Language of document : ECLI:EU:T:2023:561

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção Alargada)

20 de setembro de 2023 (*)

«Auxílios de Estado — Regime de auxílios executado pela Bélgica — Decisão que declara o regime de auxílios incompatível com o mercado interno e ilegal e que ordena a recuperação do auxílio pago — Decisão fiscal antecipada (tax ruling) — Lucros tributáveis — Isenção em matéria de lucros excedentários — Vantagem — Caráter seletivo — Violação da concorrência — Recuperação»

No processo T‑131/16 RENV,

Reino da Bélgica, representado por C. Pochet e M. Jacobs, na qualidade de agentes, assistidas por M. Segura e M. Clayton, advogadas,

recorrente,

apoiado pela

Irlanda, representada por M. Browne, A. Joyce, D. O’Reilly e J. Quaney, na qualidade de agentes, assistidos por P. Gallagher, M. Collins, C. Donnelly, SC, B. Doherty e D. Fennelly, Barristers‑at‑Law,

interveniente,

contra

Comissão Europeia, representada por B. Stromsky, P.‑J. Loewenthal e F. Tomat, na qualidade de agentes,

recorrida,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção Alargada),

composto por: A. Marcoulli, presidente, S. Frimodt Nielsen, V. Tomljenović (relatora), R. Norkus e W. Valasidis, juízes,

secretário: S. Spyropoulos, administradora,

vistos os autos,

tendo em conta o Acórdão de 16 de setembro de 2021, Comissão/Bélgica e Magnetrol International (C‑337/19 P, EU:C:2021:741),

após a audiência de 8 de fevereiro de 2023,

profere o presente

Acórdão

1        No recurso que interpôs ao abrigo do artigo 263.o TFUE, o Reino da Bélgica pede a anulação da Decisão (UE) 2016/1699 da Comissão, de 11 de janeiro de 2016, relativa ao regime de auxílios estatais de isenção em matéria de lucros excedentários SA.37667 (2015/C) (ex 2015/NN) concedido pela Bélgica (JO 2016, L 260, p. 61; a seguir «decisão impugnada»).

I.      Antecedentes do litígio

2        Os factos na origem do litígio e o respetivo quadro jurídico foram expostos pelo Tribunal Geral nos n.os 1 a 28 do Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Bélgica e Magnetrol International/Comissão (T‑131/16 e T‑263/16, EU:T:2019:91), bem como pelo Tribunal de Justiça nos n.os 1 a 24 do Acórdão de 16 de setembro de 2021, Comissão/Bélgica e Magnetrol International (C‑337/19 P, EU:C:2021:741). Para efeitos do presente processo, podem ser resumidos do seguinte modo.

3        Através de uma decisão antecipada adotada pelo «Serviço das Decisões Antecipadas» do Serviço Público Federal das Finanças belga, com fundamento no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do code des impôts sur les revenus de 1992 (Código dos Impostos sobre o Rendimento de 1992; a seguir «CIR 92»), lido em conjugação com o artigo 20.o da loi du 24 décembre 2002 modifiant le régime des sociétés en matière d’impôts sur les revenus et instituant un système de décision anticipée en matière fiscale (Lei de 24 de dezembro de 2002, que altera o Regime das Sociedades em Matéria de Impostos sobre os Rendimentos e institui um Sistema de Decisão Antecipada em Matéria Fiscal) (Moniteur belge, de 31 de dezembro de 2002, p. 58817, a seguir «Lei de 24 de dezembro de 2002»), as sociedades residentes belgas que fazem parte de um grupo multinacional e os estabelecimentos estáveis belgas de sociedades residentes estrangeiras que fazem parte de um grupo multinacional podem reduzir a sua base tributável na Bélgica deduzindo os lucros, considerados «excedentários», dos lucros que tinham registado. Através deste sistema, uma parte dos lucros realizados pelas entidades belgas beneficiárias de uma decisão antecipada não era tributada na Bélgica. Segundo as autoridades fiscais belgas, esses lucros excedentários resultavam de sinergias, de economias de escala ou de outros benefícios decorrentes da pertença a um grupo multinacional e, portanto, não eram imputáveis às entidades belgas em questão.

4        Na sequência de um procedimento administrativo iniciado em 19 de dezembro de 2013, por carta através da qual a Comissão Europeia solicitou ao Reino da Bélgica que lhe fornecesse informações sobre o sistema de decisões fiscais antecipadas, relativas aos lucros excedentários, que se baseavam no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, a Comissão adotou a decisão impugnada em 11 de janeiro de 2016.

5        Na decisão impugnada, a Comissão declarou que o regime de isenção em matéria de lucros excedentários, que se baseava no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, ao abrigo do qual o Reino da Bélgica tinha emitido decisões antecipadas a favor de entidades belgas de grupos multinacionais de empresas, concedendo às referidas entidades uma isenção relativamente a uma parte do seu lucro, constituía um regime de auxílios de Estado, que confere uma vantagem seletiva aos seus beneficiários, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, que era incompatível com o mercado interno.

6        Assim, a Comissão sustentou, a título principal, que o regime em causa concedia uma vantagem seletiva aos beneficiários das decisões antecipadas, na medida em que a isenção dos seus lucros excedentários aplicada pelas autoridades fiscais belgas derrogava o sistema comum do imposto sobre as sociedades na Bélgica. A título subsidiário, a Comissão considerou que a isenção em matéria de lucros excedentários podia conferir uma vantagem seletiva aos beneficiários das decisões antecipadas, na medida em que tal isenção se desviava do princípio de plena concorrência.

7        Tendo constatado que o regime em causa tinha sido executado em violação do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, a Comissão ordenou a recuperação dos auxílios concedidos aos beneficiários, cuja lista definitiva devia ser posteriormente estabelecida pelo Reino da Bélgica.

A.      Quanto ao acórdão inicial

8        Na sequência da adoção da decisão impugnada, o Reino da Bélgica e várias empresas, identificadas pela referida decisão ou que beneficiaram de uma decisão antecipada ao abrigo do regime em causa, interpuseram recursos de anulação dessa decisão.

9        Com o Acórdão de 14 de fevereiro de 2019, Bélgica e Magnetrol International/Comissão (T‑131/16 e T‑263/16, a seguir «acórdão inicial», EU:T:2019:91), em primeiro lugar, o Tribunal Geral julgou improcedentes os fundamentos relativos, em substância, à violação pela Comissão das suas competências em matéria de auxílios de Estado e à ingerência nas competências exclusivas do Reino da Bélgica em matéria de fiscalidade direta.

10      Em segundo lugar, o Tribunal Geral considerou que, no caso em apreço, a Comissão tinha declarado erradamente a existência de um regime de auxílios, em violação do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.o TFUE (JO 2015, L 248, p. 9), e, por conseguinte, anulou a decisão impugnada sem que tivesse considerado necessário examinar os outros fundamentos que tinham sido invocados contra a mesma.

B.      Quanto ao acórdão proferido em sede de recurso

11      Na sequência do recurso interposto do acórdão inicial, o Tribunal de Justiça proferiu o seu Acórdão de 16 de setembro de 2021, Comissão/Bélgica e Magnetrol International (C‑337/19 P, a seguir «acórdão proferido em sede de recurso», EU:C:2021:741).

12      No acórdão proferido em sede de recurso, o Tribunal de Justiça considerou que o acórdão inicial estava viciado por erros de direito na medida em que tinha considerado que a Comissão tinha concluído erradamente pela existência de um regime de auxílios no caso em apreço.

13      Com base nestes erros detetados pelo Tribunal de Justiça, o acórdão inicial foi anulado.

14      Nos termos do artigo 61.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal de Justiça decidiu pronunciar‑se definitivamente sobre os fundamentos que considerou como estando em condições de ser julgados, a saber, os relativos à ingerência da Comissão nas competências exclusivas do Reino da Bélgica em matéria de fiscalidade direta, por um lado, e os relativos à existência de um regime de auxílios, por outro.

15      Assim, antes de mais e à semelhança do Tribunal Geral, o Tribunal de Justiça julgou improcedentes os fundamentos relativos à ingerência da Comissão nas competências exclusivas do Reino da Bélgica em matéria de fiscalidade direta.

16      Em seguida, o Tribunal de Justiça concluiu que o regime de isenção em matéria de lucros excedentários podia ser considerado um regime de auxílios, na aceção do artigo 1.o, alínea d), do Regulamento 2015/1589, e que, por conseguinte, os fundamentos relativos à existência de um regime de auxílios deviam ser julgados improcedentes.

17      Por último, no que respeita aos outros fundamentos de anulação invocados pelo Reino da Bélgica, o Tribunal de Justiça considerou que o litígio não estava em condições de ser julgado e remeteu o processo ao Tribunal Geral para que este se pronunciasse sobre os referidos fundamentos.

II.    Tramitação processual e pedidos das partes

18      Na sequência do acórdão proferido em sede de recurso e em conformidade com o artigo 216.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, em 20 de outubro de 2021, o presente processo foi atribuído à Segunda Secção Alargada do Tribunal Geral.

19      Em conformidade com o artigo 217.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, as partes apresentaram observações escritas nos prazos fixados. Além disso, ao abrigo do artigo 217.o, n.o 3, do mesmo regulamento, foram apresentados articulados complementares de observações escritas pelas partes principais.

20      O Reino da Bélgica conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        anular a decisão impugnada;

–        a título subsidiário, anular os artigos 1.o e 2.o da decisão impugnada;

–        condenar a Comissão nas despesas.

21      A Irlanda conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne a anular a decisão impugnada como pedido pelo Reino da Bélgica.

22      A Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

–        negar provimento ao recurso;

–        condenar o Reino da Bélgica nas despesas.

III. Questão de direito

23      O Reino da Bélgica invoca cinco fundamentos de recurso. Na sequência do acórdão proferido em sede de recurso, no qual o Tribunal de Justiça se pronunciou sobre os dois primeiros fundamentos, relativos, o primeiro, à ingerência da Comissão nas competências exclusivas do Reino da Bélgica e, o segundo, à existência de um regime de auxílios, o Tribunal Geral tem de se pronunciar novamente sobre os fundamentos terceiro a quinto, relativos, o terceiro, à qualificação errada da isenção dos lucros excedentários como auxílio de Estado, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, o quarto, à identificação errada dos beneficiários dos alegados auxílios e, o quinto, à violação dos princípios da legalidade e da proteção da confiança legítima, na medida em que a recuperação dos alegados auxílios foi erradamente ordenada.

A.      Quanto ao fundamento relativo à violação do artigo 107.o TFUE e a um erro manifesto de apreciação, na medida em que a Comissão considerou que o sistema dos lucros excedentários constituía um auxílio de Estado

24      O Reino da Bélgica alega, em substância, que o facto de a isenção em matéria de lucros excedentários, enquanto prática administrativa constante, constituir um regime, não implica que se conclua que este preenche todos os requisitos enumerados no artigo 107.o, n.o 1, TFUE para que uma medida constitua um auxílio de Estado. Assim, em apoio deste fundamento, o Reino da Bélgica apresenta argumentos, organizados em várias partes e subpartes, através dos quais contesta as apreciações da Comissão relativas aos referidos requisitos enumerados no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, a saber, o financiamento do regime em causa através de recursos estatais, a existência de uma vantagem seletiva e a existência de uma distorção da concorrência.

25      A Comissão considera que o fundamento invocado pelo Reino da Bélgica deve ser julgado improcedente.

1.      Quanto ao financiamento do regime em causa através de recursos estatais

26      O Reino da Bélgica, apoiado a este respeito pela Irlanda, alega, em substância, que um Estado só pode renunciar à tributação dos rendimentos se tiver direito de cobrar as contribuições correspondentes. No caso em apreço, os lucros excedentários correspondem a lucros gerados pelos grupos de empresas em causa e não podem, portanto, ser imputados às entidades belgas. Por esta razão, esses lucros não são abrangidos pela competência fiscal do Reino da Bélgica, que não os pode tributar.

