Language of document : ECLI:EU:C:2024:537

CONCLUSÕES DA ADVOGADA‑GERAL

LAILA MEDINA

apresentadas em 20 de junho de 2024 (1)

Processos apensos C258/23 a C260/23

IMI — Imagens Médicas Integradas, S.A. (C258/23),

Synlabhealth II, S.A. (C259/23),

SIBS Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A.,

SIBS, Cartões — Produção e Processamento de Cartões, S.A.,

SIBS Processos — Serviços Interbancários de Processamento, S.A.,

SIBS International, S.A.,

SIBS Pagamentos, S.A.,

SIBS Gest, S.A.,

SIBS Forward Payment Solutions, S.A.,

SIBS MB, S.A. (C260/23),

contra

Autoridade da Concorrência

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (Portugal)]

«Reenvio prejudicial — Infração às regras da concorrência — Aplicação dos artigos 101.° e 102.° TFUE por uma autoridade nacional da concorrência — Apreensão de mensagens de correio eletrónico — Mandado emitido pelo Ministério Público — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 7.° — Ingerência no direito ao respeito pelas comunicações»






I.      Introdução

1.        Nos seus três pedidos de decisão prejudicial, objeto dos presentes processos apensos, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (Portugal) submete ao Tribunal de Justiça três questões prejudiciais relativas à interpretação do artigo 7.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2.        Estas questões foram submetidas no âmbito de três processos que opõem a IMI — Imagens Médicas Integradas, S.A. (a seguir «IMI»), várias sociedades do grupo SIBS (a seguir, coletivamente, «SIBS») e a Synlabhealth II, S.A. (a seguir «Synlabhealth») (a seguir, coletivamente, «recorrentes nos processos principais»), à Autoridade da Concorrência (Portugal, a seguir «AdC»), relativamente à legalidade da apreensão de mensagens de correio eletrónico de colaboradores das recorrentes nos processos principais, efetuada quando de buscas, conduzidas pela AdC, nas instalações das recorrentes nos processos principais no quadro de investigações sobre alegadas infrações às regras portuguesas da concorrência e, consoante o caso, ao artigo 101.° ou 102.° TFUE.

II.    Quadro jurídico

A.      Direito da União

1.      Carta

3.        Nos termos do artigo 7.° da Carta, «[t]odas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações».

4.        O artigo 52.°, n.os 1 e 3, da Carta dispõe:

«1.      Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros.

[…]

3.      Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais [a seguir “CEDH”], o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.»

5.        O artigo 53.° da Carta, sob a epígrafe «Nível de proteção», prevê que «[n]enhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, nos respetivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o direito internacional e as Convenções internacionais em que são Partes a União ou todos os Estados‑Membros, nomeadamente a [CEDH], bem como pelas Constituições dos Estados‑Membros».

2.      Diretiva (UE) 2019/1

6.        A Diretiva (UE) 2019/1 (2) tem por objetivo enunciar certas regras para assegurar que as autoridades nacionais da concorrência dispõem das garantias de independência, dos meios e da competência de execução e de aplicação de coimas necessárias à aplicação efetiva dos artigos 101.° e 102. TFUE. Nos termos do seu considerando 31, «[a]s autoridades [...] nacionais da concorrência deverão poder realizar todas as inspeções necessárias às instalações das empresas e associações de empresas se [...] estiverem em condições de demonstrar que existem motivos razoáveis para suspeitar de infração aos artigos 101.° ou 102.° [TFUE]. A presente diretiva não deverá impedir os Estados‑Membros de requererem a autorização prévia de uma autoridade judicial nacional para procederem a essas inspeções.» O considerando 32 desta diretiva enuncia, in fine, que «[a] competência para examinar livros ou outros documentos deverá ser extensiva a todas as formas de correspondência, incluindo mensagens eletrónicas, independentemente de parecerem não ter sido lidas ou de terem sido apagadas». O considerando 73 da referida diretiva explana que «[a] prova é um elemento importante para a aplicação dos artigos 101.° e 102.° [TFUE]» e que «as [autoridades nacionais da concorrência] deverão poder considerar as mensagens eletrónicas como prova relevante, independentemente de essas mensagens parecerem não ter sido lidas ou de terem sido apagadas».

7.        O artigo 6.° da Diretiva 2019/1, sob a epígrafe «Competência para inspecionar instalações de empresa», prevê, no seu n.° 1, que os Estados‑Membros asseguram que as autoridades nacionais da concorrência estão em condições de realizar todas as inspeções necessárias sem aviso prévio nas empresas e associações de empresas, para efeitos da aplicação dos artigos 101.° e 102.° [TFUE] e que dispõem, nomeadamente, de competência para «[i]nspecionar os livros e outros registos relativos à empresa, independentemente do suporte em que estiverem armazenados, tendo o direito de aceder a quaisquer informações acessíveis à entidade inspecionada» e de «[t]irar ou obter sob qualquer forma cópias ou extratos dos documentos controlados». O n.° 3 desse artigo especifica que o mesmo «é aplicável sem prejuízo dos requisitos previstos no direito nacional para a autorização prévia por parte de uma autoridade judicial nacional à realização de tais inspeções».

8.        O artigo 32.° dessa diretiva, sob a epígrafe «Meios de prova admissíveis perante as autoridades nacionais da concorrência», prevê que «[o]s Estados‑Membros garantem que os meios de prova admissíveis perante uma autoridade nacional da concorrência incluem [...] mensagens eletrónicas».

B.      Direito português

9.        O artigo 34.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa (a seguir «CRP»), sob a epígrafe «Inviolabilidade do domicílio e da correspondência», enuncia que «[o] domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis». O n.° 4 deste artigo prevê que «[é] proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal».

10.      A Lei n.° 19/2012, de 8 de maio (novo regime jurídico da Concorrência) (a seguir «Lei da Concorrência»), conforme aplicável até 15 de setembro de 2022, previa, no seu artigo 18.°, n.° 1, alínea c), que no exercício de poderes sancionatórios, a AdC podia «[p]roceder, nas instalações, terrenos ou meios de transporte de empresas ou de associações de empresas, à busca, exame, recolha e apreensão de extratos da escrita e demais documentação, independentemente do seu suporte, sempre que tais diligências se mostrem necessárias à obtenção de prova». Nos termos do n.° 2 desse artigo, estas diligências dependiam de «decisão da autoridade judiciária competente» (3).

11.      O artigo 20.°, n.° 1, da referida lei dispõe que as apreensões de documentos, independentemente da sua natureza ou do seu suporte, são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.

12.      O artigo 21.° da Lei da Concorrência, conforme aplicável até 15 de setembro de 2022, previa que «[é] competente para autorizar as diligências previstas nas alíneas c) e d) do n.° 1 do artigo 18.° e [no artigo] [...] 20.° o Ministério Público ou, quando expressamente previsto, o juiz de instrução, ambos da área da sede da [AdC]» (4).

13.      A Lei da Concorrência foi alterada, a partir de 16 de setembro de 2022, pela Lei n.° 17/2022 de 17 de agosto, que transpõe a Diretiva 2019/1. Esta lei aditou um n.° 4 ao artigo 18.° da Lei da Concorrência, nos termos do qual da recusa, por parte da autoridade judiciária competente, em conceder à AdC a autorização referida nesse artigo cabe «a) [n]o caso de decisão do Ministério Público, reclamação para o superior hierárquico imediato; b) [n]o caso de decisão do juiz de instrução, recurso para o tribunal da relação competente, que decide em última instância».

14.      O artigo 21.° da Lei da Concorrência, conforme alterada pela Lei n.° 17/2022 de 17 de agosto, prevê que «[é] competente para autorizar as diligências previstas nas alíneas a) a d) do n.° 1 do artigo 18.° e nos artigos 19.° e 20.° a autoridade judiciária competente da área da sede da AdC».

