Language of document : ECLI:EU:C:2009:109

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. POIARES MADURO

apresentadas em 19 de Fevereiro de 2009 1(1)

Processo C‑3/08

Ketty Leyman

contra

Institut national d’assurance maladie‑invalidité (INAMI)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal du travail de Nivelles (Bélgica)]





1.        Limitando‑se o Tratado CE a dispor no sentido de uma coordenação das legislações nacionais em matéria de segurança social e não da sua inteira harmonização, podem subsistir disparidades entre as mesmas. Assim, o facto de um trabalhador exercer o seu direito de livre circulação pode representar uma desvantagem para este, sem contudo implicar uma violação do Tratado. Mas, por outro lado, os objectivos do Tratado não seriam alcançados se o exercício do direito de livre circulação conduzisse a uma perda de benefícios em matéria de segurança social garantidos aos trabalhadores pela legislação de um Estado‑Membro. O caso vertente constitui um bom exemplo desta tensão.

I –    Matéria de facto no processo principal

2.        O pedido de decisão prejudicial foi submetido ao Tribunal de Justiça na sequência de um litígio entre K. Leyman e o Instituto da Segurança Social belga, denominado Institut national d’assurance‑maladie (a seguir «INAMI»). K. Leyman, de nacionalidade belga, exerceu uma actividade assalariada na Bélgica, de 1971 a 2003. Em Agosto de 2003, mudou a sua residência para o Grão‑Ducado do Luxemburgo e, a partir desta data, passou a estar sujeita ao regime de segurança social luxemburguês. Em 8 de Julho de 2005, as autoridades luxemburguesas competentes reconheceram a sua incapacidade para o trabalho relativamente ao período de 8 de Julho de 2005 até 29 de Fevereiro de 2012, data em que é suposto reformar‑se. Consequentemente, atribuíram‑lhe uma pensão de invalidez com efeitos imediatos e calculada proporcionalmente à duração do período de seguro cumprido ao abrigo da legislação por elas aplicada. O valor mensal da pensão foi, assim, fixado em 322,83 EUR.

3.        Nos termos do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho (2), K. Leyman apresentou um requerimento ao INAMI, com o fim de obter uma pensão de invalidez calculada proporcionalmente aos períodos de seguro cumpridos na Bélgica. Em 23 de Julho de 2006, o INAMI reconheceu‑lhe o direito a essa prestação, fixando o respectivo valor em 737,10 EUR. Todavia, a data de início do pagamento da pensão foi fixada em 8 de Julho de 2006, de acordo com o artigo 93.° da Lei de 14 de Julho de 1994, relativa ao seguro obrigatório para cuidados de saúde e subsídios, nos termos da qual o direito a uma pensão de invalidez só é adquirido após um ano de incapacidade para o trabalho, durante o qual o beneficiário tem direito a um subsídio designado de «indemnité d’incapacité primaire» (subsídio de incapacidade primária).

4.        Decorre daí que, durante o primeiro ano de incapacidade, a recorrente recebeu do Grão‑Ducado do Luxemburgo uma pensão de invalidez calculada com base no período de seguro cumprido neste território, mas não recebeu nenhum pagamento por parte das instituições da segurança social belgas.

5.        K. Leyman interpôs recurso da decisão do INAMI para o Tribunal du travail de Nivelles (Tribunal de Trabalho de Nivelles), alegando que a fixação da data de início do pagamento da pensão de invalidez em 8 de Julho de 2006 é incompatível com a liberdade de circulação e, deste modo, reclamando o respectivo pagamento a partir de 8 de Julho de 2005. Por considerar que o litígio suscitava diversas questões de direito comunitário, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter um pedido de decisão prejudicial.

II – Quadro jurídico e questões prejudiciais

6.        Para compreender inteiramente o raciocínio subjacente ao presente pedido e o alcance das questões, importa recordar as disposições seguintes.

7.        O Anexo IV do Regulamento n.° 1408/71 classifica os Estados‑Membros em duas categorias, consoante o tipo de legislação que aplicam em matéria de segurança social. Num regime denominado de tipo A, o montante da prestação é pago a uma taxa fixa, independentemente da duração do período de seguro cumprido; num regime denominado de tipo B, o montante da prestação depende da duração do período de seguro cumprido.

