Language of document : ECLI:EU:C:2005:242

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

21 de Abril de 2005 (*)

«Incumprimento de Estado – Artigos 43.° CE e 48.° CE – Ópticos – Condições de estabelecimento – Abertura e exploração de estabelecimentos de óptica – Restrições – Justificação – Princípio da proporcionalidade»

No processo C‑140/03,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 27 de Março de 2003,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por M. Patakia, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

contra

República Helénica, representada por E. Skandalou, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, C. Gulmann (relator), P. Kūris e G. Arestis, juízes,

advogado‑geral: D. Ruiz‑Jarabo Colomer,

secretário: L. Hewlett, administradora principal,

vistos os autos e na sequência da audiência de 23 de Setembro de 2004,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral apresentadas na audiência de 7 de Dezembro de 2004,

profere o presente

Acórdão

1       Na sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que se digne declarar que:

–       ao adoptar e manter em vigor a Lei n.° 971/79, relativa ao exercício da profissão de óptico e aos estabelecimentos de artigos de óptica (FEK A’ 223, a seguir «Lei n.° 971/79»), que não permite a um óptico, pessoa singular, diplomado explorar mais de um estabelecimento de óptica, a República Helénica restringiu as condições de estabelecimento dos ópticos, pessoas singulares, violando o artigo 43.° CE, e

–       ao adoptar e manter em vigor a Lei n.° 971/79 e a Lei n.° 2646/98, relativas ao desenvolvimento do sistema nacional de assistência social e outras disposições (FEK A’ 236, p. 3455, a seguir «Lei n.° 2646/98»), que fazem depender a possibilidade de uma pessoa colectiva abrir um estabelecimento de óptica na Grécia das seguintes condições:

–       que a autorização de criar e de explorar o estabelecimento de óptica seja concedida em nome de um óptico, pessoa singular, autorizado, que o titular da autorização para explorar o estabelecimento participe em, pelo menos, 50% do capital social bem como nos seus lucros e perdas, que a sociedade tenha a forma de uma sociedade em nome colectivo ou de uma sociedade em comandita, e

–       que o óptico em causa participe, no máximo, noutra sociedade proprietária de um estabelecimento de óptica, desde que a autorização de criar e de explorar o estabelecimento seja concedida em nome de outro óptico autorizado,

a República Helénica restringiu as condições de estabelecimento das pessoas colectivas no sector da óptica na Grécia de modo incompatível com o artigo 43.° CE e violou o artigo 48.° CE em conjugação com o artigo 43.° CE, ao impor às pessoas colectivas restrições que não existem para as pessoas singulares.

 Quadro jurídico nacional

2       O artigo 6.°, n.° 6, da Lei n.° 971/79 dispõe:

«Sem prejuízo do disposto no n.° 3 deste artigo (estabelecimentos dentro das farmácias) e do n.° 2 do artigo 8.° (transferência para familiares), os estabelecimentos de óptica são geridos pessoalmente pelos titulares da autorização concedida para a sua exploração. Cada óptico não pode gerir mais do que um estabelecimento de óptica […]»

3       O artigo 7.°, n.° 1, da mesma lei estabelece que:

«Os estabelecimentos de óptica só podem ser criados por titulares de uma licença de óptico e a sua exploração depende da concessão de uma autorização pela autoridade pública competente.»

4       O artigo 8.°, n.° 1, precisa que:

«A autorização de exploração de um estabelecimento de óptica é pessoal e intransmissível.»

5       O artigo 27.°, n.° 4, da Lei n.° 2646/98 prevê:

«Só os ópticos autorizados podem constituir uma sociedade em nome colectivo ou em comandita para explorar um estabelecimento de óptica, desde que o possuidor da autorização para explorar o estabelecimento participe em, pelo menos, 50% do capital social. Um óptico pode participar, no máximo, noutra sociedade, desde que a autorização de criar e de explorar o estabelecimento de óptica seja concedida em nome de outro óptico autorizado.»

 Fase pré‑contenciosa

6       Na sequência de uma denúncia feita por duas sociedades anónimas, uma delas registada num Estado‑Membro diferente da República Helénica, às quais a administração grega recusou uma autorização de abertura de um estabelecimento de óptica com base na Lei n.° 971/79, a Comissão, por carta de 27 de Janeiro de 1998, chamou a atenção do Governo grego para a incompatibilidade dessa legislação com o artigo 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) e com o artigo 58.° do mesmo Tratado (actual artigo 48.° CE).