III. Litígio nos processos principais, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

15.      Resulta das decisões de reenvio que, em cada uma das investigações relativas às recorrentes nos processos principais (5), a AdC julgou necessário proceder a «diligências de busca, exame, recolha e apreensão de prova». Para tanto, peticionou à autoridade judiciária competente, in casu, o Ministério Público, que autorizasse tais diligências. Esses pedidos foram deferidos e, em conformidade com os mandados emitidos pelo Ministério Público, foi autorizada, nomeadamente, a apreensão de «[c]ópias ou extratos da escrita e demais documentação, que se encontrem já abertos e arquivados ou circulando abertos nos serviços, designadamente mensagens de correio eletrónico e documentos internos de reporte de informação entre níveis hierárquicos distintos e de preparação de decisões a nível da política comercial das empresas, bem como atas de reuniões de direção ou de administração, quer se encontrem ou não em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, incluindo quaisquer suportes informáticos ou computadores, e exame e cópia da informação que contiverem, que estejam direta ou indiretamente relacionados com práticas restritivas da concorrência».

16.      Resulta dos autos judiciais transmitidos à Secretaria do Tribunal de Justiça que as operações de busca, recolha e apreensão decorreram nas instalações das recorrentes nos processos principais entre janeiro de 2021 e março de 2022 (6). Durante estas operações, vários milhares de ficheiros informáticos, tidos por relevantes para a investigação, foram apreendidos, na sequência da revista realizada ao correio eletrónico dos colaboradores das sociedades inspecionadas. Em cada caso, as recorrentes nos processos principais opuseram‑se a essas apreensões alegando que eram ilegais na medida em que violavam o seu direito à confidencialidade da correspondência e, de qualquer modo, na medida em que não tinham sido autorizadas pelo juiz de instrução. Em seguida, as recorrentes nos processos principais impugnaram, no órgão jurisdicional de reenvio, as decisões da AdC que indeferiam as suas oposições.

17.      Este órgão jurisdicional explana que a Lei da Concorrência exige uma autorização do juiz de instrução apenas para a apreensão de documentos em instituições bancárias, buscas domiciliárias e busca em escritório de advogado ou consultório médico. No demais, basta uma autorização do Ministério Público, enquanto autoridade judiciária. Salienta que, embora os processos principais tenham por objeto uma infração administrativa, a normação da Lei da Concorrência encontra‑se em concordância com o critério que norteia o regime penal. Assim, quando os meios de obtenção de prova são suscetíveis de ofender direitos fundamentais há lugar à intervenção do juiz de instrução, enquanto nos demais apenas é exigida a intervenção do Ministério Público, a quem compete a direção do inquérito. A questão que se coloca é, pois, como defendem as recorrentes nos processos principais, aquilatar se a simples circunstância de os documentos apreendidos pela AdC resultarem de comunicações constantes do correio eletrónico funcional dos colaboradores das empresas visadas consente a sua qualificação como «correspondência», enquanto direito fundamental, que goza de um superior nível de proteção. O órgão jurisdicional de reenvio especifica que no passado já teve ocasião de responder pela negativa a esta questão.

18.      Nestas circunstâncias, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça, em cada um dos processos principais, as seguintes questões prejudiciais (7):

«1.      Os documentos profissionais, aqui em causa, veiculados através de correio eletrónico, são “correspondência” na aceção do artigo 7.° da [Carta]?

2.      O artigo 7.° da [Carta] opõe‑se à apreensão de documentação profissional, resultante de comunicações estabelecidas entre Administradores e colaboradores de empresas através de endereços de correio eletrónico, quando esteja em causa a investigação de acordo e práticas proibidas nos termos do artigo 101.° do TFUE (ex‑artigo 81.° do TCE) [ou, no processo C‑260/23, do artigo 102.° do TFUE (ex‑artigo 82.° do TCE)]?

3.      O artigo 7.° da [Carta] opõe‑se à apreensão daquela documentação profissional, mediante prévia autorização de autoridade judiciária, in casu, o Ministério Público, a quem compete representar o Estado, defender os interesses que a lei determinar, exercer a ação penal orientado pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática, nos termos da Constituição e que atua com autonomia em relação aos demais órgãos do poder central, regional e local?»

19.      Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça, os processos C‑258/23, C‑259/23 e C‑260/23 foram apensados para efeitos das fases escrita e oral, bem como do acórdão. As partes nos processos principais, os Governos Português, Checo e Grego, bem como a Comissão, apresentaram observações escritas, nos termos do artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

IV.    Apreciação

20.      Em conformidade com o pedido do Tribunal de Justiça, as presentes conclusões tratarão unicamente da terceira questão prejudicial. No entanto, estando a resposta a esta questão logicamente subordinada às respostas a dar às duas primeiras questões, há que analisá‑las brevemente antes de abordar a terceira questão. Esta análise será precedida de algumas observações preliminares, que respeitam aos reenvios prejudiciais no seu conjunto.

A.      Observações preliminares

21.      Saliento, antes de mais, que não há dúvidas de que a Carta se aplica aos litígios nos processos principais, relativos à questão do respeito pelos direitos fundamentais quando das inspeções levadas a cabo por uma autoridade nacional da concorrência no quadro das investigações por infrações aos artigos 101.° e 102.° TFUE (8).

22.      Em seguida, impõem‑se duas notas no que se refere ao quadro jurídico dos presentes processos apensos.

23.      No que respeita, em primeiro lugar, ao quadro jurídico nacional, observo que resulta das observações escritas apresentadas pelas partes nos processos principais e pela Comissão que, através de dois acórdãos, respetivamente de 16 de março de 2023 (9) e de 26 de maio de 2023 (10), o Tribunal Constitucional (Portugal) declarou inconstitucional a regra relativa aos artigos 18.°, n.° 1, alínea c), e 20.°, n.° 1, da Lei da Concorrência, com base na qual a AdC procedia à busca e à apreensão de mensagens de correio eletrónico «abertas», ou seja, mensagens de correio eletrónico marcadas como «lidas», mediante mera autorização do Ministério Público (a seguir «os Acórdãos de 2023»). Nestes acórdãos, o Tribunal Constitucional rejeitou, por um lado, a distinção entre mensagens de correio eletrónico abertas/lidas, que constituem simples «documentos», e mensagens de correio eletrónico fechadas/não lidas, incluídas em contrapartida no conceito de «correspondência», na qual os tribunais portugueses se basearam para justificar a legalidade da apreensão pela AdC de mensagens da primeira categoria com o mero acordo do Ministério Público (11). O Tribunal Constitucional considerou que todas as mensagens de correio eletrónico, abertas ou fechadas, beneficiavam das garantias previstas no artigo 34.° da CRP, até ao momento em que são armazenadas num lugar ao qual só o seu destinatário tem acesso (12). Por outro lado, os juízes constitucionais portugueses consideraram que a revista e a apreensão de mensagens de correio eletrónico durante as inspeções conduzidas pela AdC para recolher provas no quadro de procedimentos por infrações às regras de concorrência nacionais e da União estavam abrangidas pela exceção prevista pelo artigo 34.°, n.° 4, in fine, da CRP, mas que só podiam ser autorizadas pelo juiz de instrução (13). Embora o órgão jurisdicional de reenvio não tenha mencionado os acórdãos suprarreferidos — dos quais só o primeiro é anterior à data dos presentes reenvios prejudiciais (14) —, resulta nomeadamente das observações apresentadas no Tribunal de Justiça pelas partes nos processos principais que a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional integra o quadro legal e factual que levou aquele tribunal a recorrer ao Tribunal de Justiça. Nesse contexto, observo que o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão submeteu, em abril de 2024, dois novos reenvios prejudiciais que suscitam, em substância, as mesmas questões, nos quais os Acórdãos de 2023, e as suas consequências no que respeita aos poderes de inspeção e apreensão da AdC, são expostos em detalhe (15).

24.      No que respeita, em segundo lugar, ao quadro jurídico da União, saliento que não é pacífico que a Diretiva 2019/1 se aplique a todos os processos principais. Em conformidade com o seu artigo 36.°, esta diretiva, com efeito, entrou em vigor a 3 de fevereiro de 2019 e, como resulta do seu artigo 34.°, n.° 1, os Estados‑Membros devem pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para lhe dar cumprimento até 4 de fevereiro de 2021. De qualquer modo, como exponho no resto da minha análise, a referida diretiva não é diretamente pertinente, pelo menos para a resposta a dar à terceira questão prejudicial, sobre a qual incidem as presentes conclusões.