8.        Quando, como no caso vertente, um trabalhador está sujeito sucessivamente a legislação de tipo A, como a legislação belga, e a legislação de tipo B, como a legislação luxemburguesa, é aplicável o artigo 40.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71, que remete para as disposições estabelecidas no capítulo 3 do regulamento, isto é, para os seus artigos 44.° a 51.° Decorre daí que um trabalhador pode ter direito a uma pensão de invalidez em vários Estados‑Membros, tal direito sendo adquirido de acordo com os requisitos estabelecidos por cada uma das legislações nacionais, como prevê o artigo 44.°, n.° 2.

9.        Não obstante, o artigo 45.°, n.° 1, especifica que, para efeitos da aquisição do direito a prestações, deverão ser tidos em conta, se necessário, todos os períodos de seguro cumpridos noutros Estados‑Membros. Este princípio da totalização dos períodos de seguro também está reflectido no artigo 40.°, n.° 3, no que respeita ao tipo de situação do caso vertente:

«a)      Para determinar o direito às prestações por força da legislação de um Estado‑Membro, referida no Anexo IV, parte A, que faça depender a concessão das prestações de invalidez da condição de, durante um determinado período, o interessado ter beneficiado de prestações pecuniárias de doença ou ter estado incapacitado para o trabalho, quando um trabalhador assalariado ou não assalariado que esteve sujeito a essa legislação for atingido por uma incapacidade de trabalho seguida de invalidez enquanto sujeito à legislação de outro Estado‑Membro tomar‑se‑á em conta, sem prejuízo do n.° 1 do artigo 37.°:

i)      Qualquer período durante o qual, nos termos da legislação do segundo Estado‑Membro, o trabalhador beneficiou, relativamente à mesma incapacidade para o trabalho, de prestações pecuniárias de doença ou, em vez destas, da manutenção do seu salário,

ii)      Qualquer período durante o qual o trabalhador beneficiou, nos termos da legislação do segundo Estado‑Membro, de prestações na acepção dos capítulos II e III, relativamente à invalidez que se seguiu àquela incapacidade de trabalho,

como se se tratasse de um período durante o qual as prestações pecuniárias de doença lhe tivessem sido concedidas por força da legislação do primeiro Estado‑Membro ou durante o qual o trabalhador esteve incapacitado para o trabalho, na acepção dessa legislação;»

10.      No que respeita ao momento da constituição do direito à pensão de invalidez, no caso particular abrangido pelo artigo 40.°, n.° 3, alíneas a), o artigo 40.°, n.° 3, alínea b), dispõe:

«b)      O direito a prestações de invalidez é adquirido, em relação à legislação do primeiro Estado‑Membro, quer pela cessação do período prévio de indemnização por doença, estabelecido por essa legislação, quer ao cessar o período prévio de incapacidade de trabalho, estabelecido por essa legislação, e o mais cedo:

i)      na data de aquisição do direito às prestações referidas na alínea a), subalínea ii), por força da legislação do segundo Estado‑Membro, ou

ii)      no dia seguinte ao último dia em que o interessado tiver direito às prestações pecuniárias de doença, por força da legislação do segundo Estado‑Membro.»

11.      Por último, nos termos do artigo 46.° do Regulamento n.° 1408/71, o montante da pensão de invalidez deve ser calculado proporcionalmente ao período de seguro ou de residência cumprido ao abrigo da legislação do Estado‑Membro aplicável à duração total dos períodos de seguro e de residência cumpridos ao abrigo das legislações de todos os Estados‑Membros em causa.

12.      No caso vertente, a dificuldade surge por causa das diferenças entre a legislação belga e a legislação luxemburguesa, relativamente à data a partir da qual deve ser paga a pensão de invalidez. Assim, enquanto nos termos da lei luxemburguesa o direito se constitui a partir do primeiro dia de incapacidade para o trabalho, ou seja, neste caso, a partir de 8 de Julho de 2005, nos termos da lei belga esse mesmo direito constitui‑se um ano após o início da incapacidade para o trabalho, ou seja, e ainda neste caso, a partir de 8 de Julho de 2006.