27      Importa recordar a jurisprudência constante segundo a qual o conceito de «auxílio» é mais geral do que o de subvenção, pois abrange não apenas prestações positivas, como as próprias subvenções, mas também as intervenções do Estado que, de diversas formas, aliviam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa, pelo que, não sendo subvenções na aceção estrita da palavra, têm a mesma natureza e efeitos idênticos a estas. Assim, uma medida através da qual as autoridades públicas concedem a certas empresas um tratamento fiscal privilegiado que, embora não implique uma transferência de recursos do Estado, coloca os seus beneficiários numa situação financeira mais favorável do que a dos outros contribuintes constitui um auxílio de Estado na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE (v. Acórdão de 15 de novembro de 2011, Comissão e Espanha/Governo de Gibraltar e Reino Unido, C‑106/09 P e C‑107/09 P, EU:C:2011:732, n.os 71 e 72 e jurisprudência referida).

28      Em primeiro lugar, no considerando 114 da decisão impugnada, a Comissão sustentou que o regime em causa implicava a isenção em matéria de lucros excedentários, o que constituía uma redução do imposto devido pelas empresas que beneficiavam do referido regime e, portanto, uma perda de receitas fiscais de que o Reino da Bélgica teria podido dispor. Por conseguinte, contrariamente ao que sustenta o Reino da Bélgica, a Comissão identificou efetivamente os recursos estatais envolvidos no alegado regime de auxílios, a saber, as receitas fiscais de que, segundo a Comissão, o Reino da Bélgica dispunha se o referido regime não existisse.

29      Em segundo lugar, nos termos do artigo 185.o, n.o 1, do CIR 92, o montante total dos lucros registados das sociedades residentes é tributável na Bélgica. Por conseguinte, deve considerar‑se que esses lucros estão abrangidos pela competência fiscal do Reino da Bélgica, mesmo que possam ser objeto de ajustamentos, precisamente por força das regras fiscais belgas aplicáveis, como o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92.

30      Em terceiro lugar, na medida em que, no caso em apreço, se trata de reduções das cargas fiscais que eram concedidas pelo serviço das decisões antecipadas, é certo que segundo uma prática administrativa, mas unicamente na sequência de um pedido efetuado pelo beneficiário, não se pode sustentar que os lucros isentos eram, essencialmente, lucros não tributáveis na Bélgica. Com efeito, na falta de pedido a este respeito, esses lucros teriam sido tributados na Bélgica. Por conseguinte, o Reino da Bélgica não pode sustentar que esses lucros não estão abrangidos pela sua competência fiscal.

31      Em quarto lugar, contrariamente ao alegado pela Irlanda, há que salientar que a razão pela qual a Comissão considerou que se tratava, no caso em apreço, de recursos estatais, assenta precisamente no facto de, por força do sistema comum de tributação dos lucros das sociedades na Bélgica, de que faz parte o artigo 185.o, n.o 1, do CIR 92, o montante total dos lucros registados pelas sociedades residentes ser, essencialmente, tributável na Bélgica. Assim, foi tendo em conta a escolha efetuada pelo legislador belga, no exercício da competência fiscal de que beneficia o Reino da Bélgica, que a Comissão pôde concluir que, na medida em que os lucros excedentários não foram tributados, quando eram, essencialmente, lucros tributáveis, essa não tributação resultou numa perda de recursos que pertenciam a esse Estado.

32      Tendo em conta o que precede, há que julgar improcedentes os argumentos do Reino da Bélgica, apoiado pela Irlanda, que contestam a conclusão da Comissão relativa ao financiamento do regime em causa através de recursos estatais.

2.      Quanto à existência de uma vantagem seletiva concedida pelo regime em causa

33      O Reino da Bélgica contesta as conclusões efetuadas pela Comissão sobre a existência de uma vantagem concedida pelo regime em causa e sobre a respetiva seletividade. Mais especificamente, no que respeita à seletividade, baseando‑se na jurisprudência relativa à análise para efeitos da qualificação de uma medida fiscal como «seletiva», o Reino da Bélgica contesta a identificação pela Comissão do sistema de referência, a saber, o regime fiscal comum ou «normal» aplicável, a sua apreciação segundo a qual o regime em causa derroga o referido sistema de referência e a rejeição pela Comissão da justificação do regime apresentada pelo mesmo, baseada na natureza e na economia geral do sistema fiscal belga.

34      No caso em apreço, há que examinar, antes de mais, os argumentos do Reino da Bélgica que contestam a identificação do sistema de referência em relação ao qual deve ser analisada a existência, ou não, de uma vantagem e a sua eventual seletividade. Serão abordados, em seguida, os argumentos do Reino da Bélgica que contestam as apreciações da Comissão relativas tanto à existência de uma vantagem como ao caráter seletivo dessa vantagem devido à existência de uma derrogação ao sistema de referência e, igualmente, à inexistência de uma justificação baseada na natureza e na economia geral do sistema fiscal belga.

a)      Quanto à identificação do sistema de referência

35      O Reino da Bélgica considera, em substância, que a Comissão identificou erradamente o sistema de referência, porque não tomou em consideração que o referido sistema também inclui o regime dos lucros excedentários. Além disso, o Reino da Bélgica sustenta que a Comissão cometeu um erro de direito ao invocar o artigo 24.o do CIR 92, relativo ao rendimento tributável das pessoas singulares, que, no que respeita à determinação dos lucros tributáveis, não é inteiramente aplicável às sociedades pertencentes a um grupo internacional.

36      A Irlanda sustenta que a Comissão não tomou em consideração as regras aplicáveis na Bélgica, ao passo que o sistema de referência não pode ser alheio ao sistema fiscal nacional e que cada Estado define soberanamente a base tributável no seu sistema. Por conseguinte, o destino concedido aos lucros provenientes de uma transação noutros sistemas fiscais não é pertinente.

37      Importa recordar que a determinação do sistema de referência reveste uma importância acrescida no caso das medidas fiscais porque a existência de uma vantagem económica, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, só pode ser afirmada em relação a uma tributação dita «normal». Assim, a determinação de todas as empresas que se encontram numa situação factual e jurídica comparável depende da definição prévia do regime jurídico à luz de cujo objetivo deve, sendo caso disso, ser examinada a comparabilidade da situação factual e jurídica respetiva das empresas que são beneficiadas pela medida em causa e daquelas que não o são (v. Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão, C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.o 69 e jurisprudência referida).

38      Neste contexto, foi declarado que a determinação do sistema de referência, que deve ser efetuada no termo de um debate contraditório com o Estado‑Membro em causa, deve decorrer de um exame objetivo do conteúdo, da articulação e dos efeitos concretos das normas aplicáveis por força do direito nacional desse Estado (v. Acórdão de 6 de outubro de 2021, World Duty Free Group e Espanha/Comissão, C‑51/19 P e C‑64/19 P, EU:C:2021:793, n.o 62 e jurisprudência referida).

39      Além disso, resulta de jurisprudência constante que, embora os Estados‑Membros se devam abster de adotar qualquer medida fiscal que possa constituir um auxílio de Estado que seja incompatível com o mercado interno, não é menos verdade que, fora dos domínios nos quais o direito fiscal da União é objeto de harmonização, é o Estado‑Membro em causa que determina, através do exercício das suas competências próprias em matéria de fiscalidade direta e no respeito da sua autonomia fiscal, as características constitutivas do imposto, as quais definem, em princípio, o sistema de referência ou o regime fiscal «normal», a partir do qual há que analisar o requisito relativo à seletividade. É o que sucede nomeadamente com a determinação da matéria coletável do imposto e com o seu facto gerador (v. Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão (C‑51/19 P e C‑64/19 P, EU:C:2021:793, n.os 65 e 73 e jurisprudência referida).

40      Daqui resulta que só o direito nacional aplicável no Estado‑Membro em causa deve ser tomado em consideração para identificar o sistema de referência em matéria de fiscalidade direta, constituindo esta própria identificação um requisito prévio indispensável para apreciar não apenas a existência de uma vantagem, mas também a questão de saber se esta reveste uma natureza seletiva.

41      Além disso, para determinar se, devido a uma medida fiscal, uma empresa obteve uma vantagem seletiva, a Comissão tem de proceder a uma comparação com o sistema de tributação habitualmente aplicável no Estado‑Membro em causa, no final de um exame objetivo do conteúdo, da articulação e dos efeitos concretos das normas aplicáveis ao abrigo do direito nacional desse Estado. Não podem assim ser tomados em consideração, no âmbito do exame da existência de uma vantagem fiscal seletiva na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, e para efeitos da determinação da carga fiscal que habitualmente onera uma empresa, parâmetros e regras externas ao sistema fiscal nacional em causa, exceto se este último a eles se referir expressamente (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2022, Fiat Chrysler Finance Europe/Comissão (C‑885/19 P e C‑898/19 P, EU:C:2022:859, n.os 92 e 96).

42      No caso em apreço, nos considerandos 121 a 129 da decisão impugnada, a Comissão expôs a sua posição relativamente ao sistema de referência.

43      Assim, nos considerandos 121 e 122 da decisão impugnada, a Comissão indicou que o sistema de referência era o sistema de direito comum de tributação dos lucros das sociedades, previsto pelo regime do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica, cujo objetivo era a tributação dos lucros de todas as sociedades sujeitas a imposto na Bélgica. A Comissão observou que o sistema do imposto sobre as sociedades na Bélgica é aplicável às sociedades residentes naquele país, bem como às sucursais belgas de sociedades não residentes. Por força do artigo 185.o, n.o 1, do CIR 92, as sociedades residentes na Bélgica eram obrigadas a pagar o imposto sobre o rendimento das sociedades sobre o montante total dos lucros que realizavam, salvo quando for aplicada uma convenção contra a dupla tributação. Além disso, por força dos artigos 227.o e 229.o do CIR 92, as sociedades não residentes só estavam sujeitas ao imposto sobre o rendimento das sociedades em relação a determinados tipos de rendimentos específicos de origem belga. Por outro lado, a Comissão sublinhou que, em ambos os casos, o imposto belga sobre as sociedades era devido sobre o lucro total, que era fixado de acordo com as regras relativas ao cálculo dos lucros, conforme estavam definidas no artigo 24.o do CIR 92. Nos termos do artigo 185.o, n.o 1, do CIR 92, conjugado com os artigos 1.o, 24.o, 183.o, 227.o e 229.o do CIR 92, o lucro total correspondia aos rendimentos das sociedades, dos quais eram subtraídas as despesas dedutíveis que eram normalmente registadas na contabilidade, pelo que o lucro efetivamente registado constituía o ponto de partida do cálculo do lucro total tributável, sem prejuízo da aplicação num segundo momento dos ajustamentos positivos e negativos previstos pelo sistema do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica.

44      Nos considerandos 123 a 128 da decisão impugnada, a Comissão explicou que o regime de isenção em matéria de lucros excedentários aplicado pelas autoridades fiscais belgas não fazia parte integrante do sistema de referência.

45      Mais precisamente, no considerando 125 da decisão impugnada, a Comissão considerou que essa isenção não estava prescrita por nenhuma disposição do CIR 92. Com efeito, o artigo 185.o, n.o 2, alínea a), do CIR 92 permitia à Administração Fiscal belga proceder a um ajustamento unilateral primário dos lucros de uma sociedade, no caso de transações ou acordos com sociedades associadas serem efetuadas em condições que se desviam das de plena concorrência. Em contrapartida, o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 previa a possibilidade de efetuar ajustamentos negativos dos lucros de uma sociedade, gerados por uma transação ou por um acordo intragrupo, na condição adicional de o lucro a ajustar ter sido incluído no lucro da contraparte estrangeira nessa transação ou nesse acordo.

46      Além disso, no considerando 126 da decisão impugnada, a Comissão recordou que o sistema do imposto sobre as sociedades na Bélgica visava tributar as empresas sujeitas a imposto sobre os seus lucros reais, independentemente da sua forma jurídica, da sua dimensão ou da sua pertença ou não a um grupo multinacional de empresas.