25.      Feita esta precisão, há que tomar posição, brevemente, sobre os argumentos das recorrentes nos processos principais para contestar a admissibilidade dos reenvios prejudiciais.

26.      No processo C‑258/23, a IMI alega que, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio não trouxe ao conhecimento do Tribunal de Justiça o acórdão n.° 91/2023, o reenvio prejudicial não garante que a resposta que lhe vier a ser dada seja o mais completa e útil possível. A este respeito, saliento que o pedido de decisão prejudicial se destina a que o Tribunal de Justiça esclareça o alcance da proteção proporcionada pelo artigo 7.° da Carta contra medidas como as que estão em causa nos processos principais num contexto que resulta da aplicação do direito da União. A utilidade dessa interpretação para efeitos da solução do litígio nos processos principais não pode, então, ser posta em causa, pelo menos sem ultrapassar os limites de uma simples contestação da admissibilidade do reenvio prejudicial e sem dar início à discussão do mérito da causa.

27.      No processo C‑259/23, a Synlabhealth alega que as decisões de reenvio omitem diversos factos essenciais à compreensão do litígio (16), bem como as disposições legais aplicáveis. A este propósito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, refletida no artigo 94.°, alíneas a) e b), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a necessidade de obter uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige que este defina o quadro factual e regulamentar em que se inserem as questões que submete ou que, pelo menos, explique as hipóteses factuais em que essas questões assentam (17). O pedido de decisão prejudicial no processo C‑259/23 dá resposta, no meu entender, a essas exigências. Por um lado, contém elementos suficientes para permitir ao Tribunal de Justiça compreender tanto o quadro jurídico e factual do litígio nos processos principais como o sentido e o alcance das questões prejudiciais submetidas. Por outro lado, a questão de saber se, como afirma a Synlabhealth, a AdC ultrapassou os limites da autorização do Ministério Público quando procedeu às inspeções e às apreensões nas instalações dessa sociedade enquadra‑se na apreciação dos factos e, logo, é da exclusiva competência do órgão jurisdicional de reenvio (18). A Synlabhealth afirma também que não foi ouvida sobre as questões prejudiciais submetidas, violando‑se as exigências processuais previstas pelo direito português, razão pela qual apresentou um recurso da decisão de reenvio (19). Pede que o Tribunal de Justiça suspenda os autos até que esse recurso seja decidido. A este respeito, recordo que resulta de jurisprudência constante que, no âmbito de um processo prejudicial previsto no artigo 267.° TFUE, não cabe ao Tribunal de Justiça, tendo em conta a repartição de funções entre este e o órgão jurisdicional nacional, verificar se a decisão de reenvio foi tomada em conformidade com as regras nacionais de organização e de processo judiciais. O Tribunal de Justiça deve, portanto, ater‑se à decisão de reenvio que emana de um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, enquanto tal decisão não tiver sido revogada no quadro das vias processuais eventualmente previstas pelo direito nacional (20). O pedido da Synlabhealth deve, pois, ser rejeitado. Por uma questão de exaustividade, refiro, por fim, que, nas suas observações escritas, a Synlabhealth alega uma violação do seu direito de participação no processo no Tribunal de Justiça, na medida em que não foi notificada da decisão do presidente que procede à apensação do processo C‑259/23 com os processos C‑258/23 e C‑260/23, nem dos pedidos de decisão prejudicial nestes dois últimos processos. A este propósito, limito‑me a salientar que o artigo 23.° do Estatuto do Tribunal de Justiça e o artigo 96.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça da União Europeia contêm uma enumeração exaustiva dos interessados que podem apresentar observações no quadro de um processo prejudicial. Esse direito não pode ser alargado a pessoas singulares ou coletivas não expressamente previstas (21). Além disso, as «partes no litígio no processo principal» são, segundo o artigo 97.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, as que forem determinadas como tais pelo órgão jurisdicional de reenvio, em conformidade com as regras processuais nacionais. Ora, não sendo a Synlabhealth parte nos litígios nos processos C‑258/23 e C‑260/23, não pode ser autorizada a apresentar observações ao Tribunal de Justiça nesses processos. Esta conclusão não é posta em causa pelo facto de o Tribunal de Justiça ter decidido apensar vários reenvios prejudiciais por razões de conexão ao abrigo do artigo 54.° do seu Regulamento de Processo.

28.      No processo C‑260/23, a SIBS alega, por um lado, que o reenvio prejudicial foi realizado num momento em que a matéria de facto ainda não tinha sido demonstrada, nem discutida, e, por outro, que as questões submetidas são desprovidas de pertinência em relação ao objeto do litígio, que implica que se avalie a legalidade das medidas em causa à luz do direito português e não da Carta. Quanto ao primeiro argumento, cabe recordar que compete ao órgão jurisdicional nacional decidir em que fase do processo deve este órgão colocar uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça (22). Este argumento deve, pois, ser rejeitado. Aplica‑se o mesmo ao segundo argumento, que se baseia em alegações que implicam uma análise de mérito das questões prejudiciais.

B.      Quanto às duas primeiras questões prejudiciais

29.      Como já referi, tomarei brevemente posição sobre as duas primeiras questões prejudiciais, que constituem um pressuposto lógico da terceira.

30.      Com a sua primeira questão prejudicial, o juiz de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se mensagens de correio eletrónico de caráter profissional, trocadas entre colaboradores e administradores de uma empresa através da caixa de correio desta, se enquadram no conceito de «comunicações» (23) na aceção do artigo 7.° da Carta. Esta questão, que considero admissível apesar dos argumentos em sentido contrário esgrimidos pela IMI (24), deve, em minha opinião, ter uma resposta afirmativa.

31.      A este propósito, recordo que, remetendo para a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), no Acórdão de 17 de dezembro de 2015, WebMindLicenses (25), o Tribunal de Justiça já teve ocasião de afirmar que as apreensões de mensagens de correio eletrónico efetuadas no decurso das visitas domiciliárias às instalações profissionais ou comerciais de uma pessoa singular ou às instalações de uma sociedade comercial constituem ingerências no exercício do direito ao respeito pela correspondência garantido pelo artigo 8.°, n.° 1, da CEDH (26) e, logo, em aplicação do artigo 52.°, n.° 3, da Carta, no exercício do direito correspondente consagrado no artigo 7.° desta (27). Esta afirmação aplica‑se às apreensões efetuadas quer no quadro de um processo penal quer no quadro de um processo administrativo (28). Além disso, a qualificação das mensagens de correio eletrónico enquanto «correspondência» na aceção do artigo 8.°, n.° 1, da CEDH e «comunicações» na aceção do artigo 7.° da Carta é independente da circunstância de essas mensagens já terem sido recebidas pelo seu destinatário, lidas, não lidas ou suprimidas, do facto de a comunicação ter sido enviada a partir das instalações ou equipamentos profissionais (29) ou através de uma caixa de correio eletrónico profissional (30) ou de a morada do remetente ou do destinatário ser a de uma pessoa coletiva (31), ou, ainda, da questão de saber se o seu conteúdo tem ou não um caráter privado (32). Assim, o facto de, à luz do seu conteúdo, uma mensagem de correio eletrónico poder ser qualificada de «documento profissional» não permite privá‑la da proteção que o artigo 7.° da Carta garante às comunicações. Por fim, esta proteção não respeita apenas ao conteúdo das mensagens de correio eletrónico, estendendo‑se também aos dados de caráter pessoal pessoais relativos ao tráfego por elas gerados, que são também protegidos pelo artigo 8.° da Carta (33).

32.      Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o artigo 7.° da Carta se opõe à apreensão, por uma autoridade nacional da concorrência, quando de uma inspeção nas instalações comerciais de empresas suspeitas de violarem os artigos 101.° ou 102.° TFUE, de mensagens de correio eletrónico entre colaboradores e administradores dessas empresas com caráter profissional. A esta questão deve, na minha opinião, ser dada uma resposta negativa.