13.      Daqui resulta que, durante o seu primeiro ano de incapacidade, a recorrente limitou‑se a receber a pensão de invalidez luxemburguesa, calculada exclusivamente de acordo com os períodos de seguro cumpridos no Luxemburgo, ou seja, um montante inferior à «indemnité d’incapacité primaire» que teria recebido se tivesse permanecido na Bélgica. Entretanto, o INAMI também se recusou a atribuir‑lhe, relativamente ao seu primeiro ano de incapacidade, uma pensão de invalidez estabelecida proporcionalmente ao período de seguro cumprido na Bélgica, com o fundamento de que, por força da lei belga, a invalidez é precedida de um período preliminar de incapacidade para o trabalho, designado de «incapacité primaire» (incapacidade primária), e que, neste caso, o artigo 40.°, n.° 3, alínea b), do Regulamento n.° 1408/71 dispõe que o direito a uma prestação pecuniária por invalidez se constitui, no que respeita à legislação do primeiro Estado‑Membro, após a «cessação do período prévio de indemnização por doença».

14.      K. Leyman considera que estas regras violam o princípio comunitário da liberdade de circulação. Por conseguinte, com as suas duas perguntas, o órgão jurisdicional de reenvio questiona o Tribunal de Justiça, no essencial, sobre a compatibilidade do artigo 40.°, n.° 3, alínea b), do Regulamento n.° 1408/71 e do artigo 93.° da Lei de 14 de Julho de 1994 belga com o direito de livre circulação e permanência garantido aos cidadãos da União Europeia pelo artigo 18.° CE, na medida em que aquelas duas disposições podem dar origem a uma discriminação em detrimento dos cidadãos que exerceram o seu direito de livre circulação.

III – Questão de direito

15.      Importa observar que, embora as questões respeitem ao artigo 18.° CE, a situação ora em causa está abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 39.° CE, uma vez que a recorrente estabeleceu a sua residência no Luxemburgo para aí trabalhar como assalariada. Por conseguinte, não há que interpretar o artigo 18.° CE, na medida em que o direito de todos os cidadãos da União Europeia circularem e permanecerem livremente no território dos Estados‑Membros está especificamente consagrado no artigo 39.° CE relativamente à liberdade de circulação dos trabalhadores (3).

16.      As dúvidas suscitadas pelo órgão jurisdicional de reenvio acerca da validade do artigo 40.°, n.° 3, alínea b), do Regulamento n.° 1408/71 e do artigo 93.° da Lei de 14 de Julho de 1994 belga serão, portanto, apreciadas à luz do artigo 39.° CE. No entender do órgão jurisdicional nacional, ao permitirem um período de espera de um ano até a pensão de invalidez ser paga, as disposições controvertidas impedem K. Leyman de beneficiar, durante o primeiro ano da sua incapacidade, dos direitos adquiridos ao longo da sua carreira profissional na Bélgica. Por conseguinte, põem‑na em desvantagem pelo simples facto de ter exercido o seu direito de livre circulação.

17.      À primeira vista, o Tratado não proíbe a diferença permitida pelo direito comunitário e verificada entre as legislações belga e luxemburguesa, no que respeita ao momento em que a pensão de invalidez começa a ser paga. Com efeito, o Tratado não prevê a harmonização das legislações dos Estados‑Membros em matéria de segurança social, mas apenas, no seu artigo 42.° CE (ex‑artigo 51.° do Tratado CE), a coordenação dessas legislações. Consequentemente, o Tratado não prejudica a competência dos Estados‑Membros para organizarem os respectivos sistemas de segurança social (4). Em especial, cabe à legislação de cada Estado‑Membro determinar as condições de atribuição das prestações de segurança social (5). Como resultado desta competência dos Estados‑Membros, podem subsistir diferenças entre os regimes nacionais de segurança social nos processos aplicáveis e nos direitos das pessoas que trabalham nos Estados‑Membros (6).

18.      Com efeito, os Estados‑Membros optaram por soluções diferentes em matéria de prestações de doença e de invalidez. O legislador comunitário admitiu esta situação, limitando‑se, através do Regulamento n.° 1408/71, adoptado com base no artigo 42.° CE, a implementar um sistema de coordenação no que respeita, inter alia, à determinação da legislação aplicável aos trabalhadores assalariados e não assalariados que exercem, em diversas circunstâncias, o seu direito de livre circulação (7). Ao fazê‑lo, o legislador comunitário não pode definir o conteúdo das legislações nacionais de segurança social, cuja conformidade com os artigos 48.° e 52.° do Tratado é da responsabilidade das autoridades nacionais (8), sob fiscalização dos tribunais comunitários.

