Language of document : ECLI:EU:C:2000:606

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

9 de Novembro de 2000 (1)

«Convenção de Bruxelas - Artigo 17.° - Cláusula atributiva de jurisdição - Requisitos formais - Efeitos»

No processo C-387/98,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos), destinado a obter, no litígio pendente neste órgão jurisdicional entre

Coreck Maritime GmbH

e

Handelsveem BV e o.,

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da convenção de 27 de Setembro de 1968, já referida (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), com as adaptações que lhe foram introduzidas pela convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1, e - texto alterado - p. 77; EE 01 F2 p. 131, e - texto alterado - p. 207), pela convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; EE 01 F3 p. 234), e pela convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: D. A. O. Edward, exercendo funções de presidente da Quinta Secção, P. Jann (relator) e L. Sevón, juízes,

advogado-geral: S. Alber,


secretário: H. von Holstein, secretário adjunto,

vistas as observações escritas apresentadas:

-    em representação da Coreck Maritime GmbH, por R. S. Meijer, advogado no foro da Haia, e G. J. W. Smallegange, advogado no foro de Roterdão,

-    em representação da Handelsveem BV e o., por J. K. Franx, advogado no foro da Haia,

-    em representação do Governo neerlandês, por M. A. Fierstra, chefe do Serviço do Direito Europeu no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente,

-    em representação do Governo italiano, pelo professor U. Leanza, chefe do Serviço do Contencioso Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, assistido por O. Fiumara, avvocato dello Stato,

-    em representação do Governo do Reino Unido, por R. Magrill, do Treasury Solicitor's Department, na qualidade de agente, assistida por L. Persey, QC,

-    em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por J. L. Iglesias Buhigues, consultor jurídico, e P. van Nuffel, membro do Serviço Jurídico, na qualidade de agentes,

visto o relatório para audiência,

ouvidas as alegações da Coreck Maritime GmbH, da Handelsveem BV e o., do Governo do Reino Unido e da Comissão na audiência de 10 de Fevereiro de 2000,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 23 de Março de 2000,

profere o presente

Acórdão

1.
    Por acórdão de 23 de Outubro de 1998, entrado no Tribunal de Justiça em 29 de Outubro seguinte, o Hoge Raad der Nederlanden submeteu, nos termos do protocolo de 3 de Junho de 1971 relativo à interpretação pelo Tribunal de Justiça da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (a seguir «protocolo»), quatro questões prejudiciais sobre a interpretação do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da convenção de 27 de Setembro de 1968, já referida (JO 1972, L 299, p. 32; EE 01 F1 p. 186), com as adaptações que lhe foram introduzidas pela convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte (JO L 304, p. 1, e - texto alterado - p. 77; EE 01 F2 p. 131, e - texto alterado - p. 207), pela convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1; EE 01 F3 p. 234), e pela convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO L 285, p. 1, a seguir «convenção»).

2.
    Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe, a respeito da validade de uma cláusula atributiva de jurisdição inserida em conhecimentos de carga, por um lado, a Coreck Maritime GmbH, sociedade de direito alemão com sede em Hamburgo (Alemanha), que emitiu estes conhecimentos (a seguir «Coreck»), e, por outro, a Handelsveem BV, legítimo detentor dos conhecimentos, V. Berg and Sons Ltd e Man Producten Rotterdam BV, proprietários das mercadorias transportadas ao abrigo dos conhecimentos, bem como a The Peoples Insurance Company of China, seguradora das referidas mercadorias (a seguir, no seu conjunto, «Handelsveem e o.»).

A convenção

3.
    O artigo 17.°, primeiro e segundo parágrafos, da convenção dispõe:

«Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado contratante, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado contratante têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou essestribunais terão competência exclusiva. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

a)    Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita, ou

b)    Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si, ou

c)    No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.