33.      Recordo que, em conformidade com o artigo 52.°, n.° 1, da Carta, só podem ser introduzidas restrições ao exercício do direito ao respeito pelas comunicações consagrado no seu artigo 7.° se estas forem previstas por lei, respeitarem o conteúdo essencial do referido direito e, na observância do princípio da proporcionalidade, forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União ou à necessidade de proteção dos direitos e das liberdades de terceiros (34).

34.      No caso em apreço, no atinente, primeiro, à condição relativa ao respeito pelo princípio da legalidade, há que salientar que as medidas em causa nos processos principais se baseiam nos artigos 18.° a 21.° da Lei da Concorrência.

35.      No que se refere, segundo, ao respeito pelo conteúdo essencial do direito ao sigilo das comunicações, sublinho que é verdade que revistas e apreensões como as que estão em causa nos processos principais implicam o acesso ao conteúdo das comunicações enquanto tal (35). Todavia, no caso em apreço, resulta das decisões de reenvio que só as mensagens que respeitam ao objeto da investigação são, em princípio, visadas por essas medidas, e apenas de maneira pontual. Além disso, quanto à ingerência no direito ao respeito pelas comunicações das pessoas singulares em causa, essas medidas parecem referir‑se só a aspetos da sua vida profissional e não à sua esfera íntima e privada. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a existência de uma violação do conteúdo essencial dos direitos consagrados no artigo 7.° da Carta é apreciada sobretudo quantitativamente (36). Assim, em minha opinião, sob reserva das verificações que deverão ser feitas pelo órgão jurisdicional de reenvio, a segunda condição prevista pelo artigo 52.°, n.° 1, da Carta está também preenchida no caso em apreço e que as medidas na origem dos processos principais não podem violar o conteúdo essencial do direito ao respeito pelas comunicações das pessoas singulares ou coletivas em causa.

36.      No que respeita, terceiro, aos objetivos prosseguidos, as ingerências no exercício dos direitos consagrados no artigo 7.° da Carta que decorrem das inspeções e das apreensões efetuadas pelas autoridades nacionais de concorrência quando aplicam, em conformidade com o artigo 3.°, n.° 1, e com o artigo 5.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 (37), os artigos 101.° e 102.° TFUE, têm por finalidade detetar práticas contrárias a essas disposições. Ora, o Tribunal de Justiça já teve ocasião de afirmar que os artigos 101.° e 102.° TFUE são disposições de ordem pública que proíbem respetivamente os acordos e os abusos de posição dominante e que tem por finalidade, indispensável ao funcionamento do mercado interno, garantir que a concorrência não seja falseada nesse mercado (38).

37.      No que se refere, quarto, ao respeito pelo princípio da proporcionalidade, lembro que este princípio exige que as restrições que podem ser impostas aos direitos e liberdades consagrados na Carta não ultrapassem os limites do que é adequado e necessário para alcançar os objetivos legítimos prosseguidos ou a necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros, entendendo‑se que, sempre que exista uma escolha entre várias medidas adequadas, se deve recorrer à menos restritiva. Além disso, um objetivo de interesse geral não pode ser prosseguido sem que se tenha em conta o facto de que deve ser conciliado com os direitos fundamentais afetados pela medida, através de uma ponderação equilibrada entre, por um lado, o objetivo de interesse geral e, por outro, os direitos em causa, a fim de assegurar que os inconvenientes causados por esta medida não sejam desproporcionados relativamente aos objetivos prosseguidos. Assim, a possibilidade de justificar uma restrição aos direitos garantidos no artigo 7.° da Carta deve ser apreciada através da medição da gravidade da ingerência que tal restrição implica e da verificação de que a importância do objetivo de interesse geral prosseguido por esta restrição é proporcional a essa gravidade (39).

38.      No caso em apreço, a importância que o objetivo de proteção de uma concorrência efetiva e não falseada no mercado interno reveste pode, na minha opinião, justificar uma ingerência, mesmo grave, no direito ao respeito pelas comunicações das sociedades, tendo também em conta que, como reconheceram o TEDH e o Tribunal de Justiça, a ingerência pública pode ir mais além no caso de instalações ou de atividades profissionais ou comerciais (40). Além disso, como salienta a corretamente a Comissão, no ambiente digital atual, a correspondência eletrónica constitui uma das principais formas através das quais as empresas atuam. Assim, as diferentes formas em que esta correspondência se declina, como as mensagens de correio eletrónico trocadas através de caixas de correio profissionais, tornaram‑se elementos de prova frequentemente insubstituíveis para detetar práticas anticoncorrenciais (41). Resulta, além disso, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a revista e a apreensão de mensagens de correio eletrónico pela Comissão no exercício dos poderes que o artigo 20.° do Regulamento n.° 1/2003 lhe confere são admissíveis (42), desde que só sejam juntas ao processo as mensagens de correio eletrónico pertinentes (43). Do mesmo modo, resulta da jurisprudência do TEDH que tais medidas não são a priori excluídas no quadro de processos administrativos, quando a ingerência no direito ao respeito pela correspondência é proporcional à importância do objetivo legítimo prosseguido (44).

39.      Atendendo às considerações expostas, considero que o artigo 7.° da Carta não se opõe à revista e à apreensão, por uma autoridade nacional da concorrência, de mensagens de correio eletrónico trocadas através da caixa de correio interna de uma empresa sujeita a uma inspeção nas suas instalações profissionais ou comerciais no quadro de um inquérito por infração às regras da concorrência, desde que essas mensagens sejam pertinentes para o objeto da inspeção.

C.      Quanto à terceira questão prejudicial

40.      Com a sua terceira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se o artigo 7.° da Carta se opõe a que a apreensão, por uma autoridade nacional da concorrência, de mensagens de correio eletrónico entre colaboradores e administradores de uma empresa quando de uma inspeção nas suas instalações profissionais ou comerciais no âmbito de uma investigação por infração aos artigos 101.° ou 102.° TFUE seja autorizada por uma entidade como o Ministério Público no direito português, que está encarregado de representar o Estado e exercer a ação penal no interesse geral, de defender a legalidade democrática em conformidade com a Constituição, e que é independente.

41.      Para responder a esta questão, importa, antes de mais, recordar brevemente a jurisprudência do TEDH e do Tribunal de Justiça em matéria de buscas e apreensões nas instalações profissionais, para definir os padrões de proteção previstos respetivamente pelo artigo 8.° da CEDH e pelo artigo 7.° da Carta contra tais ingerências no direito, nomeadamente, ao respeito pela correspondência das sociedades.

42.      Quanto ao artigo 8.° da CEDH, importa, antes de mais, recordar que resulta da jurisprudência do TEDH que a proteção prevista por este artigo se pode estender a certas instalações comerciais, e que as medidas de busca e apreensão nessas instalações constituem ingerências no direito das sociedades em causa ao respeito pelo «domicílio» e pela «correspondência» (45). Este tribunal esclareceu, contudo, como já tive ocasião de observar, que a ingerência pública pode ir mais além no caso de instalações ou de atividades profissionais ou comerciais do que noutros casos (46). Além disso, a margem de apreciação deixada ao Estado para apreciar a necessidade de uma ingerência é maior quando a medida visa pessoas coletivas e não os particulares (47). Em seguida, há que salientar que resulta de uma análise dos acórdãos do TEDH na matéria que este examina a conformidade com o artigo 8.° da CEDH das medidas de busca e apreensão nas instalações das sociedades baseando‑se numa apreciação global do conjunto das circunstâncias de direito e de facto pertinentes do caso em apreço, como, nomeadamente, o alcance dos poderes conferidos à autoridade competente, as circunstâncias em que se produziu a ingerência e as diferentes garantias previstas pelo sistema jurídico em causa (48), de entre as quais a possibilidade de uma fiscalização jurisdicional efetiva a posteriori (49), em particular, é considerada por este tribunal uma garantia fundamental (50). O TEDH também sublinhou a necessidade de proceder a uma ponderação entre as ingerências e a importância do interesse público protegido (51). No Acórdão de 2 de outubro de 2014, Delta Pekárny a.s. c. República Checa (52), quanto à inspeção das instalações no contexto de práticas anticoncorrenciais, o TEDH afirmou expressamente que, em matéria de visitas domiciliárias nas instalações de uma sociedade, a não emissão prévia de uma autorização de inspeção por um juiz pode ser contrabalançada por uma fiscalização jurisdicional ex post facto da legalidade e necessidade dessa medida de instrução desde que essa fiscalização seja eficaz nas circunstâncias particulares do processo em questão. Tal implica que as pessoas em causa possam obter uma fiscalização jurisdicional efetiva, tanto de facto como de direito, da medida controvertida e da forma como esta se desenrola e que quando uma operação considerada irregular já teve lugar, o ou os recursos disponíveis permitem proporcionar ao interessado uma compensação adequada. De modo geral, para o que nos interessa para efeitos dos presente processo, resulta da jurisprudência do TEDH que o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, como protegido pelo artigo 8.° da CEDH, não é violado, tratando‑se das inspeções em instalações das sociedades, pela mera inexistência de autorização judicial prévia, um vez que são implementadas garantias adequadas e suficientes contra os abusos, nomeadamente uma fiscalização jurisdicional ex post completa das medidas em causa. O mesmo se aplica ao direito ao respeito pela correspondência, garantido por esse mesmo artigo, estando a questão da apreensão das comunicações das sociedades, na jurisprudência do TEDH, estreitamente relacionada com as buscas efetuadas nas suas instalações (53).