47      Por outro lado, no considerando 127 da decisão impugnada, a Comissão salientou que, para efeitos do cálculo dos lucros tributáveis, as sociedades integradas de um grupo multinacional eram obrigadas a fixar os preços a aplicar às suas transações intragrupo em vez de utilizarem preços ditados diretamente pelo mercado, razão pela qual a legislação fiscal belga previa disposições especiais aplicáveis aos grupos, que visavam geralmente pôr em pé de igualdade as empresas não integradas e as entidades económicas estruturadas sob a forma de grupos.

48      No considerando 129 da decisão impugnada, a Comissão concluiu que o sistema de referência a tomar em consideração era o sistema do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica, cujo objetivo era tributar da mesma forma os lucros de todas as sociedades residentes ou ativas por intermédio de um estabelecimento estável na Bélgica. Este sistema incluía os ajustamentos aplicáveis, em conformidade com o sistema do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica, que determinavam o lucro tributável da sociedade para efeitos da cobrança do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica.

49      Antes de mais, importa salientar que as partes estão de acordo quanto ao ponto de partida segundo o qual o sistema de direito comum do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica constitui o sistema de referência.

50      Em contrapartida, o Reino da Bélgica contesta o alcance do referido sistema de direito comum adotado pela Comissão, quanto à determinação dos lucros tributáveis, a pertinência do artigo 24.o do CIR 92, a possibilidade de efetuar ajustamentos sobre os lucros registados pelas sociedades tributáveis e a questão de saber se o referido sistema inclui ou não o regime de isenção em matéria de lucros excedentários aplicado pelas autoridades fiscais belgas.

1)      Quanto à tomada em consideração do direito nacional

51      A título preliminar, há que salientar que, para determinar qual é o regime fiscal comum ou «normal» aplicável na Bélgica, a Comissão baseou‑se nas disposições legais aplicáveis, a saber, nomeadamente, o CIR 92, como resulta dos n.os 42 a 48, supra. Com efeito, com base nas informações transmitidas pelo Reino da Bélgica no âmbito do procedimento administrativo, a Comissão descreveu o quadro legislativo aplicável e expôs, nomeadamente nos considerandos 23 a 28 da decisão impugnada, o sistema do imposto sobre as sociedades na Bélgica, conforme previsto pelo CIR 92. Mais especificamente, como acima se refere no n.o 43, a Comissão referiu‑se expressamente aos artigos 1.o, 24.o, 183.o e 185.o do CIR 92.

52      Daqui decorre que, contrariamente ao que sustenta a Irlanda, para efeitos da identificação do sistema de referência, a Comissão se baseou nas regras aplicáveis na Bélgica em matéria fiscal.

2)      Quanto à determinação dos lucros tributáveis das sociedades e à pertinência do artigo 24.o do CIR 92

53      A respeito dos argumentos do Reino da Bélgica que contestam as conclusões da Comissão relativas à determinação dos lucros tributáveis das sociedades na Bélgica e à pertinência do artigo 24.o do CIR 92, há que recordar que, no considerando 122 da decisão impugnada, a Comissão indicou que o lucro total era fixado de acordo com as regras relativas aos lucros enunciadas nas disposições aplicáveis ao cálculo dos lucros tributáveis, como definidas no artigo 24.o do CIR 92.

54      O artigo 24.o do CIR 92 especifica que os rendimentos tributáveis das empresas industriais, comerciais e agrícolas abrangem todos os rendimentos decorrentes de atividades empresariais, como os lucros provenientes de «todas as operações efetuadas pelos estabelecimentos dessas empresas ou por seu intermédio», e de «qualquer aumento do valor dos ativos […] e de qualquer redução do valor dos passivos […] quando essas mais‑valias ou menos‑valias tiverem sido realizadas ou expressas na contabilidade ou nas contas anuais».

55      Daqui decorre que os lucros tributáveis, para efeitos da aplicação do CIR 92, são constituídos, essencialmente, por todos os lucros registados pelas empresas sujeitas a imposto na Bélgica, na medida em que constituem o ponto de partida do cálculo do referido imposto.

56      É certo que o artigo 24.o do CIR 92 faz parte do título II do referido código, que diz respeito ao imposto sobre as pessoas singulares, no seu capítulo II, relativo à matéria coletável, e, mais precisamente, está integrado na secção IV, subsecção I, do referido capítulo, relativa aos rendimentos tributáveis. Todavia, nos termos do artigo 183.o do CIR 92, relativo à matéria coletável do imposto sobre as sociedades, «os rendimentos sujeitos ao imposto sobre as sociedades ou isentos do referido imposto são, quanto à sua natureza, os mesmos que os previstos em matéria de imposto sobre as pessoas singulares[, sendo] o seu montante determinado com base nas regras aplicáveis aos lucros». Esta disposição não introduz qualquer distinção relativamente às sociedades pertencentes a grupos multinacionais de empresas.

57      Por conseguinte, o CIR 92 remete, no que respeita ao imposto sobre os lucros das sociedades, nomeadamente para efeitos de determinação da matéria coletável, para as disposições previstas para o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares.

58      Nestas circunstâncias, há que rejeitar os argumentos do Reino da Bélgica que contestam a invocação pela Comissão do artigo 24.o do CIR 92 para efeitos da determinação dos lucros tributáveis das sociedades na Bélgica no âmbito do seu exame da tributação normal das sociedades na Bélgica.

3)      Quanto à possibilidade de efetuar ajustamentos sobre os lucros registados pelas sociedades tributáveis

59      O Reino da Bélgica acusa a Comissão de não ter tido em conta o facto de os lucros registados constituírem apenas o ponto de partida para o cálculo dos lucros tributáveis.

60      A este respeito, há que salientar que resulta das precisões fornecidas pela Comissão no considerando 123 da decisão impugnada, que tomou em consideração o facto de a base de cálculo do lucro tributável ser constituída pelo lucro total registado da entidade em questão, sobre o qual eram efetuados os ajustamentos, negativos e positivos, previstos pelo sistema do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica.

61      Mais especificamente, a Comissão referiu, no considerando 125 da decisão impugnada, que os ajustamentos positivos e negativos, previstos no artigo 185.o, n.o 2, alíneas a) e b), do CIR 92, constituíam disposições fiscais especiais aplicáveis a situações em que os requisitos fixados para uma transação ou um acordo se desviam dos que seriam acordados entre sociedades independentes.

62      Por conseguinte, contrariamente ao que alega o Reino da Bélgica, a Comissão teve em conta o facto de, no regime fiscal aplicável na Bélgica, especificamente no que respeita à base tributável do imposto sobre os lucros das sociedades, existir a possibilidade de efetuar ajustamentos positivos e negativos sobre os lucros registados. Por estas mesmas razões, as alegações do Reino da Bélgica relativas a uma possível violação pela Comissão da existência, no regime fiscal belga, de uma diferença entre o lucro contabilístico e o lucro tributável não podem ser acolhidas.

4)      Quanto à não inclusão do regime dos lucros excedentários no sistema de referência

63      O Reino da Bélgica alega que a Comissão excluiu erradamente o regime dos lucros excedentários do sistema de referência.

64      Em primeiro lugar, há que sublinhar que a Comissão não excluiu o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 do sistema de referência. Em contrapartida, considerou que o regime dos lucros excedentários aplicado pelas autoridades fiscais belgas não estava previsto nesta disposição e, portanto, não fazia parte do sistema de referência. Assim, contrariamente ao que sustenta o Reino da Bélgica, não há contradição entre a conclusão sobre a existência de um regime de auxílios baseado no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 e a constatação de que o regime dos lucros excedentários não faz parte do sistema de referência.

65      Em segundo lugar, para determinar se a Comissão concluiu corretamente que o regime dos lucros excedentários não estava previsto no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, há que examinar, por um lado, o alcance desta disposição e, por outro, o regime dos lucros excedentários conforme aplicado pelas autoridades fiscais belgas.

i)      Quanto ao alcance do artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92

66      Há que salientar que a Comissão baseou a sua análise do artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92 na redação desta disposição e nos textos que acompanham a sua entrada em vigor. Com efeito, nos considerandos 29 a 38 da decisão impugnada, a Comissão descreveu detalhadamente, em primeiro lugar, o texto do artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92, introduzido pela Lei de 21 de junho de 2004, que altera o CIR 92 e a Lei de 24 de dezembro de 2002 (Moniteur belge de 9 de julho de 2004, p. 54623; a seguir «Lei de 21 de junho de 2004»), em segundo lugar, a exposição de motivos que figura no projeto da referida lei, apresentada em 30 de abril de 2004 pelo Governo belga à Câmara dos Representantes da Bélgica (a seguir «exposição de motivos da Lei de 21 de junho de 2004») e, em terceiro lugar, a circular de 4 de julho de 2006 relativa ao artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92 (a seguir «Circular Administrativa de 4 de julho de 2006»).

67      O próprio Reino da Bélgica, na sua argumentação no âmbito do presente recurso, apoiou‑se nesses textos que fazem parte dos autos do processo.

68      Antes de mais, na sua versão aplicável no caso em apreço, o artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92, ao qual faz referência o considerando 29 da decisão impugnada, tem a seguinte redação:

«Sem prejuízo do disposto no n.o 2, para duas sociedades que fazem parte de um grupo multinacional de sociedades associadas e no que se refere às suas relações transfronteiriças recíprocas:

[…]

b)      quando nos lucros de uma sociedade forem incluídos lucros que são igualmente incluídos nos lucros de uma outra sociedade, e que os lucros assim [incluídos] teriam sido realizados por essa outra sociedade se as condições acordadas entre ambas fossem as mesmas que sociedades independentes acordariam entre si, os lucros da primeira sociedade são ajustados de forma correspondente.

O primeiro parágrafo aplica‑se por decisão antecipada sem prejuízo da aplicação da Convenção relativa à eliminação da dupla tributação. Em caso de correção dos lucros das empresas associadas (90/436), de 23 de julho de 1990, e das convenções internacionais destinadas a evitar a dupla tributação.»

69      Em seguida, a exposição de motivos da Lei de 21 de junho de 2004, à qual faz referência o considerando 34 da decisão impugnada, indica que o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 prevê um ajustamento correlativo adequado para evitar ou eliminar uma (eventual) dupla tributação e que só é necessário proceder a um ajustamento correlativo se a Administração Fiscal ou o Serviço das Decisões Antecipadas considerar que o ajustamento primário é justificado no que diz respeito ao seu princípio e montante.

70      Por outro lado, a exposição de motivos da Lei de 21 de junho de 2004 precisa que a referida disposição não se aplica se o lucro realizado no Estado parceiro for majorado de tal modo que seja superior ao que se obteria em caso de aplicação do princípio de plena concorrência, não estando as autoridades fiscais belgas obrigadas a aceitar as consequências de um ajustamento arbitrário ou unilateral no Estado parceiro.

71      Por último, a Circular Administrativa de 4 de julho de 2006, à qual o considerando 38 da decisão impugnada se refere, reitera a constatação de que esse ajustamento negativo não se aplica quando o ajustamento positivo primário efetuado por outra jurisdição for excessivo. Por outro lado, a referida circular retoma amplamente o texto da exposição de motivos da Lei de 21 de junho de 2004, na medida em que recorda que o ajustamento negativo correlativo tem sentido no princípio de plena concorrência, que tem por objetivo evitar ou eliminar uma (eventual) dupla tributação e que deve ser efetuado de forma adequada, a saber, que as autoridades fiscais belgas só podem proceder a esse ajustamento se este último for justificado no que diz respeito ao seu princípio e montante.

72      Por conseguinte, resulta da redação do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 que o ajustamento negativo está previsto no âmbito das relações transfronteiriças entre duas sociedades associadas e que deve ser correlativo, no sentido de que só é aplicável na condição de os lucros objeto do ajustamento serem igualmente incluídos nos lucros da outra sociedade e de esses lucros assim incluídos serem lucros que teriam sido realizados por essa outra sociedade se as condições acordadas entre ambas fossem as mesmas que sociedades independentes acordariam entre si.