7       Em 27 de Abril de 1998, o Governo grego respondeu que a Lei n.° 971/79 estava em vias de alteração.

8       Em 6 de Novembro de 1998, a Comissão enviou à República Helénica uma notificação para cumprir onde sublinhava que a Lei n.° 971/79 não era conforme com as disposições do Tratado referidas na sua correspondência anterior de 27 de Janeiro de 1998. Convidou a República Helénica a apresentar‑lhe as suas observações a este respeito no prazo de dois meses.

9       Em 13 de Janeiro de 1999, o Governo grego respondeu comunicando à Comissão a Lei n.° 2646/98, que completa a Lei n.° 971/79.

10     Em 3 de Agosto de 1999, a Comissão remeteu ao Governo grego uma notificação para cumprir complementar, na qual expôs que a Lei n.° 2646/98 não punha fim à crítica formulada na primeira notificação, uma vez que essa mesma lei era contrária aos artigos 43.° CE e 48.° CE. Em 26 de Janeiro de 2000, enviou uma segunda notificação para cumprir complementar em que recapitulava as críticas formuladas contra a República Helénica.

11     Em 17 de Maio de 2000, o Governo grego respondeu que, não existindo harmonização a nível comunitário, cada Estado‑Membro é livre para regular o exercício das profissões no seu território. Alegou que as restrições censuradas eram indispensáveis para garantir um nível elevado de protecção da saúde. Sustentou que a legislação controvertida não era nem discriminatória nem desproporcionada em relação ao objectivo pretendido.

12     Em 24 de Janeiro de 2001, a Comissão notificou à República Helénica um parecer fundamentado refutando a argumentação desta, formulando as suas críticas baseadas na violação dos artigos 43.° CE e 48.° CE e convidando o Estado‑Membro destinatário a adoptar as medidas necessárias para respeitar esse parecer no prazo de dois meses.

13     Em 2 de Maio de 2001, o Governo grego respondeu que mantinha a sua posição. Em 9 de Dezembro de 2002, informou a Comissão da sua intenção de modificar a legislação de forma a permitir a criação e a exploração de estabelecimentos de óptica por ópticos cidadãos comunitários e, em determinadas condições, por sociedades comerciais, qualquer que seja a sua forma jurídica (sociedade em nome colectivo, sociedade em comandita, sociedade de responsabilidade limitada ou sociedade anónima).

14     Em 27 de Março de 2003, a Comissão intentou a presente acção.

 Quanto à acção

15     Há que examinar sucessivamente as seguintes questões:

–       a incidência, quanto à presente acção, da Lei n.° 3204/03, que altera e completa a legislação relativa ao sistema nacional de saúde e regula outras questões da competência do Ministério da Saúde e da Previdência (FEK A’ 296, p. 4997), invocada pela República Helénica no decurso da fase oral;

–       a existência de restrições à liberdade de estabelecimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas;

–       a eventual justificação dessas restrições.

 Quanto à incidência da Lei n.° 3204/03 invocada pela República Helénica

 Argumentos das partes

16     No decurso da fase oral, a República Helénica alegou que, com a Lei n.° 3204/03, recentemente comunicada à Comissão, pôs fim às violações dos artigos 43.° CE e 48.° CE de que era acusada.

17     Ao abrigo desta lei, os ópticos, pessoas singulares, passam a estar autorizados a explorar mais de um estabelecimento de óptica, desde que cada estabelecimento seja dirigido por um óptico diplomado autorizado.

18     Quanto às pessoas colectivas, a Lei n.° 3204/03 permite actualmente a criação de estabelecimentos de óptica por sociedades, independentemente da sua forma jurídica.

19     Contudo, esta lei exige:

–      para as sociedades em nome colectivo, que a maioria dos sócios e o gerente ou a maioria dos gerentes sejam ópticos;

–      para as sociedades de responsabilidade limitada, que mais de metade dos sócios que representem mais de metade do capital social sejam ópticos;

–      para as sociedades anónimas, que pelo menos 51% do capital social seja detido por ópticos.

