Language of document : ECLI:EU:C:2017:586

Processo C646/16

Processo intentado por Khadija Jafari
e
Zainab Jafari

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Verwaltungsgerichtshof)

«Reenvio prejudicial — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro — Chegada de um número excecionalmente elevado de nacionais de países terceiros que pretendem obter proteção internacional — Organização da passagem da fronteira pelas autoridades de um Estado‑Membro com vista ao trânsito para outro Estado‑Membro — Entrada autorizada por derrogação por razões humanitárias — Artigo 2.o, alínea m) — Conceito de “visto” — Artigo 12.o — Emissão de um visto — Artigo 13.o — Passagem ilegal de uma fronteira externa»

Sumário — Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 26 de julho de 2017

1.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração — Política de asilo — Critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Regulamento n.o 604/2013 — Visa — Conceito — Admissão de nacionais de países terceiros no território de um EstadoMembro com vista ao trânsito para outro EstadoMembro para aí apresentarem um pedido de proteção internacional — Exclusão — Chegada de um número excecionalmente elevado de nacionais de países terceiros que pretendem obter proteção internacional — Falta de incidência

[Regulamento n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 2.o, alínea m), e 12.o]

2.        Direito da União Europeia — Interpretação — Métodos — Interpretação literal, sistemática e teleológica

3.        Controlos nas fronteiras, asilo e imigração — Política de asilo — Critérios e mecanismos de determinação do EstadoMembro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Regulamento n.o 604/2013 — Entrada e/ou estadia — Admissão de nacionais de países terceiros no território de um EstadoMembro com vista ao trânsito para outro EstadoMembro para aí apresentarem um pedido de proteção internacional — Situação considerada uma passagem ilegal de uma fronteira externa — Chegada de um número excecionalmente elevado de nacionais de países terceiros que pretendem obter proteção internacional — Falta de incidência

(Regulamento n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigos 13.o, n.o 1)

1.      O artigo 12.o do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, lido em conjugação com o artigo 2.o, alínea m), desse regulamento, deve ser interpretado no sentido de que o facto de as autoridades de um primeiro Estado‑Membro, confrontadas com a chegada de um número excecionalmente elevado de nacionais de países terceiros que pretendem transitar por esse Estado‑Membro para apresentarem um pedido de proteção internacional noutro Estado‑Membro, tolerarem a entrada no território desses nacionais, que não preenchem as condições de entrada em princípio exigidas no primeiro Estado‑Membro, não deve ser qualificado de «visto», na aceção do referido artigo 12.o

O artigo 2.o, alínea m), do mesmo regulamento enuncia uma definição geral do termo «visto» e precisa que a natureza do mesmo é apreciada em função das definições mais específicas relacionadas, respetivamente, com o visto de longa duração, o visto de curta duração e o visto de trânsito aeroportuário.

Resulta desta disposição que o conceito de «visto», na aceção do Regulamento Dublim III, abrange não apenas os vistos de curta duração e de trânsito aeroportuário, cujos procedimentos e condições de emissão são harmonizados pelo Código de Vistos, mas também os vistos de longa duração que não são abrangidos pelo âmbito de aplicação desse código e podem, dada a atual inexistência de medidas gerais adotadas pelo legislador da União com base no artigo 79.o, n.o 2, alínea a), TFUE, ser emitidos em aplicação das legislações nacionais (v., neste sentido, acórdão de 7 de março de 2017, X e X, C‑638/16 PPU, EU:C:2017:173, n.os 41 e 44). Nestas condições, embora os atos adotados pela União no domínio dos vistos constituam elementos contextuais que há que ter em conta na interpretação dos artigos 2.o, alínea m), e 12.o do Regulamento Dublim III, o certo é que o conceito de «visto», na aceção desse regulamento, não pode ser diretamente deduzido desses atos e deve ser compreendido baseando‑se na definição específica que figura no artigo 2.o, alínea m), do referido regulamento e na economia geral do mesmo.

A este propósito, importa observar que esta definição precisa que um visto é uma «autorização ou decisão de um Estado‑Membro» que é «exigida para o trânsito ou a entrada» no território desse Estado‑Membro ou de vários Estados‑Membros. Resulta, portanto, dos termos utilizados pelo legislador da União que, por um lado, o conceito de visto evoca um ato adotado formalmente por uma administração nacional, e não uma simples tolerância, e que, por outro, o visto não se confunde com a admissão no território de um Estado‑Membro, uma vez que o visto é precisamente exigido para permitir essa admissão. Esta distinção é, aliás, coerente com a arquitetura geral da legislação da União nos domínios em causa. Com efeito, enquanto as regras que regulam a admissão no território dos Estados‑Membros eram previstas, à época dos factos no processo principal, pelo Código das Fronteiras Schengen, as condições de emissão dos vistos são definidas em atos distintos como, quanto aos vistos de curta duração, o Código de Vistos.