Sempre que tal pacto atributivo de jurisdição for celebrado por partes das quais nenhuma tenha domicílio num Estado contratante, os tribunais dos outros Estados contratantes não podem conhecer do litígio, a menos que o tribunal ou os tribunais escolhidos se tenham declarado incompetentes.»

O litígio no processo principal

4.
    Um determinado número de lotes de nozes verdes foram transportados de Qingdao (China) para Roterdão (Países Baixos) em 1991 num navio pertencente à Sevryba, sociedade de direito russo com sede em Mourmansk (Rússia), em execução de um contrato de transporte celebrado com o remetente pela Coreck, fretadora na altura do navio.

5.
    Para este transporte, a Coreck emitiu vários conhecimentos de carga que incluíam, designadamente, as seguintes cláusulas:

«3.    Competência

Qualquer litígio surgido a respeito do presente conhecimento de carga será decidido no país do local do estabelecimento principal do transportador e o direito deste país será aplicado, sem prejuízo das disposições do presente conhecimento de carga.»

«17.    Identidade do transportador

O contrato que é objecto do presente conhecimento de carga é celebrado entre o comerciante e o proprietário do navio nele referido (ou quem o substitua) e é, portanto, acordado que apenas o referido proprietário é responsável pelos prejuízos ou perdas resultantes de qualquer violação ou não cumprimento de qualquer obrigação nascida do presente contrato de transporte, quer se refiram ou não à navegabilidade do navio. Se, apesar dos precedentes elementos, se demonstrar que outra pessoa é o transportador e/ou o depositário das mercadorias carregadas nos termos do presente contrato, essa outra pessoa pode invocar todas as limitações ou isenções à responsabilidade previstas na lei ou no presente conhecimento de carga.

É ainda assente e acordado que, como a companhia, a sociedade ou agente que executou o presente conhecimento de carga em nome e por conta do capitão não é parte na operação, a referida companhia ou sociedade ou o referido agente não assume qualquer responsabilidade resultante do contrato de transporte, nem na qualidade de transportador nem na qualidade de depositário das mercadorias.»

6.
    Os conhecimentos de carga tinham impresso no verso a seguinte menção:

«'Coreck‘ Maritime G.m.b.H.

Hamburg»

7.
    Por petição de 5 de Março de 1993, a Handelsveem e o., em aplicação do artigo 5.°, ponto 1, da convenção, demandaram a Sevryba e a Coreck no Rechtbank te Rotterdam, enquanto tribunal do porto de descarga que é assinalado nos conhecimentos de carga, a fim de obterem o pagamento de uma indemnização como reparação pelas avarias pretensamente sofridas pelas mercadorias durante o transporte.

8.
    A Coreck alegou a incompetência do tribunal chamado a decidir, remetendo para a cláusula atributiva de jurisdição que figura nos conhecimentos de carga. Por sentença de 24 de Fevereiro de 1995, o Rechtbank te Rotterdam afastou a aplicação da cláusula e declarou-se competente, pela razão de tal cláusula pressupor, para ser válida, que o órgão jurisdicional competente possa ser facilmente determinado, o que não ocorreria no caso em apreço. Pronunciando-se sobre o recurso da Coreck, o Gerechtshof te 's-Grevenhage, por acórdão de 22 de Abril de 1997, confirmou a decisão proferida em primeira instância.

9.
    Tendo-lhe sido interposto recurso pela Coreck, o Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as quatro questões prejudiciais seguintes:

«1)    Deve deduzir-se do primeiro período do artigo 17.° da Convenção de Bruxelas (em especial das palavras 'tiverem convencionado‘), em conjunção com a jurisprudência do Tribunal de Justiça nos termos da qual 'este artigo tem por função assegurar que o consentimento das partes a essa cláusula, que derroga as regras gerais da determinação da competência fixadas pelos artigos 2.°, 5.° e 6.° da convenção através de uma extensão de competência... se manifesta de uma maneira clara e precisa‘, que:

    a)    para que seja válida entre as partes a cláusula que designa o juiz competente no sentido dessa definição, é sempre necessário que esta cláusula seja formulada de tal forma que (também) para outras pessoas para além das partes - e, em especial, também para o juiz - seja claro, apenas e exclusivamente com base nos seus termos, ou pelo menos que se possa comprovar de forma simples, qual é o órgão jurisdicionalcompetente para conhecer dos litígios que possam resultar da relação jurídica em cujo marco se inscreve essa cláusula, ou que

    b)    já há muito tempo ou presentemente e em consequência da ou em relação com a flexibilidade introduzida paulatinamente no artigo 17.° da Convenção de Bruxelas e na jurisprudência do Tribunal de Justiça referente à questão de saber quando uma cláusula deste tipo é considerada como validamente celebrada, é suficiente para que a cláusula seja considerada válida que para as próprias partes (também) com base nas (outras) circunstâncias do caso seja claro qual é o órgão jurisdicional competente para conhecer dos referidos litígios?

2)    No que toca aos terceiros portadores de conhecimentos de carga, o artigo 17.° da Convenção de Bruxelas também regula a validade de uma cláusula que designa como juiz competente em matéria de litígios nos termos deste conhecimento de carga o juiz do lugar onde o transportador tem o seu estabelecimento principal, sendo esta cláusula incluída num conhecimento de carga que simultaneamente também inclui uma cláusula referente à identidade do transportador (identity of carrier-clause), conhecimento de carga que foi emitido para o transporte, quando:

    a)    o carregador e um dos possíveis transportadores não têm a sua sede social num dos Estados contratantes, ao passo que

    b)    o segundo possível transportador tem certamente um estabelecimento num dos Estados contratantes, mas não está assente se o local do seu estabelecimento principal se situa nesse Estado ou num Estado não contratante?

3)    Em caso de resposta afirmativa à segunda questão:

    a)    Implica então a circunstância de a cláusula de atribuição de competência acordada entre o transportador e o carregador e incluída no conhecimento de carga ser considerada válida que a cláusula também o é em relação a cada terceiro portador do conhecimento de carga, ou só assim é relativamente a um terceiro portador do conhecimento de carga que no momento da recepção do conhecimento de carga em conformidade com o direito nacional aplicável sucede ao carregador nos seus direitos e obrigações?

    b)    Supondo que se possa considerar válida a cláusula de atribuição de competência inscrita no conhecimento de carga, podem então ter importância para a resposta à questão de saber se a cláusula é válida relativamente a um terceiro portador do conhecimento de carga, além do conteúdo deste conhecimento, também as circunstâncias especiais do caso, como o facto de se conhecer especialmente o referido terceiroportador ou as profundas relações que tem com o transportador? E a ser assim, pode então exigir-se ao terceiro portador do conhecimento de carga que, no caso da redacção do conhecimento de carga não proporcionar uma suficiente clareza no que toca à validade da cláusula, se informe das circunstâncias especiais do caso?

4)    Caso se responda à terceira questão, alínea a), no último sentido referido, em conformidade com que direito nacional deve ser decidida a questão de saber se se pode exigir do terceiro portador do conhecimento de carga que, no momento da recepção deste conhecimento, suceda aos direitos e obrigações do carregador, e o que se deverá aplicar caso o correspondente direito nacional, seja na legislação seja na jurisprudência, não proporcionar uma resposta à questão de saber se um terceiro portador do conhecimento de carga sucede aos direitos e obrigações do carregador no momento da recepção do conhecimento de carga?»

Quanto à primeira questão

10.
    Na sua primeira questão, o tribunal de reenvio pretende, essencialmente, saber se a expressão «tiverem convencionado», que consta do artigo 17.°, primeiro parágrafo, primeiro período, da convenção, deve ser interpretada no sentido de que exige que a cláusula atributiva de jurisdição seja formulada de tal modo que seja possível identificar o órgão jurisdicional competente apenas através do seu teor.