43.      Encontram‑se os mesmos princípios na jurisprudência do Tribunal de Justiça no que respeita ao artigo 7.° da Carta. Assim, no Acórdão WebMindLicenses, quanto à apreensão de mensagens de correio eletrónico no quadro de um processo penal, o Tribunal de Justiça afirmou que, não havendo autorização judicial prévia, a proteção dos indivíduos contra as infrações arbitrárias do poder público aos direitos garantidos por esse artigo exige um enquadramento legal e limites estritos dessa apreensão. Esclareceu, por um lado, que esta apreensão só é compatível com o referido artigo 7.° se a legislação e a prática internas oferecerem garantias adequadas e suficientes contra os abusos e a arbitrariedade e, por outro, que a não existência de um mandado judicial prévio pode, em certa medida, ser contrabalançada pela possibilidade de a pessoa visada na apreensão solicitar a posteriori a fiscalização jurisdicional quer da legalidade quer da necessidade desta, devendo essa fiscalização ser eficaz nas circunstâncias particulares do processo em causa (54). Quanto, mais precisamente, aos poderes de verificação da Comissão, o Tribunal de Justiça já teve ocasião de esclarecer que o sistema implementado na União Europeia cumpre as exigências do artigo 8.° CEDH, como interpretado pelo TEDH, e do artigo 7.° da Carta, e que a inexistência de autorização judicial prévia não podia acarretar, enquanto tal, a ilegalidade de uma medida de inspeção decidida pela Comissão. O Tribunal de Justiça salientou, nomeadamente, que o artigo 20.° do Regulamento n.° 1/2003 prevê quer um enquadramento legal desses poderes quer limites estritos ao seu exercício e indica expressamente, no seu n.° 8, que o Tribunal de Justiça é competente para exercer uma fiscalização da legalidade da decisão de inspeção adotada pela Comissão, fiscalização que incide tanto sobre as questões de direito como sobre as questões de facto e que é, pois, completa (55).

44.      Ora, o nível de proteção assegurado pelo artigo 7.° da Carta, como interpretado pelo Tribunal de Justiça, impõe‑se claramente ao exercício dos poderes de busca e apreensão das autoridades nacionais da concorrência quando aplicam os artigos 101.° e 102.° TFUE (56).

45.      Assim, à luz do exposto nos n.os 42 e 43 das presentes conclusões, há que concluir que o artigo 7.° da Carta não se opõe à legislação de um Estado‑Membro ao abrigo da qual, no quadro de uma investigação sobre uma alegada violação do artigo 101.° TFUE ou do artigo 102.° TFUE, a autoridade nacional da concorrência pode proceder à busca e à apreensão de mensagens de correio eletrónico cujo conteúdo está relacionado com o objeto da inspeção sem dispor de uma autorização judicial prévia, desde que estejam previstos um enquadramento legal estrito dos poderes dessa autoridade e garantias adequadas e suficientes contra os abusos e a arbitrariedade, nomeadamente uma fiscalização judicial ex post completa das medidas em causa.

46.      Esta conclusão não basta, no entanto, para responder de forma plena à questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, é necessário abordar esta questão também sob um ponto de vista diferente, e verificar se o direito da União se opõe a que, em circunstâncias como as dos processos principais, um Estado‑Membro aplique um nível nacional de proteção do direito fundamental ao respeito pelas comunicações garantido pelo artigo 7.° da Carta mais elevado do que o previsto por essa disposição, como interpretada pelo Tribunal de Justiça, nomeadamente ao impor à autoridade nacional da concorrência que obtenha uma autorização judicial prévia para poder proceder a inspeções e apreensões nas instalações de uma sociedade.

47.      A este propósito, importa observar que a Carta se inscreve num sistema de proteção dos direitos fundamentais na Europa que contém vários níveis, paralelamente, por um lado, às normas e convenções de direito internacional, entre as quais figura nomeadamente a CEDH, e, por outro, às Constituições nacionais. Neste contexto, o artigo 53.° da Carta visa clarificar o facto de esta não poder ser utilizada para justificar uma regressão em termos de nível de proteção dos direitos fundamentais oferecida pelo direito internacional, o direito da União, ou o direito dos Estados‑Membros. A proteção dos direitos fundamentais oferecida pelo direito constitucional dos Estados‑Membros pode, portanto, em princípio, coexistir com a garantida pela Carta, e completá‑la (57).

48.      O Tribunal de Justiça afirmou repetidamente que, quando, numa situação em que a ação dos Estados‑Membros não é inteiramente determinada pelo direito da União, uma disposição ou uma medida nacional aplique este direito na aceção do artigo 51.°, n.° 1, da Carta, as autoridades e os órgãos jurisdicionais nacionais podem aplicar padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais, desde que essa aplicação não comprometa nem o nível de proteção previsto na Carta, conforme interpretada pelo Tribunal de Justiça, nem o primado, a unidade e a efetividade do direito da União (58).

49.      Assim, a aplicação de padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais nos domínios em que a Carta se aplica tem três limites.

50.      Primeiro, tal aplicação pressupõe que a situação em causa não seja regulada de modo exaustivo pelo direito da União. Quanto, mais particularmente, à aplicação pelos Estados‑Membros das disposições de uma diretiva, ela só é possível quando essa diretiva não proceda a uma harmonização completa (59).

51.      No caso em apreço, importa salientar, por um lado, que o artigo 20.° do Regulamento n.° 1/2003 visa regular exclusivamente os poderes de inquérito da Comissão e não resulta nem da sua redação, nem do contexto em que se insere, nem da sua finalidade, que é aplicável também às autoridades nacionais de concorrência (60). Por outro lado, a Diretiva 2019/1, admitindo que se aplica aos factos em causa nos litígios nos processos principais, não visa uma aproximação completa das legislações dos Estados‑Membros relativas aos poderes das autoridades de concorrência em matéria de inspeções das instalações profissionais e de apreensões, nomeadamente no que respeita às condições a que está subordinada a validade das decisões de proceder a tais medidas. Estas condições são, pois, da competência dos Estados‑Membros, que são em princípio livres de aplicar às ingerências decorrentes das referidas medidas as garantias constitucionais previstas na sua própria ordem jurídica, incluindo a necessidade de uma autorização judicial prévia, sob reserva do respeito pelo direito da União. O artigo 6.°, n.° 3, da Diretiva 2019/1, lido à luz do considerando 31 desta, prevê, aliás, expressamente, que é aplicável, sem prejuízo dos requisitos previstos no direito nacional para a autorização prévia por parte de uma autoridade judicial nacional, à realização de tais inspeções (61).

52.      Segundo, a aplicação de padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais não deve comprometer o nível de proteção previsto pela Carta. Na ordem jurídica da União, a Carta fixa o nível mínimo de proteção dos direitos e liberdades que reconhece, de modo que nem as instituições, órgãos, ou organismos da União, nem os Estados‑Membros, que aplicam o direito da União, podem oferecer um nível de proteção inferior.

