aplicação dos Tratados, sem prejuízo das suas disposições especiais. Ora, uma vez que, segundo ele, o artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE figura entre as disposições especiais previstas pelos Tratados, o Tribunal continua o seu exame das medidas em causa nesta base.

A este respeito, por um lado, o Tribunal confirma que o objetivo das medidas em causa satisfaz os requisitos estabelecidos pelo artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE, uma vez que visa efetivamente remediar em parte os danos causados à SAS por um acontecimento extraordinário, a saber, a pandemia de Covid‑19. Por outro lado, constata que a diferença de tratamento a favor da SAS é adequada e não vai além do necessário para alcançar o objetivo das referidas medidas, visto que a SAS possui a maior quota de mercado na Dinamarca e na Suécia e essa quota é significativamente mais elevada do que as do seu concorrente mais próximo nos dois países.

Em quarto lugar, o Tribunal examina as decisões da Comissão à luz da livre prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento. Nesse quadro, salienta que a Ryanair não demonstra de que forma o caráter exclusivo da medida é suscetível de dissuadi‑la de se estabelecer na Dinamarca ou na Suécia ou  de efetuar prestações de serviços a partir de um destes países ou com destino a eles.

No que respeita ao processo T‑379/20, o Tribunal constata, além disso, que a medida de auxílio notificada pela Suécia é subsidiária em relação ao regime adotado ao abrigo do artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE a fim de fazer face à perturbação da economia da Suécia provocada pela pandemia de Covid‑19 (7). Todavia, rejeita o argumento de que, por esse motivo, a referida medida não pode ter por objetivo remediar um acontecimento extraordinário, na aceção do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), TFUE. A este respeito, precisa que o Tratado FUE não se opõe a uma aplicação concomitante do artigo 107.°, n.° 2, alínea b), e do artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE desde que os requisitos de cada uma destas disposições estejam reunidos. É isso que acontece, nomeadamente, quando os factos e as circunstâncias que dão lugar a uma perturbação grave da economia resultam de um acontecimento extraordinário.

Por último, o Tribunal julga improcedentes os fundamentos relativos a uma pretensa violação do dever de fundamentação e constata que não é necessário examinar o mérito do fundamento relativo a uma violação dos direitos processuais decorrentes do artigo 108.°, n.° 2, TFUE.


1      A medida de auxílio adotada pela Suécia representa um auxílio individual que este Estado‑Membro decidiu conceder à SAS enquanto sociedade elegível para o regime de garantias de empréstimos destinados a apoiar as companhias aéreas suecas no contexto da pandemia de Covid‑19, que tinha sido notificada pela Suécia à Comissão numa data anterior à da notificação da medida de auxílio individual e tinha sido aprovada por esta última em 11 de abril de 2020, nos termos do artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE.


2      Decisão da Comissão C(2020) 2416 final, relativa ao auxílio de Estado SA.56795 — Dinamarca — Indemnização dos danos causados à SAS pela pandemia de Covid‑19.


3      Decisão da Comissão C(2020) 2784 final, relativa ao auxílio Estado SA.57061 (2020/N) — Suécia — Indemnização dos danos causados à SAS pela pandemia de Covid‑19.


4      Na aceção do artigo 107.°, n.° 1, TFUE.


5      No seu Acórdão de 17 de fevereiro de 2021, Ryanair/Comissão (T‑259/20, EU:T:2021:92), o Tribunal Geral precedeu a um exame análogo da legalidade de um regime de auxílios de Estado adotado por França para responder às consequências da pandemia de Covid‑19 no mercado francês do transporte aéreo. No seu Acórdão de 14 de abril de 2021, Ryanair/Comissão (T‑388/20, EU:T:2021:196), o Tribunal Geral procedeu ao exame de uma outra medida de auxílio individual com base no artigo 107.°, n.° 3, alínea b), TFUE.


6      A Comissão indicou que a extensão do prejuízo sofrido pela SAS correspondia à «perda do valor acrescentado», que consistia na diferença entre as receitas do período compreendido entre março de 2019 e fevereiro de 2020 e as receitas do período compreendido entre março de 2020 e fevereiro de 2021, perda essa à qual foram subtraídos, por um lado, os custos variáveis evitados, calculados com base nos custos incorridos entre março de 2019 e fevereiro de 2020, e, por outro, a margem de benefício relacionada com a perda de receitas. O prejuízo foi provisoriamente avaliado tendo em conta uma redução do tráfego aéreo de 50 a 60% no período compreendido entre março de 2020 e fevereiro de 2021 em relação ao período compreendido entre março de 2019 e fevereiro de 2020 e correspondia a um montante entre 5 e 15 mil milhões de SEK


7      No seu acórdão recorrido de 17 de fevereiro de 2021, Ryanair/Comissão (T‑238/20, EU:T:2021:91), o Tribunal Geral negou provimento ao recurso da Ryanair contra a decisão da Comissão que declara esse regime de auxílios sueco compatível com o mercado interno.