11.
    A Handelsveem e o. consideram que convém responder a esta questão pela afirmativa, tendo em conta a especial necessidade de segurança jurídica que existe na matéria da escolha do foro. Os Governos neerlandês e italiano, por seu turno, sublinham a importância de uma designação clara e precisa da jurisdição escolhida pelas partes, que deve permitir ao tribunal chamado a decidir determinar a sua competência.

12.
    Pelo contrário, segundo a Coreck, o Governo do Reino Unido e a Comissão, basta que o órgão jurisdicional competente possa ser identificado com base na redacção da cláusula, tendo em conta as circunstâncias concretas do caso em apreço.

13.
    O Tribunal de Justiça decidiu que, ao subordinar a validade de uma cláusula atributiva de jurisdição à existência de uma «convenção» entre as partes, o artigo 17.° da convenção impõe ao juiz chamado a decidir a obrigação de examinar, em primeiro lugar, se a cláusula que lhe atribui competência foi efectivamente objecto de consenso entre as partes, que deve manifestar-se de forma clara e precisa, e que as exigências de forma estabelecidas pelo artigo 17.° têm por função assegurar que o consentimento seja efectivamente provado (v., designadamente, acórdãos de 14 de Dezembro de 1976, Estasis Salotti, 24/76, Colect., p. 717, n.° 7, e Segoura, 25/76, Colect., p. 733, n.° 6, e de 20 de Fevereiro de 1997, MSG, C-106/95, Colect., p. I-911, n.° 15).

14.
    Todavia, embora o artigo 17.° da convenção tenha por objectivo proteger a vontade dos interessados, deve ser interpretado de forma a respeitar esta vontade a partir do momento em que esta seja determinada. Com efeito, o artigo 17.° baseia-se no reconhecimento da autonomia da vontade das partes em matéria de atribuição de competência aos órgãos jurisdicionais chamados a decidir de litígios que caibam no âmbito de aplicação da convenção e que não sejam os expressamente exceptuados por força do seu quarto parágrafo (acórdão de 9 de Novembro de 1978, Meeth, 23/78, Colect., p. 697, n.° 5).

15.
    Donde resulta que a expressão «tiverem convencionado», que consta do artigo 17.°, primeiro parágrafo, primeiro período, da convenção, não pode ser interpretada no sentido de que exige que uma cláusula atributiva de jurisdição seja formulada de tal forma que seja possível identificar o órgão jurisdicional competente apenas através do seu teor. Basta que a cláusula identifique os elementos objectivos sobre os quais as partes se puseram de acordo para escolher o tribunal ou os tribunais aos quais pretendem submeter os seus litígios surgidos ou que venham a surgir. Estes elementos, que devem ser suficientemente precisos para permitir ao tribunal chamado a decidir determinar a sua competência, podem ser concretizados, eventualmente, através das circunstâncias próprias à situação do caso concreto.

Quanto à segunda questão

16.
    Na sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre as condições de aplicação do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da convenção. Pretende, essencialmente, saber se esta disposição se aplica quando a cláusula atributiva de jurisdição designa o tribunal do lugar do estabelecimento principal de uma das partes no contrato inicial, mas não esteja demonstrado que este estabelecimento se situa no território de um Estado contratante.

17.
    Resulta do próprio teor do artigo 17.°, primeiro parágrafo, primeiro período, da convenção, que esta disposição só se aplica numa dupla condição, por um lado, que pelo menos uma das partes no contrato tenha domicílio no território de um Estado contratante e, por outro, que a cláusula atributiva de jurisdição designe um tribunal ou tribunais de um Estado contratante. Esta regra, justificada pelo facto da convenção ter por objectivo facilitar o reconhecimento e a execução recíprocos das decisões judiciárias, comporta deste modo uma exigência de precisão que deve ser satisfeita pela cláusula atributiva de jurisdição.