(cf. n.os 43, 44, 47, 48, 51, 58 e disp. 1)

2.      V. texto da decisão.

(cf. n.o 73)

3.      O artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento n.o 604/2013 deve ser interpretado no sentido de que se deve considerar que um nacional de um país terceiro cuja entrada foi tolerada pelas autoridades de um primeiro Estado‑Membro, confrontadas com a chegada de um número excecionalmente elevado de nacionais de países terceiros que pretendem transitar por esse Estado‑Membro para apresentarem um pedido de proteção internacional noutro Estado‑Membro, sem preencherem as condições de entrada em princípio exigidas nesse primeiro Estado‑Membro, «atravessou ilegalmente» a fronteira do referido primeiro Estado‑Membro na aceção dessa disposição.

Tendo em conta o sentido habitual do conceito de «passagem ilegal» de uma fronteira, há que considerar que a passagem de uma fronteira sem respeitar as condições exigidas pela regulamentação aplicável no Estado‑Membro em causa deve necessariamente ser considerada «ilegal», na aceção do artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III.

De onde resulta que, no caso de a fronteira atravessada ser a de um Estado‑Membro vinculado pelo Código das Fronteiras Schengen, o caráter ilegal da passagem deve ser apreciado tendo em conta, nomeadamente, as regras estabelecidas por esse código.

Assim, a conclusão a que se chegou no n.o 74 do presente acórdão não pode bastar para definir completamente o conceito de «passagem ilegal», na aceção do artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III. Importa, assim, ter em conta o facto de as regulamentações relativas à passagem das fronteiras externas poderem conceder às autoridades nacionais competentes a faculdade de afastarem, invocando razões humanitárias, as condições de entrada em princípio impostas aos nacionais de países terceiros para assegurar a legalidade da sua futura permanência nos Estados‑Membros. Uma faculdade deste tipo é nomeadamente prevista no artigo 5.o, n.o 4, alínea c), do Código das Fronteiras Schengen, que permite aos Estados‑Membros que participam neste código, de modo derrogatório, autorizar os nacionais de países terceiros que não preencham uma ou várias das condições de entrada em princípio impostas a esses nacionais a entrar no seu território por motivos humanitários ou de interesse nacional, ou ainda devido a obrigações internacionais. Deste modo, há que salientar, antes de mais, que o artigo 5.o, n.o 4, alínea c), do Código das Fronteiras Schengen precisa, diversamente do artigo 5.o, n.o 4, alínea b), desse código, que tal autorização só é válida para o território do Estado‑Membro em causa, e não para o território «dos Estados‑Membros» no seu conjunto. Por conseguinte, esta primeira disposição não pode ter como consequência tornar legal a passagem da fronteira por um nacional de um país terceiro, admitido pelas autoridades de um Estado‑Membro apenas para efeitos de permitir o seu trânsito para outro Estado‑Membro, a fim de aí apresentar um pedido de proteção internacional.

Neste contexto, resulta da articulação entre os artigos 12.o e 14.o do Regulamento Dublim III que estes artigos abrangem, em princípio, todas as hipóteses de entrada legal no território dos Estados‑Membros, uma vez que a entrada legal de um nacional de um país terceiro nesse território se baseia, normalmente, num visto ou num título de residência, ou numa dispensa da obrigação de visto. A aplicação dos diferentes critérios enunciados nesses artigos, e no artigo 13.o desse regulamento, deve, regra geral, permitir atribuir ao Estado‑Membro que está na origem da entrada ou da permanência de um nacional de um país terceiro no território dos Estados‑Membros a responsabilidade de analisar o pedido de proteção internacional eventualmente apresentado por esse nacional. Atendendo a estes elementos, os critérios enunciados nos artigos 12.o a 14.o do Regulamento Dublim III não podem, sem pôr em causa a economia desse regulamento, ser interpretados de modo a eximir da sua responsabilidade o Estado‑Membro que decidiu autorizar, invocando razões humanitárias, a entrada no seu território de um nacional de um país terceiro desprovido de visto e não beneficiando de uma dispensa do mesmo.

Além disso, o facto de, como no caso em apreço, o nacional de um país terceiro em causa ter entrado no território dos Estados‑Membros sob a vigilância das autoridades competentes sem se subtrair ao controlo nas fronteiras não pode ser determinante para a aplicação do artigo 13.o, n.o 1, do referido regulamento.

A circunstância de a passagem da fronteira ter ocorrido numa situação caracterizada pela chegada de um número excecionalmente elevado de nacionais de países terceiros que pretendiam obter proteção internacional não é suscetível de ter incidência na interpretação ou na aplicação do artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III. De qualquer forma, importa recordar que, em aplicação do artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, do mesmo regulamento e do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a transferência de um requerente de proteção internacional para o Estado‑Membro responsável não deve ser efetuada quando essa transferência implique um risco real de o interessado ser sujeito a tratos desumanos ou degradantes, na aceção do artigo 4.o da Carta (v., neste sentido, acórdão de 16 de fevereiro de 2017, C. K. e o., C‑578/16 PPU, EU:C:2017:127, n.o 65). Uma transferência não poderia, portanto, ser efetuada se, na sequência da chegada de um número excecionalmente elevado de nacionais de países terceiros que pretendem obter proteção internacional, esse risco existisse no Estado‑Membro responsável.

(cf. n.os 74, 75, 77 a 80, 86, 87, 89, 90, 93, 101, 102 e disp. 2)