53.      No caso em apreço, é portanto possível a um Estado‑Membro prever que, em conformidade com as disposições constitucionais nacionais que garantem o direito fundamental ao respeito pela correspondência, a busca e a apreensão, pela autoridade nacional da concorrência, de mensagens de correio eletrónico quando de inspeções nas instalações profissionais de uma empresa no quadro de uma investigação por infrações ao artigo 101.° ou 102.° TFUE tenham de ser previamente autorizadas por uma autoridade judicial, quer se trate do Ministério Público, encarregado de exercer a ação penal no interesse geral, ou de um juiz de instrução, desde que, consideradas no seu conjunto, as garantias que envolvem as ingerências no referido direito fundamental decorrentes dessas medidas, incluindo as vias de recurso judiciais de que dispõem os interessados, alcancem um nível de proteção desse direito pelo menos equivalente ao garantido pelo artigo 7.° da Carta, como interpretado pelo Tribunal de Justiça.

54.      Terceiro, a aplicação de padrões nacionais de proteção dos direitos fundamentais não deve comprometer o primado, a unidade e a efetividade do direito da União (62). A este respeito, o Tribunal de Justiça rejeitou qualquer interpretação do artigo 53.° da Carta segundo a qual este autoriza, em geral, um Estado‑Membro a aplicar o nível mais elevado de proteção desses direitos garantido pela sua Constituição, e a opô‑lo, se for caso disso, à aplicação de disposições do direito da União (63). A possibilidade de um Estado‑Membro aplicar as suas próprias garantias constitucionais em matéria de buscas e apreensões no quadro das investigações por infrações aos artigos 101.° e 102.° TFUE, que asseguram um nível de proteção do direito fundamental ao respeito pela correspondência mais elevado do que o garantido pela Carta depende, portanto, nomeadamente, da questão de saber se essa aplicação pode prejudicar a eficácia da repressão das práticas anticoncorrenciais na União. A este propósito, recordo que o Tribunal de Justiça afirmou repetidamente que incumbe às autoridades de concorrência dos Estados‑Membros e aos seus órgãos jurisdicionais aplicar os artigos 101.° e 102.° TFUE, quando os factos sejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do direito da União, e garantir a sua aplicação efetiva no interesse geral (64).

55.      Ora, o facto de, em conformidade com a Constituição de um Estado‑Membro, como interpretada pelo Tribunal Constitucional desse Estado, a busca ou apreensão de mensagens de correio eletrónico, mesmo abertas/lidas, pela autoridade nacional da concorrência, quando de inspeções nas instalações profissionais de uma empresa suspeita de práticas anticoncorrenciais terem de ser previamente autorizadas por um juiz de instrução não é, em si, suscetível de pôr em causa a aplicação efetiva dos artigos 101.° e 102.° TFUE. Com efeito, como observei já no n.° 51 das presentes conclusões, resulta claramente da Diretiva 2019/1 que, no espírito do legislador da União, a previsão de um mecanismo de autorização prévia por parte de uma autoridade judicial para efeitos do exercício dos poderes de investigação das autoridades nacionais de concorrência é da competência dos Estados‑Membros e que essa diretiva estabelece, aliás, expressamente, no seu artigo 6.°, n.° 3, a faculdade de os Estados‑Membros preverem essa autorização.

56.      A AdC alega que a interpretação do Tribunal Constitucional não só põe em causa a possibilidade de utilizar enquanto meios de prova as mensagens de correio eletrónico apreendidas durante as buscas que são objeto dos processos principais, como arrisca também levar à invalidação das decisões definitivas de constatação da infração aos artigos 101.° e 102.° TFUE, devido à obtenção ilegal dos elementos probatórios em que esta autoridade se baseou, num período que cobre os últimos dez anos. Esta interpretação obsta, portanto, a uma aplicação efetiva das regras de concorrência da União.

57.      A este propósito, observo que não só o órgão jurisdicional de reenvio não questionou o Tribunal de Justiça sobre este ponto, como também não lhe forneceu os dados necessários para lhe permitir apreciar o alcance dos Acórdãos de 2023 e da sua aplicação no tempo, assim como a sua eventual incidência nas decisões definitivas de constatação da infração aos artigos 101.° e 102.° TFUE adotadas pela AdC.

58.      Nestas condições, limitar‑me‑ei às reflexões que se seguem.

59.      As regras relativas às condições de obtenção das provas e à sua utilização nos processos administrativos nacionais de aplicação dos artigos 101.° e 102.° TFUE são, na falta de disposições de direito da União na matéria, da competência dos Estados‑Membros (65). Assim, é possível a um Estado‑Membro prever, em circunstâncias como as dos processos principais, que as provas recolhidas durante medidas de inspeção conduzidas pela autoridade da concorrência quando não exista autorização judicial prévia exigida pela Constituição desse Estado‑Membro, como interpretada pelo seu Tribunal Constitucional depois da execução dessas medidas, sejam afastadas desse processo (66).

60.      No entanto, embora o estabelecimento e a aplicação destas regras sejam da competência dos Estados‑Membros, estes devem exercer essa competência no respeito pelo direito da União e, em especial, pelo princípio da efetividade. Assim, não podem tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União e, especificamente, no domínio do direito da concorrência, devem providenciar no sentido de que as regras que estabelecem ou aplicam não prejudiquem a aplicação efetiva dos artigos 101.° e 102.° TFUE, que as autoridades nacionais de concorrência são chamadas a assegurar no interesse geral (67).

61.      Ora, no caso em apreço, por um lado, considero que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, quando da apreciação das consequências a retirar dos Acórdãos de 2023, ter em conta a necessidade de assegurar uma aplicação efetiva das regras de concorrência da União, recorrendo a todas as possibilidades oferecidas pelo direito nacional — incluindo, sendo caso disso, a de sanar, em circunstâncias como as dos litígios nos processos principais, a inexistência de autorização judicial prévia através de uma fiscalização judicial a posteriori — para assegurar que o desrespeito dessas regras seja punido.

62.      Por outro lado, a fim de dar plena execução aos artigos 101.° e 102.° TFUE, os tribunais portugueses podem ser levados a não aplicar uma regra nacional que reconhece à interpretação adotada nos Acórdãos de 2023 um efeito retroativo que tem como consequência pôr em causa a responsabilidade das empresas em questão em situações em que uma infração ao direito da concorrência da União foi definitivamente constatada pela AdC, gerando um risco sistémico de impunidade para tais infrações (68).

V.      Conclusão

63.      À luz das considerações expostas, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda como segue à terceira questão prejudicial submetida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão em cada um dos processos apensos C‑258/23 a C‑260/23:

O artigo 7.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à legislação de um Estado‑Membro ao abrigo da qual, durante uma inspeção nas instalações de uma empresa, conduzida no quadro de uma investigação por violação do artigo 101.° ou 102.° TFUE, a autoridade nacional da concorrência procede à busca e à apreensão de mensagens de correio eletrónico cujo conteúdo está relacionado com o objeto da inspeção sem dispor de uma autorização judicial prévia, desde que estejam previstos um enquadramento legal estrito dos poderes dessa autoridade, bem como garantias adequadas e suficientes contra os abusos e a arbitrariedade, nomeadamente uma fiscalização judicial ex post completa das medidas em causa.


1      Língua original: francês.


2      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados‑Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno (JO 2019, L 11, p. 3).


3      Texto fornecido pela Comissão.


4      Texto fornecido pela Comissão.


5      Os inquéritos respeitavam: no caso da IMI, à existência de um acordo/prática concertada no mercado da telerradiologia, com vista à eliminação da concorrência e resultando num aumento do preço pago pelo Estado na prestação de serviços nesta área; no caso da SIBS, a um eventual abuso de posição dominante que consistia na imposição a terceiros de condições abusivas de acesso à rede Multibanco, com o objetivo de restringir a concorrência, nomeadamente na área de processamento de pagamentos; e, no caso da Synlabhealth, numa alegada prática anticoncorrencial, que consistia na troca de informação sensível entre concorrentes e na concertação no quadro da negociação de preços de testagem à COVID‑19, com as autoridades de saúde pública portuguesas.