18.
    Quanto à primeira condição, há que referir que, em conformidade com o artigo 53.°, primeiro parágrafo, da convenção, a sede das sociedades é equiparada ao domicílio para efeitos da aplicação da convenção. Segundo esta mesma disposição, o tribunal chamado a decidir deve, para determinar esta sede, aplicar as regras do seu direito internacional privado. Por conseguinte, é à lei nacional designada pela norma de conflitos do órgão jurisdicional chamado a decidir que incumbe fixar os critérios que permitem determinar a sede de uma pessoa colectiva e, em especial, estabelecer o papel desempenhado a este respeito pelo estabelecimento principal.

19.
    Quanto à segunda condição, há que referir que o artigo 17.° da convenção não se aplica a uma cláusula que designe um tribunal de um Estado terceiro. Um tribunal situado no território de um Estado contratante, caso seja chamado a decidir apesar de tal cláusula atributiva de jurisdição, deve apreciar a sua validade em função do direito aplicável, incluídas as normas de conflitos, da sua própria lex fori (relatório do professor Schlosser sobre a convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à de adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte à convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, bem como ao protocolo relativo à sua interpretação pelo Tribunal de Justiça, JO 1979, C 59, p. 71, ponto 176).

20.
    Importa acrescentar que, segundo jurisprudência constante, a validade de uma cláusula atributiva de jurisdição na acepção do artigo 17.° da convenção deve ser apreciada nas relações entre as partes do contrato inicial (v., neste sentido, acórdãos de 19 de Junho de 1984, Tilly Russ, 71/83, Recueil, p. 2417, n.° 24, e de 16 de Março de 1999, Castelletti, C-159/97, Colect., p. I-1597, n.os 41 e 42). Donde resulta que é em relação a essas mesmas partes, que incumbe ao tribunal nacional identificar, que devem ser apreciadas as condições de aplicação do artigo 17.° da convenção. As condições nas quais uma cláusula atributiva de jurisdição pode ser oposta a um terceiro ao contrato inicial são objecto da terceira questão, adiante examinada.

21.
    Nestas condições, há que responder à segunda questão que o artigo 17.°, primeiro parágrafo, da convenção só se aplica se, por um lado, pelo menos uma das partes no contrato inicial tiver domicílio no território de um Estado contratante e se, por outro, as partes tiverem convencionado submeter os seus litígios a um tribunal ou a tribunais de um Estado contratante.

Quanto à terceira questão

22.
    Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, essencialmente, saber se uma cláusula atributiva de jurisdição, que foi acordada entre um transportador e um carregador e que foi inserida num conhecimento de carga, produz os seus efeitos em relação a qualquer terceiro portador do conhecimento de carga ou apenas em relação ao terceiro portador do conhecimento de carga que, ao adquirir este último, sucedeu nos direitos e obrigações do carregador por força do direito aplicável.

23.
    A este respeito, basta recordar que o Tribunal de Justiça decidiu que, na medida em que a cláusula atributiva de jurisdição inserida num conhecimento de carga seja válida na acepção do artigo 17.° da convenção nas relações entre o carregador e o transportador, pode ser invocada em relação a um terceiro portador do conhecimento de carga desde que, nos termos do direito nacional aplicável, o portador do conhecimento de carga suceda nos direitos e obrigações do carregador (acórdãos já referidos, Tilly Russ, n.° 24, e Castelletti, n.° 41).

24.
    Donde resulta que é ao direito nacional aplicável que cabe determinar se o terceiro ao contrato inicial, contra o qual é invocada uma cláusula atributiva de jurisdição, sucedeu nos direitos e obrigações de uma das partes originárias.

25.
    Sendo este o caso, não há que verificar o consentimento do terceiro quanto à cláusula atributiva de jurisdição inserida no contrato inicial. Com efeito, nesta hipótese, a aquisição do conhecimento de carga não pode conferir ao terceiro portador mais direitos do que os que tinha o carregador. O terceiro portador torna-se, assim, titular simultaneamente de todos os direitos e de todas as obrigações que figuram no conhecimento de carga, inclusive das relativas à prorrogação de competência (acórdão Tilly Russ, já referido, n.° 25).