19.      Assim, o artigo 40.° do Regulamento n.° 1408/71 estabelece um mecanismo de coordenação das legislações nacionais, no caso de um trabalhador sair de um Estado‑Membro, onde vigora legislação de tipo A, para se fixar noutro Estado‑Membro, onde vigora legislação de tipo B. Neste caso, como já foi referido, cada um dos Estados‑Membros onde a pessoa segura esteve empregada, deve atribuir‑lhe uma prestação de invalidez proporcional ao tempo que a mesma trabalhou no seu território, desde que o referido trabalhador preencha os requisitos estabelecidos para o efeito pela legislação nacional do território relevante. A este respeito, o artigo 40. °, n.° 3, alínea b), do Regulamento n.° 1408/71 admite explicitamente que os Estados‑Membros do tipo A condicionem a atribuição de uma pensão de invalidez ao decurso de um período preliminar de doença ou de incapacidade para o trabalho.

20.      Por conseguinte, é duvidoso que o recorrente tenha direito a receber uma pensão de invalidez na Bélgica a partir do primeiro dia da sua incapacidade para o trabalho. Isso seria impor o pagamento imediato de uma prestação que, de acordo com a lei belga, só é concedida após o decurso de um período de espera de um ano. Tal equivaleria a uma harmonização forçada, quando o direito comunitário se limita a implementar uma coordenação das legislações nacionais.

21.      Esta condição de concessão imposta pela lei social belga e autorizada pelo artigo 40.°, n.° 3, alínea b), do Regulamento n.° 1408/71 viola, enquanto tal, o artigo 39.° CE? A minha conclusão é de que não viola. A referida condição não constitui nem uma discriminação entre trabalhadores em razão da nacionalidade, nem uma discriminação em detrimento dos trabalhadores que exercem o seu direito de livre circulação. Aplica‑se igualmente aos trabalhadores que permaneceram durante toda a sua carreira profissional na Bélgica, e o possível impacto negativo nos trabalhadores que exerceram a sua liberdade de circulação é mera consequência das opções legais divergentes feitas pela Bélgica e pelo Luxemburgo relativamente às condições que regulam a concessão de uma pensão de invalidez.

22.      No entanto, há que reconhecer que a legislação belga poria em desvantagem os trabalhadores que exerceram o seu direito de livre circulação, comparativamente com os que permaneceram no território belga, se não lhes permitisse reclamar um subsídio de incapacidade primária. Por conseguinte, a questão reside em saber se, com base no direito comunitário, a recorrente não podia pedir o subsídio de incapacidade primária previsto pela lei belga. Da decisão de reenvio decorre que, formalmente, K. Leyman se limita a pedir a pensão de invalidez a partir do primeiro dia da sua incapacidade para o trabalho. Não obstante, as questões prejudiciais referem, de um modo mais geral, a compatibilidade com o direito comunitário da recusa de pagamento, durante o primeiro ano de incapacidade para o trabalho, de uma prestação, independentemente da sua natureza, que tenha em conta os períodos de seguro cumpridos na Bélgica.

23.      O que se discute aqui não diz respeito ao facto de, como consequência da transferência da sua actividade profissional para o Luxemburgo, K. Leyman ser beneficiária de uma pensão de invalidez por parte das autoridades luxemburguesas, fixada proporcionalmente ao seu curto período de seguro cumprido no território do Grão‑Ducado, cujo valor é inferior ao montante do subsídio de incapacidade primária que lhe teria sido pago durante o primeiro ano de incapacidade para o trabalho, caso tivesse permanecido na Bélgica. Como foi sublinhado, o legislador comunitário não harmonizou o montante das prestações sociais. Assim, «o Tratado CE não garante a um trabalhador que a extensão das suas actividades em mais de um Estado‑Membro ou a sua transferência para outro Estado‑Membro sejam neutras em matéria de segurança social. Tendo em conta as disparidades entre as legislações de segurança social dos Estados‑Membros, essa extensão ou essa transferência podem, conforme o caso, ser mais ou menos vantajosas ou desvantajosas para o trabalhador, no plano da protecção social» (9). Decorre daí que, em princípio, qualquer desvantagem para um trabalhador, comparativamente com a situação daqueles que exercem toda a sua actividade num único Estado‑Membro, resultante da extensão ou da transferência da sua actividade para outro ou outros Estados‑Membros e do facto de esse trabalhador ficar sujeito a legislação adicional em matéria de segurança social, não é contrária às disposições relativas à liberdade de circulação dos trabalhadores (10).