73      A este respeito, há que recordar que o próprio Reino da Bélgica afirmou, no n.o 95 da petição, que o artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92 visava determinar os lucros da entidade belga tributáveis na Bélgica e os lucros não abrangidos pela sua competência, com base numa repartição desses lucros entre a entidade belga e as sociedades associadas abrangidas pelas relações intragrupo transfronteiriças em questão.

74      Esta constatação é confirmada tanto pela exposição dos motivos da Lei de 21 de junho de 2004 como pela Circular Administrativa de 4 de julho de 2006, que sublinham que o ajustamento correlativo deve ser adequado, no que diz respeito ao seu princípio e montante, e que não se procede a esse ajustamento se os lucros realizados noutro Estado forem majorados de modo que se tornem superiores aos que teriam sido obtidos em aplicação do princípio de plena concorrência. Com efeito, estes textos indicam que o ajustamento negativo, previsto no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, exige uma correlação entre os lucros ajustados em baixa na Bélgica e os lucros incluídos numa outra sociedade do grupo estabelecida noutro Estado.

ii)    Quanto ao regime dos lucros excedentários

75      O regime dos lucros excedentários, conforme aplicado pelas autoridades fiscais belgas, é descrito pela Comissão nos considerandos 13 a 22 da decisão impugnada. Além disso, nos considerandos 39 a 42 da decisão impugnada, a Comissão teve em conta as respostas do ministro das Finanças belga a perguntas parlamentares sobre a aplicação do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, de 13 de abril de 2005, de 11 de abril de 2007 e de 6 de janeiro de 2015. Estas respostas explicam a prática administrativa das autoridades fiscais belgas em matéria de lucros excedentários.

76      Resulta destas respostas que, no âmbito do regime dos lucros excedentários aplicado pelas autoridades fiscais belgas, o ajustamento negativo dos lucros que permite deduzir da base tributável os referidos lucros excedentários não estava condicionado pelo facto de os lucros isentos terem sido incluídos nos lucros de outra sociedade e de esses lucros serem lucros que teriam sido realizados por essa outra sociedade se as condições acordadas entre elas fossem as que teriam sido acordadas entre sociedades independentes. O Reino da Bélgica confirmou este aspeto do regime em causa na audiência.

77      Além disso, resulta das explicações fornecidas pelo Reino da Bélgica, conforme são retomadas, nomeadamente, nos considerandos 15 a 20 da decisão impugnada, que a isenção aplicada pelas autoridades fiscais belgas, ao abrigo do regime em causa, se baseava numa percentagem de isenção, calculada com base num lucro médio hipotético para a entidade belga, obtido a partir de um indicador do nível de lucro resultante de uma comparação com os lucros das empresas autónomas comparáveis e estabelecido como um valor situado no intervalo interquartílico do referido indicador do nível de lucro escolhido para um conjunto de empresas autónomas comparáveis. Esta percentagem de isenção foi aplicável durante vários anos, a saber, durante o período de validade da decisão antecipada. Assim, a tributação das entidades belgas daí resultante não tomava como ponto de partida a totalidade dos lucros realmente registados, na aceção dos artigos 1.o, 24.o, 183.o e 185.o, n.o 1, do CIR 92, aos quais teriam sido aplicados os ajustamentos legalmente previstos no caso dos grupos de empresas, nos termos do artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92, mas antes um lucro hipotético que não tem em conta o lucro total realizado pela entidade belga em questão e os ajustamentos legalmente previstos.

78      Por outro lado, o facto de o objetivo desta disposição ser o de evitar uma eventual dupla tributação, como foi sublinhado pelo Reino da Bélgica, não pode eliminar o requisito expressamente previsto, relativo ao facto de os lucros a ajustar deverem igualmente ter sido incluídos nos lucros de outra sociedade e de esses lucros serem lucros que teriam sido realizados por essa outra sociedade se as condições acordadas entre elas tivessem sido as que teriam sido acordadas entre sociedades independentes. Com efeito, é precisamente quando os lucros de uma entidade belga são igualmente incluídos nos lucros de outra sociedade, estabelecida noutro Estado, que pode existir a possibilidade de dupla tributação.

iii) Conclusão sobre a não inclusão do regime dos lucros excedentários no sistema de referência

79      Resulta do que precede que, enquanto o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 exige, para efeitos de um ajustamento negativo, que os lucros a ajustar tenham sido igualmente incluídos nos lucros de outra sociedade e que sejam lucros que teriam sido realizados por essa outra sociedade se as condições acordadas entre ambas tivessem sido as que teriam sido acordadas entre sociedades independentes, o regime dos lucros excedentários era aplicado pelas autoridades belgas sem ter em consideração essas condições.

80      Daqui resulta que, contrariamente ao que sustenta o Reino da Bélgica, a Comissão considerou corretamente que a isenção em matéria de lucros excedentários, aplicada pelas autoridades fiscais belgas ao abrigo do regime em causa, não fazia parte do sistema de referência.

81      Nestas circunstâncias, há que rejeitar todos os argumentos do Reino da Bélgica que contestam a identificação do sistema de referência efetuada pela Comissão na decisão impugnada.

b)      Quanto à existência de uma vantagem devido ao regime em causa

82      O Reino da Bélgica acusa, em substância, a Comissão de não ter examinado de forma distinta a questão de saber se o sistema dos lucros excedentários implicava a concessão de uma vantagem económica aos beneficiários. Além disso, o Reino da Bélgica acusa a Comissão de não ter examinado nem identificado qual era a vantagem fiscal de que beneficiaram as entidades belgas pertencentes a um grupo internacional em relação às outras sociedades autónomas concorrentes.

1)      Quanto à identificação da vantagem concedida pelo regime em causa

83      A título preliminar, como foi salientado nos n.os 45 a 47, supra, importa recordar que, no considerando 125 da decisão impugnada, a Comissão indicou que a isenção em matéria de lucros excedentários aplicada pelas autoridades fiscais belgas não estava prevista no sistema do imposto sobre as sociedades na Bélgica. Além disso, no considerando 126 da decisão impugnada, a Comissão salientou o facto de esta isenção ser calculada não tendo em conta os lucros totais efetivamente registados pela entidade belga e dos ajustamentos legalmente previstos. No considerando 127 da decisão impugnada, sublinhou que, embora o sistema belga tenha previsto disposições especiais aplicáveis aos grupos, estas visavam antes colocar em pé de igualdade as entidades integradas em grupos multinacionais e as entidades autónomas.

84      Neste âmbito, no considerando 133 da decisão impugnada, a Comissão assinalou que, por força do sistema do imposto sobre as sociedades na Bélgica, as entidades de sociedades residentes ou ativas por intermédio de um estabelecimento estável nesse país eram tributadas com base nos seus lucros efetivamente registados, e não com base num nível hipotético de lucros, razão pela qual a isenção em matéria de lucros excedentários conferia uma vantagem às entidades belgas de um grupo que beneficiava do regime em causa.

85      No considerando 135 da decisão impugnada, a Comissão recordou a jurisprudência segundo a qual pode ser conferida uma vantagem económica através da redução da carga fiscal de uma empresa e, em especial, através da redução da base tributável ou do montante do imposto devido. Assim, considerou que, no caso em apreço, o regime em causa permitia às sociedades beneficiárias das decisões antecipadas reduzir o imposto devido deduzindo do seu lucro efetivamente registado o lucro dito «excedentário». Este último era calculado estimando o lucro médio hipotético de empresas autónomas comparáveis, pelo que a diferença entre o lucro efetivamente registado e esse lucro médio hipotético se traduzia numa percentagem da isenção que fundamentava o cálculo da base tributável concedida para os cinco anos durante os quais a decisão antecipada era aplicável. Na medida em que essa base tributável, assim calculada a título das decisões antecipadas concedidas ao abrigo do regime em causa, era inferior à base tributável na falta das referidas decisões antecipadas, daí resultaria uma vantagem.

86      Nestas circunstâncias, há que salientar que a decisão impugnada fornece os elementos que a Comissão teve em conta para considerar a existência de uma vantagem. Com efeito, os considerandos destacados, nomeadamente nos n.os 83 a 85, supra, permitem compreender que a vantagem considerada pela Comissão consistia na não tributação dos lucros excedentários das sociedades beneficiárias e na tributação de lucros destas últimas calculados a partir de um lucro médio hipotético que não tem em conta o lucro total realizado por essas sociedades e os ajustamentos legalmente previstos, por força das decisões antecipadas ao abrigo do regime em causa. Segundo a Comissão, essa tributação representava uma redução da carga fiscal suportada pelos beneficiários do regime, em relação à que teria resultado de uma tributação normal, ao abrigo do sistema do imposto sobre as sociedades na Bélgica, que abrangesse a totalidade dos lucros efetivamente registados, após aplicação dos ajustamentos legalmente previstos.

2)      Quanto à análise conjunta pela Comissão do critério da vantagem e do critério da seletividade

87      Antes de mais, importa recordar que a seletividade e a vantagem constituem dois critérios distintos. No que diz respeito à vantagem, a Comissão deve demonstrar que a medida melhora a situação financeira do beneficiário (v., neste sentido, Acórdão de 2 de julho de 1974, Itália/Comissão, 173/73, EU:C:1974:71, n.o 33). Em contrapartida, no que respeita à seletividade, a Comissão deve demonstrar que a vantagem não beneficia outras empresas numa situação jurídica e factual comparável à do beneficiário tendo em conta o objetivo do sistema de referência (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2011, Paint Graphos e o., C‑78/08 a C‑80/08, EU:C:2011:550, n.o 49).

88      A este respeito, segundo a jurisprudência, a exigência de seletividade resultante do artigo 107.o, n.o 1, TFUE deve ser claramente distinguida da deteção de uma vantagem económica na medida em que, uma vez detetada pela Comissão a presença de uma vantagem, considerada em sentido lato, decorrente direta ou indiretamente de uma dada medida, compete a esta última demonstrar, além disso, que essa vantagem se dirige especificamente a uma ou a várias empresas (Acórdão de 4 de junho de 2015, Comissão/MOL, C‑15/14 P, EU:C:2015:362, n.o 59).

89      No entanto, importa precisar que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que estes dois critérios podem ser examinados conjuntamente, enquanto «terceira condição» prevista no artigo 107.o, n.o 1, TFUE, relativa à existência de uma «vantagem seletiva» (v., neste sentido, Acórdão de 30 de junho de 2016, Bélgica/Comissão, C‑270/15 P, EU:C:2016:489, n.o 32).

90      Na decisão impugnada, o raciocínio da Comissão relativo à vantagem figura no âmbito da análise sobre a existência de uma vantagem seletiva, a saber, o ponto 6.3, intitulado «Existência de uma vantagem seletiva». Neste âmbito, como acaba de ser referido nos n.os 83 a 85, supra, a Comissão examinou efetivamente o critério da vantagem. Em seguida, a análise propriamente dita da seletividade dessa vantagem encontra‑se nos considerandos 136 a 141 da decisão impugnada, no ponto 6.3.2.1, no que respeita ao raciocínio sobre a seletividade, apresentado a título principal pela Comissão, baseado na existência de uma derrogação ao sistema comum do imposto sobre as sociedades na Bélgica. Por outro lado, a seletividade é igualmente analisada nos considerandos 152 a 170 da decisão impugnada, no ponto 6.3.2.2, no que respeita ao raciocínio sobre a seletividade, apresentado a título subsidiário pela Comissão, baseado na existência de uma derrogação ao princípio de plena concorrência.

91      Por conseguinte, o facto de, de um ponto de vista formal, a análise da vantagem ter sido inserida numa secção que abrange igualmente o exame da seletividade não revela a inexistência de um exame quanto ao mérito dos dois conceitos, na medida em que a existência de uma vantagem, por um lado, e a existência do seu caráter seletivo, por outro, são efetivamente analisadas (v., neste sentido, Acórdão de 24 de setembro de 2019, Países Baixos e o./Comissão, T‑760/15 e T‑636/16, EU:T:2019:669, n.o 129).