6      Respetivamente, em janeiro‑fevereiro de 2021 nas instalações da SIBS, em setembro‑outubro de 2021 nas instalações da IMI e em março de 2022 nas instalações da Synlabhealth.


7      Nos três reenvios prejudiciais, as questões estão redigidas nos mesmos termos, exceto no que respeita, na segunda questão, à referência, consoante o caso, ao artigo 101.° ou 102.° TFUE.


8      V., a título de exemplo, Acórdão de 3 de abril de 2019, Powszechny Zakład Ubezpieczeń na Życie (C‑617/17, EU:C:2019:283, n.° 36).


9      Acórdão n.° 91/2023, processo n.° 559/2020 (a seguir «Acórdão n.° 91/2023»).


10      Acórdão n.° 314/2023, processo n.° 145/2021.


11      A diferença de natureza entre as mensagens de correio eletrónico abertas e as mensagens de correio eletrónico fechadas parece ter suscitado numerosos debates na jurisprudência e na doutrina portuguesa, como expõe nomeadamente o Governo Português. Este Governo observa, em particular, que até muito recentemente os órgãos jurisdicionais portugueses consideravam que, quando apreendia mensagens de correio eletrónico abertas/lidas, a AdC não ingeria no processo comunicativo e de «correspondência», de modo que essas mensagens eram reconduzidas ao conceito de «documento».


12       V. Acórdão n.° 91/2023, n.os 15 a 18 dos fundamentos.


13       V. Acórdão n.° 91/2023, n.os 19 e seguintes dos fundamentos.


14      O primeiro destes acórdãos foi, todavia, junto aos autos nos processos principais transmitidos à Secretaria do Tribunal de Justiça.


15      Estes reenvios são objeto dos processos C‑132/24, Apap e o., e C‑195/24, Blueotter e o.


16      O mesmo argumento é suscitado pela SIBS no processo C‑260/23.


17      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2023, European Superleague Company (C‑333/21, EU:C:2023:1011, n.° 59).


18      V., neste sentido, Acórdão de 11 de janeiro de 2024, Global Ink Trade (C‑537/22, EU:C:2024:6, n.° 40).


19      Saliento que tal recurso foi também interposto pela SIBS.


20      V. Acórdão de 21 de dezembro de 2023, Krajowa Rada Sądownictwa (Manutenção em funções de um juiz) (C‑718/21, EU:C:2023:1015, n.° 42 e jurisprudência referida).


21      V., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2015, Orizzonte Salute (C‑61/14, EU:C:2015:655, n.° 31).


22      V., neste sentido, Acórdão de 17 de julho de 2008, Coleman (C‑303/06, EU:C:2008:415, n.° 29).


23      Saliento que o termo «correspondência», utilizado na redação da primeira questão prejudicial e que figura no texto original do artigo 7.° da Carta, foi substituído, em 2007, pela palavra «comunicações», para ter em conta os avanços tecnológicos: v. Anotações relativas à Carta (JO 2007, C 303, p. 17).


24      Quanto, primeiro, ao argumento, avançado pela IMI, segundo o qual a primeira questão prejudicial é inadmissível devido à falta de menção pelo órgão jurisdicional de reenvio do Acórdão n.° 91/2023, remeto para as considerações expostas no n.° 26 das presentes conclusões. No que respeita, segundo, ao argumento de que não há lugar a «nenhuma dúvida razoável» quanto a esta questão, limito‑me a recordar que, segundo jurisprudência constante, tal circunstância pode, quando muito, isentar o órgão jurisdicional nacional que decide em última instância da sua obrigação de recorrer ao Tribunal de Justiça por força do artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE, mas não é suscetível de demonstrar a inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial; v. Acórdão de 7 de fevereiro de 2023, Confédération paysanne e o. (Mutagénese aleatória in vitro) (C‑688/21, EU:C:2023:75, n.os 35 e 36 e jurisprudência referida). V., também, Acórdão de 25 de janeiro de 2024, Croce Rossa Italiana e o. (C‑389/22, não publicado, EU:C:2024:77, n.° 52).


25      C‑419/14, a seguir Acórdão «WebMindLicenses», EU:C:2015:832.


26      O artigo 8.°, n.° 1, da CEDH enuncia que «[q]ualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência».


27      V. Acórdão WebMindLicenses, n.os 70 a 73. O Tribunal de Justiça apoiou‑se nos Acórdãos do TEDH de 16 de dezembro de 1992, Niemietz c. Alemanha (CE:ECHR:1992:1216JUD001371088, §§ 29 a 31), de 16 de abril de 2002, Société Colas Est e o. c. França (CE:ECHR:2002:0416JUD003797197, §§ 40 a 41), e de 2 de abril de 2015, Vinci Construction e GTM Génie Civil et Services c. França (CE:ECHR:2015:0402JUD006362910, § 63); v., mais recentemente, TEDH, 4 de abril de 2023, UAB Kesko Senukai Lituanie c. Lituânia (CE:ECHR:2023:0404JUD001916219, § 109).


28      Embora o processo que deu lugar ao Acórdão WebMindLicenses tratasse de mensagens de correio eletrónico apreendidas durante um processo penal, o Tribunal de Justiça especificou, contudo, nesse acórdão, que a sua «utilização» no quadro de um processo administrativo constituía também, enquanto tal, uma restrição ao exercício do direito garantido pelo artigo 7.° da Carta (v. n.° 80).


29      V. TEDH, 11 de janeiro de 2024, Arregui c. Espanha (CE:ECHR:2024:0111JUD004254118, § 31 e jurisprudência referida). No seu Acórdão de 5 de setembro de 2017, Bărbulescu c. Roménia (CE:ECHR:2017:0905JUD006149608, § 74), em que se tratava de mensagens privadas enviadas de um computador profissional, o TEDH esclareceu que a regra fixada pelo empregador que impõe aos trabalhadores que se abstenham de qualquer atividade pessoal no seu local de trabalho e que lhes proíbe a utilização dos recursos da empresa para fins pessoais era irrelevante para efeitos da qualificação de «correspondência» nos termos do artigo 8.°, n.° 1, da CEDH.


30      V. TEDH, 3 de abril de 2007, Copland c. Reino Unido (CE:ECHR:2007:0403JUD006261700, §§ 41 e 42).


31      V. TEDH, 14 de março de 2013, Bernh Larsen Holding AS e o. c. Noruega (CE:ECHR:2013:0314JUD002411708, § 106).


32      V. TEDH, 5 de setembro de 2017, Bărbulescu c. Roménia  (CE:ECHR:2017:0905JUD006149608, §§ 72 e 73) e TEDH, 16 de dezembro de 1992, Niemietz c. Alemanha (CE:ECHR:1992:1216JUD001371088, § 32 in fine).


33      V. TEDH, 16 de outubro de 2007, Wieser e Bicos Beteiligungen GmbH c. Áustria (CE:ECHR:2007:1016JUD007433601, § 45).


34      V. Acórdão WebMindLicenses, n.° 73.


35      Recordo que, no Acórdão de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland e o. (C‑293/12 e C‑594/12, EU:C:2014:238), o Tribunal de Justiça considerou, em substância, que a obrigação de conservação dos dados imposta pela Diretiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Diretiva 2002/58/CE (JO 2006, L 105, p. 54), não atingia um nível de gravidade tal que afetasse o conteúdo essencial do direito ao respeito pela vida privada, uma vez que não permitia «tomar conhecimento do conteúdo das comunicações eletrónicas, enquanto tal»; v., também, quanto à Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas), Acórdão de 21 de dezembro de 2016, Tele2 Sverige e Watson e o. (C‑203/15 e C‑698/15, EU:C:2016:970, n.° 101).


36      V., neste sentido, Parecer 1/15 (Acordo PNR UE‑Canadá), de 26 de julho de 2017, EU:C:2017:592, n.° 150), e Acórdão de 21 de junho de 2022, Ligue des droits humains (C‑817/19, EU:C:2022:491, n.° 120), e Conclusões do advogado‑geral G. Pitruzzella nesse processo (EU:C:2022:65, n.° 93).