20     A Comissão observa que o presente processo incide sobre o quadro jurídico resultante das Leis n.os 971/79 e 2646/98 e que, em qualquer caso, uma primeira análise da Lei n.° 3204/03 revela a persistência de certas restrições à liberdade de estabelecimento referidas na acção.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

21     Segundo jurisprudência assente, a existência de um incumprimento deve ser apreciada em função da situação do Estado‑Membro tal como se apresentava no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, não sendo as alterações posteriormente ocorridas tomadas em consideração (v., designadamente, acórdãos de 30 de Janeiro de 2002, Comissão/Grécia, C‑103/00, Colect., p. I‑1147, n.° 23, e de 12 de Junho de 2003, Comissão/Luxemburgo, C‑97/01, Colect., p. I‑5797, n.° 30).

22     Nestas condições, a Lei n.° 3204/03, posterior ao termo do prazo fixado no parecer fundamentado dirigido no caso em apreço à República Helénica, não pode ser tomada em consideração no âmbito do exame da procedência da presente acção por incumprimento.

 Quanto à existência de restrições à liberdade de estabelecimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas

 Argumentos das partes

23     A Comissão alega que a Lei n.° 971/79, na medida em que não permite a um óptico, pessoa singular, explorar mais de um estabelecimento de óptica, constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento prevista no artigo 43.° CE.

24     No que se refere às pessoas colectivas, sustenta que a Lei n.° 2646/98 implica igualmente uma restrição à liberdade de estabelecimento, contrária ao artigo 48.° CE, na medida em que faz depender a abertura de um estabelecimento de óptica das condições enunciadas no seu artigo 27.°, n.° 4.

25     A República Helénica considera que o artigo 6.°, n.° 6, da Lei n.° 971/79 não gera qualquer discriminação directa ou indirecta entre os profissionais nacionais e estrangeiros. Por conseguinte, esta disposição não viola o artigo 43.° CE.

26     No que diz respeito às pessoas colectivas, não contesta que a legislação grega lhes impõe restrições.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

27     Segundo jurisprudência assente, o artigo 43.° CE opõe‑se a qualquer medida nacional que, embora aplicável sem discriminação em razão da nacionalidade, seja susceptível de afectar ou de tornar menos atractivo o exercício, pelos nacionais comunitários, da liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado (v., designadamente, acórdãos de 31 de Março de 1993, Kraus, C‑19/92, Colect., p. I‑1663, n.° 32, e de 14 de Outubro de 2004, Comissão/Países Baixos, C‑299/02, ainda não publicado na Colectânea, n.° 15).

28     No caso em apreço, importa declarar que a proibição, para um óptico diplomado, de explorar mais de um estabelecimento de óptica constitui efectivamente uma restrição à liberdade de estabelecimento das pessoas singulares na acepção do artigo 43.° CE, não obstante a alegada inexistência de discriminação em razão da nacionalidade dos profissionais em causa.

29     Quanto às pessoas colectivas, há igualmente que referir que, tal como, de resto, a República Helénica reconhece, as condições enunciadas no artigo 27.°, n.° 4, da Lei n.° 2646/98 restringem a sua liberdade de estabelecimento, para o exercício da qual são equiparadas às pessoas singulares nos termos do artigo 48.° CE.

 Quanto à justificação das restrições à liberdade de estabelecimento constatadas

 Argumentos das partes

30     A Comissão considera que as restrições à liberdade de estabelecimento constatadas no caso em apreço são ou inadequadas para alcançar o alegado objectivo de protecção da saúde pública ou desproporcionadas em relação a esse objectivo. A saúde pública pode ser protegida quando esteja garantido que certos actos são efectuados por ópticos diplomados assalariados ou sob o seu controle. Quanto à questão da responsabilidade, é possível prever disposições jurídicas menos restritivas que protejam os interesses dos clientes vítimas das actividades profissionais dos ópticos.

31     A República Helénica alega que a proibição de qualquer pessoa singular explorar mais de um estabelecimento foi decretada por razões imperiosas de interesse geral resultantes da protecção da saúde pública. O legislador grego quis salvaguardar uma relação pessoal de confiança no interior do estabelecimento de venda de artigos de óptica, bem como uma responsabilidade ilimitada e absoluta do óptico, que explora ou é proprietário do estabelecimento, em caso de erro. Com efeito, só o óptico, profissional especializado, que participa pessoalmente na exploração do seu estabelecimento, sem dispersar as suas forças físicas e mentais na exploração de diversos estabelecimentos, garante o resultado pretendido.

32     Segundo o Governo grego, os objectivos prosseguidos não poderiam ser alcançados por meio de medidas menos restritivas da liberdade de estabelecimento.