24.      Todavia, é necessário fazer uma distinção entre as possíveis desvantagens decorrentes da sujeição às legislações de diferentes Estados‑Membros e o tratamento discriminatório de situações transfronteiriças por parte da legislação de um só Estado‑Membro. Por conseguinte, a questão respeita, mais exactamente, à compatibilidade com o direito comunitário da impossibilidade de um trabalhador belga que se mudou para o Grão‑Ducado do Luxemburgo e que, durante o exercício da sua actividade profissional no território deste, ficou incapaz para o trabalho, obter, durante o primeiro ano da sua incapacidade, uma prestação que tenha em conta as contribuições anteriormente pagas ao INAMI, sendo certo que o referido trabalhador teria direito a um subsídio de incapacidade primária, desde o primeiro dia da sua incapacidade para o trabalho, caso tivesse permanecido na Bélgica.

25.      A Comissão sustenta que, para responder a esta questão, a disposição pertinente não é tanto o artigo 40.°, n.° 3, alínea b), do Regulamento n.° 1408/71, que respeita apenas à concessão de uma pensão de invalidez, mas sim o artigo 40.°, n.° 3, alínea a), do mesmo regulamento. É certo que, de acordo com a sua letra, esta última disposição respeita também apenas às prestações de invalidez, limitando‑se a impor, relativamente aos Estados‑Membros que, à semelhança da Bélgica, sujeitam a concessão destas prestações ao decurso de um período prévio de incapacidade para o trabalho, uma obrigação de estes Estados‑Membros terem em conta, para efeitos da verificação do preenchimento desta condição, qualquer período durante o qual o trabalhador tenha beneficiado, ao abrigo da legislação do segundo Estado‑Membro, de prestações de doença ou de invalidez relativamente à mesma incapacidade para o trabalho (11).

26.      Importa, porém, recordar que, para garantir a efectividade da liberdade de circulação dos trabalhadores, o artigo 42.° CE prevê o estabelecimento de um sistema de segurança social que assegure aos trabalhadores migrantes a «totalização de todos os períodos tomados em consideração pelas diversas legislações nacionais, tanto para fins de aquisição e manutenção do direito às prestações, como para o cálculo destas». É também jurisprudência assente que todas as disposições do Regulamento n.° 1408/71 devem ser interpretadas à luz do objectivo do artigo 42.° CE, que é contribuir para o estabelecimento da livre circulação dos trabalhadores, mediante, inter alia, a totalização dos períodos de seguro, de residência ou de emprego (12). Numa circunstância em que não era possível alcançar este objectivo, o Tribunal de Justiça não hesitou em anular uma disposição do Regulamento n.° 1408/71 que exclua a possibilidade de tomar em conta os períodos durante os quais, para efeitos de prolongamento do período de referência ao abrigo da legislação de um Estado‑Membro, foram pagas prestações sociais ao abrigo da legislação de outro Estado‑Membro (13). Se o Tratado admite a existência de diferenças entre os sistemas de segurança social dos Estados‑Membros e, consequentemente, ao nível dos direitos das pessoas que trabalham nos Estados‑Membros, o seu objectivo não seria alcançado se, como consequência do exercício do seu direito de livre circulação, os trabalhadores tivessem de perder os benefícios em matéria de segurança social que lhes são garantidos pela legislação de um Estado‑Membro. Tal consequência poderia dissuadir os trabalhadores comunitários de exercerem o seu direito de livre circulação e constituiria, assim, um entrave a esta liberdade (14). Por conseguinte, o referido objectivo implica que os trabalhadores migrantes não devem perder o seu direito a prestações de segurança social nem sofrer uma redução do respectivo montante, pelo facto de terem exercido o direito de livre circulação que lhes é conferido pelo Tratado (15), e que a regra da totalização dos períodos de seguro, de residência ou de emprego se destina a garantir que o exercício do direito de livre circulação conferido pelo Tratado não tem por efeito privar um trabalhador de benefícios de segurança social a que teria direito se tivesse permanecido durante toda a sua carreira profissional num único Estado‑Membro (16).