3)      Quanto à existência de uma vantagem que favorece os beneficiários do regime em causa

92      Importa recordar que, segundo jurisprudência constante, são consideradas auxílios de Estado as intervenções que, independentemente da forma que assumam, sejam suscetíveis de favorecer direta ou indiretamente empresas, e que devam ser consideradas uma vantagem económica que a empresa beneficiária não teria obtido em condições normais de mercado (v. Acórdãos de 2 de setembro de 2010, Comissão/Deutsche Post, C‑399/08 P, EU:C:2010:481, n.o 40 e jurisprudência referida; e de 9 de outubro de 2014, Ministerio de Defensa e Navantia, C‑522/13, EU:C:2014:2262, n.o 21).

93      No caso das medidas fiscais, a própria existência de uma vantagem só pode ser estabelecida em relação a uma tributação dita «normal» (Acórdão de 6 de setembro de 2006, Portugal/Comissão, C‑88/03, EU:C:2006:511, n.o 56). Por conseguinte, tais medidas conferem uma vantagem económica aos seus beneficiários sempre que aliviam os encargos que normalmente oneram o orçamento de uma empresa e, por essa razão, não sendo subvenções na aceção estrita da palavra, têm a mesma natureza e efeitos idênticos (Acórdão de 9 de outubro de 2014, Ministerio de Defensa e Navantia, C‑522/13, EU:C:2014:2262, n.o 22).

94      Consequentemente, para determinar se existe uma vantagem fiscal, há que comparar a situação do beneficiário resultante da aplicação da medida em causa com a situação dele na falta dessa medida e com a aplicação das regras normais de tributação (v. Acórdão de 24 de setembro de 2019, Países Baixos/Comissão (T‑760/15 e T‑636/16, EU:T:2019:669, n.o 147 e jurisprudência referida).

95      Por outro lado, no caso de um regime de auxílios, a Comissão deve unicamente provar que o regime fiscal em causa é suscetível de favorecer os seus beneficiários, comprovando que este, globalmente considerado, tendo em conta as suas características próprias, é suscetível de conduzir, no momento da sua adoção, a uma tributação menos elevada do que a que resulta da aplicação do regime geral de tributação (v. Acórdão de 2 de fevereiro de 2023, Espanha e o./Comissão, C‑649/20 P, C‑658/20 P e C‑662/20 P, EU:C:2023:60, n.o 63 e jurisprudência referida).

96      No caso em apreço, como foi indicado nos n.os 83 a 86, supra, a Comissão salientou, nos considerandos 125 a 127 e 133 a 135 da decisão impugnada, que, na sequência das decisões antecipadas, adotadas ao abrigo do regime em causa, as entidades belgas que faziam parte de um grupo multinacional e que o tinham pedido tinham podido reduzir o seu imposto devido na Bélgica, deduzindo da sua base tributável uma percentagem dos seus lucros, a título de lucros ditos «excedentários», e isso para os cinco anos de validade das referidas decisões antecipadas.

97      Antes de mais, não é contestado que o regime em causa era concebido como um sistema que consistia na não tributação de uma parte dos lucros registados por entidades belgas que faziam parte de um grupo multinacional. É igualmente facto assente que, por força do artigo 2.o da Lei de 21 de junho de 2004, só através de uma decisão antecipada adotada pelo Serviço das Decisões Antecipadas na sequência de um pedido apresentado pelas entidades belgas em causa é que uma parte dos lucros dessas entidades podia ser qualificada como excedentária, nos termos do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, e que a percentagem de isenção em questão podia ser aplicada à base tributável dessas entidades, pelo que apenas uma parte dessa base tributável era tributada.

98      Em seguida, há que recordar que resulta do artigo 185.o, n.o 1, do CIR 92 que as sociedades residentes na Bélgica são tributáveis sobre o montante total dos seus lucros. Além disso, resulta do artigo 24.o do CIR 92, conforme foi examinado no n.o 54, supra, que os lucros tributáveis das empresas são, essencialmente, todos os lucros realizados ou expressos na contabilidade.

99      Por último, como acima se indica nos n.os 66 a 74, resulta do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 que pode ser efetuado um ajustamento negativo da matéria coletável, quando os lucros da sociedade em questão são igualmente incluídos nos lucros de outra sociedade do mesmo grupo e são os lucros que teriam sido realizados por essa outra sociedade se as condições acordadas entre ambas fossem as que teriam sido acordadas entre sociedades independentes.

100    Por conseguinte, em conformidade com as regras normais de tributação na Bélgica, as entidades belgas eram tributadas sobre todos os seus lucros realizados, conforme expressos na sua contabilidade, se fosse caso disso procedendo a ajustamentos como o previsto no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92. Ora, uma vez que o regime em causa consistia numa isenção dos lucros ditos «excedentários» que, como foi salientado no n.o 80, supra, não estava prevista no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, o referido regime era suscetível de conduzir a uma redução do imposto que as entidades que pediram essas decisões teriam de pagar de outra forma, em aplicação das regras relativas ao imposto sobre as sociedades na Bélgica.

101    Nestas circunstâncias, a Comissão não pode ser acusada de ter constatado que o regime fiscal em causa era suscetível de favorecer os seus beneficiários, na medida em que esse regime, considerado globalmente e tendo em conta as suas características próprias, era suscetível de conduzir a uma tributação inferior à que resulta da aplicação das regras normais de tributação das sociedades na Bélgica.

102    Nenhum dos outros argumentos do Reino da Bélgica e da Irlanda é suscetível de pôr em causa esta conclusão.

103    Em primeiro lugar, no que respeita ao argumento do Reino da Bélgica relativo ao facto de a Comissão não ter identificado a vantagem fiscal de que as entidades belgas pertencentes a um grupo internacional teriam beneficiado em relação às outras sociedades autónomas concorrentes, há que recordar, como resulta da jurisprudência acima referida no n.o 94, que o conceito de «vantagem económica» implica comparar a situação do beneficiário resultante da aplicação da medida em causa com a situação deste na falta dessa medida e em aplicação das regras normais de tributação. Assim, na fase da análise da vantagem, a Comissão não tinha de efetuar a comparação da posição dos beneficiários das decisões antecipadas com a das empresas autónomas. Por outro lado, contrariamente ao que alega o Reino da Bélgica, no âmbito do exame da existência de uma vantagem concedida por um regime de auxílios, a Comissão não tinha de efetuar uma análise da situação individual de cada beneficiário nem de calcular a diferença entre a carga fiscal suportada pelas entidades belgas que obtiveram uma decisão antecipada e a que lhes teria sido imposta na falta dessas decisões (v., neste sentido, Acórdão de 9 de junho de 2011, Comitato «Venezia vuole vivere» e o./Comissão, C‑71/09 P, C‑73/09 P e C‑76/09 P, EU:C:2011:368, n.o 63 e jurisprudência referida).

104    Em segundo lugar, no que respeita ao argumento que contesta a apreciação da Comissão segundo a qual a vantagem decorre da diferença entre os lucros tributáveis, baseados no princípio de plena concorrência resultante do artigo 107.o TFUE, acolhido pela Comissão, e os determinados em aplicação do princípio de plena concorrência, conforme previsto pela legislação belga, há que salientar que foi apenas no âmbito da análise da seletividade do regime em causa que a Comissão examinou, a título subsidiário, em que medida esse regime derrogava o princípio de plena concorrência. Este argumento é, portanto, irrelevante no âmbito do exame da apreciação pela Comissão da existência de uma vantagem.

105    Em terceiro lugar, a Irlanda sustenta que as decisões antecipadas se limitam a aplicar o direito aos factos de cada pedido e, portanto, que não podem colocar o contribuinte numa melhor situação económica do que aquela em que deveria ter sido colocado. A este respeito, importa salientar que é certo que, por força do artigo 20.o da Lei de 24 de dezembro de 2002, o Serviço Público Federal de Finanças belga se pronuncia por meio de decisão antecipada sobre qualquer pedido relativo à aplicação da legislação fiscal a uma situação ou a uma operação específica que ainda não produziu efeitos no plano fiscal e que, por força do artigo 2.o da Lei de 21 de junho de 2004, o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 só pode ser aplicado por decisão antecipada. Todavia, o regime dos lucros excedentários não estava previsto no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 e foi na prática que, ao afastar‑se das condições previstas pela referida disposição, o serviço das decisões antecipadas implementou o regime em causa. Neste contexto, com base nos pedidos de decisões antecipadas, o Serviço das Decisões Antecipadas validou o cálculo dos lucros excedentários proposto nos referidos pedidos e determinou a percentagem de isenção que podia ser aplicada pelas entidades belgas em questão, durante o período de validade das decisões antecipadas. Por conseguinte, não se pode considerar que as decisões antecipadas visadas pelo regime em causa se limitam a aplicar o direito aos factos relativamente a cada pedido.

106    Nestas circunstâncias, há que rejeitar os argumentos do Reino da Bélgica relativos ao erro manifesto de apreciação quanto à constatação relativa à existência de uma vantagem devido ao regime em causa.

c)      Quanto ao caráter seletivo da vantagem devido à existência de uma derrogação ao sistema de referência que introduz diferenciações entre operadores que se encontram numa situação comparável

107    O Reino da Bélgica alega, em substância, que a Comissão cometeu um erro de apreciação ao concluir que o sistema dos lucros excedentários concedia uma vantagem seletiva aos seus beneficiários na medida em que constituía uma derrogação em relação ao sistema de referência, entendido como sendo o regime geral do imposto sobre as sociedades na Bélgica.

108    Por um lado, o Reino da Bélgica sustenta que o regime dos lucros excedentários se baseia no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, disposição que faz parte do sistema do imposto sobre as sociedades na Bélgica, e que, portanto, não se pode considerar que o referido regime derroga o sistema de referência conforme foi adotado pela Comissão.

109    Por outro lado, o Reino da Bélgica sustenta que o regime de isenção em matéria de lucros excedentários não conduz a uma desigualdade de tratamento entre sociedades que se encontram numa situação factual e jurídica comparável, tendo em conta o objetivo prosseguido pelo sistema de referência.

110    A este respeito, importa recordar a jurisprudência segundo a qual, no âmbito do exame da seletividade de uma medida fiscal, após ter identificado e examinado, num primeiro momento, o regime fiscal comum ou «normal» aplicável no Estado‑Membro em causa, a saber, o sistema de referência, importa, num segundo momento, apreciar e estabelecer o eventual caráter seletivo da vantagem concedida pela medida fiscal em causa, demonstrando que esta medida derroga o referido regime comum, na medida em que introduz diferenciações entre operadores económicos que se encontram, à luz do objetivo prosseguido pelo sistema fiscal do Estado‑Membro em causa, numa situação factual e jurídica comparável (v. Acórdão de 8 de setembro de 2011, Paint Graphos e o., C‑78/08 a C‑80/08, EU:C:2011:550, n.o 49 e jurisprudência referida).

111    Na decisão impugnada (ponto 6.3.2.1), a Comissão considerou, a título principal, que o regime belga de isenção em matéria de lucros excedentários concedia uma vantagem seletiva aos seus beneficiários uma vez que derrogava o sistema comum do imposto sobre as sociedades na Bélgica, na medida em que este previa que as sociedades fossem tributadas com base no seu lucro total, a saber, o seu lucro efetivamente registado, e não com base num lucro médio hipotético que não tem em conta o lucro total realizado por essas sociedades e os ajustamentos legalmente previstos.

112    Assim, a Comissão concluiu, no considerando 136 da decisão impugnada, que o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, invocado pelo Reino da Bélgica como fundamento para o regime em causa, não tinha o sentido nem o efeito preconizado pelo referido regime e, portanto, que esse regime constituía antes uma derrogação à regra geral prevista pelo direito fiscal belga segundo a qual o lucro efetivo registado é sujeito a imposto. Além disso, a Comissão sublinhou que este regime não estava à disposição de todas as entidades que se encontravam numa situação jurídica e factual semelhante, à luz do objetivo do sistema belga do imposto sobre o rendimento das sociedades, que consiste em tributar os lucros de todas as sociedades sujeitas ao imposto na Bélgica.