37      Regulamento do Conselho de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1).


38      V., relativamente ao artigo 101.° TFUE, Acórdão de 22 de março de 2022, Nordzucker e o. (C‑151/20, EU:C:2022:203, n.° 51 e jurisprudência referida), e, relativamente ao artigo 102.° TFUE, Acórdão de 22 de março de 2022, bpost (C‑117/20, EU:C:2022:202, n.° 46 e jurisprudência referida).


39      V., neste sentido, Acórdão de 8 de dezembro de 2022, Orde van Vlaamse Balies e o. (C‑694/20, EU:C:2022:963, n.° 41 e jurisprudência referida).


40      V. TEDH, Niemitz c. Alemanha, 16 de dezembro de 1992 (CE:ECHR:1992:1216JUD001371088, § 31); v., também, Acórdão de 18 de junho de 2015, Deutsche Bahn e o./Comissão (C‑583/13 P, EU:C:2015:404, n.° 20).


41      V., neste sentido, Diretiva 2019/1, considerando 32 e artigo 32.°, que colocam as mensagens eletrónicas entre as provas que devem ser consideradas admissíveis perante uma autoridade nacional da concorrência.


42      V. Acórdãos de 16 de julho de 2020, Nexans France e Nexans/Commission (C‑606/18 P, EU:C:2020:571, n.os 56 a 64), e de 30 de janeiro de 2020, České dráhy/Comissão (C‑538/18 P e C‑539/18 P, não publicado, EU:C:2020:53, n.os 101 a 104).


43      V., neste sentido, Acórdãos de 24 de setembro de 2020, Prysmian e Prysmian Cavi e Sistemi/Comissão (C‑601/18 P, EU:C:2020:751, n.os 58 e 59), e de 30 de janeiro de 2020, České dráhy/Comissão (C‑538/18 P e C‑539/18 P, não publicado, EU:C:2020:53, n.° 99 e jurisprudência referida).


44      V. TEDH, 14 de março de 2013, Bernh Larsen Holding AS e o. c. Noruega (CE:ECHR:2013:0314JUD002411708, §§ 172 a 175), que tratava de inspeções conduzidas para efeitos de controlo fiscal.


45      V. TEDH, 4 de abril de 2023, UAB Kesko Senukai c. Lituânia (CE:ECHR:2023:0404JUD001916219, § 109 e jurisprudência referida).


46      V. TEDH, 16 de dezembro de 1992, Niemitz c. Alemanha (CE:ECHR:1992:1216JUD001371088, § 31).


47      V. TEDH, 2 de outubro de 2014, Delta Pekárny A.S. c. República Checa (CE:ECHR:2014:1002JUD000009711, § 82 e jurisprudência referida).


48      V. TEDH, 16 de abril de 2002, Colas Est e o. c. França (ECLI:CE:ECHR:2002:0416JUD003797197, §§ 48 e 49), e, no que respeita, nomeadamente, à correspondência das sociedades, TEDH, 14 de março de 2013, Bernh Larsen HoldingAS e o. c. Noruega (CE:ECHR:2013:0314JUD002411708, §§ 172 a 174); TEDH, 23 de junho de 2022, Naumenco e Sia Rix Shipping c. Letónia (CE:ECHR:2022:0623JUD005080514, § 62), e TEDH, 4 de abril de 2023, UAB Kesko Senukai c. Lituânia (CE:ECHR:2023:0404JUD001916219, §§ 113 e 118 e jurisprudência referida).


49      V. TEDH, 4 de abril de 2023, UAB Kesko Senukai c. Lituânia (CE:ECHR:2023:0404JUD001916219, §§ 113 e 117 e jurisprudência referida).


50      V., neste sentido, Acórdão de 18 de junho de 2015, Deutsche Bahn e o./Comissão (C‑583/13 P, EU:C:2015:404, n.° 32).


51      V. TEDH, 14 de março de 2013, Bernh Larsen Holding AS e o./Noruega (CE:ECHR:2013:0314JUD002411708, § 174).


52      CE:ECHR:2014:1002JUD000009711, §§ 86 e 87 e jurisprudência referida. No mesmo sentido, v. TEDH, 19 de janeiro de 2017, Posevini c. Bulgária (CE:ECHR:2017:0119JUD006363814, § 84).


53      V. Guide sur l’article 8 de la CEDH, «Droit au respect de la vie privée et familiale, du domicile et de la correspondance», 2022, n.° 602.


54      V. n.os 77 e 78 desse acórdão.


55      V., neste sentido, Acórdão de 18 de junho de 2015, Deutsche Bahn e o./Comissão (C‑583/13 P, EU:C:2015:404, n.os 29 a 36); v., também, Acórdão de 6 de setembro de 2013, Deutsche Bahn e o./Comissão (T‑289/11, T‑290/11 e T‑521/11, EU:T:2013:404, n.os 74 a 100); sobre a possibilidade de o conjunto dos recursos iniciados contra as medidas de inspeção da Comissão poder contrabalançar a falta de uma fiscalização judicial prévia, v., também, Acórdão de 9 de março de 2023, Les Mousquetaires e ITM Entreprises/Comissão (C‑682/20 P, EU:C:2023:170, n.os 57 e segs.).


56      A aplicação do direito da concorrência da União assenta num sistema de competências paralelas no quadro do qual tanto a Comissão como as autoridades nacionais de concorrência podem aplicar os artigos 101.° e 102.° TFUE (v. Acórdão de 23 de novembro de 2017, Gasorba e o. (C‑547/16, EU:C:2017:891, n.° 23). No exercício das suas competências, estas autoridades têm de respeitar a Carta e, nomeadamente, o seu artigo 7.° quanto aos poderes de inspeção.


57      V., neste sentido, Acórdão de 24 de julho de 2023, Lin (C‑107/23 PPU, EU:C:2023:606, n.° 115).


58      V. Acórdão de 29 de julho de 2019, Spiegel Online (C‑516/17, EU:C:2019:625, n.° 21 e jurisprudência referida). V., no mesmo sentido, Acórdão de 24 de julho de 2023, Lin (C‑107/23 PPU, EU:C:2023:606, n.° 110), e, por último, Despacho de 9 de janeiro de 2024, Unitatea Administrativ Teritorială Judeţul Braşov (C‑131/23, EU:C:2024:42, n.° 81).


59      V. Acórdão de 29 de julho de 2019, Funke Medien NRW (C‑469/17, EU:C:2019:623, n.° 33).


60      V., por analogia, Acórdão de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export (C‑308/19, EU:C:2021:47, n.os 35 a 38).


61      Saliento que é concedida uma margem discricionária aos Estados‑Membros também no caso de a Diretiva 2019/1 prever que é necessária uma autorização prévia; v. artigo 7.°, n.° 2, lido conjuntamente com o considerando 34 dessa diretiva.


62      V., neste sentido, Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107, n.° 60).


63       V. Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107, n.° 56).


64      V. Acórdão de 14 de junho de 2011, Pfleiderer (C‑360/09, EU:C:2011:389, n.° 19 e jurisprudência referida); no mesmo sentido, v., também, Acórdão de 18 de janeiro de 2024, Lietuvos notarų rūmai e o. (C‑128/21, EU:C:2024:49, n.° 108 e jurisprudência referida).


65      Nem o Regulamento n.° 1/2003, nem a Diretiva 2019/1, com exceção do seu artigo 32.°, que visa os meios de prova admissíveis perante uma autoridade nacional da concorrência, contêm disposições a este respeito.


66       Tal regra mais não faz que refletir as exigências decorrentes do respeito pelos princípios da legalidade e do Estado de direito e pelos direitos fundamentais; v., por analogia, Acórdão de 17 de janeiro de 2019, Dzivev e o. (C‑310/16, EU:C:2019:30, n.° 38); v., também, Acórdão WebMindLicenses, n.os80 a 89.


67      V. Acórdão de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export (C‑308/19, EU:C:2021:47, n.° 46).


68      V., por analogia, Acórdão de 24 de julho de 2023, Lin (C‑107/23 PPU, EU:C:2023:606, n.os 111 a 124 e ponto 1 do dispositivo). V. também, por analogia, Acórdão de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export (C‑308/19, EU:C:2021:47, n.° 53).