27.      No caso vertente, se sempre tivesse trabalhado e cumprido todos os seus períodos de seguro na Bélgica, ou se ali tivesse ficado inválida ou incapaz para o trabalho, eventualmente após estar empregada noutro Estado‑Membro, K. Leyman teria direito a um subsídio de incapacidade primária durante o período de 8 de Julho de 2005 a 7 de Julho de 2006.

28.      Interpretado à luz do artigo 42.° CE, o artigo 40.°, n.° 3, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71 deve, portanto, ser entendido no sentido de que impõe a um Estado‑Membro como a Bélgica, não apenas que, para efeitos do pagamento de uma prestação de invalidez, tome em conta qualquer período durante o qual a pessoa em causa tenha recebido prestações de invalidez ao abrigo da legislação luxemburguesa mas também que, para efeitos do pagamento e do cálculo da «indemnité d’incapacité primaire», tome em conta todos os períodos de seguro cumpridos ao abrigo da legislação luxemburguesa, como se tratasse de períodos cumpridos ao abrigo da sua própria legislação.

29.      Por conseguinte, é à luz desta interpretação do artigo 40.°, n.° 3, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71 que as autoridades belgas devem ler e aplicar o artigo 93.° da Lei de 14 de Julho de 1994. Como o Tribunal de Justiça tem declarado consistentemente, os Estados‑Membros devem, no exercício das suas competências para organizar e aplicar os respectivos sistemas de segurança social, respeitar o direito comunitário, em particular as disposições do Tratado CE relativas à livre circulação de trabalhadores (17). Por conseguinte, a competência dos Estados‑Membros não é ilimitada. Os Estados‑Membros devem, em particular, respeitar o espírito e os princípios do Regulamento n.° 1408/71, entre os quais a garantia de que uma pessoa não seja penalizada por exercer o seu direito de livre circulação, e assegurar que o regime assim instituído não prive esta pessoa de protecção social (18). Além disso, embora, em princípio, comparativamente com a situação dos trabalhadores que exercem todas as suas actividades num único Estado‑Membro, qualquer desvantagem resultante da extensão ou da transferência das actividades de um trabalhador para outro ou outros Estados‑Membros, ou do facto de um trabalhador ficar sujeito a legislação adicional em matéria de segurança social, não é contrária aos artigos 39.° CE e 43.° CE, esta legislação não pode conduzir pura e simplesmente ao pagamento de contribuições para a segurança social das quais não possa posteriormente beneficiar (19). Como já foi referido, se K. Leyman não recebesse nenhum pagamento, por parte das instituições da segurança social belgas, durante o primeiro ano da sua incapacidade, não beneficiaria durante esse período das contribuições que pagou na Bélgica.

IV – Conclusão

30.      Pelos motivos acima expostos, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Tribunal du travail de Nivelles da seguinte forma:

«O artigo 40.°, n.° 3, alínea a), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, deve ser interpretado no sentido de que impõe a um Estado‑Membro com legislação de tipo A, que faz depender a concessão das prestações de invalidez da condição de o interessado ter ficado incapacitado para o trabalho durante um determinado período, quando o trabalhador assalariado que esteve sujeito a essa legislação sofre de incapacidade para o trabalho seguida de invalidez enquanto sujeito à legislação de outro Estado Membro, que tome em conta todos os períodos cumpridos ao abrigo da legislação do segundo Estado‑Membro para determinar o direito às prestações e calcular o respectivo montante, que a sua própria legislação preveja a favor do trabalhador incapacitado durante o período em causa.»


1 – Língua original: inglês.


2 – Regulamento de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade (versão consolidada – JO 1997, L 28, p. 1).


3 – V., a este respeito, acórdãos de 26 de Novembro de 2002, Oteiza Olazabal (C‑100/01, Colect., p. I‑10981, n.° 26); de 26 de Abril de 2007, Alevizos (C‑392/05, Colect., p. I‑3505, n.° 66); e de 11 de Setembro de 2007, Hendrix (C‑287/05, Colect., p. I‑6909, n.° 61).