113    Em seguida, nos considerandos 137 a 141 da decisão impugnada, a Comissão desenvolveu as razões pelas quais considerava que o regime em causa introduzia diferenciações entre operadores que se encontravam, à luz do objetivo atribuído ao sistema fiscal belga, numa situação factual e jurídica comparável.

1)      Quanto à existência de uma derrogação ao sistema de referência

114    Antes de mais, importa recordar que aquilo que a Comissão considerou não fazer parte do sistema de referência e, portanto, que o derroga é o regime dos lucros excedentários, a saber, o ajustamento negativo, conforme foi efetuado pelas autoridades fiscais belgas sobre uma parte dos lucros tributáveis, ditos «excedentários».

115    Ora, como acima se indica nos n.os 79 e 80, à luz da redação do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, o ajustamento negativo dos lucros tributáveis está sujeito ao requisito de os lucros a deduzir para uma dada sociedade terem sido igualmente incluídos nos lucros de outra sociedade e de esses lucros serem lucros que teriam sido realizados por essa outra sociedade se as condições acordadas entre ambas fossem as que teriam sido acordadas entre sociedades independentes. Em contrapartida, a prática das autoridades fiscais belgas que consiste em efetuar um ajustamento negativo unilateral, sem que seja necessário demonstrar que os lucros a ajustar foram incluídos nos lucros de outra sociedade e que são lucros que teriam sido realizados por essa outra sociedade se as transações em causa tivessem sido realizadas entre sociedades independentes, não está prevista no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92.

116    Com efeito, contrariamente ao que sustenta o Reino da Bélgica e como foi confirmado pelo Tribunal de Justiça no acórdão proferido em sede de recurso, ainda que as decisões fiscais antecipadas invocassem formalmente o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, o regime de isenção dos lucros excedentários, qualificado pela Comissão de regime de auxílios de Estado, assentava na prática administrativa constante das autoridades fiscais belgas. Ora, como acima se observa no n.o 115, esta prática diferia do que estava previsto no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92.

117    Por conseguinte, a Comissão considerou corretamente que a isenção em matéria de lucros excedentários, conforme foi efetuada pelas autoridades fiscais belgas, constituía uma derrogação ao sistema de referência que tinha adotado, a saber, o sistema de direito comum do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica, que incluía, nomeadamente, o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, como acima se refere no n.o 64.

2)      Quanto à existência de uma diferenciação entre operadores económicos que se encontram numa situação comparável devido à derrogação do sistema de referência

118    No que se refere à constatação da Comissão segundo a qual o regime em causa introduziu uma diferenciação entre os beneficiários das isenções e os outros operadores que se encontram numa situação comparável, importa salientar que a Comissão apresentou, nos considerandos 138 a 140 da decisão impugnada, três fundamentos alternativos para sustentar a sua conclusão, que importa examinar sucessivamente para efeitos de exaustividade.

i)      Quanto ao tratamento diferenciado dos beneficiários integrados num grupo multinacional de empresas

119    No considerando 138 da decisão impugnada, a Comissão afirmou que o regime era seletivo porque estava acessível apenas às entidades que fazem parte de um grupo multinacional de empresas.

120    É certo que o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 é aplicável a sociedades integradas num grupo multinacional. Todavia, como alega o Reino da Bélgica, a finalidade do artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92 visa precisamente pôr em pé de igualdade as empresas associadas e as empresas não associadas.

121    A este respeito, como foi indicado no n.o 49, supra, importa recordar que o objetivo do sistema de direito comum do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica, como resulta do considerando 129 da decisão impugnada, é tributar todos os lucros tributáveis das entidades sujeitas ao imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica, quer sejam autónomas quer integradas num grupo multinacional de empresas. Além disso, como foi indicado no n.o 54, supra, segundo as regras normais de tributação na Bélgica, os lucros tributáveis das empresas são, essencialmente, todos os lucros realizados ou expressos na sua contabilidade ou nas suas contas anuais.

122    Em contrapartida, a isenção dos lucros excedentários aplicada pelas autoridades fiscais belgas, na medida em que derrogava o artigo 185.o, n.o 2, do CIR 92, concedia uma redução fiscal aos beneficiários em causa, pelo facto de fazerem parte de um grupo multinacional de empresas, permitindo‑lhes deduzir da sua matéria coletável uma parte dos seus lucros registados, sem que esses lucros isentos tivessem sido incluídos nos lucros de outra sociedade do grupo.

123    Existe, portanto, um tratamento diferenciado, entre as entidades integradas num grupo multinacional, que beneficiaram, ao abrigo do regime em causa, da isenção dos lucros excedentários, até ao limite de uma percentagem de isenção, calculada com base num lucro médio hipotético que não tem em conta o lucro total realizado por essas sociedades e os ajustamentos legalmente previstos, e de outras entidades, autónomas ou integradas num grupo de empresas, que teriam sido tributadas em conformidade com as regras normais de tributação das sociedades na Bélgica sobre a totalidade dos seus lucros efetivamente registados, sendo caso disso, no que respeita às entidades integradas, após aplicação do ajustamento nos termos do artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92, nas condições previstas no mesmo.

124    Assim, não se pode acusar a Comissão de ter sustentado que as entidades que fazem parte de um grupo multinacional que beneficiou da isenção dos lucros excedentários ao abrigo do regime em causa, que constitui um ajustamento que não está, enquanto tal, previsto na lei, receberam um tratamento diferenciado em relação a outras entidades na Bélgica que não beneficiaram dessa isenção, quando essas entidades se encontravam numa situação factual e jurídica comparável, à luz do objetivo do sistema de direito comum do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica, a saber, tributar todos os lucros tributáveis de todas as sociedades residentes ou ativas por intermédio de um estabelecimento estável na Bélgica.

ii)    Quanto ao tratamento diferenciado relativamente às empresas que não investiram, que não criaram emprego ou que não centralizaram atividades na Bélgica

125    No considerando 139 da decisão impugnada, a Comissão sustentou que o regime em causa era seletivo na medida em que não estava disponível às sociedades que tivessem decidido não efetuar investimentos, não criar postos de trabalho ou não centralizar atividades na Bélgica. A Comissão salientou que o artigo 20.o da Lei de 24 de dezembro de 2002 subordinava a adoção das decisões antecipadas à existência de uma situação ou de uma operação que não produziu efeitos no plano fiscal e que era necessária uma decisão antecipada para beneficiar da isenção em matéria de lucros excedentários.

126    A Comissão observou igualmente que, na amostra de decisões antecipadas de concessão de uma isenção dos lucros excedentários que analisou, todas as decisões antecipadas faziam referência a investimentos significativos, à centralização de atividades ou à criação de emprego na Bélgica. Por este motivo, considerou que a obrigação relativa à «situação nova», à qual eram submetidos os pedidos de decisões antecipadas a fim de beneficiar da isenção em matéria de lucros excedentários, dava lugar a um tratamento diferenciado dos grupos multinacionais que alteravam o seu modelo empresarial, através da criação de novas atividades na Bélgica em relação a todos os outros operadores económicos, incluindo os grupos multinacionais, que continuavam a seguir o seu modelo empresarial existente na Bélgica.

127    A este respeito, importa recordar que, nos n.os 142 a 144 do acórdão proferido em sede de recurso, o Tribunal de Justiça confirmou que a escolha de uma amostra constituída por 22 decisões antecipadas, adotadas nos anos de 2005, 2007, 2010 e 2013, era adequada e suficientemente representativa.

128    Além disso, importa salientar que o artigo 20.o da Lei de 24 de dezembro de 2002 define a decisão antecipada como o ato jurídico através do qual o Serviço Público Federal de Finanças determina, em conformidade com as disposições em vigor, como se aplica a lei a uma situação ou a uma operação específica que ainda não produziu efeitos no plano fiscal. Por outro lado, o artigo 22.o desta mesma lei precisa que uma decisão antecipada não pode ser concedida, nomeadamente, quando o pedido diz respeito a situações ou a operações idênticas às que já produziram efeitos no plano fiscal no que respeita ao requerente.

129    É certo que da leitura das disposições indicadas no n.o 128, supra, não se pode deduzir que a realização de investimentos, a criação de emprego ou a centralização de atividades na Bélgica constituem requisitos explicitamente exigidos para a obtenção de uma decisão antecipada.

130    Todavia, resulta da amostra das decisões antecipadas analisada pela Comissão na decisão impugnada que essas decisões foram efetivamente concedidas na sequência de propostas dos requerentes de realizarem investimentos na Bélgica, de aí recolocarem determinadas funções ou de aí criarem um certo número de postos de trabalho. Com efeito, os três exemplos descritos na nota de rodapé n.o 80 da decisão impugnada, nos quais os requerentes das decisões antecipadas em questão descreveram os seus planos de investimentos e de recentralização de atividades na Bélgica, revelam que, na prática, o requisito para a adoção de uma decisão antecipada, relativa à existência de uma situação que não produziu efeitos fiscais, foi preenchido por investimentos, pela centralização de atividades ou pela criação de emprego na Bélgica.

131    A este respeito, importa recordar que, no caso em apreço, foi precisamente a prática administrativa das autoridades fiscais belgas, que consiste em isentar os lucros através de decisões antecipadas, que foi considerada derrogatória do previsto no artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92. Ora, por força das referidas decisões antecipadas, os seus beneficiários obtiveram uma vantagem que consistia na redução da sua matéria coletável, devido à isenção dos lucros ditos «excedentários». Em contrapartida, as entidades que não procederam a uma alteração do seu modelo de empresa, a fim de criar situações fiscais novas que, à luz de tal prática, consistiam sistematicamente em investimentos, na centralização de atividades ou na criação de emprego na Bélgica, e, portanto, não tendo pedido decisão antecipada, foram tributadas sobre a totalidade dos seus lucros tributáveis. Por conseguinte, o regime em causa deu lugar a um tratamento diferenciado de sociedades que se encontram numa situação factual e jurídica comparável, à luz do objetivo do sistema de direito comum do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica.

132    Nestas circunstâncias, a Comissão não pode ser acusada de ter sustentado, no considerando 139 da decisão impugnada, que o sistema em causa era seletivo porque não estava disponível às sociedades que tinham decidido não efetuar investimentos na Bélgica, não descentralizar atividades e não criar postos de trabalho nesse país.

iii) Quanto ao tratamento diferenciado em relação às empresas que fazem parte de um grupo de pequena dimensão

133    No caso em apreço, a Comissão sustentou, no considerando 140 da decisão impugnada, que o regime em causa era seletivo na medida em que só as entidades belgas que fazem parte de um grupo multinacional de grande dimensão ou de média dimensão podiam efetivamente beneficiar da isenção em matéria de lucros excedentários.

134    Com efeito, no considerando 140 da decisão impugnada, a Comissão indicou que apenas as entidades pertencentes a um grupo multinacional suficientemente grande eram incentivadas a obter uma decisão antecipada, uma vez que só no seio de grandes grupos de empresas é que podiam ser gerados lucros significativos advindos de sinergias, economias de escala e outros benefícios, que justificasse o pedido de decisão antecipada. Além disso, a Comissão observou que o processo de obtenção tal decisão requer um pedido detalhado apresentando a situação nova que justificava a isenção, bem como estudos sobre os lucros excedentários, o que seria mais difícil para os pequenos grupos de sociedades do que para os grandes.

135    A este respeito, não é contestado que, na amostra de 22 decisões antecipadas ao abrigo do regime em causa examinado pela Comissão, conforme descrito no considerando 65 da decisão impugnada e que foi qualificado de adequado e de representativo nos n.os 142 a 144 do acórdão proferido em sede de recurso, nenhuma dessas decisões dizia respeito a entidades pertencentes a grupos de empresas de pequena dimensão.

136    Além disso, como é indicado no considerando 66 da decisão impugnada, não é contestado que, durante o procedimento administrativo, na sequência dessa conclusão pela Comissão com base na amostra de 22 decisões antecipadas e em resposta a um pedido apresentado pela mesma a este respeito, o Reino da Bélgica não conseguiu sustentar a sua alegação de que a isenção também tinha sido concedida a empresas pertencentes a grupos de empresas de pequena dimensão.