26.
    Pelo contrário, se, por força do direito nacional aplicável, o terceiro ao contrato inicial não tiver sucedido nos direitos e obrigações de uma das partes originárias, incumbe ao órgão jurisdicional nacional chamado a decidir verificar, à luz das exigências enunciadas pelo artigo 17.°, primeiro parágrafo, da convenção, a realidade do seu consentimento à cláusula atributiva de jurisdição que contra si é invocada.

27.
    Há, portanto, que responder à terceira questão que uma cláusula atributiva de jurisdição, que foi acordada entre um transportador e um carregador e que foi inserida num conhecimento de carga, produz os seus efeitos no que toca ao terceiro portador do conhecimento de carga desde que, ao adquirir este último, suceda nos direitos e obrigações do carregador por força do direito nacional aplicável. Se tal não for o caso, há que verificar o seu consentimento à referida cláusula à luz das exigências do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da convenção.

Quanto à quarta questão

28.
    Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, essencialmente, saber qual é o direito nacional aplicável para a definição dos direitos e obrigações do terceiro portador de um conhecimento de carga e, para a hipótese de o direito nacional designado não comportar uma resposta a este respeito, quais as disposições que devem ser aplicadas.

29.
    Há que recordar que, por força do artigo 1.° do protocolo, o Tribunal de Justiça é competente para decidir sobre a interpretação da convenção.

30.
    A questão de saber qual é o direito nacional aplicável à definição dos direitos e obrigações do terceiro portador de um conhecimento de carga é estranha à interpretação da convenção e insere-se na competência do órgão jurisdicional nacional, ao qual incumbe aplicar as regras do seu direito internacional privado.

31.
    De igual modo, a questão de saber como convirá suprir uma eventual lacuna do direito nacional aplicável, para além de ser hipotética, exorbita da interpretação da convenção.

32.
    Resulta das precedentes considerações que a quarta questão é inadmissível.

Quanto às despesas

33.
    As despesas efectuadas pelos Governos neerlandês, italiano e do Reino Unido, bem como pela Comissão, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden, por acórdão de 23 de Outubro de 1998, declara:

O artigo 17.°, primeiro parágrafo, da convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, com as adaptações que lhe foram introduzidas pela convenção de 9 de Outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, pela convenção de 25 de Outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica e pela convenção de 26 de Maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa, deve ser interpretado do seguinte modo:

1)    Esta disposição não exige que uma cláusula atributiva de jurisdição seja formulada de tal forma que seja possível identificar o órgão jurisdicional competente apenas através do seu teor. Basta que a cláusula identifique os elementos objectivos sobre os quais as partes se puseram de acordo para escolher o tribunal ou os tribunais aos quais pretendem submeter os seus litígios surgidos ou que venham a surgir. Estes elementos, que devem ser suficientemente precisos para permitir ao tribunal chamado a decidir determinar a sua competência, podem ser concretizados, eventualmente, através das circunstâncias próprias à situação do caso concreto.

2)    A mesma só se aplica se, por um lado, pelo menos uma das partes no contrato inicial tiver domicílio no território de um Estado contratante e se, por outro, as partes tiverem convencionado submeter os seus litígios a um tribunal ou a tribunais de um Estado contratante.

3)    Uma cláusula atributiva de jurisdição, que foi acordada entre um transportador e um carregador e que foi inserida num conhecimento de carga, produz os seus efeitos no que toca ao terceiro portador do conhecimento de carga desde que, ao adquirir este último, suceda nosdireitos e obrigações do carregador por força do direito nacional aplicável. Se tal não for o caso, há que verificar o seu consentimento à referida cláusula à luz das exigências do artigo 17.°, primeiro parágrafo, da referida convenção, alterada.

Edward
Jann
Sevón

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 9 de Novembro de 2000.

O secretário

O presidente da Quinta Secção

R. Grass

A. La Pergola


1: Língua do processo: neerlandês.