33     Quanto às pessoas colectivas, o nível elevado de participação dos ópticos no capital social, exigido pela Lei n.° 2646/98, afasta o risco de comercialização total dos estabelecimentos de artigos de óptica. O princípio da proporcionalidade deve ser conciliado com a necessidade de proteger a saúde pública. Para efeitos dessa protecção, a República Helénica persiste no seu esforço de preservar o contacto pessoal do óptico com o seu cliente e de impor uma responsabilidade total e ilimitada dos ópticos.

 Apreciação do Tribunal de Justiça

34     Uma medida nacional que, embora aplicável sem discriminação em razão da nacionalidade, seja susceptível de afectar ou de tornar menos atractivo o exercício, pelos nacionais comunitários, das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado pode ser justificada por razões imperiosas de interesse geral, desde que seja adequada para garantir a realização do objectivo por ela prosseguido e não ultrapasse o necessário para alcançar esse objectivo (v., designadamente, acórdão Kraus, já referido, n.° 32).

35     No caso em apreço, basta referir que o objectivo de protecção da saúde pública invocado pela República Helénica pode ser alcançado por meio de medidas menos restritivas da liberdade de estabelecimento tanto de pessoas singulares como de pessoas colectivas, por exemplo, por meio da exigência da presença de ópticos diplomados assalariados ou sócios em cada estabelecimento de óptica, de normas aplicáveis em matéria de responsabilidade civil por actos de terceiros, bem como de normas que exijam um seguro de responsabilidade profissional.

36     Verifica‑se assim que as restrições controvertidas ultrapassam o que é necessário para alcançar o objectivo prosseguido. Por conseguinte, não são justificadas.

37     Daqui resulta que as críticas formuladas pela Comissão são procedentes.

38     Nestas condições, importa declarar que:

–       ao adoptar e manter em vigor a Lei n.° 971/79, que não permite a um óptico, pessoa singular, diplomado explorar mais de um estabelecimento de óptica, a República Helénica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE, e que,

–       ao adoptar e manter em vigor a Lei n.° 971/79 e a Lei n.° 2646/98, que fazem depender a possibilidade de uma pessoa colectiva abrir um estabelecimento de óptica na Grécia das seguintes condições:

–       que a autorização de criar e de explorar o estabelecimento de óptica seja concedida em nome de um óptico, pessoa singular, autorizado, que o titular da autorização para explorar o estabelecimento participe em, pelo menos, 50% do capital social bem como nos seus lucros e perdas, que a sociedade tenha a forma de uma sociedade em nome colectivo ou de uma sociedade em comandita, e

–       que o óptico em causa participe, no máximo, noutra sociedade proprietária de um estabelecimento de óptica, desde que a autorização de criar e de explorar o estabelecimento seja concedida em nome de outro óptico autorizado,

a República Helénica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 48.° CE.

 Quanto às despesas

39     Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a República Helénica sido vencida, há que condená‑la nas despesas, de acordo com o pedido da Comissão neste sentido.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

1)      Ao adoptar e manter em vigor a Lei n.° 971/79, relativa ao exercício da profissão de óptico e aos estabelecimentos de artigos de óptica, que não permite a um óptico, pessoa singular, diplomado explorar mais de um estabelecimento de óptica, a República Helénica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE.

2)      Ao adoptar e manter em vigor a Lei n.° 971/79 e a Lei n.° 2646/98, relativas ao desenvolvimento do sistema nacional de assistência social e outras disposições, que fazem depender a possibilidade de uma pessoa colectiva abrir um estabelecimento de óptica na Grécia das seguintes condições:

–       que a autorização de criar e de explorar o estabelecimento de óptica seja concedida em nome de um óptico, pessoa singular, autorizado, que o titular da autorização para explorar o estabelecimento participe em, pelo menos, 50% do capital social bem como nos seus lucros e perdas, que a sociedade tenha a forma de uma sociedade em nome colectivo ou de uma sociedade em comandita, e

–       que o óptico em causa participe, no máximo, noutra sociedade proprietária de um estabelecimento de óptica, desde que a autorização de criar e de explorar o estabelecimento seja concedida em nome de outro óptico autorizado,

a República Helénica não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 43.° CE e 48.° CE.

3)      A República Helénica é condenada nas despesas.

Assinaturas


* Língua do processo: grego.