137    Portanto, à luz da prática administrativa visada pela Comissão, foram as empresas que fazem parte de grupos de grande e média dimensão que invocaram o regime de isenção em matéria de lucros excedentários, com exclusão das empresas que fazem parte de um grupo de empresas de pequena dimensão.

138    Esta conclusão não é suscetível de ser posta em causa pelos argumentos do Reino da Bélgica. Com efeito, contrariamente ao que sustenta o Reino da Bélgica, resulta da jurisprudência que o facto de só um operador ter invocado uma medida estatal não basta para demonstrar o caráter seletivo dessa medida, uma vez que tal circunstância pode resultar nomeadamente da falta de interesse por parte de qualquer outro operador (v., neste sentido, Acórdão de 4 de junho de 2015, Comissão/MOL, C‑15/14 P, EU:C:2015:362, n.o 91). Ora, resulta das circunstâncias do caso em apreço que foi precisamente com base numa amostra adequada e representativa que a Comissão concluiu que as decisões antecipadas tinham sido sistematicamente adotadas em relação a empresas que faziam parte de um grupo de grande ou de média dimensão.

139    Nestas circunstâncias, não se pode criticar a Comissão por ter sustentado, no considerando 140 da decisão impugnada, que o sistema em causa era seletivo porque não estava disponível às empresas que fazem parte de um grupo de pequena dimensão.

140    Em todo o caso, mesmo admitindo que a Comissão tivesse adotado, erradamente, tal fundamento relativo ao tratamento diferenciado relativamente às empresas que fazem parte de um grupo de pequena dimensão, isso não afetaria a validade dos outros dois fundamentos apresentados pela Comissão e examinados, respetivamente, nos n.os 119 a 124 e 125 a 132, supra.

3)      Conclusão quanto ao raciocínio da Comissão a título principal

141    Tendo em conta o que precede, a Comissão não considerou erradamente, no termo do seu raciocínio a título principal, por um lado, que o regime de isenção em matéria de lucros excedentários derrogava o sistema comum do imposto sobre as sociedades na Bélgica. Por outro, a Comissão não considerou erradamente que o regime em questão não era acessível a todas as entidades que se encontrassem numa situação jurídica e factual semelhante, à luz do objetivo do sistema do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica, que era tributar os lucros de todas as sociedades sujeitas a imposto na Bélgica.

142    Nestas circunstâncias, não é necessário examinar o mérito dos argumentos do Reino da Bélgica contra o raciocínio subsidiário sobre a seletividade, desenvolvido pela Comissão no ponto 6.3.2.2 da decisão impugnada.

d)      Quanto à existência de uma justificação baseada na natureza e na economia geral do sistema fiscal belga

143    O Reino da Bélgica alega, em substância, que o sistema geral do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas na Bélgica tem por objetivo a tributação dos lucros de todas as sociedades sujeitas a imposto na Bélgica, com exclusão dos lucros que não estão abrangidos pela sua competência. A isenção destes últimos visa, portanto, evitar uma potencial dupla tributação. Por conseguinte, admitindo que o sistema de isenção em matéria de lucros excedentários seja seletivo, o mesmo seria justificado pela natureza e pela economia geral do sistema fiscal.

144    Há que observar que, nos considerandos 173 a 181 da decisão impugnada, a Comissão concluiu, em substância, que o Reino da Bélgica não tinha conseguido demonstrar que as medidas em causa prosseguiam realmente o objetivo de evitar a dupla tributação. Segundo a Comissão, na medida em que o artigo 185.o, n.o 2, alínea b), do CIR 92 previa um ajustamento negativo dos lucros de uma sociedade se estes tivessem sido incluídos nos lucros de outra sociedade, a isenção aplicada pelas autoridades fiscais belgas, sem que fosse necessário provar que os lucros excedentários a isentar teriam sido incluídos na base tributável de outra sociedade, não se pode justificar pela economia geral do sistema. Assim, a Comissão concluiu daí que a isenção unilateral em causa não respondia de forma necessária e proporcionada a situações de dupla tributação.

145    A este respeito, importa salientar que, de acordo com a jurisprudência, uma medida que constitua uma exceção à aplicação do sistema fiscal geral pode ser justificada se o Estado‑Membro em causa conseguir demonstrar que esta medida resulta diretamente dos princípios fundadores ou diretores do seu sistema fiscal. A este respeito, é necessário distinguir entre, por um lado, os objetivos de um dado regime fiscal, que lhe são exteriores, e, por outro, os mecanismos inerentes ao próprio sistema fiscal, que são necessários para a realização de tais objetivos. Assim, as isenções fiscais que resultem de um objetivo alheio ao sistema fiscal no qual se inscrevem não podem eludir as exigências que resultam do artigo 107.o, n.o 1, TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2011, Paint Graphos e o., C‑78/08 a C‑80/08, EU:C:2011:550, n.os 64, 65, 69 e 70).

146    No caso em apreço, foi constatado, nomeadamente no n.o 115, supra, que a isenção em matéria de lucros excedentários aplicada pelas autoridades fiscais belgas não estava sujeita ao requisito de provar que estes tinham sido incluídos nos lucros de outra sociedade. Também não era exigida prova de que esses lucros excedentários tivessem sido efetivamente objeto de uma tributação noutro país. Assim, não se pode deixar de observar que as medidas em causa não estavam condicionadas pela existência de situações de dupla tributação real ou possível.

147    Nestas circunstâncias, não se pode sustentar que a isenção em matéria de lucros excedentários, conforme foi aplicada pelas autoridades fiscais belgas, se destinava a evitar a dupla tributação, real ou possível. Por conseguinte, a Comissão concluiu corretamente que essa isenção não respondia de forma necessária e proporcionada a situações de dupla tributação.

148    Esta conclusão não pode ser posta em causa pelos argumentos do Reino da Bélgica segundo os quais a economia geral do sistema fiscal belga permite tributar unicamente os lucros abrangidos pela sua competência. Com efeito, como foi referido nos n.os 114 a 117, supra, a isenção em matéria de lucros excedentários pelas autoridades fiscais belgas não estava prevista no sistema de direito comum do imposto sobre o rendimento das sociedades na Bélgica. Por conseguinte, apesar da sua isenção ao abrigo do regime em causa, esses lucros eram, essencialmente, tributáveis na Bélgica, por força do referido sistema, e não podem, portanto, ser considerados como não abrangidos pela competência fiscal do Reino da Bélgica.

149    Tendo em conta o que precede, há que rejeitar os argumentos do Reino da Bélgica relativos à alegada apreciação errada da Comissão sobre a inexistência de uma justificação baseada na natureza e na economia geral do sistema fiscal belga, bem como todos os argumentos do Reino da Bélgica que contestam a conclusão da Comissão que declara que o regime em causa era suscetível de conceder uma vantagem seletiva aos seus beneficiários.

3.      Quanto à existência de distorção da concorrência

150    Com a presente parte, o Reino da Bélgica pretende obter a declaração de que a Comissão considerou erradamente que existia uma distorção da concorrência devido às medidas em causa.

151    Nos considerandos 187 e 188 da decisão impugnada, a Comissão sublinhou que o regime em causa conferia uma vantagem seletiva aos seus beneficiários, bem como aos grupos multinacionais a que pertenciam e que essa vantagem tinha conduzido a uma redução dos encargos que normalmente deviam ser suportados pelos beneficiários no âmbito das suas atividades. Por conseguinte, a Comissão considerou que o regime em causa constituía um auxílio ao funcionamento para os seus beneficiários e para os grupos multinacionais a que estes pertenciam. Assim, a Comissão concluiu que o regime em causa falseava ou ameaçava falsear a concorrência e era suscetível de afetar as trocas comerciais na União.

152    A este respeito, importa recordar a jurisprudência sobre o requisito relativo à distorção da concorrência, segundo o qual os auxílios que visam libertar uma empresa dos custos que devia normalmente suportar no âmbito da sua gestão corrente ou das suas atividades normais falseiam, em princípio, as condições de concorrência (Acórdão de 26 de outubro de 2016, Orange/Comissão, C‑211/15 P, EU:C:2016:798, n.o 66).

153    Em especial, resulta da jurisprudência que qualquer auxílio concedido a uma empresa que exerce a sua atividade no mercado interno pode causar distorções da concorrência e afetar as trocas entre Estados‑Membros (v. Acórdão de 22 de abril de 2016, Irlanda e Aughinish Alumina/Comissão, T‑50/06 RENV II e T‑69/06 RENV II, EU:T:2016:227, n.o 113 e jurisprudência referida).

154    Em primeiro lugar, no caso em apreço, como foi constatado nos n.os 100 e 101, supra, a isenção em matéria de lucros excedentários das sociedades beneficiárias de decisões antecipadas, prevista pelas medidas em causa, constituía uma vantagem que colocava essas sociedades numa posição económica mais favorável do que a que teriam se não existisse uma decisão antecipada.

155    Em segundo lugar, foi constatado, no n.o 141, supra, que, uma vez que essas medidas derrogavam o sistema de referência, representavam uma vantagem disponível unicamente aos beneficiários das decisões antecipadas e, portanto, eram seletivas.

156    Em terceiro lugar, deve constatar‑se que os lucros excedentários cuja isenção é objeto das medidas em causa foram gerados por entidades belgas que fazem parte de grupos multinacionais que efetuam transações com outras sociedades do grupo estabelecidas noutros Estados. Por conseguinte, no caso em apreço, os auxílios em questão criaram necessariamente uma distorção da concorrência no mercado interno. Com efeito, o sistema de isenção dos lucros excedentários era suscetível de alterar as atividades destas entidades belgas e das sociedades dos grupos de empresas em causa, nomeadamente em termos de investimentos, de localização de atividades e de criação de emprego, bem como de fluxos de transações intragrupo. Ora, dentro desses grupos de empresas, essas decisões eram suscetíveis de ser tomadas para que a entidade belga realizasse lucros que seriam, em seguida, isentos na Bélgica. Essa dinâmica era, portanto, suscetível de falsear a concorrência no mercado interno.

157    Nestas circunstâncias, a Comissão não pode ser acusada de ter considerado que os auxílios concedidos pelo regime em causa eram suscetíveis de afetar as trocas comerciais entre os Estados‑Membros e de falsear ou ameaçar falsear a concorrência.

158    Por conseguinte, há que rejeitar os argumentos do Reino da Bélgica, invocados no âmbito da quarta parte do terceiro fundamento, relativos à inexistência de uma distorção da concorrência no caso em apreço.

4.      Conclusão sobre o fundamento relativo à violação do artigo 107.o TFUE e a um erro manifesto de apreciação do regime em causa enquanto medida de auxílio de Estado.

159    Resulta das constatações feitas nos n.os 32, 81, 106, 141, 149 e 157, supra, que, na decisão impugnada, a Comissão não cometeu nenhum erro de direito nem um erro manifesto de apreciação quando concluiu que o regime em causa era financiado através de recursos estatais, que o sistema de referência era o sistema de direito comum de tributação dos lucros das sociedades e que não incluía a isenção em matéria de lucros excedentários aplicada pelas autoridades fiscais belgas, que o regime em causa concedia aos seus beneficiários uma vantagem seletiva, a qual não era justificada pela natureza e pela economia geral do sistema fiscal belga, e que o referido regime tinha criado uma distorção da concorrência.

160    Por conseguinte, há que julgar improcedente o fundamento relativo à violação do artigo 107.o TFUE e a um erro manifesto de apreciação, na medida em que a Comissão considerou que o sistema dos lucros excedentários constituía uma medida de auxílio de Estado.

B.      Quanto ao fundamento relativo a um erro de apreciação cometido pela Comissão quanto à identificação dos beneficiários dos alegados auxílios

161    O Reino da Bélgica alega que a Comissão cometeu um erro de apreciação quando identificou como beneficiárias do alegado regime de auxílios tanto as entidades belgas que obtiveram uma decisão antecipada como os grupos multinacionais a que pertenciam.