4 – V. acórdãos de 9 de Março de 2006, Piatkowski (C‑493/04, Colect., p. I‑2369, n.° 32); de 13 de Maio de 2003, Müller‑Fauré e van Riet (C‑385/99, Colect., p. I‑4509, n.° 100); e de 3 de Abril de 2008, Derouin (C‑103/06, ainda não publicado na Colectânea, n.° 23).


5 – Acórdãos de 30 de Janeiro de 1997, Stöber e Piosa Pereira (C‑4/95 e C‑5/95, Colect., p. I‑511, n.° 36); de 28 de Abril de 1998, Decker (C‑120/95, Colect., p. I‑1831, n.° 22); Müller‑Fauré e van Riet (já referido na nota 4, n.° 100); e de 21 de Fevereiro de 2008, Klöppel (C‑507/06, Colect., p. I‑943, n.° 16).


6 – Acórdãos de 15 de Janeiro de 1986, Pinna (41/84, Colect., p. 1); de 12 Julho de 1989, Jordan (141/88, Colect., p. 2387, n.° 13); e de 19 de Março de 2002, Hervein e o. (C‑393/99 e C‑394/99, Colect., p. I‑2829, n.° 50).


7 – Acórdãos Hervein e o. (já referido na nota 6, n.° 52) e Derouin (já referido na nota 4, n.° 20).


8 – Acórdão Hervein e o. (já referido na nota 6, n.° 53).


9 – Acórdãos Hervein e o. (já referido na nota 6, n.° 51) e Piatkowski (já referido na nota 4, n.° 34).


10 – Ibidem.


11 – Para alguns exemplos de aplicação desta disposição, v. acórdão de 9 de Novembro de 1977, Warry (41/77, Recueil, p. 2085, Colect., p. 749), e de 12 de Janeiro de 1983, Coppola (150/82, Recueil, p. 43), soluções essas agora expressamente previstas pelo artigo 40.°, n.° 3, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71.


12 – V., a este respeito, acórdãos de 17 de Dezembro de 1998, Lustig (C‑244/97, Colect., p. I‑8701, n.° 30); de 9 de Agosto de 1994, Reichling (C‑406/93, Colect., p. I‑4061, n.° 21); de 26 de Outubro de 1995, Moscato (C‑481/93, Colect., p. I‑3525, n.° 27); e de 26 de Outubro de 1995, Klaus (C‑482/93, Colect., p. I‑3551, n.° 21).


13 – V. acórdão de 18 de Abril de 2002, Duchon (C‑290/00, Colect., p. I‑3567). Para uma análise mais detalhada, v. Mavridis, P. – La sécurité sociale à l’épreuve de l’intégration européenne, Bruylant, 2003, pp. 657 a 659.


14 – V. acórdãos de 5 de Outubro de 1994, van Munster (C‑165/91, Colect., p. I‑4661, n.° 27); de 4 de Outubro de 1991, Paraschi (C‑349/87, Colect., p. I‑4501, n.° 22); de 20 de Setembro de 1994, Drake (C‑12/93, Colect., p. I‑4337, n.° 22); e de 11 de Setembro de 2008, Petersen, ainda não publicado na Colectânea, n.° 43.


15 – Acórdãos, já referidos na nota 12, Lustig, n.° 31, e Reichling, n.° 24.


16 – Acórdãos, já referidos na nota 12, Lustig, n.° 31, e Moscato, n.° 28.


17 – Acórdãos de 26 de Janeiro de 1999, Terhoeve (C‑18/95, Colect., p. I‑345, n.° 34); Decker (já referido na nota 5, n.° 23); Piatkowski (já referido na nota 4, n.° 33); de 7 de Julho de 2005, van Pommeren‑Bourgondiën (C‑227/03, Colect., p. I‑6101, n.° 39); Derouin (já referido na nota 4, n.° 25); Klöppel (já referido na nota 5, n.° 16); e Petersen (já referido na nota 14, n.° 42).


18 – Acórdão Derouin (já referido na nota 4, n.° 25).


19 – Acórdãos Hervein e o. (já referido na nota 6, n.° 51) e Piatkowski (já referido na nota 4, n.° 34).