162    A Comissão considera que o fundamento invocado pelo Reino da Bélgica deve ser julgado improcedente.

163    No caso em apreço, a Comissão indicou, no considerando 183 da decisão impugnada, que as entidades belgas que obtiveram uma decisão antecipada que lhes permitia deduzir os lucros considerados excedentários, para efeitos da determinação do seu lucro tributável, eram as beneficiárias dos auxílios de Estado em causa.

164    Além disso, no considerando 184 da decisão impugnada, a Comissão recordou que, em matéria de auxílios de Estado, entidades juridicamente distintas podem ser consideradas como constituindo uma única unidade económica, que era suscetível de ser considerada beneficiária do auxílio. Considerou, assim, que, no caso em apreço, as entidades belgas que beneficiavam dos auxílios em causa tinham operado como empresários principais em benefício de outras entidades no seio dos seus grupos de empresas que frequentemente controlavam. Salientou igualmente que as entidades belgas eram, por sua vez, controladas pela entidade que gere o grupo de empresas no seu conjunto. Assim, a Comissão deduziu daí que o grupo multinacional no seu conjunto podia ser considerado o beneficiário da medida de auxílio.

165    Por outro lado, no considerando 185 da decisão impugnada, a Comissão sublinhou que foi o grupo no seu conjunto, independentemente do facto de ser organizado em diferentes entidades jurídicas, que decidiu centralizar certas atividades na Bélgica e de aí efetuar os investimentos necessários para beneficiar das decisões antecipadas.

166    Assim, no considerando 186 da decisão impugnada, concluiu daí que, além das entidades belgas admitidas a beneficiar do regime em causa, os grupos multinacionais a que pertenciam essas entidades deviam ser considerados beneficiários do regime de auxílios na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

167    Antes de mais, há que recordar que, numa decisão que incide sobre um regime de auxílios, a Comissão não está obrigada a efetuar uma análise do auxílio concedido em cada caso individual com base nesse regime. Apenas na fase da recuperação dos auxílios será necessário verificar a situação individual de cada empresa em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 7 de março de 2002, Itália/Comissão, C‑310/99, EU:C:2002:143, n.os 89 e 91; de 9 de junho de 2011, Comitato «Venezia vuole vivere» e o./Comissão, C‑71/09 P, C‑73/09 P e C‑76/09 P, EU:C:2011:368, n.o 63, e de 13 de junho de 2019, Copebi, C‑505/18, EU:C:2019:500, n.os 28 a 33).

168    Além disso, segundo jurisprudência assente, a Comissão dispõe de um amplo poder de apreciação quando é chamada a determinar, no âmbito da aplicação das disposições relativas aos auxílios de Estado, se, para efeitos da aplicação destas, designadamente, as entidades jurídicas distintas constituem uma unidade económica (v., neste sentido, Acórdãos de 16 de dezembro de 2010, AceaElectrabel Produzione/Comissão, C‑480/09 P, EU:C:2010:787, n.o 63, e de 25 de junho de 1998, British Airways e o./Comissão, T‑371/94 e T‑394/94, EU:T:1998:140, n.o 314).

169    Assim, foi declarado que a Comissão podia considerar, para efeitos da apreciação dos beneficiários de um auxílio de Estado e das consequências a retirar de uma decisão que ordena a sua recuperação, que existia uma unidade económica entre várias entidades jurídicas distintas, nomeadamente quando estas estavam ligadas por relações de controlo (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de novembro de 1984, Intermills/Comissão, 323/82, EU:C:1984:345, n.o 11, e de 16 de dezembro de 2010, AceaElectrabel Produzione/Comissão, C‑480/09 P, EU:C:2010:787, n.o 64).

170    Nos considerandos 184 a 186 da decisão impugnada, a Comissão salientou o facto de, no âmbito do regime em causa, existirem ligações de controlo entre a entidade belga e as outras entidades do grupo a que pertenciam. Assim, por um lado, a Comissão salientou o facto de que entidade belga exercia funções centrais para outras entidades do grupo, que eram frequentemente controladas pela referida entidade. Por outro, a Comissão sublinhou o facto de as decisões no seio dos grupos multinacionais de empresas quanto às estruturas que deram lugar às isenções em questão, a saber, a centralização de atividades na Bélgica ou os investimentos efetuados na Bélgica, terem sido tomadas por entidades dentro do grupo, necessariamente por entidades que exerciam o seu controlo. Além disso, resulta da descrição do regime dos lucros excedentários efetuada pelo Reino da Bélgica, conforme é reproduzida nomeadamente no considerando 14 da decisão impugnada, que os lucros excedentários isentos deviam ser gerados por sinergias e economias de escala pelo facto de as entidades belgas em questão pertencerem a um grupo multinacional de empresas.

171    Daqui resulta que, na decisão impugnada, a Comissão salientou elementos que lhe permitem concluir pela existência, em princípio, de relações de controlo no seio dos grupos multinacionais de empresas a que pertenciam as entidades belgas que obtiveram decisões antecipadas. Tendo em conta esses elementos do regime em causa, não se pode concluir que a Comissão excedeu a sua margem de apreciação quando considerou que os referidos grupos constituíam uma unidade económica com essas entidades, beneficiando de auxílios de Estado ao abrigo desse regime, na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

172    Tendo em conta as considerações que precedem, há que julgar improcedente o fundamento relativo ao erro de apreciação cometido pela Comissão quanto à identificação dos beneficiários dos auxílios.

C.      Quanto ao fundamento, invocado a título subsidiário, relativo à violação do princípio geral da legalidade e do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589, na medida em que a Comissão ordenou a recuperação dos alegados auxílios

173    O Reino da Bélgica sublinha que o princípio da segurança jurídica implica que a sua aplicação seja conjugada com a do princípio da legalidade. A este respeito, sustenta que a recuperação ordenada pela decisão impugnada não assenta em nenhuma base legal e, portanto, viola o princípio da legalidade e o artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589.

174    O Reino da Bélgica alega, em substância, por um lado, uma falta de fundamentação da decisão impugnada no que respeita à identificação dos grupos multinacionais a que pertencem as entidades belgas enquanto beneficiários e à determinação dos montantes a recuperar e, por outro, a violação dos princípios da segurança jurídica e da legalidade devido à recuperação ordenada junto dos referidos grupos.

175    Quanto às alegações relativas à falta de fundamentação, importa recordar a jurisprudência referida no n.o 167, supra, segundo a qual, no âmbito de decisões relativas a regimes de auxílios, a Comissão não é obrigada a efetuar uma análise do auxílio concedido em cada caso individual com base nesse regime. Apenas na fase da recuperação dos auxílios será necessário que os Estados‑Membros verifiquem a situação individual de cada empresa em causa. No entanto, a decisão da Comissão deve ser suficientemente fundamentada para permitir a sua aplicação pelas autoridades nacionais.

176    No caso em apreço, como foi exposto no n.o 163, supra, importa salientar que, no considerando 183 da decisão impugnada, a Comissão identificou os beneficiários dos auxílios em causa como entidades belgas que deduziram lucros excedentários dos seus lucros tributáveis ao abrigo de uma decisão antecipada. Além disso, como foi exposto nos n.os 164 a 166, supra, nos considerandos 184 a 186 da decisão impugnada, a Comissão indicou as razões pelas quais considerava que existia uma unidade económica formada por essas entidades belgas e pelas sociedades a elas ligadas no seio dos grupos a que pertenciam, à luz da jurisprudência.

177    Por outro lado, no que respeita aos montantes a recuperar, deve constatar‑se que, nos considerandos 207 a 211 da decisão impugnada, a Comissão forneceu explicações relativas ao método de cálculo dos auxílios a recuperar. Assim, a Comissão indicou que era necessário calcular o montante do imposto que deveria ter sido pago se a isenção em matéria de lucros excedentários não tivesse sido concedida, tendo em conta o montante do imposto poupado em consequência de todas as decisões antecipadas adotadas a favor do beneficiário em causa e os juros acumulados sobre esse montante, calculados a partir da data de concessão do auxílio, a saber, a data em que o montante poupado deveria ter sido pago, relativamente a cada exercício fiscal, na ausência de decisão antecipada. Além disso, estavam incluídas precisões para efetuar os ajustamentos correspondentes às diferentes deduções aplicáveis. Por último, era aí referido o facto de o montante a recuperar poder ainda ser precisado, posteriormente, nas trocas comerciais entre o Reino da Bélgica e a Comissão.

178    Daqui decorre que a Comissão forneceu explicações que permitem ao Reino da Bélgica verificar a situação individual de cada empresa em causa no que respeita, por um lado, aos beneficiários junto dos quais os auxílios deviam ser recuperados e, por outro, ao montante a recuperar. Além disso, à luz das alegações formuladas no âmbito do presente recurso e das considerações precedentes, há que constatar que a Comissão forneceu explicações suficientes para permitir ao Reino da Bélgica conhecer o raciocínio que justifica a decisão da Comissão e ao Tribunal Geral exercer a sua fiscalização.

179    Quanto à alegada violação dos princípios da segurança jurídica e da legalidade, o Reino da Bélgica baseia‑se no facto de a recuperação ter sido ordenada junto dos grupos multinacionais a que pertenciam as entidades belgas que obtiveram uma decisão antecipada, ao passo que só as referidas entidades belgas poderiam beneficiar das isenções em questão.

180    A este respeito, basta recordar as considerações expostas nos n.os 163 a 170, supra, e a conclusão acima efetuada no n.o 171, segundo a qual a Comissão considerou corretamente que os grupos multinacionais a que pertenciam as entidades belgas constituíam uma unidade económica juntamente com estas últimas que beneficiavam de auxílios de Estado ao abrigo desse regime na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE.

181    À luz das considerações precedentes, há que julgar improcedente o quinto fundamento invocado pelo Reino da Bélgica, relativo à violação do princípio geral da legalidade e do artigo 16.o, n.o 1, do Regulamento 2015/1589, na medida em que a Comissão ordenou a recuperação dos auxílios concedidos pelo regime em causa.

182    Uma vez que nenhum dos fundamentos invocados pelo Reino da Bélgica é procedente, há que negar provimento ao recurso na sua totalidade.

IV.    Quanto às despesas

183    Em conformidade com o disposto no artigo 219.o do Regulamento de Processo, nas decisões do Tribunal Geral proferidas após anulação e remessa, este Tribunal decide das despesas relativas, por um lado, aos processos que nele correram e, por outro, ao processo de recurso para o Tribunal de Justiça. Na medida em que, no acórdão proferido em sede de recurso, o Tribunal de Justiça reservou para final a decisão quanto às despesas, cabe ao Tribunal Geral decidir, igualmente, das despesas relativas ao processo de recurso.

184    Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o Reino da Bélgica sido vencido, há que condená‑lo nas despesas efetuadas pela Comissão no processo inicial no Tribunal Geral no processo T‑131/16 e no presente processo de recurso no processo T‑131/16 RENV, em conformidade com o pedido da Comissão.

185    No que se refere às despesas relativas ao processo de recurso, tendo em conta o facto de que este tinha por objeto o acórdão inicial nos processos apensos T‑131/16 e T‑263/16, há que condenar o Reino da Bélgica a suportar metade das despesas efetuadas pela Comissão no âmbito do presente recurso no processo C‑337/19 P.

186    Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo, os Estados‑Membros que intervenham no processo suportam as suas despesas. Por conseguinte, a Irlanda suportará as suas próprias despesas.

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Segunda Secção Alargada)

decide:

1)      É negado provimento ao recurso.

2)      O Reino da Bélgica suportará as suas próprias despesas, bem como as despesas efetuadas pela Comissão Europeia, incluindo as efetuadas no âmbito do processo inicial no Tribunal Geral no processo T131/16, as efetuadas no âmbito do presente processo de reenvio no processo T131/16 RENV e metade das efetuadas no âmbito do processo de recurso no processo C337/19 P.

3)      A Irlanda suportará as suas próprias despesas.

Marcoulli

Frimodt Nielsen

Tomljenović

Norkus

 

      Valasidis

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 20 de setembro de 2023.

Assinaturas


Índice



*      Língua do processo: inglês.